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RESISTÊNCIAS NO PAÍS DOFUTEBOL

A COPA EM CONTEXTO

Gerhard Dilger (org.)

Trad. Kristina Michahelles, Monika Ottermann e Petê Rissatti

São Paulo

Junho de 2014

FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO

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Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto

Gerhard Dilger (org.)

Junho de 2014

Tradução: Kristina Michahelles, Monika Ottermann e Petê Rissatti

Capa e diagramação: Ana Rüsche

A publicação que deu origem à presente obra foi o livro Fußball in Brasilien: Widerstandund Utopie, publicado pela editora VSA de Hamburgo em 2014.

Somente alguns direitos reservados. Esta obra possui a licença CreativeCommons deAtribuição + Uso não comercial + Não a obras derivadas (BY-NC-ND), ou seja, qualquerpessoa tem o direito de copiar e distribuir a obra, desde que seja para fins não comerciaise que os créditos dos autores, organizador e tradutores sejam respeitados.

Fundação Rosa Luxemburgo

www.rosaluxspba.org

R429r

Resistências No País Do Futebol: A Copa Em Contexto/ Organizado por GerhardDilger / Traduzido por Kristina Michahelles; Monika Ottermann; Petê Rissatti.

Resistências No País Do Futebol: A Copa Em Contexto/ Organizado por GerhardDilger / Traduzido por Kristina Michahelles; Monika Ottermann; Petê Rissatti –São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2014.

116p.

ISBN: 978-85-68302-00-2

1. Futebol 2. História I. Título.

CDD - 796

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Brasília, junho de 2013.

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FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO

ÍNDICE

O Brasil é uma caixinha de surpresas ..................................................................................... 9

Gerhard Dilger

O CONTEXTO INTERNACIONAL

2006: Como os alemães estenderam o tapete vermelho à FIFA................................... 15

Andreas Rüttenauer

2010: A África do Sul não foi uma história de sucesso ................................................... 23

Patrick Bond

Não precisamos copiar os europeus ..................................................................................... 35

Eduardo Galeano

Peneirar como no garimpo ...................................................................................................... 39

Martin Ling

A copa de 2018 na Rússia ....................................................................................................... 45

Vladimir Fomenko

O Brasil treina com blindados, canhões de água e pistolas ........................................... 55

Christian Russau

O embaixador de marcas: Paul Breitner no Brasil ............................................................ 59

Gerhard Dilger

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Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto

Caminhando pelo teto do Maracanã, Rio de Janeiro, 2013.

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FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO

O CONTEXTO BRASILEIRO

1968 - 1984: da militarização do futebol até a Democracia Corinthiana ............... 65

Thomas Fatheuer

Futebol e Nação - A identidade brasileira existe? ............................................................ 73

Thomas Fatheuer

Lula, Dilma e a Copa .................................................................................................................. 83

Juca Kfouri

Elas, no país do futebol ............................................................................................................. 89

Lívia Duarte

"Nós valemos mais!" ................................................................................................................. 95

Júlio Delmanto

A explosão de um modelo ..................................................................................................... 101

Raquel Rolnik

Gol de letras .............................................................................................................................. 109

Luiz Ruffato

Autores e autoras ................................................................................................................. 112

Leia mais: referências bibliográficas............................................................................. 114

Créditos das imagens ......................................................................................................... 115

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Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto

Torcedores do Ponta Preta no Pacaembu, São Paulo, dezembro de 2013.

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FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO

O futebol é uma caixinha desurpresas, eis uma das tantas expres-sões em torno do esporte popular. Defato, quem teria imaginado? O Brasil,supostamente tão entusiasmado como futebol, não está simplesmente felize agradecido por poder realizar a Co-pa de 2014. Não: durante as jornadasde junho de 2013, milhões de brasi-leir@s foram às ruas durante a Copadas Confederações. Não só por causado futebol, mas também por causadele. Poucas semanas antes do ponta-pé inicial no Itaquerão, a maioria dapopulação acredita que o megaeventopossa ter mais consequências negati-vas do que positivas para o Brasil. Osentimento geral é mais de reserva doque de entusiasmo, e no mundo intei-ro surge a pergunta: o que aconteceno país do futebol?

Não foi apenas no Brasil que as jor-nadas de junho causaram surpresa,

expectativas e muitas perguntas. NaEuropa, onde os nítidos progressoseconômicos e sociais dos governos deLuiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rous-seff durante muito tempo dominarama mídia, e não só de esquerda, o tommudou radicalmente. “Brazil takes off”estampou a revista The Economist emuma capa de 2010, com a imagem doCristo Redentor decolando. Três anosmais tarde, o principal porta-voz docapitalismo mundial perguntou: “HasBrazil blown it?“, sugerindo que a deco-lagem fulminante virou um voo de ga-linha.

Na Feira do Livro de Frankfurt emoutubro de 2013, este paradoxo ficoumais do que visível. De um lado, oBrasil se apresentou como nação cul-tural em pleno desenvolvimento comum impressionante espectro de lite-rat@s. Por outro lado, em uma falainaugural recheada de críticas, o

O BRASIL É UMA CAIXINHA DESURPRESAS

Gerhard Dilger

Trad. Kristina Michahelles

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Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto

anos. Na potência pós-soviética, emque a comercialização e a corrupçãono futebol ainda florescem mais doque aqui, a FIFA também pode esperarlucros bilionários.

Quem também está rindo de orelhaa orelha são empresas transnacionaisda Alemanha ou da Áustria que ga-nham dinheiro fornecendo armas paraos países-sede da Copa. Comparado aelas, a atuação de Paul Breitner como“embaixador de marcas” no Brasil pa-rece até uma variante mais inofensivada mercantilização. Mais complicadaé a exportação brasileira de “mão deobra e pé de obra para o norte domundo” (Eduardo Galeano). Ela re-presenta o reverso da medalha da de-sorganização do futebol brasileirosujeita a interesses oligárquicos depoder e lucro, e onde aos jogos doBrasileirão comparece menos gentedo que aos jogos da Segunda Divisãona Alemanha.

“Não precisamos copiar os euro-peus” – essa frase que Galeano profe-riu em outro contexto, combina bemcom a tentativa de governos “pro-gressistas” na América do Sul na dé-cada passada de tentar imprimir umapolítica que superasse o neoliberalis-mo. Acontece que justamente a reali-zação da Copa de 2014 e dos JogosOlímpicos de Verão de 2016, para osquais o Brasil definitivamente quis seposicionar como global player, geroutemores de que esse projeto poderia

escritor Luiz Ruffato causou furor aoapontar para a realidade amarga doatual capitalismo selvagem1.

Em Frankfurt, também constata-mos que os livros em alemão sobre oBrasil e a Copa de 2014 nem de longerefletiram essa situação contraditória.Por essa razão, a Fundação RosaLuxemburgo (FRL) decidiu publicarum livro crítico, de esquerda, baseadona simpatia pelo Brasil e pelo futebolbrasileiro. O resultado, “Futebol noBrasil, utopia e resistência”2 , foi lan-çado em maio, justo no momento emque o Brasil foi destaque em toda amídia.

No Brasil, onde o escritório regionalda FRL funciona desde 2003, apre-sentamos a edição original e esta ver-são resumida em português. Oobjetivo da edição brasileira é mostrarnossa principal meta no trabalho polí-tico no Brasil e no Cone Sul: enrique-cer o debate crítico na região, bemcomo ambientá-lo dentro do contextointernacional.

Os textos sobre as Copas de 2006na Alemanha e em 2010 na África doSul mostram que, antes do Brasil,houve outros países em que os políti-cos atenderam, com bastante subser-viência, os desejos da FIFA.3 Asperspectivas não parecem muito me-lhores para a Rússia em 2018, a nãoser que os acontecimentos no Brasilforcem os cartolas da federação mun-dial a mudar de opinião nos próximos

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FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO

historicamente excluída, mas uma inclu-são via consumo. A esfera pública, a di-mensão pública das cidades e seusserviços, historicamente péssimos, po-bres para os pobres, isso não mudou ummilímetro. O modelo de urbanização e dedesenvolvimento continuou voltado prafavorecer quem ele sempre favoreceu. Aexplosão das ruas (…) exige uma outracoisa."

Brasileiros e brasileiras tampoucoconseguiram se acostumar ao jeitoautoritário da FIFA, que lembra as im-posições do Fundo Monetário Inter-nacional, das quais o Brasil conseguiuse libertar no governo de Lula. Nin-guém esquece o famoso “chute notraseiro” – necessário para manter osprazos nos preparativos da Copa, se-gundo o secretário-geral da FIFA,Jérôme Valcke. E o texto de LíviaDuarte mostra que, no futebol ma-chista, o caminho para uma verdadei-ra equidade de gêneros ainda é muitomais longo do que em outros lugares.

Um destaque da nossa publicaçãoem alemão é o ensaio de ThomasFatheuer sobre um século de históriacultural e social do futebol brasileiro,do qual apresentamos aqui os últimosdois capítulos. “Lampejos de utopia”,constata ele em vários momentos, co-mo na Democracia Corinthiana dogrande Sócrates. “Continua em abertoa pergunta sobre se o sonho de umoutro futebol, de um futebol belo,também inclui o sonho de um outro

correr perigo em toda a região – seriauma amarga ironia. A aliança do Parti-do dos Trabalhadores com parcelas daoligarquia que está no poder há 500anos ameaça se tornar um gol contra,analisa Juca Kfouri.

Em sua missão de relatora especialda ONU para o direito à moradia ade-quada, desde o início Raquel Rolnikposicionou-se ao lado dos comitêspopulares da Copa nas 12 cidades-se-de. Uma visita feita por ela em fins de2013 é exemplar para essa atividade.Por ocasião de um dos semináriosapoiados pela FRL dos quatro comitêspopulares do Nordeste, Rolnik esteveem Recife. Ali, manteve conversa di-retas com as autoridades, com os mo-radores ameaçados de remoçõesforçadas e representantes da mídia,além de um debate público na univer-sidade. Seguiram-se debates por vári-os dias na capital de Pernambuco e aresistência contra as remoções im-postas foi reforçada. Nas outras onzecidades-sede, os comitês populares daCopa também conseguiram algunsêxitos no trabalho junto aos atingidos.

“A explosão de junho (de 2013) émuito mais ampla que a questão daCopa,” constata Raquel Rolnik:

"É a explosão de um modelo de nega-ção do direito à cidade para a maior par-te da população (…) Ela é fruto também,me parece, dos anos recentes em queocorre um processo de inclusão muitosignificativo de uma parcela

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Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto

Notas

1 Discurso de Luiz Ruffato na Abertura da

Feira do Livro de Frankfurt na íntegra

http://www.estadao.com.br/noticias/arteela-

zer,leia-a-integra-do-discurso-de-luiz-ruffato-

na-abertura-da-feira-do-livro-de-frank-

furt,1083463,0.htm.

2 Edição on-line "Fußball in Brasilien: Widers-

tand und Utopie" http://www.rosalux.de/publi-

cation/40370/fussball-in-brasilien-widerstand

-und-utopie.html.

3 Para uma comparação direta entre a África

do Sul e o Brasil, veja http://www.bbc.co.uk/-

portuguese/noticias/2014/05/140515_copa_-

peter_alegi_ms.shtml.

mundo melhor”, conclui Fatheuer, comcuidado.

De fato, a realização e os resultadosda Copa de 2014 ainda estão emaberto – tanto em termos futebolísti-cos quando em termos políticos. Tal-vez se confirme que logo o futebol,tantas vezes visto como “ópio do po-vo“, fortaleceu a resistência contra ocapitalismo financeiro do século 21em tantas esferas e talvez venha a sero catalisador de uma nova transfor-mação social. O Brasil é uma caixinhade surpresas…

São Paulo, maio de 2014.

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O CONTEXTO INTERNACIONAL

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Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto

Dortmund, Alemanha, 2006.

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FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO

Joseph “Sepp” Blatter prestou umgrande serviço à Alemanha. Quem oconstata é a Chanceler alemã, AngelaMerkel, por ocasião de uma recepçãopara o presidente da Federação Inter-nacional de Futebol no dia 7 de julhode 2006. “Aceitando-nos como sededa Copa do Mundo, a FIFA demostrougrande confiança em nós alemães”,afirma ela e condecora Blatter com aOrdem de Mérito da República Fede-ral da Alemanha, no refeitório nobre-mente decorado do Gabinete daChancelaria, dois dias antes do térmi-no da Copa 2006. O homem do cantãoValais finge comoção, como se ele nãosoubesse que a condecoração faziaparte daquele imenso negócio comque o Governo Federal se submeteu àFIFA.

A Copa do Mundo levou a Alema-nha a um delírio nacional que atémesmo os comercializadores

nacionais mais otimistas do governonão tinham julgado possível. Ela é umsucesso comercial para a FIFA, umafaçanha logística inédita da parte daorganizadora, a Federação Alemã deFutebol (DFB), e para o Estado, ela é agrande festa tão esperada desde areunificação em outubro de 1990.

Franz Beckenbauer, o “imperador”alemão do futebol, na época presi-dente do Comitê Organizador da Co-pa, está quase onipresente em todosos dias de jogos. “É assim que o bomDeus sonhou o mundo”, diz ele poucoantes do fim da Copa sobre as festasoficiais, organizadas pela FIFA nas ci-dades dos jogos. Centenas de milha-res de pessoas reúnem-se nelas nosdias dos jogos e brilham mais forte doque o sol que, para as condições cli-máticas alemãs, brilhava bastante na-queles dias. No “país de um sonho deverão”, em seu embrulho negro-rubro-

2006: COMO OS ALEMÃESESTENDERAM O TAPETEVERMELHO À FIFA

Andreas Rüttenauer

Trad. Monika Ottermann

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Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto

privar Blatter da Ordem de Méritorecebida.

No verão de 2012, multiplicam-sena Alemanha as reportagens sobre opagamento de subornos no contextoda decisão de levar Copas para a Rús-sia e para o Qatar. Para Blatter, istoparece ser a gota d’água. Numa entre-vista concedida ao tabloide suíçoSonntagsblick, ele diz: “Uma Copacomprada… Aí eu me lembro da licita-ção da Copa 2006... no último instan-te, alguém se levantou e deixou a sala.E assim, a votação deu 10 para a Ale-manha e 9 contra, em vez de 10 x 10.Eu fiquei contente, porque aí eu nãotive que desempatar. Mas, afinal... derepente alguém se levanta e sai. Tal-vez eu tenha sido também muito bon-zinho e ingênuo.”

Para a Alemanha, que continuavaembriagada com seu sonho de verão,isto passa do limite. O jornal Frankfur-ter Allgemeine Zeitung lança a manche-te “Conspurcaram nosso sonho deverão”. Blatter afoga-se num shitstormmidiático e relativiza suas afirmações.É incrível que os alemães ainda não ti-vessem percebido que o processo de-cisório em favor da Alemanha haviasido o resultado de jogadas bem mar-cadas.

Em seu livro FIFA-Mafia (2012), ojornalista esportivo Thomas Kistnersintetiza mais uma vez todas as sus-peitas que deixam a votação do Comi-tê Executivo da FIFA no dia 6 de julho

dourado, não se encontra quase nin-guém que queira contradizer ao im-perador.

Cerca de seis anos depois – e umano depois de ter sido bajulado maisuma vez pelos digníssimos cavalheirose damas do esporte e da política, porocasião da Copa Feminina de 2011 –Blatter se torna quase uma personanon grata na Alemanha. Finalmente édocumentado o que circulava na mídiahá tempos, a saber, que vários figu-rões da FIFA cobraram subornosexorbitantes da então empresa demarketing para direitos esportivos ISL(International Sport and Leisure). Umdos principais dirigentes da organiza-ção do futebol alemão convida Blattera renunciar.

Reinhard Rauball, presidente da Li-ga Alemã de Futebol (DFL), na qual seorganizam os 36 clubes pertencentesàs divisões (ligas) federais, opina: “Se-gundo o estado atual da questão,Blatter deveria entregar suas tarefaso mais rápido possível a outras mãos.”Ele chega a convidar Blatter por tele-fone a renunciar à presidência da FI-FA. Também Uli Hoeness, na épocaainda o reconhecido chefão do FCBayern de Munique, exige a renúnciade Blatter. Reinhard Bütikofer, porta-voz do Partido Verde no ParlamentoEuropeu, bem como o então diretorda fração parlamentar do PartidoSocialdemocrata (SPD), ThomasOppermann, exigem até mesmo

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FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO

Mesmo assim, nos dias em que sãopublicadas as pesquisas sobre a deci-são, as vozes que denunciam um es-cândalo não são muito altas. Elasforam abafadas pela feliz expectativado grande evento futebolístico. Tam-bém na denúncia de Fedor Radmann,então vice do Comitê Organizadorque tinha mexido os pauzinhos nacandidatura para a Copa (fechandoum contrato “adequadamente remu-nerado” de consultoria com a holdingde Leo Kirch), a lama da copa alemãnão é remexida por muito tempo. Otapete vermelho estendido para a FI-FA não pode ter qualquer mancha.

Naquele entremeio preparam-se,sem conflito e quase sem qualquerdiscussão pública, os contratos com aFIFA. As garantias governamentaisque a Federação Internacional exigedo país-anfitrião nunca são objeto demaiores discussões públicas. Os direi-tos malucos que esses contratos con-cedem aos quinze patrocinadoresprincipais da Copa – o prefeito deMunique, Christian Ude, chamou-osde “contratos-mordaça” – são rapida-mente garantidos. É verdade que secritica frequentemente o direito daFIFA de embolsar quase todos os lu-cros realizados durante a Copa isen-tos de impostos, mas ele nunca équestionado seriamente.

Neste ponto, o Estado permite to-das as vezes uma verdadeira chanta-gem da parte de grandes organizações

de 2000 aparecer numa luz extrema-mente tenebrosa. As primeiras maté-rias tinham saído no jornalSüddeutsche Zeitung e na revista Ma-nager Magazin já três anos antes dochute inicial da Copa 2006. Segundoesses relatos, ainda pouco antes davotação decisiva, as chances para aAlemanha, embora uma candidata tãosegura de si, não pareciam nada boas.

Parecia haver uma clara maioria emfavor do concorrente África do Sul,preferida também pelo presidente daFIFA, Blatter. Isto incomoda não só opretencioso candidato da DFB, masprincipalmente o já falecido chefãomidiático Leo Kirch. Ele tinha com-prado os direitos de transmissão da-quela Copa e esperava um lucro muitomaior se ela fosse na Alemanha doque se passasse para a África do Sul.Por isto, bola-se uma estratégia es-perta.

O chefe da candidatura, Becken-bauer, na época presidente do FCBayern de Munique, manda seu timede profissionais para um turnê pelospaíses ainda indecisos que têm direitode enviar um representante para aexecutiva da FIFA. Kirch compra atra-vés de sua empresa CWL, os direitosde transmissão por uma soma mons-truosa que é depositada em contas fi-duciárias. Parece que foi assim que osvotos de Malta e da Tailândia vierampara a Alemanha. O sonho de verão éo resultado de negócios sinistros.

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Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto

naquela época que a Copa não erasubvencionada pelo Estado e quetambém não existiam garantias emcaso de cancelamento, que o risco eraexclusivamente do anfitrião, a saber,da Federação Alemã de Futebol. Tam-bém se vivia repetindo que o eventogerava mais receitas do que gastos.No entanto, no relatório final do Mi-nistério do Interior aparecem doisnúmeros que desmentem exatamenteisto. A União pagou 195,8 milhões deEuros para a reforma que fez do Está-dio Olímpico de Berlim uma arenaadequada para uma Copa da FIFA. Elasubvencionou com 51 milhões de Eu-ros a construção do Estádio da Copaem Leipzig e investiu assim dinheiropúblico num estádio que até hoje nãoviu um único jogo da Primeira ou Se-gunda Divisão. Estas certamente nãoforam os únicos recursos públicos queforam canalizados diretamente paraos negócios da Copa do Mundo.

A nova Arena de Munique, no lixãode Fröttmaning, cujo financiamentoprivado é o grande orgulho do FCBayern de Munique, ficaria meio per-dida no meio do nada se o Estado nãotivesse investido 210 milhões de Eu-ros na conexão ao transporte públicoe privado e no saneamento da região.Para garantir um aproveitamentoeconômico dessa área localizada nonorte de Munique, a região industrialfoi simplesmente redefinida comoárea de uso especial, o que resultounuma redução de seu valor de mais

esportivas. Isto mostra o processodecisório praticado pela UEFA, aUnião Europeia de Futebol, quando setrata da definição de cidades para fi-nais da Copa Europeia. Após a Copado Mundo de 2006, os estádios daAlemanha, novinhos em folha, estãosendo sistematicamente desconside-rados na distribuição das finais da Ligados Campeões e da Copa UEFA.Quando o governo alemão garanteuma isenção tributária para tais even-tos, Hamburgo recebe prontamente afinal da Liga Europeia de 2010.

Para a competição de 2006, a FIFAnão precisa implorar por isenções. Equando ela exige que também o tor-neio preparatório da Copa do Mundo,a Copa das Confederações em 2005,seja isento de impostos de renda e re-tenções na fonte, as respectivas cláu-sulas das garantias governamentaissão imediatamente corrigidos. “Para aFIFA havia uma relação indissolúvelentre a Copa do Mundo de 2006 e aCopa das Confederações de 2005,pois ela via a Copa das Confederaçõesde 2005 como elemento integral daCopa de 2006, que servia basicamen-te para testar a aplicação organizató-ria do planejamento para a Copa2006”, diz o relatório final do Ministé-rio do Interior sobre a Copa 2006:quando a FIFA quer alguma coisa, oEstado alemão está à disposição.

O Ministério do Interior, responsá-vel pelo esporte, gostava de afirmar

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FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO

no Ministério do Interior – primeiroOtto Schily, depois Wolfgang Schäu-ble – utilizam-se de todas as possibili-dades para testar uma novaarquitetura de segurança interna.Nunca antes na história da AlemanhaFederal, o Exército Federal foi empre-gado de modo tão intensivo para a se-gurança interna como durante a Copa2006. Segundo o Artigo 87a da Cons-tituição Alemã, seu emprego interno épermitido somente quando serve “pa-ra a defesa contra uma ameaça imi-nente à existência ou ordemfundamental democrática livre daUnião ou de um Estado”. Já que seconstatou esta situação, foram em-pregados durante a Copa 1.700 sol-dados de 50 diferentes quartéis, eoutros 5.300 soldados ou colabora-dores civis do Exército Federal per-maneceram em estado de alerta. AForça Aérea controla o espaço aéreodo País da Copa também com a ajudade aviões de reconhecimento do tipoAwacs.

Neste caso, a política utilizou-se dapopularidade do futebol para realizarduas ideias de uma nova estratégia desegurança com inclusão do ExércitoFederal. Diante de tudo que o Estadopresenteou à FIFA, este pode ser cha-mado provavelmente de um presenteque, no âmbito da Copa 2006, a políti-ca de segurança deu a si mesma. Ascostumeiras discussões sobre a legiti-midade do emprego do Exército Fe-deral no interior da Alemanha,

que 80 milhões para magros 14 mi-lhões de Euros.

O Estádio da Copa em Frankfurtcustou ao Estado Federal de Hessen20,5 milhões de Euros, e a prefeiturade Frankfurt pagou 65 milhões. EmColônia, a prefeitura subvencionou aconstrução de um novo estádio para aCopa 2006 com mais que 25 milhõesde Euros. O Estádio da Copa em Kai-serslautern, constantemente no ver-melho, é apelidado até hoje de uma“cova aberta de subvenções” que pro-vavelmente jamais poderá ser fecha-da. Quando o futebol profissionallevanta suas reivindicações, a políticafunciona, e ele pode confiar que nin-guém levantará uma crítica sustentá-vel – salvo alguns políticos honestosna área do orçamento, bem como aAssociação dos Contribuintes. O fu-tebol é o campo predileto do populis-mo. Quando a FIFA começa a instalara Copa 2006 na Alemanha, ela é rece-bida em todas as partes de braçosabertos. Para o futebol, a Alemanhafaz quase tudo.

Já na fase da construção de todosesses lindos estádios, o governo fede-ral começa a elaborar um conceito desegurança para a Copa do Mundo.Também a promessa de fazer tudo quese possa imaginar em favor da segu-rança dos torcedores faz parte dasgarantias governamentais exigidaspela FIFA. Neste ponto, os apologistasde plantão em questões de segurança

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Resistências no País do Futebol - A Copa em Contexto

nas publicidades de produtos Anheu-ser-Busch é proibido na Alemanha.Contudo, a Bitburger abre mão dessaproibição pela qual tinha lutado najustiça, e em troca recebe a permissãode venda nos estádios. A temida revo-lução cervejeira é evitada, num paísem que quase ninguém se incomodacom mudanças de certos nomes: naestação central de Hannover, os alto-falantes reproduzem regularmente asaudação “Bem-vindos e bem-vindas àEstação Copa-da-FIFA de Hannover!”A ocupação é aceita pacificamente.

É verdade que se critica os advoga-dos da FIFA que movem ações contratudo e todos que usam marcas regis-tradas como “Copa da FIFA 2006”, ecertamente é franca e manifesta aalegria por uma sentença de instânciasuperior que julga que expressões co-mo “Copa do Mundo de Futebol 2006”não podem ser protegidas como mar-cas registradas. Mas mesmo assim, emgrande parte, a conduta arrogante daFIFA é aceita como um mal necessário.Em vez de criticar a FIFA pela sua ob-sessão em proteger marcas registra-das e exigir apoio político a estacrítica, as Câmaras de Indústria e Co-mércio da Alemanha assessoram seusmembros em estratégias de contornaro direito particular da FIFA, aconse-lham padeiros para fazer propagandade seus “pãezinhos Campeão do Mun-do” em vez de “pãezinhos Copa” e deregistrar educadamente cada eventode public viewing na Infront, a empresa

normalmente travadas de forma bas-tante acalorada, dão-se em volumemuito baixo e logo se perdem no ar.Aproveitando do entusiasmo pelo fu-tebol na Alemanha, paradigmas con-siderados intocáveis são claramenteredefinidos.

Na primavera de 2006, há um únicomomento em que os alemães protes-tam pelo menos um pouco contra aFIFA que, nos dias dos jogos, realizauma verdadeira ocupação das respec-tivas cidades, ostentando seus ma-çantes “uniformes” sociais emarcando suas zonas proibidas pararealizar seus negócios desenfreadosperto dos estádios. O conflito diz res-peito à sua cerveja. A Anheuser-Bus-ch, grande cervejaria estadunidense(“Bud”) e grande patrocinadora da FI-FA, está exigindo exclusividade devenda para seus produtos nos estádi-os e nas festas oficiais. Na Alemanha,porém, a cerveja “gringa” possui umafama péssima. Políticos nacionais elocais exigem “cerveja alemã para tor-cedores alemães” e tomam assim a di-anteira num protesto contra a FIFAque está apenas nascendo. No fimchega-se a um meio termo que permi-te a venda de cervejas locais nas fes-tas de torcedores.

Além disso, a cervejaria alemã Bit-burger (“Bit”) conquista o direito devender sua cerveja dentro dos estádi-os. Devido ao perigo de confundir asigla “Bud” com a sigla “Bit”, seu uso

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autorizada para gerenciar os direitosda FIFA.

Não surge mais do que um mal-es-tar difuso diante das práticas comer-ciais da FIFA. E quando, com asprimeiras apresentações razoáveis daseleção alemã, que até aquele mo-mento era apenas objeto de sorrisoscompassivos, o sonho de verão come-ça a florescer com plena força, qual-quer crítica à Federação Internacionale a seu dono Blatter some definitiva-mente no delírio nacional negro-ru-bro-dourado. Somente quando não seprecisa mais da FIFA, depois de os úl-timos emissários da FIFA em seus ter-nos azuis deixarem a Alemanha após aCopa Feminina de 2011, a crítica aBlatter torna-se oportuna.

Provavelmente, porém, o suíço nãoprecisará temer por sua Ordem deMérito alemã. Parece que ele voltou acair nas boas graças de Berlim: no dia10 de março de 2014, ele é recebidoem Berlim pelo novo Ministro da Co-operação Econômica, Gerd Müller.Eles conversaram sobre o papel que ofutebol pode desempenhar na políticaNorte-Sul. Pouco depois, Blatteranunciou no twitter: “Conversamossobre possíveis projetos em comumna África”. O cartola supremo que seviu durante a Copa 2010 na África doSul já como futuro Prêmio Nobel daPaz, deve ter gostado do encontro.

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Sul-africanos fazem festa, mesmo depois que a seleção de futebol do país foi eliminada.

Soweto, 2010.

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"A Copa do Mundo na África do Sul foium sucesso financeiro imenso, imensopara a África, para a África do Sul e paraa FIFA" – Sepp Blatter.

Com déficits financeiros de longoprazo imensos e uma melhoria psico-lógica distorcida e pouco duradourana esteira do principal torneio de fu-tebol do mundo, a experiência daÁfrica do Sul no período de junho a ju-lho de 2010 foi dúbia.

O governo comprometeu-se a gas-tar US$ 6 bilhões dos cofres públicoscom o intuito de preparar o país para aCopa do Mundo da FIFA de 2010. Essemontante destinou-se principalmentepara construir e reformar dez estádi-os, acelerar a construção de uma linhade trem de alta velocidade do Aero-porto O. R. Tambo para Sandton e er-guer um novo aeroporto nas cercaniasde Durban, melhorando estradas e

infraestrutura de construção associa-das. Porém, houve também custos in-tangíveis relacionados à escolha dasede da Copa do Mundo de 2010:corrupção política, prioridades dúbiase gastos excessivos, retorno de lucros,suspensão das liberdades democráti-cas e da soberania, protestos e resis-tência, além da xenofobia.

A Máfia da FIFA, prioridades dúbias egastos excessivos

A FIFA apoiou uma equipe sul-afri-cana branca racialmente pura durantedécadas, até a oposição, liderada pelofalecido Dennis Brutus, tornar-se umtime formidável em 1976. No entanto,o apartheid de classes substituiu oapartheid racial, e essa troca levou aÁfrica do Sul contemporânea a con-tradições similares de exclusão,

2010: A ÁFRICA DO SUL NÃO FOIUMA HISTÓRIA DE SUCESSO

Patrick Bond

Trad. Petê Rissatti

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70.000 lugares, é uma delícia de ver,contanto que mantenhamos os olhose a mente longe do atraso nas obrasde moradia, abastecimento de água,saneamento, eletricidade, clínicas, es-colas e rodovias, e o aumento absurdonos custos dessas construções.

Mais difícil de manter fora do pen-samento é o estádio vizinho, o EstádioAbsa, sede do time de rúgbi Sharks,que abriga 52.000 assentos e poderiaser facilmente estendido. Os Sharksdisseram que não conseguem mudarpara o Mabhida porque os custos dealuguel são altos. Trevor Phillips, ex-diretor da Liga Premier de Futebol Sul-Africana, pergunta: “O que vamos fa-zer com um estádio de futebol com70.000 lugares em Durban depois quea Copa do Mundo tiver acabado?Durban tem dois times de futebol queatrai um público de apenas poucosmilhares”.

Os vencedores locais nesse proces-so não são os futebolistas, tampoucoos times de rúgbi que, assim esperaminutilmente os funcionários de altoescalão municipais, encherão os ele-fantes brancos que são esses estádios.Quem vence são as grandes corpora-ções e os “tenderpreneurs” (empresári-os de licitação) negros politicamenteassociados (que ganham licitações es-tatais graças à ação afirmativa, mes-mo que relacionados a empresasbrancas estabelecidas), especialmen-te no setor da construção civil. Essa

intrínsecas às cidades que sediaram aCopa do Mundo de 2010.

Por exemplo, os turistas da Copa doMundo conheceram as condições dedeterioração da região de Cape Flats,enquanto, por sua vez, o novo estádioGreen Point, que custou US$ 630 mi-lhões na Cidade do Cabo, receberasubsídios vultuosos graças aos legis-ladores da Aliança Democrática do-minada por brancos liberais e aoCongresso Nacional Africano negro enacionalista, respectivamente. Umareforma no campo de rúgbi de Ne-wlands (numa região residencialbranca) ou no estádio de Athlone (nu-ma vizinhança negra) teria saído mui-to mais em conta. Segundo asinformações, este último foi rejeitado,de acordo com um representante daFIFA, porque “um bilhão de telespec-tadores não deseja ver barracos e po-breza nessa escala”.

A terceira maior cidade, Durban,ostenta a mais memorável das novasinstalações esportivas (com custoavaliado em US$ 440 milhões, ultra-passando os US$ 225 milhões do or-çamento inicial), bem como o maioríndice de corruptibilidade e desfaça-tez que emana de um prefeito, MikeSutcliffe, que tentou descaracterizarum mercado nativo africano centená-rio para agradar a FIFA, o que foi re-jeitado com a oposição dacomunidade. O estádio MosesMabhida, em Durban, com seus

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com sede no exterior – Anglo Ameri-can, BHP Billiton, DeBeers, Old Mu-tual, SAB-Miller beer, Liberty Life,Didata, Investec Bank – levaram o paísà lanterna na classificação de merca-dos emergentes.

Também é importante contabilizaroutros custos indiretos para a econo-mia. A Copa do Mundo foi parcial-mente responsável pela bolhaimobiliária do país, que levou a eco-nomia a um aumento de 5% no PIB porano de 2004 a 2008, exatamente co-mo aconteceu nos EUA antes da crise.

Com a Copa do Mundo como justi-ficativa, o investimento estatal emuma infraestrutura de transportesnova e luxuosa foi às alturas. Os US$3,6 bilhões da linha de trens rápidosGautrain custa aos passageiros cincovezes mais do que o previamenteanunciado e aposta na mudança decomportamento dos ricos e a troca docarro particular pelo trem, mas nãodeslocou usuários suficientes no per-curso Johannesburgo-Pretoria paraevitar uma conta de subsídio anual deUS$ 120 milhões. O break-even, pontode equilíbrio comercial, é de 100.000passageiros/dia, mas apenas 45.000utilizam o Gautrain. Como o líder sin-dicalista Zwelinzima Vavi comentou, oGautrain “não faz nada para aquelesque realmente sofrem com problemasde transporte – principalmente aque-les que precisam viajar para trabalharpartindo de lugares como Soweto e

estratégia de tenderpreneurship, ou decomércio de licitações, era profunda-mente corrupta, segundo MoeletsiMbeki, irmão do ex-presidente Thabo:“Era uma questão de cooptação, co-optar líderes nacionalistas africanosatravés do seu enriquecimento parti-cular”.

As macro-implicações serão senti-das com o passar dos anos, porque aCopa do Mundo piorou a desigualda-de de renda da África do Sul, a maiordo mundo, e montou um cenário paraas calamidades econômicas futuras,uma vez que os pagamentos de dívidavencerão. Os gastos excedentes emnovos estádios (em Durban, Cidade doCabo, Port Elizabeth, Nelspruit e Po-lokwane), mais as despesas de recon-dicionamento exorbitantes da Cidadedo Futebol, fizeram o Estado subsidiarmais de US$ 3,6 bilhões, sem mencio-nar os gastos com infraestrutura as-sociada. Inclusive, tornou-seimpossível para quase todos os está-dios cobrirem suas despesas operaci-onais após a final da Copa do Mundo.

Uma parte excessiva das despesascom estádios veio de importaçõesdesnecessárias, numa época em que adívida externa sul-africana subiu deUS$ 24 bilhões que Nelson Mandelaherdou do apartheid para mais de US$140 bilhões hoje. O pagamento de ju-ros sobre dívidas, mais os dividendospara empresas gigantes de origem sul-africana, mas agora multinacionais

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descobriu fraudes explícitas na Áfricado Sul, apesar da mancomunação deuma FIFA permeada pela corrupção ede um governo permeado pela cor-rupção.

Mais tarde, descobriu-se que a mai-oria dos estádios de futebol construí-da para a Copa do Mundo foi vítima deconluio entre empreiteiras, com umamulta de US$ 200 milhões cobradadas maiores empresas de construçãodo país. Mas a corrupção mais perni-ciosa associada à Copa do Mundo foide fato aberta, na forma de contratoslícitos que foram mantidos em sigiloaté um juiz ordenar sua abertura paraanálise pública, em junho de 2010.Segundo a conclusão de Jennings: “AÁfrica do Sul curvou-se e deixou aFIFA fazer do seu jeito. Funcionáriosdo alto escalão e governo botaram àvenda a África do Sul: ‘Adeus, África;adeus, idiotas!’”

Esses contratos violaram de muitasmaneiras a soberania da África do Sul.Os principais espaços geográficos, es-pecialmente aqueles onde a popula-ção pobre movimenta a economiainformal, foram legalmente definidoscomo Zonas de Exclusão de comérciolocal (ou zonas da FIFA), deixandotemporariamente de lado a Constitui-ção Sul-Africana. Assim, o governosul-africano foi obrigado a acatar asleis da FIFA, inclusive a diminuição dosdireitos democráticos, como marchase protestos pacíficos.

Diepsloot. Em vez disso, tira recursosque poderiam melhorar a vida de mi-lhões de trabalhadores nessa situa-ção”.

E será que foi inteligente para Dur-ban construir o novo Aeroporto In-ternacional King Shaka, com custo deUS$ 1,1 bilhão, sendo que o antigo ti-nha capacidade excedente até 2017, econsiderando a duplicação da distân-cia e as tarifas de táxi até o centro deDurban? O fechamento do AeroportoInternacional de Durban provou ser,antes do tempo, o maior constrangi-mento para a liderança do Comitê Or-ganizador Local e para a CompanhiaAeroportuária da África do Sul, quan-do o King Shaka não conseguiu supor-tar os jatinhos particulares VIP quelotaram o aeroporto em 7 de julho, odia da semifinal, deixando mais de1.000 torcedores furiosos em aviõesque precisaram ser remanejados.

Perda de soberania e direitos demo-cráticos

O jornalista esportivo AndrewJennings, autor de Jogo Sujo!1, docu-mentou em detalhes mínimos o abusoda FIFA em países-sede ao aumentarmuito a infraestrutura desnecessáriae superfaturada. De acordo com Jen-nings, um terço dos executivos da FI-FA “está envolvido em propinas ecorrupção, fraudes de ingressos edesvio de recursos”. Ninguém

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mão de todos os tipos de direitos du-rante o mês em que estarão contro-lando nossas cidades”.

A FIFA não apenas foi totalmenteindenizada “em todos os processosjudiciais, reclamações e custos corre-latos (inclusive honorários de consul-tores profissionais) que possamincorrer ou ser infligidos ou ameaça-dos por terceiros”. Além disso, deacordo com um acordo oficial, a Áfricado Sul forneceu força policial especi-ficamente “para garantir a proteçãodos direitos de marketing, direitos dedifusão, marcas e outros direitos depropriedade intelectual da FIFA e deseus parceiros comerciais”. (Soubedisso em primeira mão quando, em 2de julho, fui detido pela polícia porcircular um panfleto antixenofobia naFan Fest.)

Jornalistas que conseguiram cre-denciamento da FIFA também secomprometiam a não “difamar” a Co-pa do Mundo durante as reportagens,sob o risco de serem banidos. Portan-to, a liberdade de imprensa ficoucomprometida. Com tal pressão, não ésurpresa alguma que o documentárioFahrenheit 2010 tenha sido rejeitadopelas três maiores redes de televisãosul-africanas no período antes da Co-pa do Mundo. A definição de “difama-ção” da FIFA compreende qualqueração que “afete negativamente a po-sição do Comitê Organizador Local oua FIFA”.

O aparato de segurança nacionalcomunicou ao Parlamento que esten-deria um “cordão” de 10 km ao redordos estádios, repletos de “controlesde distribuição aérea por aviões decaças, patrulhas de fronteira conjun-tas com países vizinhos, escolta poli-cial para cruzeiros e equipes deseguranças com treinamento ‘diplo-mático’”. O objetivo, segundo o Minis-tro da Segurança Nathi Mthethwa, era“impedir extremismos nacionais, gre-ves e protestos contra a situação dosserviços públicos”.

Para servir à FIFA, Durban abriumão de grande parte de seu poder,bem como do bom-senso. Para ilus-trar, a poucos metros de distância deonde foi negada à população pobresua fonte de pesca e renda, carasmarquises importadas (da Alemanha)aparentemente precisavam da mon-tagem feita por uma empresa deconstrução alemã. E a FIFA assumiu aocupação exclusiva do Estádio MosesMabhida, mesmo que em 75% dos di-as não tivesse havido jogos de futeboldurante o mês, mantendo as instala-ções fora do alcance de visitantes.

De acordo com o professor de jor-nalismo da Universidade de Wits, An-ton Harber, foi parte de uma tomadageral: “A FIFA baniu essas pessoas quetentavam ganhar a vida ao redor dosestádios, fez com que desviássemosdinheiro de desenvolvimento para es-tádios luxuosos, e tivemos de abrir

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aos parceiros corporativos da FIFA(Adidas, Sony, Visa, Emirates, Coca-Cola, Hyundai-Kia, McDonalds, gi-gantes da telefonia local como Telkome MTN, First National Bank, Conti-nental Tyres, Castrol e a empresa deTI indiana Satyam). Apenas os itensendossados pela FIFA eram anuncia-dos num raio de um quilômetro do es-tádio e nas principais rodovias.

Pouco dinheiro foi redistribuído e amaioria evaporou. Artesanato, turis-mo e instalações futebolísticas locaisdeveriam todos ser beneficiados. Mas,como confessou o presidente provin-cial da Associação de Futebol Sul-Africana em Western Cape, NormanArendse, a abordagem fatal “de cimapara baixo” da FIFA deixou os times defutebol de base com meras “migalhas”.À parte das vuvuzelas estoura-tímpa-no, a ostentação “africana” tão cele-brada pela Copa do Mundo ficoumuda quando mulheres que em geralvendiam “pap” (uma espécie de polen-ta) e “vleis” (“carne de preço acessível”)fora dos estádios de futebol foramenxotadas para no mínimo um quilô-metro de distância. De acordo com oeminente pesquisador Udesh Pillay,do Conselho de Pesquisa de CiênciasHumanas da África do Sul, em 2005,um em cada três sul-africanos espera-va se beneficiar pessoalmente da Co-pa do Mundo, mas o número caiu paraum a cada cinco em 2009, e um a cadacem na época em que os jogos come-çaram.

A FIFA também recebeu tratamen-to jurídico especial, com a perseguiçãode várias dezenas de incidentes cri-minosos 24 horas por dia, 7 dias nasemana, inclusive a condenação a trêsanos de prisão de um homem cujo cri-me era ter 30 ingressos para jogos daFIFA “sem explicação”, quando a FIFAtentou extinguir o mercado dos cam-bistas. Dois holandeses que realiza-vam uma ação de “marketing deemboscada” foram presos com 36mulheres que trajavam vestidos la-ranjas, representando a cervejariaBavaria, no jogo Holanda x Dinamar-ca, embora o logotipo da empresa fos-se mínimo.

Casos desse tipo fizeram a FIFA pa-recer extremista. A perda da sobera-nia estatal para a FIFA surpreendeuobservadores, considerando a enor-me experiência que o ex-presidenteThabo Mbeki e sua equipe de negoci-ação acumularam em trâmites de po-lítica econômica mundial desde que oapartheid terminara, em 1994. Aindaassim, Mbeki concedeu à FIFA e a pa-trocinadores multinacionais plenoaceso às “zonas de exclusão”, sem im-postos, controles de câmbio ou preo-cupações com segurança.

Promessas de redistribuição des-cumpridas

Mais apoio logístico, controle deacesso e proteção foram oferecidos

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Africano, Shiaan-Bin Huang, cujo dis-trito natal em Kwazulu-Natal, New-castle, tinha muitas fábricas ociosasque poderiam ter produzido os Zaku-mi.

Residentes também sofreram, es-pecialmente se fossem da classetrabalhadora e precisassem de trata-mento em hospitais locais. Como ob-servaram os jornalistas do jornalTimes, “As diretrizes da FIFA para hos-pitais designados no país – que in-cluíam manter as alas com metade desua capacidade ociosa – resultarão naremoção de pacientes de longo prazodos seus leitos e sua transferência pa-ra instalações em outros lugar. Enca-minhamentos para exames de rotinanos principais hospitais especializa-dos já foram diminuídas, se não inter-rompidas, até depois da Copa doMundo, deixando centenas de paci-entes sem cuidados nos próximos doismeses’.

Protestos e resistência

O humor da população pobre e tra-balhadora permaneceu irritadiço nosdias que antecederam o grande even-to, com dezenas de protestos todos osdias, de acordo com as estatísticaspoliciais, a maioria pela falta de condi-ções nos “serviços públicos”. Váriosprotestos tinham como alvo explícitoa maneira como a Copa do Mundo es-tava sendo realizada.

Danny Jordaan, diretor-presidentedo Comitê de Organização Local daCopa do Mundo, previu em 2005 queos jogos renderiam de lucro para aÁfrica do Sul mais de US$ 7 bilhões,mesmo após as despesas relacionadasà infraestrutura após 2010. Contudo,o resultado financeiro real gerou con-trovérsias acirradas. Primeiro, o mer-cado do setor turístico foi saturadoem muitas áreas, após um terço dosapartamentos reservados pelaagência Match, da FIFA, terem sidocancelados em maio. Muitos queacrescentaram quartos às pousadasou mantiveram vários blocos de quar-tos de hotel em aberto perderam so-mas gigantescas.

Da mesma forma, trabalhadorescomuns foram enganados ao pensarque se beneficiariam das oportunida-des fabris associadas à parafernália daCopa do Mundo, mas, conforme con-cluiu o porta-voz dos sindicatos sul-africanos, Patrick Craven, “As empre-sas locais não receberam o esperado,as empresas chinesas acabaram sendoas grandes vencedoras”. Trabalhado-res perderam à medida que deixaramde ganhar direitos de produção localpara os bonecos do mascote Zakumi,que, em vez disso, foram produzidosno que o movimento sindicalista cha-ma de “estabelecimentos escravizan-tes” chineses, onde adolescentestrabalham por US$ 3/dia. O homemque tratou do acordo foi o Membro doParlamento no Congresso Nacional

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Em 13 de junho de 2010, em Dur-ban, centenas de trabalhadores da se-gurança no Estádio Moses Mabhidacomeçaram a se revoltar após o jogoAlemanha x Austrália, exigindo o pa-gamento de uma bonificação prome-tida. Recebiam apenas US$ 27,00 por12 horas de trabalho; a terceirização ea superexploração azedaram as rela-ções empregatícias no setor de segu-rança, não raro uma área de risco. Apolícia lançou gás lacrimogêneo ebombas de efeito moral em 300 pes-soas para interromper o protesto eprometeu que os líderes da revoltaseriam presos. Porém, metade dos dezestádios sofreram o mesmo destino,quando trabalhadores baixaram asferramentas contra os intermediáriosdo setor de segurança, levando a de-missões em massa e obrigando a umapolítica de vigilância mais dispendiosapara auxiliar a FIFA na questão de se-gurança interna.

O protesto mais bem-sucedido eexplicitamente contra a Copa doMundo foi feito por centenas de co-merciantes informais de Durbanfrente ao deslocamento do centenárioMercado da Manhã. Se não fosse pelaresistência contínua por um períodode um ano, inclusive uma batalhacampal com a polícia em meados de2009, seu espaço teria sido transfor-mado num shopping center, sem es-paço para eles.

Por exemplo, mais de mil estudan-tes fizeram uma manifestação contrao estádio de Mbombela (Nelspruit),pois escolas desalojadas no processode construção não foram reconstruí-das. Outros protestos relacionados àCopa do Mundo foram realizados porcomerciantes informais em Durban ena Cidade do Cabo, contra os gover-nantes de Johannesburgo pelas vizi-nhança da Cidade do Futebol, noempobrecido distrito de Riverlea,contra as empreiteiras pelos operári-os, contra a construção de estádiospor portadores de necessidades es-peciais e contra os governos nacionaispor ativistas de quatro cidades quetentavam realocar as fronteiras pro-vincianas e deslocar seus municípiospara uma província mais próspera.

A FIFA insistia numa zona sem pro-testo, com proibições policiais regula-res das marchas empreendidas –mesmo um comício inócuo em prol daeducação para todos no dia 7 de junho(embora a FIFA tivesse patrocinado ogrupo, One Goal, exigindo a permis-são para a marcha) –, até resistênciasuficiente ter surgido para sobrepujara perturbação. Algumas vitórias fo-ram registradas ao longo do caminho.Milhares de operários da construçãode estádios lutaram por maiores salá-rios e não raro conseguiram. E os ati-vistas da AIDS, impedidos dedistribuir camisinhas nos estádios,contestaram e conseguiram esse di-reito.

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Khulumani, a rede de vítimas antia-partheid que está processando em-presas nos tribunaisnorte-americanos por levarem lucrose juros quando deveriam estar cum-prindo sanções. Iain Robinson (Ewok),de Durban, contribuiu com a músicaShame on the Beautiful Game, que logose juntou a outras músicas de protes-to num CD de hip-hop produzido pelogrupo baseado em Grahamstown, oDefboyz.

Mas houve muitos atingidos pelaFIFA e seus aliados do governo sul-africano que não se deram tão bem.Os pescadores de subsistência deDurban tentaram combater, sem su-cesso, uma remoção forçada dos píe-res no parque da Fan Fest da Copa doMundo, na praia principal. Os comer-ciantes de Johannesburgo e Cidadedo Cabo também perderam sua bata-lha por espaço por conta das zonas deexclusão. E os desalojados da Cidadedo Cabo foram transferidos para umacampamento “temporário”, no me-lhor estilo apartheid, o Blikkiesdorp.Outros vencidos foram ambientalistaspreocupados com as gigantescasemissões de carbono da Copa doMundo – duas vezes o recorde de2006 – e a tentativa do governo sul-africano de “compensar” essa pegadaatravés de estratégias degreenwashing, dissimulações do pre-juízo ambiental como o Mecanismo deDesenvolvimento Limpo e as planta-ções inadequadas de árvores.

Algumas das mobilizações mais im-pressionantes talvez tenham sido nofront mais complexo: a cultura pop.Para ilustrar o desafio, o músico nas-cido na Somália e criado em Toronto,K’naan, usou seu sucesso, Wavin’ Flags,para promover a noção de que um ga-roto jovem num campo de futebol deterra poderia simplesmente tomarCoca-Cola e se tonar um jogador denível internacional. A música remixa-da para a FIFA autocensurava toda asua versão de letra mais realista e an-tiguerra.

Explicando porque remixou a músi-ca, K’naan disse: “Esta é uma época emque todos nós nos juntamos, e o mun-do esquece seus conflitos e proble-mas, em que nos concentramos naunião e na celebração. Esse momentotem ligação agora com Wavin’ Flag”.

Esse tipo de comercialização e des-politização trágicas exigiu uma culturejamming, prontamente feita na versãoWavering Flag, do grupo de hip-hopPlaying Fields Connective. Então vie-ram os Chomsky AllStars, cuja imita-ção de Beautiful Gain para a Copa doMundo foi anunciada assim: “Mistu-rando punk, blues, dub e afrobeat, Be-autiful Gain, com sua melodiacontagiante e ritmos sublimes, temtudo para ser o Free Nelson Mandela doséculo XXI”. Uma música de protestoainda mais marcante foi lançada poruma rede de artistas que se unirampara divulgar o Grupo de Apoio

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global – sem checagens ou restrições.Apenas cheques”. A experiência sul-africana não foi diferente. A Copa doMundo da FIFA de 2010 baseou-senum discurso retórico de redução dedesigualdades socioeconômicas naregião e atendimento das necessida-des do povo, porém era em grandeparte voltado para interesses corpo-rativos, financiado com recursos pú-blicos, com participação popularlimitada ou nula e solapando a sobe-rania e os direitos democráticos.

Na África do Sul, assim que o frissonfutebolístico arrefeceu e os protestossociais se tornaram mais persistentes,as elites locais perceberam seu erroem sediar esses jogos de forma tãoperdulária e arrogante. Podem apren-der agora o que já sabemos: o lucrocom negócios e a alegria genuína as-sociada ao esporte mais amado domundo são incompatíveis. A questãopara os brasileiros amantes do futebole para os críticos das regras corpora-tivas multinacionais é se terão maiorsucesso estabelecendo uma pressãocompensatória e revertendo o poderda FIFA. Apenas com um antídotocontra a comercialização e o controleestrangeiro podemos realmenteaproveitar a beleza do futebol.

Nota

1 Jogo Sujo! – O mundo secreto da FIFA. Trad.

Renato M. de Oliveira. São Paulo: Panda Books,

2011.

O mais problemático, as redes es-querdistas independentes, que emgeral se mobilizam contra grandeseventos internacionais – a Conferên-cia Mundial Contra o Racismo (12.000manifestantes em 31 de agosto de2001) e a Cúpula Mundial de Desen-volvimento Sustentável (30.000 pes-soas saíram às ruas em 31 de agostode 2002) – foram simplesmente inca-pazes de gerar entusiasmo para asduas manifestações pretendidas.

Conclusão

A Copa do Mundo é um espetáculoformidável, especialmente porqueatrai o maior público esportivo domundo. A África do Sul como anfitriãpassou quase impecável, ao contráriodas previsões dos afro-pessimistas. Oaumento do lucro da FIFA, se compa-rado aos jogos na Alemanha, foi de nomínimo 50 por cento. Ainda assim,também fica evidente que, além doimpulso psicológico inigualável – ape-sar de temporário – o ganho para asociedade foi excedido pelo ônus.

A experiência internacional sugereque megaeventos esportivos sejamorganizados em grande parte pelo se-tor privado, com pouco ou nenhumimpacto para cidadãos ou dignitárioseleitos, embora suas decisões possamter implicações maiores nas políticaspúblicas. Como Jennings enfatizou, a“inexplicável estrutura” da FIFA… “éaprimorada para realizar os jogos se-gundo as necessidades do capitalismo

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Torcedores do Bafana Bafana, como é conhecida a seleção da África do Sul, assistem ao

jogo de abertura da Copa do Mundo, em telão montado pela FIFA no bairro de Soweto.

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Eduardo Galeano, Brasília, 2014.

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Em períodos de Copa, uma placapendurada na porta de casa de Eduar-do Galeano, em Montevidéu, adverte:Cerrado por fútbol. Durante a Copa de2010, o autor e torcedor uruguaioanalisou alguns aspectos do futebolinternacional.

Don Eduardo, quem será campeãodeste mundial – e por quê?

Sou um péssimo profeta. E alémdisso, para completar, te confesso quenão quero conhecer o futuro. Quandouma cigana pega a minha mão e meoferece lê-la, eu rogo: “Senhora, porfavor, não seja cruel”. Eu não querosaber o que ocorrerá, nem sequerpressenti-lo, por que o melhor da vidaestá sempre esperando à volta dapróxima esquina. E te acrescento algomais: por sorte. Os prognósticos fa-lham. O tempo brinca com quem pre-tende adivinhá-lo.

Qual sua opinião sobre a equipe ale-mã?

Assombrosa. Tem a força e a veloci-dade dos velhos tempos, mas umaelegância e uma alegria que talvez se-ja o aporte de tantos jovens incorpo-rados em suas fileiras, em sua maioriaimigrantes ou filhos de imigrantes. Nofutebol, como na vida, a mestiçagemmelhora.

Por que os argentinos não conse-guiram, finalmente?

Eles brilharam em várias partidasda Copa e agora se foram, humilhadospor uma goleada. Isso me entristece,ainda que a vitória alemã tenha sidototalmente justa.

NÃO PRECISAMOS COPIAR OSEUROPEUS

Eduardo Galeano

Entrevista: Gerhard Dilger

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Qual é o seu balanço do mundial atéagora?

Meu bom amigo Pacho Maturana,que foi diretor técnico de duas sele-ções e de várias equipes de diversospaíses, costuma dizer, e não se equi-voca: “O futebol é um reino mágico,onde tudo pode ocorrer”. Nós, latino-americanos, estávamos felizes, poispela primeira vez na história quatroseleções nossas chegavam à antepe-núltima etapa e, subitamente, paf, fi-cou o Uruguai solito contra a Europa.E, salvo essa exceção, o Mundial seconverteu em uma eurocopa. Umpouco antes, já não havia africanoscompetindo. Toda África ficou foraneste Mundial que é o primeiro Mun-dial africano da história. Os irmãosBoateng brindam a dramática metá-fora do que ocorreu: um Boateng sefoi, o que jogava em Gana, e ficou oBoateng que joga na Alemanha.

Foi justamente a Celeste que acaboucom o sonho africano. Como viveu osmomentos finais da partida contra Ga-na?

Foi um filme de Hitchcock. Me cor-tou a respiração. A minha e a de todosque assistiram à partida mais emocio-nante deste mundial. Ganhou o Uru-guai, como se sabe, e assim ficouselada a derrota de toda a África. Eufestejei e, ao mesmo tempo, senti umafunda tristeza. No futebol, como navida, há alegrias que doem.

Em que falhou a Argentina?

Obviamente não cuidou do meiocampo, faltou articulação entre a van-guarda e a retaguarda e Messi foi lim-pamente bloqueado, na boa lei, peladefesa alemã. Talvez isso tenha algo aver com a “messidependência”. Quan-do há um jogador de qualidade tão ex-traordinária, inevitavelmente seproduz uma realidade assim. De todosos modos, diga-se de passagem, Messijogou, durante toda a Copa, muitomelhor do que outra superestrela,Cristiano Ronaldo, que esteve noMundial mas ninguém viu.

Pelé disse que Maradona não é umbom técnico: Está de acordo?

No futebol atual, o treinador de-sempenha um trabalho insalubre. Al-tamente tóxico, eu diria: é o bodeexpiatório das derrotas, e o mesmopovo que o eleva aos céus, num mo-mento, o expulsa para o inferno logoem seguida. Há alguns anos, as pesso-as sequer sabiam qual era o nome dotreinador, que depois passou a serchamado de diretor técnico.

A grande maioria das estrelas sula-mericanas está jogando na Europa. Háchances de que essa exportação de re-cursos futebolísticos seja revertida?

Não. Nós, dos países do sul do mun-do, seguiremos exportando mão deobra e pé de obra para o norte domundo.

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lhor para o mais sulamericano dos su-lamericanos: de que estava doente oBrasil para precisar desse tipo de re-médio?

Entrevista concedida por Eduardo Galeano a

Gerhard Dilger. Disponível em http://www.car-

tamaior.com.br/?/Editoria/Midia/%27A-cami-

seta-celeste-tem-muita-energia%27/12/15871

.

Por que essa seleção uruguaia estátão forte?

Por que acredita no que faz e o en-tusiasmo compensa o que lhe falta.Não sei se chegará à final, mas volta aser milagrosamente certo que um paíscom menos habitantes que um bairrode Buenos Aires pode ser capaz deconquistar o troféu mundial. Festeja-mos isso, os poucos que somos, por-que o Uruguai é um país muitofutebolizado e aqui todos os bebêsnascem gritando goooooool!!! A ca-miseta celeste tem muita energiadentro. E a história também ajuda. Es-te nosso paisito soube ganhar duasOlimpíadas de futebol, quando oMundial ainda nem existia, e doiscampeonatos mundiais, o primeiroaqui em Montevidéu, e o de 1950,quando derrotamos o Brasil na estréiado maior estádio do mundo, o Mara-canã, diante do rugido de duzentos miltorcedores.

O Brasil, com sua “receita Dunga”,fracassou. Que conselho daria a seusvizinhos com vistas a 2014?

Eu não gosto de dar conselhos, nemde recebê-los, mas nós, latinoame-ricanos, não vamos bem quando copi-amos as receitas do êxito europeu.Nem no futebol, nem em nada. E nãoprecisamos copiar. Li e escutei váriasvezes, a propósito desta seleção ale-mã, a que compete agora, o seguinteelogio: “Parece uma equipe sulameri-cana”. A receita Dunga não era a me-

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Rio de Janeiro, 2009.

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Na economia mundial, o Brasil éconhecido por seu papel de fornece-dor de matérias primas: cana de açú-car, soja, borracha e muito mais. Noentanto, o Brasil é também o NúmeroUm na exportação de jogadores pro-fissionais de futebol: em torno de5.000 jogadores de futebol possuemum contrato fora de seu país. Desde1993, a exportação de jogadores defutebol rendeu aproximadamentedois bilhões de Euros. Quem ganha emprimeiro lugar com o negócio da ex-portação são os agentes dos jogado-res e os diretores dos clubes,enquanto muitos jovens são elimina-dos da peneira já no Brasil e ficam semperspectiva. O antigo técnico da sele-ção brasileira, Carlos Dunga, lamen-tou esta situação já em 2009: “Todomundo diz que o comércio de

jogadores é como prostituição, mastodo mundo ganha com ele.”

Será que ele muda para a Europaantes da Copa no Brasil ou depois? Foiesta a pergunta que preocupou os fãsdo futebol brasileiro ao longo de al-guns anos. Afinal, o Quem é quem dosclubes europeus de ponta estava ca-çando o jogador no qual se deposita-vam as esperanças da nossa seleção:Neymar do Santos Futebol Clube, oclube de Pelé. Já para a Copa 2010 naÁfrica do Sul, numerosos/as especia-listas e torcedores no país pentacam-peão exigiram a convocação dotalento excepcional, naquela épocacom 18 anos – mas sem sucesso. Otécnico da seleção, Dunga, muito rea-lista, não se deixou amolar pelos de-sejos dos românticos. No entanto, aestrela dos atacantes recebeu ofertas

PENEIRAR COMO NO GARIMPO

No negócio da exportação de jogadoresde futebol, a grande maioria dostalentos passa pela trama

Martin Ling

Trad. Monika Ottermann

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talentos excepcionais, são principal-mente aspectos esportivos que osmotivam a cruzar o Atlântico. Por ex-emplo, Neymar acabou enfrentando orisco esportivo “Europa” em meadosde 2013, ainda antes da Copa, anima-do pelo técnico da seleção, FelipeScolari. Desta mudança, Scolari espe-rava um novo salto no desenvolvi-mento de seu pupilo exemplar, já que ofutebol na Europa aposta mais em tá-tica, força e disciplina. Neymar chegoufinalmente ao FC Barcelona, onde de-ve apoiar Lionel Messi, a estrela mun-dial argentina, e aliviar seu trabalho.Porém: sua transferência já virou casode justiça. Oficialmente, ele trocou declube por “apenas” 57,1 milhões deEuros. Deste valor foram transferidos40 milhões para uma empresa da fa-mília de Neymar, e vários contratosacessórios não declarados, no valor demais de 38 milhões de Euros, atual-mente estão sendo verificados, por-que podem ser sujeitos a imposto.

Neymar, hoje com 22 anos, é o ídolode inúmeros brasileiros e brasileiras,bem como o modelo de milhões de jo-vens jogadores de futebol no país quesonham com a grande carreira. A cadaano, aproximadamente mil jogadoresvão para a Europa, não só para as divi-sões principais, mas também para oLeste Europeu, para a China ou atémesmo para as Ilhas Faroé. No fute-bol, “Made in Brazil” simboliza umamercadoria de primeira qualidade.

lucrativas também sem sua participa-ção na Copa, por exemplo, do FCChelsea de Londres, que ofereceu aojogador de 18 anos nos últimos mesesde 2010 a soma de 55.000 Libras (emtorno de R$ 22.000) por semana. Oscartolas do Santos, porém, consegui-ram convencer Neymar a ficar – pormeio de um aumento de seus saláriospara aproximadamente R$ 16.000 se-manais, mais contratos de patrocínio.

Por enquanto parece ter passado otempo em que os clubes brasileiros ti-nham que vender, custe o que custar,todos os seus talentos para cobrir osrombos no orçamento. O Brasil fazparte dos países emergentes que vêmprosperando nos últimos anos, e umaparte do dinheiro proveniente daeconomia acelerada vai também parao futebol em casa. Deste modo, pelomenos estrelas já meio superadas co-mo Ronaldinho, Deco, Roberto Carlosou Luís Fabiano puderam ser trazidasde volta para os clubes nacionais, comfartos vencimentos.

Entretanto, para os craques atuais,o caminho privilegiado para o desen-volvimento da carreira própria aindapassa pela Europa: para a grandemassa, primeiramente por motivos fi-nanceiros, já que jogadores médiosganham mesmo hoje no Brasil muitopouco – 90% dos aproximadamente23.000 jogadores profissionais de fu-tebol recebem em torno de R$ 1.000mensais apenas. Para os jovens

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180.000 metros quadrados, com umtotal de sete quadras de futebol, aca-demia e piscina, numa localização iso-lada em Porto Feliz, a cerca de 120quilômetros a noroeste de São Paulo.A Academia, que pertence à agênciade marketing Traffic Sports Marke-ting, possui até mesmo um clube defutebol próprio que joga nas divisõesbrasileiras: Desportivo Brasil. Nelejogam as “joias” entre os rapazes de11 a 18 anos e adquirem assim práticano jogo e resistência na competição. Ameta dos investidores: lapidando eburilando, transformar diamantesbrutos em pedras preciosas que sãovendidos no mercado internacionalcom lucros máximos.

O investimento não é barato:Rodolfo Canavesi, vice-presidente doDesportivo Brasil, estima os gastosanuais pagos pela Academia para cadajogador em quase R$ 50.000. Contu-do, os alunos precisam pagar com de-sempenho. Quem não consegueacompanhar as exigências é rapida-mente eliminado. “O que conta é o de-senvolvimento e a venda deindivíduos. Quando consigo vender decada curso anual cinco ou seis jogado-res, tenho lucro”, afirmou Canavesi aowebsite esportivo alemão SPOX.

A agenda dos alunos não é nada fol-gada. O dia começa às sete horas comum desjejum elaborado por um nutri-cionista. Seguem 90 minutos de treinomatinal – sempre sob os olhares de

Neste contexto, a produção de cra-ques de futebol é realizada de modocada vez mais profissionalizado: “Pri-meiro semeamos, depois colhemos, efinalmente vendemos nosso produtono mercado. Diretamente para a mesado consumidor. Nosso principal mer-cado de venda é a Europa.” É assimque o ex-jogador profissional RobertoCarlos descreve a estratégia de suaEscola de Futebol CR Promoções. Ali,mais de 80 meninos do Brasil inteiro,todos de famílias pobres ou extrema-mente pobres, têm um contrato. A Es-cola de Roberto gasta ao ano cerca deR$ 10.000 por menino com alimenta-ção, treino, alojamento, saúde e edu-cação. Tudo é apostado numa só carta,o esporte, e a formação escolar é ne-gligenciada. O capitão da seleção de1982, lendária e derrotada na beleza,Sócrates, criticou esse desenvolvi-mento tempos atrás numa entrevistaconcedida à revista alemã Spiegel:“Dessa maneira, estamos criando ge-rações de excluídos, pois dos milhõesde rapazes vidrados no futebol, so-mente uma parcela infinitamente pe-quena consegue se tornar umaestrela. Todos os outros, já que fica-ram sem educação, são condenados àmiséria.”

A estrela absoluta entre as escolasde futebol tem a pretensão de articu-lar educação e formação de futebol: aAcademia Traffic de Futebol, a escolade futebol mais moderna do Brasil.Trata-se de uma área enorme, de

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para muitos, o sonho continua sendo aEuropa. Para facilitar o salto para lá, aTraffic Sports Marketing associou-seem 2010 ao GD Estoril Praia, que jo-gava na época na segunda divisão dePortugal. Ali, a empresa controla 74%dos negócios. Hoje, o Estoril Praia estána primeira divisão, possui um técnicobrasileiro e tem jogadores brasileirosde sobra. O clube foi a sensação da Li-ga Europeia de 2013/14, onde infer-nizou a vida do SC Freiburg, e emfevereiro de 2014, o time ganhou de 1a 0 do FC Porto, pondo assim um fim àsérie de 81 jogos em casa sem derrotaque era o orgulho desse campeão.

O Estoril Praia é uma das assimchamadas plataformas de saída paraos talentos novos que colhem ali suasprimeiras experiências na Europa. Pa-ra os jogadores, adaptar-se em Portu-gal é mais fácil, já por causa do idioma.Em janeiro de 2013, o 1. FC Köln con-tratou o zagueiro lateral BrunoNascimento e atualmente parece in-teressado no meio-campo Evandro. Sea venda der certo, também a TrafficSports recebe uma fatia do bolo, poispossui direitos de transferência nocaso desse playmaker. Para cada joga-dor, a empresa vende somente 50%dos direitos – ou seja, cada transfe-rência traz novos lucros.

Ao lado da participação no GD Es-toril Praia, a Traffic Sports mantém,através do Desportivo Brasil, uma re-lação de cooperação com o

técnicos com experiência internacio-nal. À tarde há cursos de inglês ousessões com uma psicóloga. Depoisvem novamente o treino na quadra.“Eles podem ser bons jogadores, mastambém precisam ser preparados pa-ra a vida”, diz Canavesi e afirma queconsidera, de certo modo, todos osrapazes como seus “filhos”. “Aqui ma-ximizamos as chances desses meninosde alcançar algum dia o status de pro-fissional”, diz Canavesi. “Temos a me-lhor infraestrutura possível – muitosclubes não podem oferecer as condi-ções que nós temos nem aos seus jo-gadores profissionais.“

A capacidade da Academia é depouco mais de cem alunos. Ela espa-lhou scouts no Brasil inteiro – uma boacondição para atrair ao clube somentejogadores que prometem o negóciomais lucrativo possível numa posteri-or venda. Mas também há olheiros naArgentina, no Paraguai, Uruguai ouChile. O conceito parece estar dandocerto. Jochen Lösch, um alemão uru-guaio, desde 2007 o responsável pelastransferências internacionais de Traf-fic, estima em 70 a 80 por cento o nú-mero dos jovens que conseguemascender do Desportivo Brasil parauma carreira profissional. “Em clubestradicionais como Corinthians SãoPaulo, são um a dois por cento.”

Mesmo que o futebol nacional bra-sileiro tenha que oferecer hoje nova-mente mais do que nos anos 1990,

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dinheiro para o voo de volta, e aindapor cima, nem o celular estava funcio-nando. “Foi um pesadelo”, lembra-seDouglas dos Santos. “Eu estava total-mente desesperado.” Douglas demo-rou três semanas para conseguirvoltar a São Paulo, e seus companhei-ros ficaram até mesmo seis semanas amais.

Infelizmente, é pouco provável queesse tipo de experiência mude algonos anseios de jovens brasileiros poruma carreira profissional: diz-se que90% sonham com ela. O caminho nor-mal passa muito menos por academiasde luxo à moda da Traffic, mas pela as-sim chamada peneira, um procedi-mento seletivo duríssimo no qualtalentos são examinados e “peneira-dos”. Os “bons” vão para a cumbuca echegam até um dos grandes clubes, os“ruins” precisam esperar pela próximaoportunidade. Cafu, três vezes parti-cipante de finais de Copa e duas vezescampeão do mundo, teve que sobre-viver a 14 dessas peneiras antes queconseguisse um contrato.

Centenas de rapazes pegam suaschuteiras e vêm para esses testes. Sejanas academias, seja nas peneiras:sempre pesa sobre eles uma pressãoimensa, quase sobre-humana. A mai-oria vem de famílias extremamentepobres, e para estas, os filhos repre-sentam muitas vezes a única chancede qualquer ascensão social.

Manchester United. O Manchester jácomprou a opção preferencial por al-guns jogadores que poderá ser exer-cida assim que algum deles alcançar amaioridade.

No entanto, o profissionalismo de-monstrado pela Traffic Sports natransferência de jogadores do Brasilpara a Europa não é aplicado por to-dos e em todos os casos. Em 2006, arevista alemã Spiegel publicou umamatéria sobre o atacante brasileiroDouglas Rodrigues que foi atraído pa-ra a Europa pelo agente de condutaduvidosa Wilson Bellissi que lhe pro-meteu um salário mensal de 3.000Euros.

Ele e outros cinco rapazes jogariamna Romênia. Com base nessa promes-sa, o pai de Douglas vendeu seu carroe comprou uma passagem aérea parao filho. Contudo, no aeroporto, de re-pente, tudo era diferente: não seria aRomênia, e sim a República da Moldá-via. Ali, porém, na cidade de Chisinau,o agente de contato não apareceu, eos rapazes continuaram a viagem paraFrankfurt – subitamente, o FSV Mainz05 manifestou seu interesse. Os jo-vens talentos permaneceram cincodias no aeroporto, ainda cheios de es-perança, antes de saberem que, nova-mente de forma inesperada, tambémo Mainz tinha perdido o interesse eque a próxima tentativa seria com oEintracht Frankfurt. Também ela fra-cassou. Os rapazes não tinham

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E aqueles como Neymar, que dãoconta do salto, provocam por sua vezsonhos em toda uma geração de cri-anças brasileiras. Apenas há de se no-tar que a trajetória de Neymar éatípica: já aos onze anos, ele jogava noFC Santos e era considerado uma“joia” pelos vários técnicos do clube.Portanto, ele foi poupado do duro ca-minho de seleção pelas peneiras. Umaexceção que se explica também, masnão só, por seu talento excepcional.

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Os dados foram lançados no dia 2de dezembro de 2010, quando a FIFAescolheu para sede de sua 21ª Copado Mundo um país cuja seleção nacio-nal brilhou pela ausência nos dois tor-neios anteriores: a Rússia. Nosegundo turno da votação, a candida-tura russa conseguiu se impor contratrês importantes adversários: Espa-nha /Portugal, Holanda/Bélgica e aInglaterra. Um grito de júbilo ecooupelo público, mas soou algo artificial.Em 2007, o COI já elegera o balneáriode Sóchi no mar Negro para sediar osJogos Olímpicos de Inverno de 2014.O esporte internacional (re)descobriua Rússia. Em Sóchi, Vladimir Putinapresentou uma lista orgulhosa dosmegaeventos realizados e por reali-zar: os Jogos Universitários Interna-cionais de verão e inverno em Kasan eKrasnoiarsk, os campeonatos mundi-ais de atletismo, patinação artística,

hóquei no gelo, bobsled e skeleton, as-sim como, não por último, a Copa doMundo de 2018.

De fato, a decisão da FIFA repre-senta o auge do reconhecimento parao futebol russo. Mas o seu bom de-sempenho na arena internacional fi-cou bem para trás na História doséculo 20. Em 1966, o time nacionalrusso, a Sbornaja, perdeu nas quartasde final da Copa da Inglaterra contra aAlemanha e obteve o quarto lugar. Em1960, a União Soviética foi campeãeuropeia e, depois, conquistou trêsvezes o segundo lugar, a última em1988, sob o comando do treinadorValeriy Lobanovskiy, que deu o nomeao estádio do Dínamo de Kiev – a ci-dade que, no início de 2014, viu acon-tecer as batalhas dos protestos napraça Maidan.

A COPA DE 2018 NA RÚSSIA

Vladimir Fomenko

Trad. Kristina Michahelles

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atração inigualável – tanto para assis-tir quanto para jogar. Em 2008, o fa-moso diretor de comédias russoAlexander Rogojkin gravou o filme Apartida, ou especificidades do futebolnacional. Não chegou a ser um sucessode bilheteria e só depois ficou claroque o diretor teve um momento depercepção extra-sensorial: no filme, aRússia sedia a Copa de 2018. Na par-tida final, joga contra a Romênia e ga-nha. Um cenário realista pelo menosaté a metade, pois a Rússia vai partici-par em 2018. Mas Rogojkin não podiasaber disso quando teve a ideia. Algode místico existe nessa história – aRomênia na final, e por que não?

Já que o anfitrião é qualificado au-tomaticamente, os amantes russos dofutebol não precisam mais ter medode não ver sua seleção na Copa. OBrasil foi qualificado como primeiroda chave, antes de Portugal – mesmoque não tenha sido fácil, foi justo. Nodia 17 de junho de 2014 a Rússia de-fende seu primeiro jogo contra a Co-reia do Sul no estádio Pantanal deCuiabá. O jogo começa à uma da ma-nhã, horário de Moscou. Já se esti-mam altos índices de audiência, e asexpectativas são elevadas. Quatroanos de boom de futebol estão no pro-grama, pois a meta é que os estádiosde quatro cidades - Moscou, São Pe-tersburgo, Kasan e Sóchi – estejamprontos pontualmente para a Copadas Confederações em 2017. Para aprópria Copa foram escolhidas onze

Acaso ou destino?

Nos anos seguintes, a equipe nacio-nal russa saiu da cena internacional esomente ressurgiu brevemente du-rante o Campeonato Europeu de2008 na Áustria e na Suíça. O time,sob comando do treinador Guus Hid-dink, obteve a medalha de bronze e,com isso, um lugar entre os dez maisno ranking mundial da FIFA. O entãopresidente russo Dimitri Medvedevofereceu a cidadania russa a Hiddink,e houve rumores de que o holandêsaté começou a aprender russo. Maslogo em seguida, em 2010, veio o “pe-sadelo de Maribor”: a Rússia perdeupara a Eslovênia e não pode disputar aCopa na África do Sul, assim comoperdeu a viagem para a Alemanhaquatro anos antes. Hiddink teve devoltar para casa, mas nem o seu con-terrâneo Dirk ‘Dick’ Advocaat conse-guiu fazer o time russo melhorar.Basta lembrar o fracasso no Campeo-nato Europeu na Polônia e na Ucrânia.

As opiniões dividem-se quando setrata de escolher a modalidade de es-porte número um na Rússia. No topoda lista estão o futebol e o hóquei nogelo, dependendo da época do ano edo sucesso internacional, entremea-dos pela patinação artística, se levar-mos em conta a audiência na TV.Engana-se, no entanto, quem imaginaque a Rússia é um país de frio e inver-no. As pessoas anseiam por ar livre,grama e sol, e por isso o futebol é uma

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O escândalo em torno do projeto dailha Krestovsky em São Petersburgocontinua sendo o maior abacaxi dosgerentes da FIFA. Projetado pelo japo-nês Kish Kurokawa em 2005, já é o es-tádio mais caro do mundo. Os custosnão param de crescer, enquanto todosos prazos da obra estão sendo regular-mente derrubados. O chefe do gover-no, Medvedev, fala de um escândalo enega qualquer novo subsídio estatal.Nos blogs da Internet, surgem compa-rações: com o dinheiro investido na fu-tura arena Zenit daria para construir2,2 estádios londrinos Emirates ou 3,5arenas Donbass de Donezk. A Gaz-prom, originalmente responsável pelofinanciamento do estádio, repassou aresponsabilidade para a Prefeitura deSão Petersburgo. Agora, a cidade fi-nancia o megaprojeto e o gigante dogás serve suas receitas tributárias. Oprefeito Georgy Poltavchenko já redu-ziu as expectativas: a cidade contribui-rá com 35 bilhões de rublos, e nenhumcentavo a mais. Os pessimistas falamde uma despesa total de 45 a 50 bi-lhões de rublos (mais de um bilhão deeuros). Não é por isso que a Copa vaifracassar. O estádio mais setentrionalno Golfo da Finlândia, um estádio deelite da Uefa, com 70 mil lugares, dotamanho de três Praças Vermelhas,cobertura retrátil e gramado móvel,estará pronto pontualmente para aCopa das Confederações. O ministrodos Esportes, Vitalij Mutko quer pes-soalmente que o estádio seja usado noMundial de 2018.

cidades-sede, numa dura batalha deconcorrência e depois de muitos de-bates políticos nos níveis federal e re-gional. Quem se sentiu injustiçado,nesse processo, foi principalmenteKrasnodar, a capital da região de Ku-ban, sede de dois times da primeira li-ga. De nada adiantaram as petiçõesdos faz e reivindicações apresentadasem massa. A cidade dos cossacos per-deu para Sóchi, situada na mesma re-gião.

Em todas as cidades exceto Sóchi eKazan estão sendo construídos está-dios novos. Moscou oferecerá duasarenas. O tradicional estádio Lushniki,que funciona desde 1956, vai abrigara partida inaugural, uma das semifi-nais e a final, e será reformado parater a capacidade prevista de 90 mil lu-gares. O segundo local de jogos, a fu-tura arena do Spartak, deverá serinaugurada em 2014 junto com umanova estação de metrô. O construtorresponsável é Leonid Fedun, o propri-etário do FC Spartak e vice-presiden-te da firma de petróleo Lukoil. É aúnica obra para a Copa de 2018 fi-nanciada integralmente com dinheiroprivado. O estádio terá lugar para 44mil espectadores e vai contribuir parareduzir o déficit em lugares para fute-bol durante o período de obras deampliação do estádio de Lushniki nacapital. Atualmente, Moscou está re-presentada com quatro times na pri-meira divisão russa.

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cidades esperam desde já poder lucrarcom a Copa e um boom turístico.

Pensando projetos no Kremlin

O que significam, para a Rússia atu-al, o esporte de ponta e os megaproje-tos a ele ligados? A resposta maisusual significa: nada além da expres-são de uma vontade de pensar proje-tos no sentido negativo. Depois deSóchi e da Copa, será a vez dos JogosUniversitários de Interno de 2019 emKrasnojarsk (cidade escolhida – semalternativas – depois da renúncia deSt. Gallen no ano anterior). Em 2015serão recebidas as candidaturas paraa realização dos Jogos Olímpicos deVerão de 2024. Discute-se a candida-tura de São Petersburgo. Na lista es-tão também as cidades de Baku, Doha,Roma, Istambul e outros, inclusiveBerlim.

Não se sabe se este acúmulo demegaprojetos é uma ideia fixa do che-fe do Kremlin ou se deriva da políticade modernização do país. Mas umacoisa é certa: depois do ganho em va-lor nacional com os jogos olímpicosem Sóchi (observe-se: pela primeiravez na história pós-soviética), o es-porte assume um lugar de crescenteimportância para a consciência sociale a política russa. Isso está ligado, porum lado, com a ideologia de um novoconservadorismo e, por outro, comuma abertura mais tolerante em rela-

Ministro Mutko, dos esportes: trêsanos passaram, há quatro pela frente

O lema é economizar. O orçamentoda Copa é de “modestos” 663 bilhõesde rublos, sendo que um terço cabe àFIFA, um terço aos patrocinadores e oúltimo terço aos cofres do Estado. Issocai bem para a opinião pública. Valeobservar as duas cidades-sede “exóti-cas”, Saransk e Kaliningrado. Saransk,a capital da Mordóvia, recebeu daFIFA (e do ministro Mutko) algo pare-cido com um coringa. Além de umaarena moderna, faltam hotéis e infra-estrutura. O exclave báltico de Kali-ningrado também começa da estacazero. A prioridade é o aspecto político,diz-se. Kaliningrado seria um localideal de jogos para equipes da Europa(Alemanha, Polônia e talvez até a Ro-mênia) e é o posto avançado do oeste:com Ecaterimburgo, nos montesUrais, e Sóchi, no sul, forma o grandetriângulo da Copa. Como uma partede Ecaterimburgo faz parte da Ásia,será a primeira vez que uma Copa serealiza concomitantemente na Europae na Ásia.

Esperam-se impulsos para a infra-estrutura em numerosas outras cida-des russas. 32 seleções nacionaisprecisarão de alojamento e locais paratreinar. A FIFA já tem uma lista de 33cidades que se candidataram. O sor-teio dos grupos só vai acontecer nodia 25 de junho de 2015, mas Kaluga,Ulianovsk, Krasnodar e muitas outras

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no mundo. Com estimados 11 milhõesde migrantes, está entre os EUA e aAlemanha. Em Moscou vivem atual-mente cerca de 2 milhões de imigran-tes, em sua maioria provenientes dosantigos países da União Soviética. Aquota federal prevê uma décima partedesse total. O resto, segundo Kari-mov, serve de instrumento de pressãocontra a seguridade social de traba-lhadores russos. Há um ano tentou-seinstituir a ideia de uma semana de 60horas de trabalho para trabalhadoresrussos, enquanto o emigrante em mé-dia já agora rala 57 horas por semana.

Esses e outros fatos fazem parte deum estudo feito em 2013 pelo Centrode Moscou para Direitos Trabalhistase Sociais, que teve por objetivo inves-tigar a influência de trabalhadoresestrangeiros sobre os direitos traba-lhistas de cidadãos russos. Segundoesse estudo, 60% dos emigrantes e22% dos trabalhadores com passa-porte russo estão em relação precáriade trabalho – ou seja, sem contrato detrabalho. 18% dos emigrantes e 8%dos russos trabalham sete dias porsemana. O salário em média é de 90 a132 rublos por hora (cerca de 2 a 3,5euros). As mulheres estrangeiras ga-nham ainda menos: 77 rublos por ho-ra. E 20% dos emigrantes e 13% dosrussos indicaram ter experimentadotrabalhos forçados.

ção a um ambiente que se globaliza.Ou, para citar o presidente do COI,Thomas Bach: “Todos aqueles queolham para a Rússia sem preconceitosviram em Sóchi um novo rosto destepaís, um rosto bem-sucedido, simpá-tico, patriótico e aberto para o mun-do”. Os otimistas chegam a ver uma“purificação” que faz a Rússia progre-dir. Poucos dias depois, essa visão foiprejudicada pelos acontecimentos naCrimeia, espera-se que não de formairreparável.

O papel atual do esporte para a so-ciedade e a política é tão dinâmicoquanto ele próprio e depende dosatores se eles querem usar essa van-tagem ou ignorá-la – o que parece sero caso da oposição, tanto dos liberaisquanto da esquerda. Os motivos paratal são padrões de pensamento con-servadores (“impossível unir esporte epolítica”) e talvez também a frustra-ção com o visível domínio da direitanacionalista nos movimentos de fãs.

O custo social

Enquanto isso, o boom de constru-ção olímpica tem cobrado um preçoelevado. Segundo Renato Karimov,presidente do Sindicato dos Traba-lhadores Migrantes de Moscou, Sóchifoi construída por migrantes sem sta-tus legal. Segundo dados da ONU, aRússia é o segundo maior país domundo que mais atrai trabalhadores

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nas obras da Copa, o mercado nacio-nal de trabalho está sendo esvaziado,com consequente redução dos salári-os e das garantias de direitos traba-lhistas, bem como um aumento dodesemprego. Segundo ele, a lei deve-ria ser anulada e reescrita com a par-ticipação dos sindicatos. Situaçãoparecida foi observada antes do Cam-peonato Europeu de 2012 na Ucrânia,mas todas as instâncias de decisão,inclusive a Uefa, fizeram vista grossana época. O show era mais importan-te.

No âmbito das consultas da Comis-são Trilateral (Estado, empregadores,sindicatos), a KTR aprovou a resolu-ção de rever a lei escandalosa – umbom sinal para dezenas de milhares detrabalhadores ocupadas nas obras, nosaneamento urbano e nos inúmerosserviços durante a própria Copa. A leiregula o status da totalidade de pes-soas ocupadas de todas as empresasreconhecidas como “FIFA-Contrac-tors”. Isso inclui muitas empreiteiras,fornecedores, dúzias de patrocinado-res e licenciadores da FIFA, bem comosuas filiais – agência de recrutamentoe de serviços terceirizados, empresasnos ramos de segurança, catering, pu-blicidade, etc.

O que acontece no futebol russo?

Depois do breve êxito em 2008, ofutebol russo praticamente ficou apa-

Lei sobre trabalho escravo

Toda essa questão ganhou relevân-cia por causa do Mundial de Futebol.Durante o verão de 2013, o presiden-te Putin assinou a lei FZ-108 “sobre ospreparativos para a Copa de 2018”.Alguns pontos tornam esse documen-to um pano vermelho para os sindica-tos, que há meses já se mobilizamcontra a lei. De um lado, a lei levantagarantias de direito mínimas contratrabalho desregulamentado, horas-extras, turnos noturnos e aos domin-gos. Por outro lado, o controle do Es-tado sobre o emprego detrabalhadores estrangeiros foi total-mente abolido. Nos dez estádios emobras na Rússia, de Moscou a Kalinin-grado, nos próximos anos não se pre-cisará nem de autorização de trabalhodo Serviço de Migração, nem do avisohabitual das repartições ligadas aotrabalho ou tributárias sobre empre-go e demissão de migrantes. Tudo ficaa cargo do empregador. Os estimados75 mil a 100 mil trabalhadores em-pregados nas obras dos novos estádi-os da Copa ficam num vácuo jurídico.

A Confederação Russa do Trabalho(KTR), associação sindical indepen-dente e parceira da Fundação RosaLuxemburg, teme um aumento da cri-minalidade ligado ao comércio huma-no e a trabalhos forçados, incluindomenores de idade. Segundo o ativistaAlexander Lechtman, da KTF, o traba-lho escravo é praticamente legalizado

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altas receitas ou um aumento drásticodo limite superior para o financia-mento por acionista. A visão pesa umbilhão de dólares e é uma ideia deAlexei Miller, chefe da Gazprom, maisou menos acompanhado pelos donosdos grandes clubes russos. As federa-ções nacionais, a Uefa e a grande mai-oria dos clubes da primeira divisãoestão céticos. Os recentes aconteci-mentos políticos na Ucrânia reduzemas chances de sucesso para este pro-jeto ou até mesmo o inviabilizam nomédio prazo.

Primeiro o dinheiro, depois o esporte

O bem-sucedido exemplo da LigaContinental de Hóquei sobre o Gelofoi emblemático para o projeto deMiller. Desde 2008, a Liga é responsá-vel pelo jogo popular na Rússia, noâmbito de acordos de três anos de du-ração com a federação nacional. Dotorneio do KHL também sai o cam-peão russo de hóquei sobre o gelo. Oganhador da série final Leste-Oesterecebe a taça Gagárin. Segunda liga dehóquei sobre o gelo mais forte domundo (depois da NHL norte-ameri-cana), a KHL atrai cada vez mais ato-res da Europa e da Ásia. Dos 24 clubesoriginais, cresceu em sua sexta tem-porada para um total de 28 clubes daRússia, Bielorrússia, Cazaquistão,Letônia, Ucrânia, Eslováquia, Repúbli-ca Tcheca e Croácia. Para 2014/15,está programada uma ampliação para

gado no cenário internacional. Os doisclubes mais populares, Spartak e ZS-KA Moscou, tiveram de deixar a Ligados Campeões vergonhosamente porduas vezes seguidas. Cai o interessepela primeira divisão russa, estagnamou caem os números de visitantes e daaudiência. A Confederação Russa deFutebol (RFB) impôs ao campeonatorusso o calendário europeu outono-primavera. A consequência são cam-pos cobertos de neve e tribunas vazi-as, enquanto as arenas modernasainda estão por ser construídas. Mas onegócios dos agentes esportivos estáflorescendo, times de excelência já seintegraram totalmente na bolsa inter-nacional de jogadores. O limite inter-no de legionários foi flexibilizadodrasticamente: agora, até sete es-trangeiros podem se candidatar si-multaneamente a jogar fora do país.

Os clubes de Moscou e São Peters-burgo financeiramente mais impor-tantes são vergonhosamente egoístase orientados pelo lucro – e preparamum novo golpe: um campeonato con-junto com 18 seleções de ponta daRússia e da Ucrânia, bem como umasegunda divisão comum como alter-nativa às duas nacionais. O argumen-to é o de que a integração é o únicocaminho para resolver a crise do fute-bol doméstico e responder às deman-das da Uefa por um fair play financeiroao qual hoje a maioria dos clubes rus-sos e ucranianos não correspondem. Aalternativa seria uma liga “top” com

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fórmula estrangeira “10 + 15“ (até dezjogadores estrangeiros simultanea-mente no grupo) para a próxima tem-porada significaria o fim da Sbornaja,acha o diretor honorário do RFB, Via-cheslav Koloskov. Os dois lados enri-jeceram suas posições, e a evoluçãofutura certamente também depende-rá do comportamento da seleção rus-sa no Brasil.

Hooligans versus futebol

Nos últimos anos, o noticiário sobreo futebol russo foi marcado por umasérie de escândalos nos estádios. Emnovembro de 2012, um goleiro doDynamo de Moscou foi ferido por umexplosivo arremessado por um torce-dor. Pouco antes, um jogo da Taça daRússia foi interrompido por distúrbiosno público. Hostilidades, ofensas, pa-lavras de ordem obscenas na torcidafazem parte do dia a dia. O apogeutriste aconteceu no dia 30 de outubrode 2013 em Jaroslawl durante um jo-go da Taca da Rússia: 5 mil torcedoresdo Spartak vindos de outras partes dopaís travaram uma batalha de quaseuma hora com unidades especiaisOMON da polícia, enquanto na tribu-na surgiu por alguns segundos umabandeira com uma suástica. Um tribu-nal sentenciou um fã de Vladimir apagar multa de 1,5 milhões de rublos(cerca de 30 mil euros) ao FC Spartak.Isso foi um marco importante. Nunca,antes, um torcedor russo foi tão

32 times. A seleção de Jokerit deHelsinki também vai trocar a “SM-lii-ga” finlandesa pela KHL. A dominaçãorussa no ramo do hóquei sobre o geloeuropeu passou por um grande mu-dança estrutural graças ao capital daGazprom.

Esses procedimentos ousados cho-caram o mundo esportivo e algunspolíticos. O senador VjacheslavFetisov, lenda viva do hóquei sobre ogelo, iniciou um boicote financeiro aosclubes, ou seja: nenhum centavos maisdeve sair dos caixas das grandes em-presas com participação estatal paraos clubes. “A Bósnia-Herzegovina vaiparticipar da Copa no Brasil? Por quenão devemos seguir o caminho daBósnia? Um clube deve gastar tantoquanto ganha”, diz Juri Belous, ex-di-rigente do FC Rostov. O conflito só vaise aguçar. O novo treinador nacionalFabio Capello, a grande esperança doministro Minister Mutko, prorrogou oseu contrato com o RFB até 2018 epossivelmente vai atuar em uma con-trarreforma que prioriza os interessesda seleção nacional. Ele não imaginanenhum “caminho bósnio” (a seleçãocompleta da Bósnia joga no exterior).Capello, que tem 67 anos, quer que nomínimo cinco ou até seis jovens joga-dores russos tenham a oportunidadee o direito de jogar com a casa cheia –e não no frio do inverno – como titula-res das principais equipes da primeiradivisão. Os lobistas da primeira divi-são planejam uma cesura: a nova

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Rússia entre muitos grupos organiza-dos de torcedores tanto quanto emoutros lugares do mundo, O impor-tante é que a sua influência e a aceita-ção de suas ideias diminuam. Quando,em 2012, saiu publicado um “mani-festo” escandaloso no site de um clubede torcedores do Zenit São Peters-burgo – entre outras reivindicações,pedindo que o clube escolha seus jo-gadores segundo a cor da pele eorientação sexual - a maioria dos tor-cedores reagiu com crítica e o episó-dio foi visto como perda de reputaçãopara o Zenit e para a Rússia. A Fede-ração Panrussa de Torcedores chegoua cogitar em processar o clube, o queantes teria sido impensável. O episó-dio mostra como é tensa a situaçãosocial na Rússia, em especial em rela-ção aos migrantes.

A Copa no Brasil tem por lema a lutacontra qualquer forma de racismo.Trata-se de um país que respeita a di-versidade, disse a presidente DilmaRousseff em fevereiro de 2014. Qua-tro anos mais tarde, será a vez da Rús-sia… E o país gigantesco se apresentapara dentro e para fora com modernasinstalações esportivas, uma infraes-trutura desenvolvida nas grandes ci-dades e na província, um autênticoespírito de fair play e uma cultura (deconsumo) simpática e entusiasmadaem torno do futebol, aquele jogo fas-cinante para pequenos e grandes, mu-lheres e homens, pobres e ricos, fieis eateístas... Afinal, queremos projetar

duramente castigado. Uma lei sobreas torcidas aprovada em 2013 visaacabar com a confusão e a queda nonúmero de visitantes aos estádios.Prevê “listas negras”, castigos maisduros e medidas de segurança. Aomesmo tempo, a Duma discute voltara autorizar a venda de cerveja nos es-tádios, sempre apontando para oscostumes no ocidente. Desde 2005, aRússia proíbe vender ou levar cervejapara os estádios.

As pessoas que simplesmente se in-teressam por futebol demonstram umdescontentamento crescente com ocomportamento não apenas dos fãsradicais como também dos legislado-res. A atmosfera nos estádios, quecrescentemente viram palco de gru-pos marginalizados de com fundo xe-nófobo, fica tensa. Este tipo deevolução é um desafio principalmentepara a Copa planejada. No exteriorsurgem acusações de que ataques ra-cistas fazem parte do cotidiano do fu-tebol russo. Vagner Love, o jogadorestrangeiro mais bem-sucedido ecampeão de gols em 2008 na primeiraliga, delimita o fenômeno à região deSão Petersburgo e diz que teria sidovaiado apenas uma vez lá. Dá para en-tende: afinal, Love jogou durante seteanos para o ZSKA de Moscou, cujo ar-quirrival é o Zenit São Petersburgo.

Violência, xenofobia e ideias nacio-nalistas e até de extrema direita infe-lizmente podem ser encontradas na

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um futuro positivo, não é mesmo? E,claro, a cena final do filme: Rússiacontra Romênia, com um final feliz...

Epílogo. Em 2018 se realizarão naRússia as próximas eleições presiden-ciais. E chega de sonhar aqui...

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O real está em campo. Para asgrandes empresas, a Copa do Mundoe as Olimpíadas no Brasil significamum negócio e tanto. E não só para asempresas que participam da constru-ção dos estádios. Pois o Brasil tambémestá comprando equipamentos técni-cos de segurança para se armar e pro-teger contra potenciais terroristas – econtra a massa de manifestantes. Em-presas da Alemanha e da Áustria en-cabeçam a lista de fornecedores,enquanto críticos da Copa alertamcontra a militarização no interior dopaís.

Ele é grande. Negro. Seu número deconhecimento é 27-0002. Está no paísdesde final de junho de 2013 e vemsendo utilizado nas ruas contra mani-festantes. No carro há um assento. Delá se dispara o jato de água. Quem foratingido é derrubado na rua, podendoser ferido. Até o jornal Extra, filhote de

O Globo, maior jornal brasileiro, teveesse entendimento. “A Polícia Militardo Rio de Janeiro aposta em uma novaarma para controlar manifestações:um canhão de água com jato de fortepressão. Quem foi ao centro da cidadeneste sábado pôde ver o veículo, es-coltado por batedores, em direção dasede do Batalhão de Choque na Cida-de Nova.” A matéria, escrita no augedas manifestações, avisa que “os tur-cos que foram às ruas em Istambulconhecem bem a força desse jato deágua”. E na foto de um dos canhões deágua não é difícil identificar duas le-tras em um círculo: V e W – a logo damaior montadora da Alemanha, aVolkswagen.

Corte. Outro programa, outro ce-nário: imagens ao vivo de Istambul nainternet, praça Taksim, manifestantesenvoltos numa nuvem de gás lacrimo-gêneo. Os projéteis vazios estampam

O BRASIL TREINA COMBLINDADOS, CANHÕES DE ÁGUA EPISTOLAS

Christian Russau

Trad. Kristina Michahelles

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exemplares chegaram em maio de2013 e foram empregados pela pri-meira vez durante a visita do Papa nasJornadas Mundiais Católicas no Riode Janeiro. “Precisamos dos blindadospara proteger as pessoas nos estádiosdurante os megaeventos”, argumen-tou o general da Aeronáutica, MarcioRoland Heise. O carro de combatedispõe de dois canhões de 35mm e écapaz de abater aviões a curta distân-cia. O preço total para a frota de blin-dados produzida por Krauss-Maffei,Blohm + Voss e Siemens está estimadaem 40 milhões de dólares.

Também o pequeno fabricante aus-tríaco de armas Glock vai lucrar comos eventos esportivos no Brasil. Se-gundo informações do jornal Gazetado Povo, a polícia federal e a PolíciaMilitar do Estado do Rio de Janeirofecharam um acordo exclusivo com aempresa para armar duas unidades depolícia durante os Jogos Olímpicos aserem realizados no Rio de Janeiro em2016. Segundo relatos dos jornais,militares e policiais brasileiros viaja-ram para Viena, custeados pela “fa-mosa firma austríaca”.

Pelo menos a aquisição dos blinda-dos alemães, segundo a Folha de SãoPaulo segue uma recomendação ex-pressa da FIFA. Até mesmo críticoscomo o sociólogo e urbanista CarlosVainer, do Ippur/UFRJ,apontam parao fato de que as providências de ar-mamento foram exigidas por

a imagem da bandeira brasileira e aexpressão made in Brazil. Os cartuchossão da Condor Tecnologias Não-LetaisS.A., um fabricante de armas não-le-tais, como se autodesigna a empresacom sede no Rio de Janeiro, uma dasmaiores produtoras mundiais de gáslacrimogêneo. Procurada, a CondorTecnologias confirmou ter fornecido ogás. “A Turquia é um dos países paraonde a Condor exporta, mas a políciaturca também compra esse tipo deequipamento de outros fornecedores,americanos e coreanos entre outros”,diz um comunicado da empresa. En-quanto no Rio veículos blindados ale-mães deixam manifestantes empânico, na praça Taksim em Istambuleles fogem do gás lacrimogêneo bra-sileiro. O novo modelo de divisão in-ternacional do trabalho.

Mas a indústria do armamento ofe-rece outras opções. Nos preparativosdos megaeventos esportivos, o gover-no brasileiro não hesitou quando setratou de ir às compras sob o lema“proteção contra riscos e terrorismo”.Por 70 milhões de dólares, o Brasilencomendou equipamentos de segu-rança nos EUA, em Israel e na Alema-nha: blindados, drones, robôs comcontrole remoto com câmeras e de-tectores de substâncias químicas.

Da Alemanha, o Brasil comprou 34exemplares usados do tanque Gepard1A2 que também pode ser controladoremotamente. Os primeiros

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Amorim sobre a “garantia da lei e daordem”. Ela se refere explicitamenteao “período antes e durante o evento”.E o ministro da Defesa não pega exa-tamente leve: protestos durante aCopa podem ser classificados como“atos terroristas”, passíveis de 15 a 30anos de prisão.

No final de junho de 2013, a mídiabrasileira começou a noticiar as preo-cupações dos patrocinadores inter-nacionais da Copa. Eles temem que osprotestos possam vir a prejudicar aimagem das suas marcas. O governobrasileiro, pelo jeito, reagiu com todosos meios legais à sua disposição. Nopaís do futebol, não pode acontecer oque não pode existir: protestos contrao futebol e a Copa, contra as despesasmilionárias do Estado, contra as re-moções por causa do boom imobiliárionas doze cidades-sede.

Quer dizer que nem tudo é tão ino-fensivo quanto gostam de asseguraros patrocinadores da FIFA? Os fabri-cantes de assentos para os estádiosdos Estados da Francônia e da Suábia,os escritórios de arquitetura e de pla-nejamento de Berlim, Munique,Stuttgart e Hamburg, será que a de-senvolvedora alemã da tecnologia dalinha do gol, o fabricantes de chuteirasda Francônia com as três listras ou asmais de cem empresas alemãs que jáem 2010 aderiram à inciativa WinWin2014/16“ a fim de transferir conheci-mentos alemães ao Brasil por ocasião

organismos internacionais como a fe-deração Internacional do Futebol. “AFIFA se dirigiu às nossas Forças Ar-madas na condição de consultor mili-tar e determinou que tipo de armasteriam de ser compradas, ridiculari-zando totalmente a soberania militar”.Vainer adverte que os megaeventosdão um novo impulso à militarizaçãoda segurança pública – segundo ele, “olegado mais obstinado da ditaduramilitar”. Além disso, a criação de umaSecretaria Extraordinária de Segu-rança Pública para Grandes Eventosfere o princípio federativo do Brasil e,com isso, a ordem democrática dopaís. “Essas inovações técnicas emnome do futebol deixarão como lega-do transformações duradouras anti-democráticas e inconstitucionais”,teme o professor.

A preocupação é compartilhadatambém por muitas organizações emovimentos da sociedade civil, que háanos vêm alertando contra a militari-zação do espaço público. Face àsaquisições de armas pelo governo queagora se tornaram públicas, cresce apreocupação de que até as Olimpía-das de 2016 o Rio de Janeiro venha aser “completamente militarizado”, co-mo diz uma análise detalhada do Co-mitê Popular das Olimpíadas e daCopa do Mundo no Rio de Janeiro. Is-so combina com informações mais re-centes sobre a Portaria Nr. 3.461/MDassinada em 19 de dezembro de 2013pelo ministro da Defesa Celso

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da Copa, a Confederação da IndústriaAlemã que instalou um conselho bra-sileiro especialmente para a Copa de2014 - será que todos eles têm cons-ciência de que o seu envolvimentopode representar um risco de ima-gem? Nas últimas décadas, participarde eventos como a Copa costumavatrazer um ganho em imagem para asempresas, mas provavelmente issocontinua um ponto de interrogaçãoface à esperada onda de protestos noBrasil neste ano. Pelo menos s empre-sas não deviam ter tanta certeza, pois“o Brasil não é para amadores”, comocostumava dizer o compositor TomJobim.

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Paul Breitner é um visitantepopular em São Paulo. Num sábadoensolarado de abril em 2013 o cam-peão mundial de 1974 e “embaixadorde marcas” de Munique esteve pelasegunda vez na megametrópole bra-sileira numa visita-relâmpago parapromover a Copa da Juventude doBayern de Munique (FC Bayern YouthCup).

Ao avaliar o futebol local, o "embai-xador" Breitner não foi nada diplomá-tico. “Hoje, o Brasil já não toca mais oprimeiro violino, nem mesmo o se-gundo ou o terceiro. Os brasileirosdormiram nos seus louros, ficaramparados uma década e jogam um fute-bol do passado. O futebol do século 21é jogado na Europa” (e, lá, principal-mente na Espanha e na Alemanha – ofutebol da Premier League britânicatambém é “chato, já era”, declarou

semanas depois no canal de TV inglêsITV).

Pode ser. Mas os motivos para a mi-séria do futebol brasileiro tambémtêm – e principalmente – origens es-truturais. Os maiores talentos conti-nuam sendo exportados, ainda queessa tendência esteja declinando coma crise financeira na Europa e a fase decrescimento no Brasil do século 21.Mais problemática é a estrutura em-perrada do negócio do futebol, co-mandado por funcionários corruptos,os príncipes regionais (presidentesdas federações) e a TV Globo. Um ex-emplo: o Campeonato Brasileiro daPrimeira Divisão é realizado em 38dias de jogos ao longo de apenas setemeses.

“Para mim, penteado ou roupa sãoacessórios secundários”, diz Breitnersecamente, acostumado à provocação

O EMBAIXADOR DE MARCAS:PAUL BREITNER NO BRASIL

Gerhard Dilger

Trad. Kristina Michahelles

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No Brasil é diferente. EmboraBreitner, embaixador e olheiro doBayern, tivesse observado atenta-mente várias das partidas de vinteminutos nas belíssimas instalaçõesesportivas do Colégio Porto Seguro,essa variante da Copa da Juventudenão parece ser muito propícia parabuscar talentos fora do ramo estabe-lecido de clubes. Dessa vez, quem di-tou as regras foi a CâmaraBrasil-Alemanha de Indústria e Co-mércio.

Na seleção das equipes, foi evidentea influência dos interesses dos patro-cinadores Audi e a seguradora Allianz– envolvida no megaprojeto da hidre-létrica de Belo Monte –, que queremampliar a sua presença em São Paulo,no Rio de Janeiro e em Porto Alegre.Dessa forma, além das placas de publi-cidade superdimensionadas na beira docampo, os jovens também vestiram ca-misetas com as logomarcas dos patroci-nadores por cima dos uniformesescolares.

O vencedor – com louros – foi aequipe de Benjamin Constant, que se-manas mais tarde viajou para a rodadafinal em Munique. Não por acaso, o ti-me – assim como a própria escola, dobairro paulistano de classe média deVila Mariana – era bem mais mistura-do em sua composição étnica e socialdo que as três escolas alemãs pratica-mente totalmente “brancas”.

dos repórteres por causa do seu anti-go visual afro e solicitado a listar os“cinco penteados mais lindos” entre osjogadores na ativa. “Mas o meu antigopenteado voltou a entrar na moda,como demonstra o jogador brasileiroDante, do Bayern”. Existem jogadoreschamados Breitner na Alemanha, co-mo no Brasil e na Colômbia? “Não, en-tre os jogadores alemães não costumahaver nomes artísticos, e as criançasnão podem ser batizadas com sobre-nomes”.

Da rodada final brasileira no segun-do Youth Cup que Breitner veio assis-tir em São Paulo participaram os timesdas três escolas alemãs – Corcovado,no Rio de Janeiro, Humboldt e PortoSeguro, de São Paulo, bem como asescolas Pastor Dohms (Porto Alegre)e Benjamin Constant (São Paulo), emque também se ensina o alemão.

“Na Índia, participam jovens de fave-las que jamais teriam oportunidades pa-recidas”, diz Breitner. Na Áustria,segundo ele, surgem talentos dos bair-ros operários de Viena. Efetivamente,em vários países a Copa da Juventudetem um lado social. Os dez jogadoresaustríacos entre 12 e 16 anos que via-jaram para a rodada final em Muniqueeram todos provenientes de institui-ções sociais, e todos os alemães inte-gravam times da divisão de ruasintercultural buntkicktgut (InterkulturelleStraßenliga buntkicktgut) de Munique.

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Além do "Brasil, participaram darodada final em Munique times daChina, da Alemanha, da Itália, do Ja-pão, da Áustria e da Rússia. Os alunosde São Paulo conquistaram o quintolugar. Em 2014, ano da Copa, o FCBayern Youth Cup voltou a ser reali-zado sem participação brasileira.

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Rio de Janeiro, 2013.

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O CONTEXTO BRASILEIRO

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Ziraldo e Henfil sobre a Copa de 1970.

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O fracasso da seleção na Copa 1966na Inglaterra lançou o futebol brasi-leiro numa profunda crise. Os respon-sáveis mostraram um ar perdido eerrático. O nome do então presidenteda Confederação Brasileira de Des-portos ficaria mais tarde conhecidopor torcedores do futebol no mundointeiro: era João Havelange.

A primeira tentativa de superar acrise consistia na militarização do fu-tebol. Em 1968 instituiu-se uma Co-missão Nacional de Futebol paraaplicar a hierarquia militar também aofutebol. Esse lance foi outro fracasso.Em 1969, com a fase de qualificaçãopara a próxima Copa às portas, o ner-vosismo cresceu. Nessa situação,Havelange decidiu dar um passo sur-preendente e ousado, provavelmentenascido do desespero: ele nomeouJoão Saldanha treinador da seleção.

Saldanha não tinha nada de um técni-co profissional. Era jornalista – e umdos críticos mais ferozes da seleção.Mas havia outro aspecto que tornavasua escolha uma sensação: Saldanhaera esquerdista confesso e suposta-mente membro do proibido PartidoComunista Brasileiro. Sob seu co-mando, a seleção brasileira realizouuma série de excelentes jogos e sequalificou sem nenhum ponto negati-vo.

Nesse contexto ocorreu no dia 31de agosto de 1969 uma estranhacoincidência. Em junho de 1969, opresidente Artur da Costa e Silva,eleito durante a ditadura militar, ado-eceu com tal gravidade que não podiacontinuar no exercício do cargo. Osmilitares fizeram de tudo para evitar apassagem do cargo para um vice-pre-sidente civil. Em 31 de agosto, eles

1968-1984: DA MILITARIZAÇÃO DOFUTEBOL ATÉ A DEMOCRACIACORINTHIANA

Thomas Fatheuer

Trad. Monika Ottermann

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futebol era o ditador. Era previsívelque essa situação não podia durar pormuito tempo.

Saldanha foi demitido ainda antesda Copa no México. Sobre sua demis-são circulam até hoje duas versões di-ferentes. A história mais popular ésem dúvida aquela que afirma queMédici quis se intrometer na compo-sição do time para conseguir a nome-ação de Dario José dos Santos (“DadáMaravilha”), um atacante muito bemsucedido e muito popular. Saldanhateria ficado chateado e dito sua frasemais famosa: “O presidente escalaseus ministros, e eu escalo minha se-leção.”

Alguns jogos mal disputados certa-mente contribuíram para a demissãode Saldanha, bem como sua desconfi-ança acerca de Pelé, a quem julgougravemente míope e cuja convocaçãopara o México ele colocava em dúvida.Seja como for, o regime certamentetambém não queria ter que partilharum possível triunfo na Copa com umcomunista.

O sucessor de Saldanha era MárioZagallo, e com ele aconteceu final-mente aquela reorganização da sele-ção que é chamada de “militarização”.Jerônimo Bastos, um oficial militar, foinomeado chefe da delegação brasilei-ra para a Copa no México, e outrosmilitares foram incluídos nos prepa-rativos. O mais conhecido entre elesfoi Cláudio Coutinho que se tornaria

baixaram um ato que mudava a Cons-tituição, o AI-12, e instituíram umajunta militar sob o comando de EmílioGarrastazu Médici. No mesmo dia, oBrasil e o Paraguai encontraram-se noRio de Janeiro, no Maracanã. Era o úl-timo jogo da qualificação, o jogo deci-sivo. Mais de 180.000 pessoaspresenciaram a vitória do Brasil (1:0) esua qualificação para a Copa do Mun-do 1970 no México. Mais tarde,Saldanha contou uma história muitoespecial sobre esse dia 31 de agosto:antes do jogo, o General Eloi Menezes,responsável pelo esporte, o teria in-formado que o presidente Costa e Sil-va teria morrido e que deveria serobservado um minuto de silêncio emsua homenagem. Já que Saldanha es-perava em vez do silêncio uma ondade apitos, ele desaconselhou o ato. Ominuto de silêncio não foi realizado –e o suposto falecimento revelou-secomo notícia falsa: Costa e Silva fale-ceu apenas em dezembro.

Com Médici chegou à presidênciada Republica um militar que era apai-xonado pelo futebol. Ele tinha a cora-gem de entrar em estádios lotados,brincava com a bola em shows de TVe tentava tirar proveito da populari-dade do futebol em favor da junta ede sua própria pessoa. Portanto, em1969 uma dupla estranha ocupavadois cargos importantes no Brasil,talvez os dois mais importantes detodos: um comunista era o técnico daseleção, e um apaixonado pelo

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nossa seleção. Pelé, Rivelino e outrosjogadores pronunciaram-se e conde-naram o ato terrorista.”

Não obstante esta “perturbação”, oBrasil ganhou a Copa soberanamente:na final, a seleção venceu, aparente-mente sem qualquer esforço, a Itáliacom o placar de 4 a 1. O governoaproveitou o triunfo descaradamente,e Médici recebeu a seleção com umaafirmação verdadeiramente ideal-tí-pica sobre a suposta fusão de futebole interesse nacional: “Identifico, navitória conquistada na fraterna dispu-ta esportiva, a prevalência de princí-pios que nós devemos amar para anossa luta em favor do desenvolvi-mento nacional.” Além disso, ele ca-racterizou o sucesso no futebol uma“afirmação do valor do homem brasi-leiro”.

De fato, graças ao futebol, os mili-tares conseguiram comemorar em1970 um dos raros momentos de re-lativa popularidade. Essa popularida-de, porém, não se devia só ao futebol.Desde 1968, a economia brasileiraestava crescendo dez por cento aoano. Nos anos de chumbo, o Brasil vi-veu seu milagre econômico. Os mili-tares acolheram a ideia de uma“superpotência Brasil” e reforçaram apropaganda nacionalista. No mesmoano de 1970 foi também anunciada aconstrução da Transamazônica, agrande estrada que cortaria toda aAmazônia – um projeto prenhe de

mais tarde (1978) o técnico da sele-ção. Coutinho representava um estilode futebol muito diferente do estilode Saldanha, que era muito impulsivo.Ele procurava embasar o treino numfundamente científico e julgava a boacondição física o pressuposto decisivopara ganhar a Copa.

Finalmente ela começou, a tão so-nhada Copa do Mundo de Futebol de1970 no México. Até então, nenhumevento de jogos de futebol tinha sidousado e abusado no Brasil tão aberta-mente para fins políticos como essaCopa. O hino “Pra frente Brasil”, can-ção brasileira oficial da Copa, refletiabem o espírito nacionalista da ditadu-ra: “Noventa milhões em ação, prafrente Brasil do meu coração. […] To-dos unidos na mesma emoção.” Bem,todos não. Durante a Copa, o embai-xador alemão no Brasil, Ehrenfriedvon Holleben, foi sequestrado porguerrilheiros da Vanguarda PopularRevolucionária, de orientação de es-querda. No dia 17 de junho, o governoaceitou, em troca da libertação doembaixador, a saída de 40 presos po-líticos para a Argélia. Em consequên-cia, o regime reforçou a repressão einstrumentalizou a seleção para fazerpropaganda contra a guerrilha. Os quelutavam na resistência à ditadura fo-ram acusados de perturbar o timebrasileiro. No dia 17 de junho, a Folhade São Paulo escreveu: “Notícias doMéxico mostram a perturbação que anotícia sobre o sequestro causou na

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Tchecoslováquia. Por um momentosinistro, torturadores e torturadosregozijaram-se juntos com a seleção.O futebol – e na sociedade profunda-mente dividida de 1970, provavel-mente só ele – foi capaz de produzirmomentos como este, mas não pro-duziu união ou reconciliação. A tortu-ra continuava assim como aresistência contra o regime. Assim semostrou também que a seleção re-presentava algo diferente e maior queo poder político. Afinal, o futebol jus-tamente não é a nação, mesmo quan-do um regime se utiliza do futebolpara sua ideologia. Desta maneira so-breviveu uma contranarrativa àcooptação da Copa 1970 pelos milita-res: que foi um comunista que tinha

simbologia de integração e grandezanacional. Assustados pelos protestosde 1968, os militares não só tinhamredobrado a repressão como tambémlançado um sistemático trabalho pro-pagandístico. Para essa política, o su-cesso futebolístico de 1970 caiu comouma luva, mas não foi o único elemen-to em sua construção.

Para os adversários do regime, po-rém, aparentemente não foi fácil de-senvolver uma postura não ambíguaacerca da seleção. Muitos grupos daesquerda tinham lançado a orientaçãode torcer contra o Brasil. Segundo asafirmações de todos os envolvidos, is-to funcionou somente até o primeirogol de Rivelino no jogo contra a

A Copa 1970 e o dilema da esquerda

Numa história em quadrinhos, Henfil (Henrique de Sousa Filho), o famosocartunista brasileiro, caracterizou bem a desunião da esquerda durante a Copa1970. Os desenhos mostram um intelectual diante do televisor, durante um jo-go da Copa. O texto:

“Um país inteiro para por causa do futebol, mas não para para resolver oproblema da fome... Este sim é o verdadeiro ópio do povo! Faz esquecê-lo deque são explorados, subdesenvolvidos... Estou torcendo para o Brasil perder!Assim o povo voltará à realidade e verá que a vida não é feita de gols, mas de in-justiças... Nossa realidade não é tão infantil como uma jogada como esta de Pe-lé invadindo a grande área inglesa... Pênalti! Pênalti! Juiz filho da mãe! Pênalti,seu safado!”1

1 Citado segundo GUTERMAN, Marcos. O Futebol Explica o Brasil: o Caso da Copa de 70. São

Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006, p. 48 (dissertação de Mestrado

em História).

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A faísca de uma utopia: a DemocraciaCorinthiana

Na época da ditadura militar, o fu-tebol teve um papel importante nãosó para a propaganda e a ideologia dosmilitares, mas era também um mo-mento na resistência e no movimentopela democracia. Em 1982, os temposdo milagre econômico brasileiro jápertenciam a um passado remoto, aditadura militar era cada vez mais cri-ticada e estava indo em direção ao seufim. Eram tempos de novos inícios,tanto na política como na cultura, masnão é absolutamente automático quetempos como este atinjam também ofutebol. Em São Paulo, porém, estavanascendo um dos maiores milagres nahistória do futebol.

Na maioria dos casos, o surgimentode algo novo dá-se juntamente com acrise do antigo. O SC Corinthians é umdos clubes mais populares do Brasil.Em 1981, entretanto, ele não estavaindo nada bem, em termos esportivos.Isto fomentou a crescente insatisfa-ção com o autoritário presidente doclube, Vicente Matheus, amigo decla-rado da ditadura militar. A eleição deum novo presidente estava destinadaa acalmar os ânimos. Foi um velhotruque: uma mudança para garantir acontinuidade. O longo jejum de su-cessos esportivo e a crescente pres-são dos torcedores motivaram o novopresidente, Waldemar Pires, a arris-car uma maior abertura. A grande

construído aquela seleção e a condu-zido ao sucesso. No México, a ditaduramilitar e o comunismo conseguiramvencer ao mesmo tempo.

Para outros envolvidos, a vitória de1970 desbravou o caminho para umacarreira notável. João Havelange, filhode um comerciante de armas, foi elei-to em 1974 presidente da FIFA e ocu-pou esse cargo por 24 anos.Juntamente com seu genro RicardoTeixeira, por décadas no comando daCBF, ele transformou a FIFA em umconsórcio multinacional, poderoso enão transparente, que comercializa omegaevento global mais popular. De lápara cá, ambos já perderam seus car-gos e cargos honoríficos porque seconfirmaram cada vez mais as acusa-ções maciças de corrupção. Enquantoisto, o “sistema FIFA” continua sob ocomando do então secretário-geral deHavelange, Joseph Blatter.

No Brasil, as continuidades são ain-da mais dolorosas. Ricardo Teixeirateve que deixar seu cargo, mas conse-guiu impor como sucessor seu homemde confiança José Maria Marin. Marinfez claramente carreira política du-rante a ditadura militar e é acusado deser o autor intelectual do assassinatodo jornalista Vladimir Herzog, porquetinha taxado a emissora onde Herzogtrabalhava de não patriota e subver-siva. Atualmente, José Maria Marin éo presidente do Comitê Organizadorda Copa.

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Um desenvolvimento desta espécieé possível somente em tempos espe-ciais. Naquela época, a politização dasociedade tomava conta de todos ossetores. A sociedade estava numa fasede abertura e rebelião – hoje falaría-mos de uma “primavera brasileira” –,mas uma primavera que não passoutão rapidamente. “O Corinthians foi ametáfora perfeita para a situação dopaís. O clube veio de uma direção au-toritária, estava numa crise, e os joga-dor queriam mais participação – assimcomo o país inteiro.” Mesmo assim, odesenvolvimento no Corinthians per-maneceu único e não se tornou o chu-te inicial nem parte de uma aberturageral no futebol brasileiro.

A razão disto pode ser que a reali-zação das ideias democráticasprecisava de personalidades extraor-dinárias – sem elas, o episódio da De-mocracia Corinthiana provavelmentenão teria acontecido. Geralmente seelenca os jogadores Sócrates,Casagrande, Zenon, Juninho,Wladimir e Biro-Biro como protago-nistas da abertura, mas não obstantetodo espírito coletivo, não é possívelnegar o papel destacado de Sócrates.Em 1983/84, ele se engajou ativa-mente na campanha pela eleição dire-ta do presidente (Diretas Já!) quemobilizava o Brasil e exigia democra-cia. Na realização de suas ideias, os jo-gadores contaram também com aajuda do jovem publicitário Washing-ton Olivetto. Ele ficou sabendo dos

mudança aconteceu quando Pires no-meou em 1982 Adilson Alves – soció-logo barbudo e filho de um antigopresidente do clube – como chefe dadivisão de futebol. Com ele começouno clube uma abertura democráticaque entrou na história como a Demo-cracia Corinthiana.

Adilson ouvia os jogadores e discu-tia com eles o futuro do clube. Estacultura participativa chegou ao seuauge quando, em 1983, os jogadoresreivindicaram a nomeação de seu co-lega Zé Maria como treinador e foramouvidos.

Sócrates, também chamado de dou-tor, um dos protagonistas da Demo-cracia Corinthiana, descreveu essetempo na retrospectiva: “Tomamoscada decisão coletivamente e partici-pamos do Conselho Deliberativo doclube”. Em tudo isto se zelava semprepela mais absoluta igualdade: “O votodo funcionário mais simples tinha omesmo peso que o do representanteda empresa, seu voto tinha o mesmovalor. Tudo foi muito democrático. Es-se tempo foi maravilhoso e mudou to-dos nós”, maravilha-se Sócrates, omeio-campo alto e magrão, ainda anosdepois. “As pessoas que estavam en-volvidas nesta microssociedade esta-vam em constante comunicação, cadaum participava e decidia junto. Os no-vatos ficaram no início realmente de-sesperados: "Por que aqui ninguémfala sobre futebol?’”

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Epílogo

Também a Democracia Corinthiananão era eterna, mas ela foi pelo menosa faísca da utopia de um futebol dife-rente. Em 1984, Sócrates foi para aItália, inclusive decepcionado com ofracasso da campanha pelas eleiçõesdiretas, a cujo sucesso ele tinha vin-culado sua permanência no Brasil.Depois de sua saída voltou no Co-rinthians aos poucos a normalidade, eela alcançou seu ponto mais baixocom a presidência de Alberto Dualibentre 1993 e 2007. Dualib fechou em2004 um contrato com a MSI, um gru-po de investidores que teria relaçõescom o oligarca russo Boris Beresows-ki. O Corinthians tornou-se pratica-mente propriedade da MSI. Em 2007,a justiça brasileira pôs um fim à coo-peração com a MSI, por causa de cor-rupção e desvio de dinheiro. Umpequeno consolo: entre os torcedoresdo Corinthians tinha surgido um mo-vimento “Fora Dualib!” que chegou ater forte influência na sociedade e noclube.

eventos no Corinthians e criou o no-me Democracia Corinthiana, uma“marca” perfeita. Também o lema “Sercampeão é detalhe”, atribuído a Só-crates, comprova-se até hoje comouma síntese genial do espírito daqueletempo.

Mesmo assim foi justamente o su-cesso que fez da Democracia Co-rinthiana mais do que uma curiosanota de rodapé na história do futebol.O doido time democrático ganhou em1982 o Campeonato Paulista. A vitó-ria pode ter sido um detalhe, mas foium detalhe fundamental, pois o su-cesso fez do episódio uma lição im-portante para o futebol, ao mostrar: acoisa pode ser bem diferente! Um ou-tro futebol é possível e pode até mes-mo dar resultados.

Ainda que a vitória fosse apenas umdetalhe – o futebol não o foi. Com a fi-gura destacada de Sócrates, a Demo-cracia Corinthiana simboliza tambémo futebol lúdico. É isto que a conecta auma época importante e trágica dofutebol brasileiro. Sócrates e, claro,Zico, eram os heróis das seleções dasCopas de 1982 e de 1986 – seleçõesque jogaram soberbamente, mas quefracassaram de modo infeliz contra aItália (1982) e contra a França (1986).Mesmo assim, para muitos brasileirose brasileiras, o futebol dos anos oiten-ta está muito acima dos sucessos pos-teriores.

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Greve de professores no Rio de Janeiro, 2013.

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Em seu texto Foot-ball Mulato, Gil-berto Freyre aludia já em 1938 a umtema que domina até hoje o discurso eos relatos sobre o futebol no Brasil.Em seu elogio eufórico dos jogadoresbrasileiros que foram para a Copa naFrança, ele acreditou ter descobertoum “mulatismo flamboyant” quetransformava o jogo inglês em coisatotalmente diferente, a saber, em umadança dionisíaca. Desta forma, o fute-bol se tornaria uma “verdadeira afir-mação do Brasil”, mas nãosimplesmente o futebol, o jogo de fu-tebol como tal, e sim este futebol di-ferente, o jogo de futebol dos mulatose dos negros, o futebol “mestiço”.

Desde então desenvolve-se noBrasil um debate sem fim sobre a per-gunta se em alguma época teria exis-tido este futebol particular, estadança dionisíaca, este futebol-arte. E

se tiver existido, será que este futebolconsegue ainda sobreviver num mun-do globalizado que globalizou tam-bém o futebol? Qual é a relação entreeste futebol e a ideia de uma identida-de nacional? E será que tal identidadepode ser embasada ainda hoje nas su-postas diferenças ao “homem meca-nizado do Ocidente” (Freyre)? Agrande vantagem do futebol é que ele,acerca destas perguntas, pode narrarhistórias em vez de dar uma respostainequívoca.

Entretanto, pode ser útil dar pri-meiro uma breve olhada para outrolado da fronteira. Também o vizinhodifícil (ao menos no futebol) Argentinadesenvolveu no início do século pas-sado uma narrativa sobre um estiloparticular de jogar futebol, a saber, ofutebol criollo (crioulo), com seus bonsdribladores e individualistas, que

FUTEBOL E NAÇÃO – A IDENTIDADEBRASILEIRA EXISTE?

Thomas Fatheuer

Trad. Monika Ottermann

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No entanto, também no Brasil, o fu-tebol-arte não está isento de confli-tos. Nem todos @s brasileir@concordam com a narrativa do fute-bol-arte. Hoje em dia já não existeuma “tradição inventada” que cria co-munhão, mas antes há um leque dedisputas que permitem perceber co-mo o Brasil discute sobre si mesmo.

Uma breve retrospectiva sobre asCopas desde 1970 permite delinearbem este debate. Com a vitória bri-lhante no México parecia alcançado egarantido o que Nick Hornby celebra-ria depois como o “ideal platônico”:um futebol brasileiro que era belo e,ao mesmo tempo, dava resultados.Contudo, uma olhada mais atenta so-bre a seleção brasileira de 1970 ajudaa relativizar um pouco esse mito. Namemória predominam certamente oslances brilhantes de Pelé, Rivelino eoutros, mas o triunfo brasileiro foitambém construído sobre um bomdesempenho do conjunto da equipe,uma defesa sólida e uma excelentecondição física. O destaque para otreinamento sistemático desempe-nhou um papel central no debate pú-blico em torno da Copa. Ainda sob otreinador comunista Saldanha tinhacomeçado uma preparação para oMéxico que estava cientificamentefundamentada. Saldanha contratouum especialista para treinos em gran-des altitudes, o professor Lamartine, eeste se tornou uma figura-chave do“Projeto México”. O comunista e o

estaria marcado pelos imigrantes(aqui: os espanhóis e italianos, em dis-tinção dos ingleses).

Para o crioulismo futebolístico ar-gentino, os pontos de referência eramo campo improvisado de bairro, ouseja, o futebol não organizado na pe-riferia das cidades, e a figura do pibe,do “malandro”. A figura do futebol cri-oulo é desenvolvida por delimitação,especialmente em relação aos “outrosde longe”, isto é, “o inglês”.

Os paralelos à construção brasileirado futebol-arte são óbvios, apenasocorre que, no Brasil, o elemento dojogador negro é central. E ambas asconstruções são habitadas por umaproximidade à visão de mundo natu-ralista: jogadores crioulos, negros emulatos jogam de modo diferenteporque são diferentes. “Um jogadorcrioulo nasce como tal”, afirma PabloAlabarces1. Também na valorizaçãodos jogadores negros por Freyre eMário Filho vislumbra-se constante-mente uma imagem do ser humanoque atribui àqueles jogadores quali-dades especiais. De certa maneira, odiscurso da ascensão social do joga-dor negro não deixa de ser um racismoàs avessas: da mestiçagem problemá-tica nasceu uma imagem glorificada,mesmo que as explicações das habili-dades particulares dos negros tenhamrecorrido sempre a elementos sociaise culturais2.

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Para muit@s brasileir@s, os timesde 1982 e de 1986 (com certas restri-ções) representam a encarnação dofutebol-arte. Em 1982, um time dossonhos em torno de Sócrates, Zico,Júnior e Falcão jogou, segundo a opi-nião de muitas pessoas, o melhor fu-tebol de todos os tempos e fracassoutragicamente na última partida dogrupo com 2x3 contra a Itália – é a as-sim chamada “tragédia de Sarriá”. Otécnico de ambas as Copas era TelêSantana, um adepto confesso doofensivo “futebol de espetáculo”. Nooutro extremo da escala encontram-se as Copas do Mundo de 1990 e de2010. Na primeira, o técnico Sebas-tião Lazaroni tinha anunciado uma“era Dunga”, e na segunda, o técnicofoi o próprio Dunga. Nomear no Brasiluma era de futebol deliberadamentesegundo um sólido zagueiro sem bri-lho técnico era uma provocação deli-berada e um abandono indicativo dofutebol-arte. Em ambas as Copas, oBrasil fracassou ingloriamente. Acompetição entre o futebol-arte e ofutebol orientado por resultados ter-minou num curioso 2x2 negativo. Emtodas as quatro Copas nas quais o ti-me brasileiro mais se assemelhava àconstrução ideal-típica, o sucesso nãoveio. Com certeza, isto é especial-mente triste para aqueles ideólogosque pensam que no futebol conta so-mente o sucesso, pois, assim, uma fal-ta de sucesso significa o fracasso puro,sem qualquer porém – e principal-mente sem tragédia.

regime autoritário encontraram-se navalorização do planejamento quetambém foi destacado em notícias ematérias da época.

Recentemente, cientistas analisa-ram detalhadamente como a avalia-ção de México 1970 na imprensabrasileira se transformou ao longo dosanos. Enquanto o enfoque recaía ini-cialmente sobre os métodos científi-cos e o “Projeto México”, ele mudourapidamente em favor da ênfase noespetáculo do futebol-arte.

Ainda que a memória coletiva mar-ginalize esse lado científico-sistemá-tico do futebol brasileiro, ele continuavivo na organização do futebol. Umdos colaboradores da comissão técni-ca de 1970 chamava-se CarlosAlberto Parreira. Este homem ganha-ria a Copa de 1994 como técnico, esua sombra se estende até os dias dehoje: ele é o chefe da comissão técnicada seleção brasileira na Copa 2014.

Portanto, um olhar analítico sobre aCopa do México 1970 mostra que atão popular justaposição de futebol-arte versus futebol de resultados éuma simplificação grosseira, e, geral-mente, isto é também prontamenteadmitido. No entanto, simplificaçõessão necessárias para realçar conste-lações ideal-típicas. E na história dasCopas podemos efetivamente identi-ficar quatro torneios que represen-tam quase perfeitamente o litígio emtorno do futebol-arte.

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cena-chave é o 1x0 de Ronaldo contraKahn (que não conseguiu segurar abola). O teórico de futebol MarcosGuterman cita o sociólogo OliveiraFerreira, para demonstrar o grandesignificado desse gol: “Ou não seriaesse símbolo suficiente para mostrarcomo os subdesenvolvidos são capa-zes de humilhar, liquidar as preten-ções do Primeiro Mundo?” Com abomba de Ronaldo, diz Guterman, um“povo massacrado” venceu contra aarrogância do Primeiro Mundo, tãoperfeitamente encarnada por OliverKahn3. E, mais uma vez, o “complexode vira-lata” foi superado.

Por isto, a Copa 2002 retoma antesoutro mito central do futebol brasilei-ro que fica um pouco desajustadodentro do eterno debate sobre o fu-tebol-arte: o mito da estrela solitária,do craque que faz a diferença. Em umúnico instante feliz, Ronaldo, que ti-nha passado antes da Copa por umaprofunda crise e que parecia carregara derrota na final contra a França em1998 como chumbo nas chuteiras, li-bertou a si e ao Brasil de todos ostraumas.

Também em 2014, as esperanças eos sonhos estão divididos: o atual téc-nico da seleção brasileira, FelipeScolari, pertence antes ao campo dofutebol de resultados, mas seu joga-dor decisivo, Neymar, representa ine-quivocamente os sonhos dofutebol-arte.

Ora, como ficou isto nas Copas queo Brasil ganhou após 1970? Em 1994,o técnico foi Parreira. Certamente,Parreira é da ala do futebol orientadopor resultados e sem consideraçãopela beleza, mas ele não o perseguiacom a mesma radicalidade que seuantecessor. Por exemplo, foi ele quechamou o ambíguo Romário de volta àseleção. O Brasil ganhou a final nospênaltis, depois de um magro 0:0 con-tra a Itália. Obviamente, o 0:0 é umcontraste agudo ao 4x1 contra o mes-mo adversário em 1970. Mesmo as-sim, o sucesso de 1994 não pode sercreditado inequivocamente na contado futebol de resultados. No ataquebrilhavam (pelo menos em alguns mo-mentos decisivos) Romário e Bebeto.Principalmente Romário encarnava asesperanças do “verdadeiro” futebolbrasileiro: um técnico rico em truques,e ao lado dele um bad boy não adapta-do.

A Copa de 2002 é um caso à parte,em muitos aspectos. O Brasil e aAlemanha chegaram à final sem teremenfrentado grandes times durante otorneio e sem terem mostrado um fu-tebol verdadeiramente convincente.Em comparação, a final não foi nadamal e terminou em 2x0 para o Brasil.Também Felipe Scolari, o técnico deentão e de hoje, não é certamente ne-nhum adepto do futebol-arte. A me-mória da Copa de 2002 no Brasil,porém, é fortemente marcada peloduelo de Ronaldo contra Kahn. A

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que está inseparavelmente ligada àmescla dos grupos de migrantes. A in-tegração de elementos da cultura ne-gra desempenha um papelespecialmente importante. O ideal deum “Brasil branco”, acalentado pelaselites conservadoras, pulverizou-senas culturas urbanas da mestiçagemdos anos 1920. Das cinzas da fracas-sada identidade ocidental brancanasceu a cultura da disposição.

Num brilhante estudo sobre osanos 1920 em São Paulo, NicolauSevcenko cunhou o termo ousado egenial de uma cidadania fundada naemoção, para cujo surgimento o fute-bol teria um papel decisivo. E Wisnikafirma até mesmo que, na raiz das“coisas nossas”, há uma mais-valia àsavessas, uma mais-valia de prazer –uma mais-valia de prazer que tira suaforça exatamente dos espaços vazios,dos não-espaços.

Segundo ele, essa importância deespaços vazios caracteriza, também eespecialmente, o futebol: futebol ecultura estariam fundamentados nodeslize, na síncope, no drible, em tudoque não é fixado. Neste contexto, umhiato não se esgota no nonsense, mas é“justamente o lugar do lapso criativo,da suspensão que admite o vazio semo qual não se formula o inesperado”7.

Desta maneira fundamenta-se nãosó, mas também no futebol uma novanarrativa sobre o que significa serbrasileiro/a. Aqui, uma grande

No entanto, será que realmenteexiste uma identidade brasileira par-ticular que se reflete no futebol oupara a qual o futebol é um importantefator constitutivo? José MiguelWisnik, um dos teóricos mais recentesdo futebol brasileiro, está entre aque-les que respondem a esta pergunta demodo afirmativo, mas também demodo surpreendente. Wisnik é músi-co, compositor e cientista literário.Por isto, a estreita relação entre fute-bol e música em sua pequena teorianão é uma surpresa: seu ponto departida são as palavras famosas de umsamba de Noel Rosa, do ano 1932: “Osamba, a prontidão e outras bossassão nossas coisas, são coisas nossas”4.

Coisas nossas – esta é a busca poridentidade embasada em qualidadeslocalizadas principalmente na áreacorporal e criativa. Prontidão é umaespécie de “inteligência do corpo”. Osamba e quase igualmente o futebolrepresentam o surgimento de umatradição nova e própria. Constitutivosdesta identidade são conceitos e ter-mos estranhos como a ginga. Wisnikdescreve essa identidade como “a dis-posição a habitar os intervalos do rit-mo, os hiatos da linguagem, osmeneios do corpo”5.

Esta corporalidade e musicalidadeparticulares do samba são as con-sequências de uma nova cultura urba-na que vem surgindo principalmenteno Rio de Janeiro e em São Paulo – e

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das elites parecia se comprovar defi-nitivamente como um absurdo: quemconduz o Brasil definitivamente parao futuro é um migrante do Nordeste,um típico “mestiço”. Segundo Lula, oBrasil vive “um momento mágico”. Opaís já não é mais um eterno perdedor.A nação dos “malandros incuráveis”(Nelson Rodrigues) quer pertenceragora ao grupo dos vencedores da no-va ordem mundial.

Vencedores, porém, perdem ocharme dos não favoritos. No mundointeiro, brasileiros e brasileiras sãoagora não só percebidos/as como es-pecialistas em alegria que driblam abola e rebolam as cadeiras, mas tam-bém como exportadores/as de soja eextrativistas de petróleo; eles/elascompram bancos privados suíços (porexemplo, a Sarasin Bank), constroembarragens faraônicas e plantam canade açúcar na África. Ocasionalmentesão considerados/as por vizinhos lati-no-americanos um novo poder su-bimperial.

Com este novo Brasil que está seacostumando aos sucessos e se em-briagando com eles combinaria tam-bém um sucesso no futebol. Estedeveria ter sido conquistado na últimaCopa, na África do Sul, sob o comandodo técnico Dunga. Dunga representa-va o abandono de tudo que era impor-tante para o futebol-arte. Os termoscentrais do técnico foram disciplina eorientação pelo resultado – sempre

reinterpretação é constitutiva: amescla das culturas não é mais o des-tino negativo da nação, mas é agoravista de modo positivo. Assim surgemos novos mitos na busca das raízesque não existem.

É evidente que uma identidade bra-sileira assim construída não está em-basada no futebol, mas o futebol é umde seus elementos constitutivos, e odiscurso sobre o futebol é simultane-amente a linguagem privilegiada naqual é possível refletir sobre a nação ea identidade. Se isto for assim, então ainsistência no futebol-arte é mais doque o prazer pelo futebol belo, algoque existe no mundo inteiro. Se forassim, esta construção da identidadebrasileira não teria um vínculo estrei-tíssimo com o futebol como tal, e simcom uma determinada interpretaçãodo futebol e da alegria difundida porele. O constitutivo não seria o resul-tado, o sucesso, mas a mais-valia deprazer, de alegria, passaria a ser nacultura e no futebol uma nova “marcaregistrada” do Brasil.

No entanto, os tempos mudaramtambém em outros aspectos. Hoje emdia, a velha maldição “O Brasil não éum país sério” não possui mais poder.O Brasil é um importante “jogadorglobal”, um global player, ele determinaas letras de uma nova categoria quevisa o futuro. O Brasil é BRICS, é in-vestment grade; o Brasil alcançou o fu-turo. Na pessoa de Lula, o pessimismo

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Será que, no futebol, pode se ex-pressar uma identidade diferente,fundamentada justamente na dife-rença? Os defensores do futebol-arteassim o desejam e o esperam. É umdebate popular, no qual são tratadasnão só questões do futebol, mas tam-bém questões fundamentais da iden-tidade nacional. E sempre aparecemjogadores que reavivam a esperançapor um futebol do puro prazer – bastaassistir alguns vídeos de Neymar.

Mesmo assim recomenda-se caute-la – também o futebol-arte está sujei-to à pressão que cobra resultados, e asuposta dicotomia é certamente umaforte simplificação. Talvez seja tam-bém verdade que o futebol-arte é umaconstrução que existe mais na teoriado que na prática. O futebol-arte é umsonho com o futebol – e exatamentecomo sonho e ideia, ele se comprovauma “rica fonte de sentido”(Alabarces). E ele não narra somenteum sonho de futebol, mas exatamentetambém o sonho de identidades em-basadas na criatividade do corpo, nodrible, no talento musical. É algo mui-to diferente do espírito capitalista dosucesso, embora, na prática, esteja in-dissoluvelmente vinculado a ele.

Por isto é provável que a maiorameaça ao sonho do futebol-arte nãovenha de seu adversário antigo e bemconhecido, o futebol de resultado.Antes da Copa 2006, a Nike mostroucom sua campanha “Joga Bonito”

contra o pano de fundo do desastre de2006 (na Alemanha), onde as estrelasdo Brasil brilharam pela falta de von-tade no campo e pelos exageros na vi-da noturna. Agora, o desleixo deveriaser combatido com “virtudes prussia-nas”.

As convicções de Dunga provoca-ram pelo menos protestos maciços.Sua afirmação: “O que interessa nojogo do futebol é o resultado” foi co-mentado assim pelo afro-brasileiroJoel dos Santos, historiador e autor deuma história muito popular do futebolbrasileiro: “Se for assim, temos queabandonar o futebol”. Nunca o climafoi tão ruim como em 2010. Quaseuma nação inteira queixava-se deDunga e de seu futebol de resultado. Etambém em 2014 está se mostrandoque não é tão fácil fazer da Copa deFutebol um evento mundial de afir-mação do novo Brasil. Os protestosem junho de 2013 acabaram definiti-vamente com a história do Brasil co-mo “país de vencedores” (presidentaDilma Rousseff).

É óbvio que, depois de 2010, os de-fensores do futebol-arte estão nova-mente de vento em popa quando setrata do eterno debate entre o futebolde resultados e o futebol-arte. Destaforma, a insistência num futebol damais-valia de prazer torna-se umanarrativa contra um Brasil que buscasua identidade no sucesso econômico ena integração no mercado internacional.

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também seu penteado. Quando eledançou na cabina do Santos ao som de“Ai, se te pego”, o vídeo registrou 20milhões de acessos e fez assim dacanção de Michel Teló um hit mundial.

A imagem dos sonhos da naçãomistura-se antes da Copa do Mundocom as imagens da propaganda quesão cooptadas sem vergonha pelo na-cional. O auge desse novo nacionalis-mo do mercado foi alcançado pelacerveja argentina Quilmes, com seusclipes famosos8. A propaganda nacio-nalista, carregada pelo “jogo bonito”,já não representa um projeto nacio-nal. Por isto, as palavras do argentinoPablo Alabarces aplicam-se tambémao Brasil: “Os problemas econômicos,políticos, sociais e históricos de nossasociedade podem ser resolvidos so-mente no plano do real. Esta sabedo-ria continua válida […], não obstante acampanha publicitária da cervejariaQuilmes. A crise, a nação, nosso futu-ro comum não se resolvem no estádiode futebol. E muito menos na TV. Mas,possivelmente, na rua e na política9.”Foi exatamente isto que milhões debrasileiros/as mostraram em junho de2013, mas ainda fica aberta a pergun-ta se o sonho de um outro futebol, deum futebol belo, também inclui o so-nho de um outro mundo melhor.

como o futebol-arte pode se tornaruma estratégia de marketing. Intro-duzidos pelo rebelde de futebol ÉricCantona (!), os craques afro-brasilei-ros extremamente bem-humoradosRonaldo, Ronaldinho e Robinho exibi-ram suas brincadeiras para a admira-ção do consumidor. A ideia dofutebol-arte combina com um tempoem que se dissolvem as grandes nar-rativas da nação, da pátria e da identi-dade. As comunidades imaginárias danação correm o risco de se tornar –segundo o cientista cultural argenti-no-mexicano Néstor García Canclini –comunidades interpretativas de con-sumidores. Em medida crescente,identidades são determinadas peloconsumo e “dependem daquilo que sepossui” .

O futebol-arte combina com umnacionalismo do mercado que prome-te diversão em lugar das grandes nar-rativas nacionais. Antes de cada Copade Futebol, a TV brasileira e especial-mente a propaganda utilizam a ban-deira verde-amarela do país e daseleção. Assim, a pátria inteira calçahoje as chuteiras. Provavelmente,ninguém encarna isto mais do queNeymar: graças a seus dribles geniais,ele é um garoto que encarna a espe-rança do futebol-arte e simultanea-mente um garoto-propaganda ideal.Neymar é considerado o jogador defutebol mais bem comercializado domundo. Importante é não só sua ma-gia com a bola, não, importante é

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Notas

1 ALABARCES, Pablo. Fútbol y Patria. El fútbol

y las narrativas de la nación en la Argentina. Bue-

nos Aires: Prometeo Libros, 2002.

2 Ibidem.

3 GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o

Brasil. Uma história da maior expressão popular do

país. São Paulo: Contexto, 2009.

4 WISNIK, José Miguel. Veneno Remédio – O

futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Le-

tras, 2008.

5 Ibidem

6 Ibidem.

7 Cf. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na

metrópole. São Paulo: Companhia das Letras,

1992.

8 Os clipes publicitários de Quilmes são fa-

mosos por seu engrandecimento patético da

seleção argentina e nem mesmo hesitam em en-

volver Deus. Um exemplo pode ser assistido em

http://esfericobalon.blogspot.de/2013/11/la-

nueva-publicidad-futbolera-de-quilmes.html.

Um detalhe pitoresco é que a Quilmes pertence

hoje ao grupo brasileiro-belga InBev, de Anheu-

ser-Busch, o maior conglomerado cervejeiro do

mundo.

9 Cf. ALABARCES.

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Juca Kfouri, 2013.

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Lula se deixou seduzir pela cartola-gem do futebol brasileiro.

Dilma, não, porque não a acaricianem homenageia.

Mas também não rompe, quandodeveria fazê-lo.

A relação do Estado nacional com asuperestrutura do futebol brasileiro é,para dizer o minímo e usar uma termi-nologia da psicologia, esquizofrênica.

Lula, por exemplo, sabia perfeita-mente quem era a deplorável figura deRicardo Teixeira e assinou, como pri-meira lei de sua gestão, o Estatuto doTorcedor, um soco no estômago daConfederação Brasileira de Futebol, afamigerada CBF que Teixeira presidiae da qual teve de sair por envolvimen-to em grossa corrupção.

Mas por que Lula acabou de braçosdados com Teixeira e ainda criou umaloteria, a Timemania, para que os clu-bes pagassem a fortuna que devem aoEstado, algo na casa dos 2 bilhões deeuros?

Por que Lula, de inegável sensibili-dade popular, não rompeu comTeixeira, sabendo que seria aplaudidonas ruas se o fizesse?

Ora, se Lula tinha a obrigação de serpragmático nas alianças políticas paranão assustar as elites do Brasil, razãopela qual conviveu muito bem com ex-presidentes como José Sarney eFernando Collor, inimigos figadais emoutros tempos, nada justifica que nãotenha rompido com a mixórdia do fu-tebol.

Se não por virtude, por oportunis-mo.

LULA, DILMA E A COPA

Juca Kfouri

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Embora influente ministra nos oitoanos da gestão Lula, primeiro comoministra de Minas e Energia, depois naCasa Civil, ela pegou o bonde andandocomo presidenta da República e pre-cisa fazer com que ele chegue ao seudestino sem maiores acidentes.

No capítulo das relações pessoaisela jamais se deu com Teixeira e fezquestão de nunca recebê-lo no Palá-cio do Planalto, circunstância prova-velmente de peso para que o cartolaabandonasse tudo, a CBF e o ComitêOrganizador Local da Copa do Mun-do, e corresse para Boca Ratón, naFlórida, Estados Unidos.

Mas digere um sapo ainda maior.

A presidenta também não disfarçaque não gosta do substituto de Teixei-ra, o ex-governador biônico de SãoPaulo nos tempos da ditadura, JoséMaria Marin.

Não gosta e não o recebe em suasala, mas terá de suportá-lo, por ex-emplo, na abertura da Copa, em 12 dejunho deste ano, no estádio do Co-rinthians.

Lado a lado estará com quem, umdia, em discurso que está gravado pa-ra a posteridade, elogiou o policialSérgio Paranhos Fleury que, durante aditadura, torturou seu ex-marido,Carlos Araújo, pai de sua filha, avô deseu neto, então importante comba-tente da resistência aos militares.

Mas Lula deixou-se seduzir.

Primeiramente, de olho numa ca-deira no Conselho de Segurança daONU, pela bela ideia de levar a sele-ção brasileira ao Haiti devastado.

Depois, estreitamento feito comTeixeira, pelos rapapés do cartola, le-vando craques ao gabinete presiden-cial para autografar bolas e camisasverdes e amarelas.

Conquistado o direito de receber aCopa do Mundo, então, Lula embalou-se na ilusão de mostrar um Brasil pu-jante ao mundo.

Embarcou no discurso que sabiafalso da Copa do Mundo do capitalprivado e abriu os cofres públicos paraque o Brasil organizasse o torneiomais caro de todos os tempos, com aconstrução de pelo menos cinco está-dios que não serão ocupados após oMundial: em Brasília, em Cuiabá, emNatal, em Manaus e no Recife.

Permitiu que se erguesse em SãoPaulo, que já tem o estádio do Mo-rumbi, um novo palco, do seu clube decoração, o Corinthians.

Viu o Maracanã, no Rio de Janeiro, eo Mineirão, em Belo Horizonte, serempostos abaixo para se transformaremnas modernas, e anódinas, arenas tãoao gosto da FIFA e, principalmente,das empreiteiras.

Dilma Rousseff que se vire.

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A Copa está custando mais que astrês últimas edições do torneio da FI-FA somadas.

Sim, a Copa do Mundo de 2002, noJapão e Coreia do Sul, mais a Copa doMundo da Alemanha, em 2006, mais aCopa do Mundo na África do Sul, em2010, somadas, custaram 30 bilhõesde dólares (US$ 16 bilhões, US$ 6 bi-lhões e US$ 8 bilhões respectivamen-te) e a no Brasil chegará aos 40 bilhõesde dólares.

Os dados são de um estudo da Con-sultoria Legislativa do Senado Federalbrasileiro, onde o governo Roussefftem maioria.

No governo Lula, o Brasil obteve odireito de sediar os dois maioreseventos do planeta - e não apenas osdois maiores eventos esportivos daTerra, o que já não seria pouco.

Para trazer a Copa do Mundo nãofoi necessário um grande esforço,porque candidatura única na Américado Sul, fruto de barganha entreJoseph Blatter e Ricardo Teixeira. Ocartola brasileiro se comprometeu anão disputar a presidência da FIFA,facilitando a reeleição do suíço, emtroca de receber a Copa e articuloucom as associações nacionais sul-americanas que nenhuma delas secanditaria, com Julio Grondona, daArgentina, como grande aliado.

Na Copa das Confederações, em ju-nho do ano passado, Dilma ouviu umasonora vaia ao abrir o torneio ao ladode Joseph Blatter e de Marin.

Por sua posição ambígua, ela desa-grada gregos e troianos, porque nemrompe nem acarícia.

Lula, por exemplo, acha uma boba-gem ela não querer fazer fotos ao ladode Marin e pergunta: "Ela não querfotos ao lado de Neymar? Pois tem defazer ao lado do Marin também".

O pragmatismo do Partido dos Tra-balhadores, sua realpolitik, extrapolouqualquer limite aceitável para os ver-dadeiros militantes da esquerda bra-sileira.

Ruim com o PT, pior sem ele, talvez,mas o fato é que a dupla Lula & Dilmaé responsável por uma Copa do Mun-do no Brasil que passará longe de seruma Copa do Mundo do Brasil.

A festa que o mundo verá nos está-dios estará a léguas de distância doque acontecerá nas ruas do país, mui-to provavelmente tomado por novaonda de protestos, como a que trans-formou, no ano passado, a Copa dasConfederações na Copa das Manifes-tações.

Como já dito, a Copa no Brasil será amais cara da história, o que se poderiajustificar pelo fato de ser a mais re-cente. Mas não é tão simples.

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Manifestações em junho do ano pas-sado.

À medida que o país foi tomandoconhecimento da suntuosidade dasnovas arenas erguidas para o torneio,o povo saiu às ruas para exigir hospi-tais, escolas e transportes coletivoscom "padrão FIFA".

A transnacional que comanda o fu-tebol mundial com mão de ferro epouca transparência, passou a dividircom os governos federal, estaduais emunicipais, o papel de vilão, muitoembora, justiça seja feita, não tenhapedido para o Brasil receber seu festi-val da bola e nem muito menos exigiuque o país o recebesse com 12 sedes,ao contrário, oito lhe bastavam.

Foi a megalomania do governo Lulaque estabeleceu o absurdo que resul-tará nos elefantes brancos espalhadospelo país, numa irônica, e trágica re-petição do que fez a ditadura nos anos70. Só que, então, os protestos eramproibidos e coibidos militarmente, soba justificativa de "integrar" o Brasilpor meio do futebol.

O fiasco à época deve se repetiragora.

Vozes como a de Pelé se erguemcontra os protestos na Copa do Mun-do, com pouca chance de serem bem-sucedidas.

O Rei, como é chamado por ter sidoo fabuloso craque que foi, chegou ao

Já a Olimpíada de 2016, no Rio deJaneiro, veio graças ao poder de se-dução de Lula, único presidente quefalou aos votantes no Comitê Olímpi-co Internacional em sua língua nativa.Único, aliás, não, porque Barack Oba-ma, que defendeu a candidatura deChicago também...

Pois eis que as duas façanhas po-dem se transformar em enormes tirospela culatra.

A Copa do Mundo, por exemplo,prometida como a Copa da iniciativaprivada, principalmente no que diriarespeito aos estádios, é quase inteira-mente financiada por dinheiro públicoe, pior, além de os estádios serem er-guidos com dinheiro da população demaneira direta ou indireta, os legadosprometidos de infraestrutura foramsendo abandonados um a um diantede suas magnitudes e da falta de re-cursos para implementá-los.

Tanto que, no começo de fevereiro,baseado em resultado de pesquisaque revelou o desencanto da popula-ção com o rumos da Copa, o governomudou sua estratégia e assumiu aideia de fazer campanhas publicitáriasque tentarão vender a imagem de queo Brasil fará a Copa das Copas, basea-das no fato de que estarão presentestodos os oito campeões mundiais.

Parece pouco diante dos protestosque levaram a Copa das Confedera-ções ser chamada de a Copa das

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O que deverá proporcionar duasCopas distintas e complementares:uma nos estádios, em clima festivopara ser transmitido para o mundo in-teiro; outra fora dele, que por maisque se queira esconder terá a impren-sa do mundo inteiro como testemu-nha.

Quem sabe, assim, a FIFA aprenda.Porque salta aos olhos que a entidadetem feito escolhas que dão preferên-cia a países de democracias recentes epouco contrôle social, não tivesse aúltima Copa sido disputada na Áfricado Sul, a próxima no Brasil e a seguintena Rússia.

Para não falar no Qatar, onde o di-nheiro jorra fácil dos campos de pe-tróleo.

Tudo que favorece as empreiteirase os políticos.

A surpresa, no caso brasileiro, estána avaliação desinformada sobre aHistória do país, cuja imagem é asso-ciada ao Carnaval, futebol, belas prai-as e mulheres nuas. Nada mais falso.

Não o Brasil tem seu passado mar-cado por levantes populares de nortea sul como, só nos últimos 30 anos, oPaís saiu às ruas para exigir eleiçõespara presidente e, em seguida, paradepor o presidente eleito, envolvidoem corrupção.

cúmulo de dizer que futebol e políticanão têm nada a ver e que o futebolpassa ao largo da endêmica corrupçãonacional. No país de Havelange e Tei-xeira...

Perdida, e distante dos temas fute-bolísticos, Rousseff tem cometido er-ros primários, objeto do escárnio dacrítica especializada. Ela disse, por ex-emplo, em janeiro, que o Brasil haviavencido cinco vezes a Taça Jules Ri-met, desconhecendo que desde 1970,exatamente quando o Brasil a con-quistou pela terceira vez e a obteve demaneira definitiva.

Tão ignorante como ela nos temasfutebolísticos, sua ministra da Cultu-ra, Marta Suplicy, declarou que as crí-ticas aos gastos no Maracanã não sejustificavam porque "era a primeirareforma em 60 anos" no estádio que éo cartão postal do futebol nacional.Ocorre que de 1999 para cá, o estádiofoi reformado para receber o Mundialde Clubes da FIFA, em 2000, e os Jo-gos Pan-Americanos, em 2007.

A FIFA parece convencida de que aescolha do Brasil se transformará emenorme equívoco e busca apostar quea paixão do povo pelo futebol poderáminimizar os protestos.

Nada indica, no entanto, ao contrá-rio.

Tudo leva a crer que o clima de2013 se repetirá, até em maior escala.

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O Partido dos Trabalhadores, deLula e Dilma, teve papel fundamentalnas duas ocasiões.

Hoje, vítima da realpolitik que abra-çou, deixou de se distinguir e se sur-preende com a ferocidade dasreivindicações de um povo que se be-neficiou de sua política social voltadaaos excluídos mas que quer mais.

Tudo isso num ano em que haveráeleição para presidente.

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No país do futebol (masculino), écomum ouvir que somos uns “190 mi-lhões de técnicos de futebol”. A afir-mação está na publicidade, astransmissões de jogos pela TV, nasmanchetes de jornal cada vez que otécnico – o oficial, aquele designadopela Confederação Brasileira de Fu-tebol - escala a seleção. Não deixa deestar também na boca do povo. Masuma rápida conversa com torcedorasmostra que o número de opiniões “quecontam” numa sociedade ainda mar-cada pelo machismo é menor: 97 mi-lhões de técnicas de futebol teriamsuas opiniões rejeitadas pelo simplesfato de serem mulheres.

Se por um lado a crescente presen-ça de delas nos estádios, muitas vezessozinhas ou acompanhadas apenaspor outras mulheres, ou o aumento donúmero de jornalistas que se dedicamà imprensa esportiva, podem ser um

sinal de mudança – como é simbólicopara a sociedade em geral a eleição deuma presidenta da república –, asmostras de sexismo no Brasil aindaprevalecem em muitos campos, entreeles, nos de futebol. E neste caso, seexplicitam no lugar “destinado” a cadagrupo. E as narrativas são parte destelugar.

Conheci Kaká Soares, 45, no Mara-canã, que ela frequenta desde os 3anos de idade, antes com o pai e hámuitos anos sozinha ou com amigos eamigas. Chegamos cedo e corremospara ocupar as cadeiras novas na ar-quibancada nesta tarde de sábado. Omotivo não foi lotação. Era dia de es-tádio vazio. Uns 18 mil comparecerampara o jogo do campeonato localquando o tradicional Fluminense deKaká venceu por 4X1 o pequeno Boa-vista. Ela precisa se apressar porquevai ornamentar o estádio com uma

ELAS, NO PAÍS DO FUTEBOL

Lívia Duarte

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muitas obrigações. Como mulher tema questão da família, fica ainda maiscomplicado. Mas eu espero que tor-cedoras de outros times façam o mes-mo, é diferente de fazer parte de umnúcleo feminino de torcida mista”,destaca.

O Fluminense começou perdendo esó empatou pouco antes do intervalo.Um torcedor de outra organizada gri-tava pela substituição de um jogador,bufando, gesticulando, ficando de pé etentando impor sua opinião aos de-mais torcedores. As “tricolindas” nãopareciam concordar. Mas não grita-vam de volta. Diziam entre elas queera preciso mais tempo antes dasubstituição. No intervalo, Kaká faloucom o torcedor, velho conhecido dasarquibancadas. Ele ouviu estressado.E deu de ombros. Antes, ela já me ha-via advertido sobre onde, na opiniãodela, aparece o preconceito no está-dio. Está sobretudo no discurso: “ho-mem nunca acha que futebol é lugarde mulher. Até chegar a prestar aten-ção e ver que eu entendo de futebolvai ouvir a gente conversando aqui egarantir que sou louca! Eu não estouaqui pelas pernas do Fred! Até sãobonitas, eu acho, mas jogador vai evem, meu amor é pelo meu clube!”.

Espelho da sociedade

Mariana Vidal, 30, é flamenguista ebancária. Seu “time do coração”, o

faixa da sua torcida organizada, a FluMulher. Este é o único grupo de tor-cedoras exclusivamente feminino járeconhecido por uma equipe no país(“e no mundo”, inclui a fundadora or-gulhosa). O local acordado com as de-mais torcidas e a polícia para a faixabranca tem menos destaque do que odestinado às outras seis organizadasdo Fluminense, maiores, mais antigase mistas – predominantemente mas-culinas.

Como em qualquer torcida, as “tri-colindas” – apelido usado por elasmesmas, que se refere às três cores doclube e à suposta boa aparência dastorcedoras – vestem uniforme com amarca da torcida, vão juntas ao está-dio e usam faixas e bandeiras para seidentificar no “templo” do futebol. Sãocerca de 3 mil as cadastradas no site,mais de 10 mil “curtem” a página doFacebook, mas apenas 60 tem cartei-rinha e pagam mensalidade na agre-miação. Dentro e fora do estádio,muitas vestem camisas da torcida,mas também é pequena a reunião naarquibancada – num jogo comum co-mo este, não passam de dez. Numclássico, a média é de 50. “Só criei atorcida em 2006 para ser uma coisadiferente, torcida só de mulheres. Émuito difícil, as direções das outrassão quase sempre de homens e elesnão querem dividir poder, espaço, al-gum apoio que o clube dê para viajar,ou ingressos de cortesia, por exemplo.Ser torcida organizada quer dizer ter

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como se fossem os detentores da ver-dade. Ainda assim, um garçom con-corda, o trocador abana a cabeçaaprovando... porque são homens”,descreve, acrescentando: “se fosseuma mulher a dar essa mesma opinião,seriam sinceros e diriam que ela nãoentende nada de futebol ou, o maisprovável, debochariam”, sentencia,explicando que por este motivo mui-tas restringem suas opiniões a umgrupo de amigos que lhes respeite,mesmo sem ter as mesmas opiniões.

Mulher na torcida: só se for bonita?

“Impedimento. Sabe o que é? Expli-ca pra mim então!”. É possível apostarque a maioria das mulheres que já de-clarou a um homem seu interesse porfutebol ouviu questões assim. A regrado impedimento, aliás, é um questio-namento considerado básico paramulheres! Mas também a escalaçãode times e perguntas sobre nomes dejogadores são desafios comumentedestinados a estas “invasoras” de es-paços masculinos.

Nos treinos, as torcidas mistas apa-recem para questionar, pressionar ouapoiar os jogadores da equipe. A FluMulher, quando aparece, “distrai” osjogadores. É como narram os jornais,lembrando – até quando não mencio-nam – o velho estereótipo das “mari-as-chuteiras”. É assim que seapelidaram o grupo de mulheres que

Flamengo, é outro dos quatro grandesclubes da cidade – e, aliás, grande rivaldo Fluminense. A torcedora não fazparte de uma organizada, mas seguesua equipe no estádio, na TV, nos jor-nais. Pelo Facebook, exibe em sua fo-to de perfil a camisa e o amor peloclube. É pela rede social que acabacompletando a opinião da torcedorado time adversário: “No futebol nãoenfrento mais machismo que o dia adia, o futebol é igualmente machista.Na verdade, acho que o futebol é omaior espelho da sociedade, entãoquando você está no estádio, na torci-da do Flamengo, e ouve a torcida ad-versária gritando "silêncio na favela",com raiva, como se ser favelado fosseo pior dos xingamentos, você sentetodo o preconceito social. É a mesmacoisa quando alguém diz que Flumi-nense “é time de bicha” e o Botafogo“é torcida de mulher”, como se sermulher fosse um xingamento”, explica,enumerando estereótipos preconcei-tuosos das grandes equipes da cidadeque são reforçados pelas torcidas nosestádios.

Mariana, e várias outras torcedorascom quem conversei, garante quenunca passou, nem presenciou, situa-ções de assédio sexual nos estádios.Mas as conversas sobre futebol expli-citam, numa sociedade machista,quem deve estar em qual lugar: “Vocêchega num bar, no trabalho, ou noônibus, vê alguns homens falando ca-da besteira... e falam alto, em grupo,

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exaustivamente repetido nas trans-missões da maior emissora do país,não faltarão imagens de mulheres(dentro dos padrões de beleza), dasarquibancadas direto para sua telanos intervalos e paralizações dos jo-gos. Apesar de não haver pesquisassobre o sexo dos frequentadores deestádio, ainda é claro que o sexo femi-nino é a minoria. Mas somadas às cri-anças torcedoras, elas parecempredominar nestas “brechas” dastransmissões.

Kaká concorda que tudo isso refor-ça preconceitos, mas afirma que “jáengoliu”. Aliás, voluntariamente ounão, sua torcida adota o apelido quereforça o binômio torcedora-beleza:as “tricolindas”. Para ela, pouco a pou-co as barreiras vão se quebrando eimportante mesmo é abrir espaço noslugares de poder das torcidas – as di-reções, os privilégios.

Na TV ou lavando roupa suja?

Almerinda França, 66, estava noFluminense x Boavista com a neta e aorganizada Flunitor, que reúne ho-mens e mulheres. Não diz os anos deMaracanã que acumula, mas arregalaos olhos para mostrar que são muitos:“venho desde solteira!” Diz que a des-confiança às opiniões femininas é coi-sa de sempre. Mas que vem mudandoconforme aumenta a quantidade de“mulheres especialistas” em futebol,

só se aproximam de clubes, torcidas eestádios, para tietarem jogadores –como fariam com astros da música –ou por estarem interessadas em rela-cionamentos sexuais com eles, o queseria atalho para fama e ascensão so-cial. O cenário das orgias sexuais e es-te grupo de mulheres interessadas emjogadores ganhou especial destaquecom o desaparecimento da jovem Eli-za Samúdio, em 2010. Em vídeos nainternet, ela dizia que tinha sido ex-amante do goleiro do Flamengo, Bru-no Fernandes, com quem teria um fi-lho. O corpo de Eliza nunca foiencontrado, mas as investigaçõesapontaram para o jogador como res-ponsável. Ele foi condenado por as-sassinato em março de 2013. Ela nãose definia como tal, mas muito se faloudo mundo deste tipo de “maria-chu-teiras”, na época. Quando diz que aspernas do atacante Fred interessammenos que seu time do coração, Kakátambém está se afastando desse es-tereótipo e, por alternância, demar-cando seu lugar de torcedora que amao clube, sabe do jogo, e quer legitimi-dade.

No estádio, os torcedores vão jogarjunto, são o 12º jogador, tem comomissão empurrar rumo a vitória. Asmulheres, segundo muitos comentá-rios nos estádios e na TV, estão lá paraenfeitar, embelezar, trazer a família,colaborar com um ambiente de paz. Éo que garantem os narradores na TV. E“pra você que se liga na Globo”, bordão

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concentra transmissões de jogos e épossível perceber o crescimento nu-mérico, na última década, daquelasque trabalham entrevistando jogado-res nos gramados, ou da sua presençaem “mesas-redondas”, inclusive comquadros ou programas inteiros apre-sentados por mulheres.

Mas tudo isso pode ser matizadopara dar a real dimensão dos desafios.Num domingo pela manhã, no tradici-onal Esporte Espetacular da TV Glo-bo, maior canal de TV aberta do país, o“Bolsa Redonda” é o espaço das mu-lheres. O quadro quinzenal batizadocom o nome de um produto identifi-cado como feminino reúne – anuncia-do mesmo na apresentação doprograma na internet – quatro mu-lheres com níveis diferentes de co-nhecimento sobre o esporte. Não háregistros na TV brasileira de um pro-grama com homens que não sabem doque falam ganhando um precioso es-paço! Na página do programa na in-ternet não faltam comentários do tipo“como mulher me senti envergonhadacom essa proposta de mesa redonda!Nada contra explicar o que é impedi-mento, último homem - termos dofutebol - mas colocar mulheres espe-cificamente pra fazer isso corrobora aideia de que mulher não entende defutebol!” e, da parte dos homens, “aFernanda Gentil é a mais gostosa detodas! Que delícia de mulher!” ou“Mulher não sabe de nada de futebol,

àquelas que trabalham na imprensa. Apercepção de Almerinda aparece res-paldada num interessante trabalhoacadêmico sobre mulheres e futebol.

Lara Tejada Stahlberg1, no disserta-ção de mestrado “Mulheres em Cam-po: Novas reflexões acerca dofeminino no futebol”, fala de diferen-tes lugares ocupados pelas mulheresdentro e fora dos gramados, inclusivecomo jornalistas. A pesquisadora daUniversidade Federal de São Carlos,São Paulo, explica – baseando-se nolivro de Mauricio Stycer (2009) sobreo jornal Lance!, um dos períodicos es-portivos mais respeitados do país ecujas reportagens são, majoritaria-mente sobre futebol - que as mulhereseram 30% a 40% das profissionais nasredações brasileiras, número que nadécada de 1990 caia para 10% no casoda imprensa esportiva. Conclui a au-tora: “As razões para tão pequenasporcentagens passariam por motivosque não são exatamente novidades:mulheres sofrem, sim, preconceitos,sobre sua afinidade ou capacidade decompreender especialmente o fute-bol”. A antropóloga comenta aindaque elas eram e são muitas vezes de-signadas a cobrir divisões de base ouesportes com apelo menos masculinoque o futebol. De lá pra cá, apesar denão apresentar outras estatísticas, aautora afirma que as porcentagensestão mudando. E diz o mesmo a per-cepção de quem “zapeia” canais aosdomingos, quando a TV brasileira mais

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Nota

1 Assista em http://www.bdtd.ufscar.br/ht-

docs/tedeSimplificado//tde_busca/arqui-

vo.php?codArquivo=5946

tivesse lavando uma loça ou passandouma roupa ganhava mais” (sic).

Não faltam na miscelânea da inter-net, onde é possível também se es-conder no anonimado, comentáriossobre a incapacidade de mulheres fa-larem sobre futebol e sobre como elas– especialmente as mais atraentes –só estão onde estão por ofereceremfavores sexuais a alguém. No trabalhode Lara Stahlberg, algumas jornalistasentrevistadas comentam que se umamulher garante um “furo” de reporta-gem, imediatamente depois se multi-plicam comentários de que oresultado de seu trabalho é, na verda-de, fruto de relações ‘promíscuas’ comhomens do mundo do futebol.

No país que vê jogar apenas no re-play a maior jogadora de futebol detodos os tempos, Marta, premiadamais vezes que qualquer homem co-mo melhor do mundo pela FIFA, épossível que a mudança de comporta-mento ainda precise de muito tempopara acontecer, dentro e fora das qua-tro linhas. Mas a presença e insistên-cia delas vai abrindo espaço eevitando impedimentos. Pouco im-porta se o tema da mesa-redonda éfutebol.

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– Interessante, a gente chama opessoal de jornal e nunca vem nin-guém, não. Agora vêm porque a se-nhora veio – reclamava um moradorda comunidade Coque, região centralde Recife, com o dedo apontado para acaravana de jornalistas, ativistas e vi-zinhos seus que sofria sob o sol datarde enquanto verificava os impactosda Copa do Mundo nesta região.

– Não tem problema, é por isso queestou aqui – respondeu Raquel Rolnik,relatora da ONU para o direito à mo-radia, responsável por atrair os repór-teres da imprensa local.

– Desculpa, mas eu tive que falar,gente! – finalizou o rapaz, que nasequência enfiou-se em uma das vie-las que ladeiam um mal cheiroso cór-rego, este por sua vez “arrodeado”,como dizem os recifenses, pelos es-combros das casas já destruídas pelogoverno – que em troca do compromisso

"NÓS VALEMOS MAIS!"

Júlio Delmanto

de saída prometeu indenizações aosque vivem há décadas nesta região.

“Nós valemos mais”. Além de estarnas camisetas de alguns dos ativistasdo Comitê Popular da Copa de Per-nambuco, acompanhada de uma hash-tag, esta frase pode ser vista pichadaem paredes tanto da comunidade doCoque quanto no Loteamento SãoFrancisco, município de Camaragibe,onde as remoções de moradores tam-bém acompanham obras relacionadasà Copa do Mundo. Ambos locais foramvisitados por Raquel Rolnik em umaagenda de trabalho realizada na cida-de do Recife nos dias 29 e 30 de no-vembro. As atividades culminaramcom um debate público ocorrido naFaculdade de Direito, organizado peloComitê e apoiado pela Fundação RosaLuxemburgo.

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O seminário

Entre 29 de novembro e 1º de dezembro de 2013, o Comitê Popular da Copade Recife, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, organizou o seminário “Le-gados e relegados da Copa do Mundo: Quando o direito à cidade é violado”, nacapital de Pernambuco. Com participação de diversos ativistas, intelectuais emembros de comitês sediados no Nordeste, o evento pautou-se pela troca deexperiências entre os que atuam na resistência aos impactos do Mundial e pelabusca de atuações conjuntas, tendo também uma etapa pública, constituída deum debate com Raquel Rolnik, relatora das Nações Unidas pelo direito à mora-dia.

Com uma metodologia que privilegiou o diálogo e a troca de informações, oevento propiciou intercâmbio entre os distintos Comitês Popular, com o cearen-se. Segundo seus ativistas, a principal expressão dos impactos do campeonatomundial de futebol na capital Fortaleza é a construção de um Veículo Leve sobreTrilhos (VLT), que impacta dezenas de famílias, de 22 comunidades, em seus12,7km de extensão em via dupla.

Como mostrou reportagem do portal de notícias G1, 75% das obras de mobili-dade inicialmente divulgadas como conectadas à Copa do Mundo estavam atra-sadas no início de 2014 ou foram canceladas. No caso do VLT também há atrasose muita desinformação, o que não impede o governo de manter uma meta de

Das 126 famílias ameaçadas, 105 jádeixaram o local, sendo que muitasdelas sequer receberam as (baixas)indenizações prometidas. As que ain-da resistem, o fazem sob constanteameaça de remoção violenta, sem quehaja sinalização de disposição de ne-gociação por parte do poder público.

Em ambos os locais, a revolta com aforma como as “negociações” estãosendo implementadas e com os ínfi-mos valores oferecidos pelas moradi-as é bastante forte. “Eles infringem odireito da gente na cara da gente, não

No caso do Coque, são cerca de 60famílias ameaçadas por obras de umterminal viário que será construído naregião, mesmo com a área sendo defi-nida como ZEIS – Zona Especial de In-teresse Social, o que deveriarepresentar o reconhecimento do di-reito de as pessoas permanecerem alie determinar que um projeto de urba-nização fosse implementado.

Já em Camaragibe, as ameaças sedão por conta da Arena Pernambuco,que receberá jogos da Copa e pode seravistada de algumas regiões do bairro.

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tal, organizadas dentro de uma sónarrativa de violência e angústia. “Éexpulsão mesmo, querem construir àforça”, apontava.

Para os microfones e moradores,Rolnik incansavelmente explicava que“o parâmetro do direito à moradia é:está saindo daí para melhorar ou parapiorar? A questão não é necessaria-mente o valor da indenização, se é 10mil, 20 mil, não dá pra dizer sem saber.Mas é que com o valor oferecido vocênão tem outra alternativa senão pio-rar, e assim não pode ser”. “Cinco mil

pedem nem com licença pra entrar, e agente é que está errado? Na época deeleição chegam aqui pedindo votos”,questionava uma das moradoras nu-ma das inúmeras rodinhas formadasem torno a Rolnik durante o dia. “Agente se sente injustiçado, na próximaeleição vamos colocar um portão praesses políticos não entrarem”, conti-nuou antes de ser interrompida pelosenhor a seu lado, de boné e bigode,que prosseguia com novas reclama-ções e explicações, num processo quedurou o dia todo, como se as vidas da-quelas pessoas fossem, por ação esta-

2185 desapropriações para sua construção. Desde 2011 as comunidades têm searticulado num processo de resistência que inclui o Comitê Popular da cidade,que se preocupa também com a questão da exploração sexual e das baixas inde-nizações para os que não puderem evitar seu desalojo.

A questão da exploração sexual também é importante para os membros docomitê baiano, assim como a do tráfico de pessoas. Além disso, denunciam quemuitos comerciantes foram prejudicados com a reconstrução do estádio da Fon-te Nova, pois nas imediações do novo projeto se buscará impedir seu trabalho,sobretudo durante o Mundial. Já no caso do Comitê Popular do Rio Grande doNorte, a questão principal também é enfrentar as desapropriações forçadas,num processo que gerou a criação da Associação Potiguar dos Atingidos pelasobras da Copa.

Formado no final de 2010, o Comitê de Pernambuco chegou a participar deuma auditoria junto com a ouvidoria da Presidência da República, articulaçãoque gerou como produto um dossiê. Também foram realizadas manifestaçõespúblicas e seminários, após os quais avalia-se que houve avanços e conquistas,como a redução das desapropriações em Camaragibe – município vizinho a Re-cife – e o impedimento de desapropriações no bairro central do Coque.

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uma amiga sua, braços cruzados e tomenervado.

Com uma camisa de campanha po-lítica, uma cruz de madeira no peito ecabelo cortado com franja, estilo indí-gena, uma senhora chamou Rolnik pa-ra o portão de sua casa. “Para vivernão há limites”, dizia a camiseta de suaamiga, que afirmava ser avó de duascrianças, uma delas com problemasmentais. “Estou aqui me acabando porcausa desses problemas, é um deses-pero. Vamos ficar no meio da rua?”,questionava essa, enquanto aquelaresumia: “Essa Copa é do Satanás, é doDiabo, não é de Deus, não. Isso tá des-truindo a vida de todo mundo”. Em co-mum entre as duas, a mesmapromessa: “Daqui eu não saio, não. Sóse derem um tiro no meu pé”. Comoninguém duvida que sejam capazesdisso, o clima seguia tenso com o pordo sol e a saída da comitiva, que se-guiu para o centro da cidade, ondeaconteceu o debate público.

A relatora, barrada

Inicialmente previsto para ser rea-lizado em um auditório da CâmaraMunicipal do Recife, o evento foitransferido de última hora para umafaculdade por conta do veto do presi-dente da Câmara, que disse temer quea discussão fosse um pretexto parauma invasão do espaço por movimen-tos sociais e manifestantes.

seiscentos e sessenta e cinco reais meofereceram”, repetia e repetia a mo-radora, entre incrédula e indignada.“O Coque é o quilombo do pobre, agente não quer sair daqui!”, continu-ou, disputando a palavra com outrosvizinhos seus que cercavam a relatorada ONU.

“Hoje a tarde mesmo eu disse ‘Gló-ria a Deus, vem um povo bom por aí’,que bom que vocês chegaram”, diziaDona Maria, com o rosto suado e sen-tada em uma cadeira no meio de suacozinha, nos fundos do Coque, umadas partes mais precárias da comuni-dade. Durante a conversa, as rugas emsua pele escura quase ficavam imper-ceptíveis diante de sua energia: “Es-tou esperando os homens virem aquifazer alguma coisa por mim, eu nãotenho pra onde ir, tenho quatro netos”,declarava, relatando pagar cem reaispor mês de aluguel por seu barracocheio de gaiolas de pássaros.

“A gente não pode mais falar sobrederrubar, porque derrubar está todomundo derrubando já”, explicava umasenhora, moradora do LoteamentoSão Francisco.  “Agora eu vou lutar,porque eu só vou sair com o meu pai,de 81 anos,  cadeirante porque teveum AVC de tanto nervoso, se a gentetiver o dinheiro pra pagar outra casa.Meu pai é digno e mora aqui há 50anos”, relatava. “A pessoa sair do que éseu, do que lutou pra ter, de graça? Is-so não tem graça nenhuma”, emendou

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atenção midiática e do capital inter-nacional, os megaeventos estimulamtambém sentimentos nacionalistas ede engajamento da população, a rela-tora da ONU apontou que eles criamespaço para o que se tem denominadode “estado de exceção”, ou seja, emnome de sua realização “é possível fa-zer coisas que seriam inimagináveisem outras condições, e isso a gentepode ver aqui e em outros países”.

“O megaevento abre essa possibili-dade, e a grande questão é que a partirdaí você escancara uma porta e vaipassando tudo”, prosseguiu, analisan-do a existência de processos que vão“capturando o espaço e o território,única e exclusivamente como campode valorização do investimento finan-ceiro, abstrato, internacional e globa-lizado”. “Com um pequeno detalhe: noterritório tem gente morando”, criti-cou, antes de finalizar lembrando aimportância da resistência e da lutapolítica para frear os impactos dessesataques: “Acho que a gente tem queter esperança, tem que acreditar quea defesa dos direitos humanos e urba-nos é ainda fundamental e vale a pe-na”, concluiu, sob fortes aplausos dospresentes.

Mesmo com a mudança, o abafado etradicional auditório da Faculdade deDireito da Universidade Federal dePernambuco (UFPE) estava lotado,mais um índice da grande repercussãoque a visita de Rolnik causou – a mídialocal também teve considerável inte-resse por suas declarações e denúnci-as. Além da urbanista, André Souza,do Comitê Popular do Ceará, tambémcompôs a mesa de debates.

Após destacar que, pela primeiravez, em seis anos de mandato comorelatora do direito à moradia adequa-da, havia sido barrada em uma Câma-ra municipal, Raquel Rolnik lembroucomo os megaeventos esportivosconstituem espaços “para descons-truir direitos”. “Recife foi um dosnascedouros da luta pelo reconheci-mento do direito à moradia, e por issoé muito chocante ver isso ser des-construído”, apontou, lembrando que“a ideia de direito à moradia nada tema ver com a ideia de que moradia émercadoria, um bem, um produto quevocê compra – ela é um direito huma-no, um lugar a partir do qual as pesso-as possam ter acesso a condições parapoder atender ao conjunto de seus di-reitos”.

Sendo assim, na opinião de Rolnik odireito à moradia “é uma espécie deportal, de porta de entrada para o di-reito à educação, à saúde, expressãocultural, ao acesso ao trabalho”. Res-saltando que, além de atraírem

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Raquel Rolnik em Camaragibe, novembro de 2013.

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Em 2007, quando a escolha do Brasilpara sede da Copa de 2014 foi divulga-da, houve grandes celebrações na mí-dia e até nas ruas, com shows e festas.Você esperava que, meses antes daabertura dos jogos, estivesse sendoquestionada até a própria realização doevento, sem falar no baixo apoio da po-pulação?

Na verdade, naquele momento euestava bem pouco ligada nesse assun-to. Eu estava acompanhando muitomais à distância, eu havia saído do go-verno no início de 2007, fiquei no Mi-nistério das Cidades até final de 2006.Eu saí justamente porque estava dis-cordando da forma como estavam seencaminhando as decisões em relaçãoà política urbana – a questão da Copae das Olimpíadas não foi a razão daminha saída, mas eu já não estavaconcordando. Eu comecei a acompa-nhar e comecei a me envolver e

A EXPLOSÃO DE UM MODELO

Raquel Rolnik

Entrevista: Júlio Delmanto

perceber a extensão da questãoquando virei relatora pro direito àmoradia adequada, meu mandato co-meçou em maio de 2008.

Como relatores nós recebemosmuitas denúncias de violações do di-reito à moradia, e justamente naquelemomento estavam chegando denún-cias da África do Sul, em função dapreparação para a Copa. Tinha umacomunidade grande que tinha sofridoremoções, estavam sendo removidospara containers de metal, que o pes-soal chamava de “micro-ondas”, ima-gine as condições que aquilo tinha,então eu comecei a acompanhar aquestão e o tema e recebi também vá-rias denúncias de Beijing.

Até que recebi um grande dossiê, deuma entidade internacional de defesado direito à moradia, em que recupe-ravam coisas que vinham desde

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megaeventos têm sido associados agrandes operações comerciais devenda de produtos, que tanto podemser de produtos dos patrocinadores,que ganham essa enorme visibilidadeglobal, e com a falácia da história dolegado, que marca muito a experiênciados jogos sobretudo a partir de Bar-celona, a ideia da transformação ur-banística das cidades associada aosjogos também passa a ser muito im-portante.

A ideia da promoção de grandesprojetos urbanísticos em geral vendi-dos na esfera global para o capitalfinanceiro internacional, que justa-mente nesse período crescentementeopera no sentido da financeirizaçãodo mercado imobiliário e da globali-zação do mercado imobiliário, os jo-gos acabaram sendo um grande palcopra que esses projetos vendidos nomundo financeiro pudessem se esta-belecer. Isso é um elemento digamoscomum, ele vai ocorrer também na In-glaterra, em outros países, o que há departicular no caso da Índia, da Áfricado Sul e do Brasil é que um processode transformação urbanística dessetipo envolve uma urbanidade incom-pleta e a existência de um grande nú-mero de assentamentos humanos,populares, semilegais, informais, le-gais, ambíguos, que apresentam certaambiguidade em relação a sua perti-nência na cidade, não são plenamentereconhecidos. São as favelas, os lote-amentos populares. E esse tem sido o

Atenas. A partir de ali eu decidi dedi-car um relatório temático anual – eutenho que fazer dois como relatora,pra apresentar pro conselho de direi-tos humanos da ONU – sobre o temamegaeventos e direito à moradia. Aíeu comecei a acompanhar e para mimesse foi o sinal de alerta de que essacelebração da recepção da Copa e daOlimpíada como grandes eventos ti-nha problemas e tinha um potencialde ser encaminhada de uma formacom efeitos perversos. A partir dalicomeçamos a acompanhar, fazer visi-tas e a sociedade civil também come-çou a se estruturar, com comitêspopulares, e etc. Já nesse momento eupensei que essa questão, num mo-mento ou outro, seria contestada, masse a gente olhar ela só ganhou enver-gadura com as manifestações de ju-nho de 2013, até então embora oscomitês tenham crescido, a atençãopra pauta ainda era muito limitada.

Desde o início você está atenta a ou-tras experiências de megaeventos:África do Sul, Grécia, Índia, Inglaterra.O que tem de comparável com o queestamos vivendo no Brasil?

Acho que tem dois grandes gruposde países, pra começar a conversa.Minha fala é do ponto de vista da mo-radia, é claro, apesar de haver outrasviolações de direitos humanos e deexistirem outras questões do pontode vista urbanístico mais geral. O queé comum é que crescentemente os

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E por que você fala em “falácia do le-gado”? Isso vale para o caso do Brasil,onde era meio claro que não haveria le-gado algum além dos estádios, ou emgeral, com sua utilização sendo maisuma justificativa pra realização doseventos do que uma possibilidade con-creta?

O legado é uma grande operaçãocomunicacional, simbólica e ideológi-ca. Do mesmo modo que a associaçãodas marcas com o esporte no mundoempresarial envolve operações sim-bólicas e ideológicas, na questão dolegado também, sua ideia é uma cons-trução que justifica a frente de expan-são imobiliária que ela representa. Emais que isso, o Carlos Vainer apontaisso com muita clareza, ela é o quepermite a ideia da exceção, a constru-ção da exceção em relação às regras eà legalidade existente. Então você tema exceção em nome do legado, ele vaijustificar todas as desconstituições dedireitos que isso promove.

Você mencionou os grandes protes-tos de junho do ano passado. Eles sãofruto principalmente da revolta contraos gastos da Copa ou se conjugam comoutras questões urbanas?

A Copa é apenas uma das questões,seguramente. A explosão de junho, naminha opinião, é a explosão de ummodelo de negação do direito à cidadepara a maior parte da população. Ela éfruto também, me parece, dos anosrecentes em que ocorre um processo

palco fundamental, tem sido o localonde esses projetos se instalam, des-tituindo essas pessoas do acesso a es-se lugar e removendo sem respeitar odireito à moradia adequada.

Então, embora em Barcelona, emLondres, você tenha operações degentrificação e de enobrecimento queafetam o direito à moradia dos maispobres, claro, mas essas daqui têm aespecificidade da existência da inse-gurança de posse desses grupos, isso éuma diferença marcante. Não poracaso os projetos vão exatamente emcima delas, porque não reconhecendoseus direitos não são pagas as desa-propriações como deveriam ser.

É isso que você chama de “dualidadeda condição urbana”?

Exatamente, você tem um pedaçoda cidade produzido, digamos, plena-mente no interior da regulação urba-nística e jurídica, e uma outra parte dacidade, em muitos casos muito maiordo que essa, tem elementos de regu-lação e de legalidade conjugados comelementos que vão por fora, com ou-tras lógicas, etc. E majoritariamentesão habitadas por população de baixarenda. A dualidade é que nesses locaisa cidadania e os direitos humanos sãopermanentemente negociados, elesnão são assumidos e reconhecidosplenamente.

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Sim, é uma nova geração de movi-mentos sociais, não há a menor dúvi-da. Os movimentos que emergiramainda no final dos anos 1970, na lutacontra a ditadura, pela afirmação dodireito à cidade e pela reforma urba-na, que foram muito intensos e quecresceram de patamar nos anos 1980e se constituíram como uma frente naConstituinte, conquistando uma ins-titucionalidade, eles tinham umaenorme identidade do ponto de vistapolítico com os novos partidos queentraram no poder e estabeleceramsuas coalizões. À medida que isso foicrescendo os limites aparecerammuito claramente, a geração que vaipra rua em junho de 2013 não tinhanem nascido nos anos 1980!

de inclusão muito significativo de umaparcela historicamente excluída, masuma exclusão via consumo. A esferapública, a dimensão pública das cida-des e seus serviços, historicamentepéssimos, pobres para os pobres, issonão mudou um milímetro. O modelode urbanização e de desenvolvimentocontinuou voltado pra favorecerquem ele sempre favoreceu. A explo-são das ruas me parece que revela queexplode esse modelo, e exige uma ou-tra coisa, então ela é muito mais amplaque a questão da Copa.

E nesse contexto a questão urbana érecolocada na cena política, agora pormovimentos muito diferentes do queforam os que discutiam o tema nosanos 1980.

Desinformação, ameaças, pressões e repressões

Em 4 de março de 2013, a Articulação Nacional dos Comitês Populares daCopa (Ancop), rede que reúne comitês formados nas cidades que receberão jo-gos do Mundial, foi recebida oficialmente pelo Conselho de Direitos Humanosda Organização das Nações Unidas. Após apresentação exatamente de RaquelRolnik, que divulgou um de seus relatórios sobre os impactos do megaeventosobre a moradia, Giselle Tanaka ocupou a tribuna representando a articulação.

Ressaltando que “a realização destes eventos esportivos no Brasil poderiater criado a possibilidade de viabilizar significativos investimentos sociais e nainfraestrutura”, ela ponderou que os grandes investimentos mobilizados paraestes megaeventos aprofundam a desigualdade social e as violações de direi-tos no país: “Isto parece ser um tema comum relacionado aos megaeventos emegaprojetos: servir ao lucro de uns e causar prejuízo a milhões”, concluiu.

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inclusão seletiva na qual eles tambémestão comprometidos.

Você acha que isso coloca a questãourbana em outro patamar de luta e dis-puta?

Há um elemento muito importanteno Brasil na questão urbana que é aclasse média, aqui ela é um ator muitoimportante. E nos anos 1970, foi emnome da classe que média que semontou esse modelo de desenvolvi-mento excludente. Só que acontece-ram duas coisas com a classe média:em primeiro lugar, ela ampliou-se e,em segundo, ela rachou do ponto devista de ideológico. Uma parte daclasse média, que sustenta o modeloexcludente baseado no automóvel, nacirculação pra poucos e etc., tambémnão quer mais isso como modo de

É uma geração nascida nos anos1990, ela já nasceu em outro contex-to, outro momento, ela não tem com-promisso com aquela história e ela jánasce a partir dessa inclusão meia bo-ca, que é a inclusão que foi conquista-da nos anos 1990 – inclusão meiaboca: universalizou o ensino mas oensino é de quinta categoria, temsubsídios pra habitação mas essa ha-bitação, como  o Minha casa, Minhavida, também é de quinta, repete osvelhos modelos de exclusão territori-al. Então essa geração é nova, ela co-meça de outro patamar.   Parcelasmuito pequenas dos antigos movi-mentos de moradia tiveram a sensibi-lidade de entender que há uma novageração e a capacidade de se articular,a maioria inclusive ficou numa posiçãoresistente, não conseguiram romper a

Em sua fala, Tanaka apresentou a estimativa da Ancop, que naquele momen-to avaliava em 170 mil o número de pessoas afetadas por remoções relaciona-das à Copa e aos Jogos Olímpicos de 2016, o que representaria um “êxodoforçado” no qual “quase 1 em cada 1.000 brasileiros estão ameaçados de per-der suas moradias por conta de jogos que não durarão sequer um mês cada”.

No primeiro semestre de 2013, a Ancop divulgou um dossiê intitulado “Me-gaeventos e violações de direitos humanos no Brasil”, no qual esta estimativade 170 mil remoções é considerada “conservadora”. A depender das fontes, onúmero pode chegar a 200 ou 250 mil pessoas atingidas, num país que tem 15milhões de domicílios urbanos destituídos de condições mínimas de habitabili-dade e um déficit habitacional de cerca de 5 milhões e 500 mil moradias – osnúmeros constam de dados oficiais divulgados em 2008 pelo Ministério dasCidades. De acordo com essa projeção, aproximadamente 11% dos domicíliospermanentes nas capitais nordestinas e de 6 a 8% nas capitais do Sul e do

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Sudeste encontram-se em más condições, sendo que em 71% dos casos isso sedeve à carência de infraestrutura.

Adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 1966e subscrito pelo Brasil em 1992, o Pacto Internacional pelos Direitos Econômi-cos, Sociais e Culturais estabelece em seu artigo 11 o direito à moradia ade-quada, que também é salvaguardado pela Constituição Federal brasileira epelo Estatuto da Cidade. As leis não têm impedido, no entanto, que no proces-so de preparação para os megaeventos as ações governamentais tenham nãosó agido a contento sobre esse cenário como removendo ainda mais famílias ,sobretudo, nas palavras do dossiê, provenientes “de comunidades localizadasem regiões que, ao longo do tempo, tiveram enormes valorizações e passarama ser objeto da cobiça dos que fazem da valorização imobiliária a fonte de seusfabulosos lucros”.

Segundo o estudo da Ancop, “os motivos alegados para a remoção forçadasão, evidentemente, outros: favorecer a mobilidade urbana, preservar as po-pulações em questão de riscos ambientais e, mesmo, a melhoria de suas condi-ções de vida... mesmo que a sua revelia e contra sua vontade. Comopressuposto mais geral, a ideia de que os pobres, coitados, não sabem o que émelhor para eles”.

As estratégias utilizadas seriam parecidas em todo território nacional, inici-ando-se geralmente com a “produção sistemática da desinformação, que sealimenta de notícias truncadas ou falsas, a que se somam propaganda engano-sa e boatos”. Em seguida, viriam as ameaças e, caso haja resistência, mesmo quedesorganizada, advém o recrudescimento da pressão política e psicológica.“Ato final: a retirada dos serviços públicos e a remoção violenta”, conclui o dos-siê.

“Em todas as fases há uma variada combinação de violações aos direitos hu-manos: direito à moradia e direito à informação nestas situações caminhamjuntos, como juntas caminhas as violações que se concretizam. Desta forma,este relatório optou por apresentar os casos segundo as categorias ‘desinfor-mação e rumores’, ‘ameaças de remoção’ e ‘remoções realizadas ou em anda-mento’, lembrando que em áreas extensas de um mesmo projeto, diferentessubáreas estão sujeitas a diferentes estratégias que, combinadamente, au-mentam o terror e a pressão”, resume a Ancop.

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São Paulo, Fortaleza, Porto Alegre,Curitiba, Recife, e em várias situaçõeshouve recuos do ponto de vista dosprojetos, comunidades que iam seratingidas deixaram de ser porque osprojetos mudaram, em segundo lugara forma de se fazer remoção, que con-tinua a não ser de acordo com o quediz o direito à moradia adequada,também mudou muito, teve uma evo-lução. No começo, as empreiteirassaíam derrubando casa com as pesso-as dentro, isso não acontece mais. Ascompensações aumentaram, hoje oque está sendo oferecido pra Vila doAutódromo, no Rio, sair dali é um lu-gar ali perto, com uma condição me-lhor, isso tudo foi fruto dasmobilizações, dos próprios atingidos eda sua rede de apoio.

Hoje tem uma parcela das pessoasque diz que realmente é absurdo masagora “já era”, já está perdido. O que vo-cê acha que ainda está em disputa e oque não tem mais jeito?

Não, não “já era” de jeito nenhum. AVila do Autódromo está aí, não saiuaté agora e pode não sair, a resistênciacontinua. Acho que em relação espe-cificamente à Copa, como ela já vai seragora em junho, nós temos uma gran-de questão que são as “Fan Fests”, asáreas públicas que vão ser tomadaspela FIFA e nas quais as pessoas nãovão poder trabalhar, as pessoas nãovão poder se apropriar livremente,acho que isso será um grande embate,

vida, também rejeita isso. Então mo-vimentos como o do Parque Augusta,por exemplo, que é um movimento porespaço público, é algo que hoje discu-te direito à cidade. E está vindo de ou-tra matriz, que não é a daprecariedade, da favela, que luta porsaneamento, mas está aí, faz partetambém do caldo das manifestaçõesde junho, assim como o movimentodos cicloativistas, que em parte vemdas classes médias. Está falando deoutro modo vida, isso também amplianão só os setores sociais mas até aspautas do direito à cidade, isso é mui-to importante do ponto de vista polí-tico, é uma nova configuração. Mastenho certeza absoluta que as perife-rias, a juventude das periferias estevepresente, é um elemento fundamentalnas manifestações de junho, porqueela já vinha há anos se estruturandocom coletivos culturais, de reflexão,com grupos de estudo, isso já estavaacontecendo muito forte, como tam-bém o Movimento Passe Livre, que euacompanho desde 2005, é um negócioque tem quase dez anos, não apareceuhoje.

E nesse período que você tem acom-panhado diversas denúncias e resistên-cias, o que pode ser destacado comoconquista dos movimentos e dos atingi-dos pela Copa?

Eu acho que teve várias conquistas,em várias cidades brasileiras. Euacompanhei bastante Rio de Janeiro,

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é e será. Fora a questão da prostitui-ção, fora a questão dos moradores derua que devem sofrer repressão e sertirados à força da rua, tem váriasquestões que ainda são muito rele-vantes e importantes e precisam serchamadas atenção.

Os próximos mundiais de futebol se-rão no Qatar e na Rússia, então prova-velmente a relação entre megaeventose violação de direitos irá permanecer.

Sim, eu espero que a próxima rela-tora siga acompanhando esse tema.Acredito também que a partir da ex-periência do Brasil, das relações que epontes que se estabeleceram, isso de-va seguir e incluir mais e mais gentenesse debate, que é a ponta do ice-berg pra gente discutir modelo de ci-dade, os projetos urbanísticos e osmegaprojetos, independente dos pró-prios megaeventos.

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Míope, baixinho e esquelético, re-cusavam-se a me aproveitar, aindaque nas peladas no campinho calvo dobairro, sem alambrado, arquibancadaou vestiário, repasto de um cavalomagro que a ninguém pertencia. Nempor isso refreou minha paixão pelo fu-tebol. Permanecia nas imediações, esempre que alguém faltava, se ma-chucava ou se ausentava por “motivode força-maior” (a mãe convocava ojogador no meio da partida para fazerum mandado, por exemplo), eu entra-va no gramado, pronto a distribuir ca-neladas e cotoveladas nas sombrasque adivinhasse ao meu lado. Mas, sea bola a mim não se entregava, paci-ência, eu dedicava a ela os melhoresrecônditos da minha memória. Decli-nava a escalação dos times do campe-onato em curso e de todos osprecedentes e, sem esforço, lembravao placar de um jogo ocorrido quinze,vinte anos atrás - a pedidos, podia atémesmo narrar os gols, histrionica-mente, com a voz e os tiques de um lo-

GOL DE LETRAS

Luiz Ruffato

cutor famoso qualquer, à escolha daplatéia. De lambujem, conhecia de corvárias poesias lidas na biblioteca daescola, o que me avalizava junto àsmeninas, e escrevia extensas e derra-madas cartas de amor, o que garantiaadmiração e dependência dos colegas.Por isso, me chamavam de intelectual.

Eu não sabia, ainda, mas todo estetalento predestinava-me a dias demaior glória!

Treze anos completos eu tinha,quando, junto com a turma, aventurei-me nas fraldas do estádio pela primei-ra vez. Se fascinaram-me os urrosuníssonos provindos das arquibanca-das, o Ah! de um chute torto, o Ih! deuma jogada perigosa, o Ôh! de umabola na trave, o Uh! de um quase gol,espantou-me nosso silêncio avassala-dor, quando, no segundo tempo, ven-cendo por três a zero, a torcidaadversária cadenciava os afrontososolés com retumbantes cantos, or-questrados por bumbos, tambores e

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do. Pensava desistir, a empreitadaacima da minha capacidade, quando,numa madrugada tormentosa, des-pertado pela claridade de um relâm-pago, o trovão estremeceu meu corpo,e, assustado, acendi a luz, surpreen-dendo um ninho atordoado de pala-vras, rapidamente transformadas emritmo e rima por meus dedos ávidos.

Os mais diligentes alunos já se de-pararam comigo recostado vitoriosoao portão de entrada da escola, tantaansiedade. O burburinho se esparra-mou e, então, engrossado o ajunta-mento, anunciei os versos quecomporiam nossa canção de estímulo,nossas palavras de ordem. Descon-trolada, a turba me tomou nos braçose, em coro, desfilou pelos corredores epelo pátio, bagunça contemporizadapela diretora, ela mesma, imagino, in-confessada torcedora do nosso time.O resto da semana ensaiamos os can-tos, que no domingo inundaram as ar-quibancadas engalanadas do estádio.

A minha vida tomou outros rumos,já ninguém reconhece, por detrás daminha barba espessa, o intelectualque fui. Mas ainda hoje ecoa, nas tar-des quentes de domingo, aquele diada minha maior felicidade: palavrasnascidas dentro de mim, tornadas vo-zes emocionadas de centenas, milha-res de desconhecidos. Não, isso nãoesquecerei jamais.

cornetas. Desconsolados, cruzamosruas e avenidas em ônibus lotados enos recolhemos abatidos em nossascasinhas baixas, de quintais minúscu-los. A semana arrastou-se, nublada.Nos corredores da escola, até mesmoas gargalhadas eram aflitas. Se quere-mos ajudar nosso time, concluímos,devemos arranjar algo que enlace oscorações alquebrados. E outra coisanão nos tirava o sono.

Então, durante uma aula de LínguaPortuguesa, sussurrei, sem calcular,que, quem sabe, talvez eu pudesse ra-biscar umas canções de incentivo,umas palavras de ordem, o que vocêsacham? O alvoroço no fundão conta-giou a classe, e a professora, inábil pa-ra reprimir a excitação dos alunos,deixou a sala e voltou com a diretora,que, além de um interminável sermão,cortou-nos o recreio pelo resto domês. Nada, porém, impediu que a no-vidade se disseminasse. Todas as ma-nhãs, cercavam-me no portão deentrada, indagando, E aí? Como estãoos trabalhos? Misterioso, respondia,importante, Está indo, colhendo fres-cos suspiros e buliçosos olhares dasmeninas. Mentia, entretanto: as noi-tes dedicava a capturar as palavras,mas elas, zombeteiras, ocultavam-senos desvãos da porta, debaixo da ca-ma, entre as camisas carinhosamentedobradas no guarda-roupa, pendura-vam-se picumãs no teto, escorriamcomo o mofo nas paredes. Ao acordar,folhas em branco sobre o criado-mu-

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Brasil e Japão, 3x0. Copa das Confederações, 2013.

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Patrick Bond é professor para Política do Desenvolvimento na UniversidadeKwaZulu-Natal em Durban (África do Sul), onde dirige o Centro de Estudos daSociedade Civil, pesquisando sobre questões de política econômica, meio am-biente, sociedade e geopolítica.

Júlio Delmanto é jornalista, doutorando em História Social e trabalhou noescritório regional da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo.

Gerhard Dilger trabalhou como correspondente para mídia de língua alemãem São Paulo e Porto Alegre de 1999 a 2012. Desde 2013 dirige o escritórioregional da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo. Espera que surja umcampeão sul-americano na Copa de 2014 e torce pelo Inter.

Lívia Duarte é jornalista. Está muito longe de ser fanática por futebol. Sabe osuficiente para não ser humilhada em mesas de bar. Torce por uma vitória doFluminense desde que percebeu a fascinação do avô pelas narrações no rádiode pilha.

Thomas Fatheuer viveu e trabalhou no Brasil de 1992 a 2010, onde dirigiu oescritório da Fundação Heinrich Böll, no Rio de Janeiro. Desde o seu doutoradopublicado em 1985, “Gols contra, sociologia e futebol”, escreve sobre o assunto,com especial atenção para o futebol brasileiro. Na Alemanha, torce pelo Wer-der Bremen e no Brasil, pelo Flamengo.

Vladimir Fomenko, tradutor, é vice-dNiretor do escritório da Fundação RosaLuxemburg em Moscou.

Eduardo Galeano é escritor (As veias abertas da América Latina, Futebol: ao sole à sombra, e muitos mais), torcedor, internacionalista e uruguayo.

AUTORES E AUTORAS

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Juca Kfouri é corinthiano e o crítico mais famoso da FIFA no Brasil. Trabalhaquase 24 horas por dia, escrevendo no seu Blog do Juca, no jornal Folha de SãoPaulo, comentando no rádio e no canal de TV ESPN Brasil, bem como escreven-do dúzias de prefácios e posfácios de livros no mundo inteiro.

Martin Ling, jornalista e economista, é fã do Sankt Pauli, do Barça e da Ar-gentina. Vive em Berlim, onde escreve como editor internacional no diário so-cialista neues deutschland, bem como na revista mensalLateinamerika-Nachrichten.

Raquel Rolnik é urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urba-nismo da Universidade de São Paulo e trabalhou como relatora especial da Or-ganização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada, de 2010 a2014.

Luiz Ruffato, escritor e flamenguista, mora em São Paulo. Aqui, Gol de letras épublicado pela primeira vez. Entre muitos romances e antologias, organizou En-tre as quatro linhas - Contos sobre futebol, São Paulo: Editora DSOP, 2014.

Andreas Rüttenauer, torcedor do 1860 de Munique, escreve desde 2001para o diário berlinense taz, die tageszeitung. Após 2006, foi editor de esportes.Em 2012, candidatou-se ao cargo de presidente da Confederação Alemã deFutebol. Desde abril de 2014 é co-diretor do taz.

Christian Russau, escritor, tradutor e jornalista, vive em Berlim. Cooperacom a rede de solidariedade para o Brasil KoBra, com o centro de pesquisa edocumentação Chile-Lateinamerika e a agência noticiosa Lateinamerika-Nachrichten. Seu clube é o TeBe, que joga um futebol autêntico na Sexta Divisão.

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LEIA MAIS

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FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO

Anja Kessler: capa, p. 38, 62 e 72.

Gerhard Dilger: p. 8, 34, 64, 82 e 100.

Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil, p. 111.

Marcello Casal Jr /Agência Brasil: p. 22 e 33.

Mídia Ninja: p. 4.

Sergio Gonçalves: contracapa.

Tânia Rêgo/ Agência Brasil: p. 6.

Wissen, Wikimedia Commons: p. 14.

CRÉDITOS DAS IMAGENS

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Para a composição e diagramação deste livro foram utilizados softwa-res livres, programas que podem ser usados, copiados, estudados e re-distruídos sem restrições - são alguns deles: Firefox, Open Office,GIMP e Scribus. A fonte Lato utilizada no miolo também é livre. A fonteque indentifica a Fundação Rosa Luxemburgo é a Linotype Univers.

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