resgate passado normal

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Informaes sobre o Livro EletrnicoResgate do Passado A Histria de uma Pessoa Timida Ruy Miranda Copyright 2001 de Ruy Miranda Edio eletrnica feita e atualizada por Ruy Miranda em 2004 Pintura da capa de Antnio Brulio Vilhena Neto Todos os direitos reservados ao autor Ruy Miranda. Av. Jos Osvaldo Arajo 180 Belo Horizonte MG CEP 30.350-680 Brasil http://www.timidez-ansiedade.comISBN da edio eletrnica: 85-901824-3-6

Editor: Ruy Miranda

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Sumrio

Breves Consideraes ...................7 Captulo 1 Fim Prximo ...............8 Captulo 2 Pregressos ...............11 Portugus e Brasileira se Conhecem ..........11 Alegrias e Presses .........................18 Casamento ...................................31 A Alcunha ....................... ...........33

Captulo 3 Paixo Atormentada .........36 A Famlia Cresce ............................36 Florinda, a Tentao ........................41 Emboscada ...................................53 Podia Ser Um Pesadelo .......................58 Definitivamente Ligados .....................63 Ciso Familiar ..............................66

Captulo 4 A Luta .....................76 Punies Fsicas e Represses que se Consolidam .............................76 Hiato .......................................88 Medo e Confiana ........................Apendix Voltam as Barreiras .........................82

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Captulo 5 Reveses da Vida ............89 A Caminho do Outro Sonho ....................89 Desgostos do Menino .........................90 Horror Sbito ...............................95 Brincadeira Infeliz .........................96 Iniciao Sexual Precoce ...................101 Encurralado Pelos Outros ...................104 Mo Salvadora ..............................113 Empecilho aos Estudos ......................114 Paixo de Pr-Adolescente ..................117 Medo de Si Mesmo ...........................123 Esperana Que Vem Pelo Rdio ...............127 Na Zona do Meretrcio ......................131

Captulo 6 O Outro Mundo .............133 Primeiros Progressos .......................133 Comprador de Diamantes .....................138 Cleide .....................................140 Garimpeiro de Diamantes ....................145

Captulo 7 Tremor nas Mos ...........152 Tremor nas Mos ............................152 Opinies dos Mdicos .......................156 Deciso Radical ............................163 Tentativas Desesperadas ....................166 Reviravolta na Vida ........................172 Rumo ao Passado ............................176

Captulo 8 Comea o Resgate ..........183 Estranheza no Regresso .....................183 Primeiro Encontro com o Passado ............189 A Covardia se Esclarece ....................199

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Confessa a Timidez .........................205 Limite Para o Preo Da Liberdade ...........210 Preconceito da Virgindade ..................214 Diante do Perigo Maior .....................219 O Balo se Esvazia .........................224 Desafio aos Torturadores ...................229 Novas Revises do Passado ..................235 A Jovem Prostituta .........................244

Captulo

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Intermezzo ..............247

O Garimpeiro Retorna .......................247 A Semente Germina ..........................253 Barreiras Burocrticas .....................259 Passaporte Suado ...........................262 Salvo por um Triz ..........................271 Procurados Pela Polcia de Paris ...........282 De Decepo em Decepo ....................286 O Intermedirio no Negcio .................296 Caracterstica da Mineiridade ..............304 No Banco ...................................312 A Consulta Mdica ..........................314 Aflio Com o Compromisso ..................315

Captulo 10 O Passado De Volta Outra Vez ..............................324 Pavilho 6 .................................324 Z Malta ...................................330 Milagre de So Judas Tadeu .................334 Tratamento do Tremor Essencial ..........Apendix O Que Falta? ...............................342 O Meio-Irmo Desconhecido ..................348

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Captulo 11 Os Ziguezagues Da Vida ...357 Pai Enigmtico .............................357 A Verdade ............................ .....365 Reencontro .................................369 Reconsideraes ............................374 Expectativas ...............................382 Festejos ...................................391 Consideraes Finais .......................396

Apendix Boxes com Informaes

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Captulo 1 - Fim PrximoVtima de uma doena incurvel, Joman se prepara para morrer. (Informao: Trs ponto (...) entre pargrafos indicam que outros pargrafos foram retirados; no comeo ou final de pargrafo indicam que textos foram retirados daquele pargrafo.)

O inesperado, aquela coisa ruim que vem quando tudo corre bem ou de modo rotineiro, ou aquela coisa boa quando as esperanas j acabaram e que demonstra o quanto o destino de qualquer pessoa sujeito ao acaso, ocorreu nas duas formas com Joman de Oliveira O. Veio primeiro por intermdio de uma adversidade, uma doena que ia conduzi-lo prematuramente morte. ... A morte de um sujeito como Joman, primeira vista, nada tem de especial, mesmo quando anunciada, mesmo quando, ao invs de esper-la, ele vai ao seu encontro. Joman apenas mais um rosto na multido, um desses rostos com expresso sria visto num aglomerado que, beira do passeio, espera o sinal abrir para atravessar a rua. Um sujeito comum, que antes dos trinta anos j se convenceu de que s lhe resta trabalhar e superar seguidos problemas. Uma pessoa assim no deve ter nada de interessante que justifique contar sua histria. Afinal, lutar contra problemas contnuos quase todo mundo luta. Ter conscincia de que a morte est prxima e inexorvel, mesmo para pessoas jovens como ele, tambm coisa comum. Decidir antecip-la para evitar um sofrimento maior acontece em todas as partes do mundo. Ocorre, contudo, que esse inesperado, da doena fatal, foi apenas o comeo de uma cascata de acontecimentos que subverteram e inverteram seu modo de ser; foi o estopim de uma revoluo que pode suceder com qualquer pessoa, ainda que por motivos e caminhos diferentes.

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Captulo 2 - PregressosComo o pai de Joman, um imigrante, conheceu sua me, como foi o casamento, qual foi o apelido que colocaram em seu pai. (Informao: Trs ponto (...) entre pargrafos indicam que outros pargrafos foram retirados; no comeo ou final de pargrafo indicam que textos foram retirados daquele pargrafo.)

Portugus e Brasileira se ConhecemEm 1930 desembarca no porto do Rio de Janeiro, aos 21 anos de idade, o robusto Manoel Pereira de Oliveira, nascido e criado no norte de Portugal. Vem, como a maioria dos patrcios seus, sem dinheiro e cheio de sonhos de enriquecimento no Brasil. Sem profisso definida, faz vrios servios para terceiros e, a duras penas, comea um p-de-meia. A aspirao de um negcio prprio o leva em 1933 para o Vale do Rio Doce, que comea no Estado de Minas Gerais e termina no do Esprito Santo. uma poca em que todo o vale est sendo desmatado. No lugar da exuberante mata atlntica surgem fazendas, onde predomina a pecuria bovina, e pequenos ncleos urbanos situados preferentemente ao longo da Estrada de Ferro Vitria a Minas. Essa regio atrai aventureiros, pessoas fortes e dispostas a lidar com um ambiente adverso. O jovem portugus comea pelo Esprito Santo, como vendedor ambulante de objetos de uso domstico e pessoal. As mercadorias vo em duas mulas e um burro muito mansos, que tambm transportam sua tralha e alimentos, enquanto ele monta outra mula. Percorre fazendas, stios, acampamentos, casas de colonos e de trabalhadores rurais. um trabalho duro, sob sol escaldante e temperaturas que superam os trinta graus centgrados na maior parte do ano, mas ele no se queixa. Economiza o que pode para aumentar o p-de-meia e realizar dois sonhos mais imediatos: estabelecer um comrcio em alguma localidade e encontrar uma jovem para se casar. 8

Em maio de 1934 acomoda-se num rancho, feito para tropeiros e viajantes, num povoado de nome Cachoeirinha, no mdio-vale, em Minas Gerais. Trata-se, como tantos outros instalados em cidades, povoados e beiras de estradas, de uma construo que tem piso de terra batida, paredes de alvenaria em trs lados e esteios de madeira para sustentar o telhado. Como ele no tem tempo a perder, prepara-se para iniciar uma nova jornada j no dia seguinte, mais uma viagem nessa sua vida sem descanso e sem conforto, e de noites solitrias. Vai, pela primeira vez, seguir por uma estrada de rodagem com sessenta quilmetros de extenso, recm-aberta, que liga o povoado a uma cidade de nome Itanhomi, situada a sudoeste, passando por outro povoado de nome Cafezinho. O tempo de viagem imprevisvel; pode chegar a um ms, dependendo do nmero de paradas que fizer para mostrar as mercadorias. No final da tarde, prepara o jantar e o alimento que consumir durante o dia seguinte, como sempre faz. Depois do jantar deita-se na esteira de palha e dorme. ... No transcorrer da exposio, Manoel observa a beleza da jovem. " uma donzela em flor", diz para si mesmo. "Como pode haver uma jia assim num lugar desse?" Ela tem a pele clara, diferente das outras que viu, indicando que no se expe muito ao sol. O longo cabelo preto, amarrado com descuido junto nuca, esparrama-se depois pelas costas em ondas suaves. Os olhos so castanhos e meigos. Os dentes, brancos, aparecem em tmidos e ocasionais sorrisos. O vestido simples. Cala chinelos que, de vez em quando, so tirados, e sobre eles pousa os ps delicados. Fala pouco, e a voz suave. Aos olhos de Manoel, tudo nela belo, recato. A certa altura, quando esto todos bem descontrados, comenta, delicadamente, voltado para a jovem: Tu me lembras as belas rapariguinhas de Portugal. A jovem arregala os olhos e a seguir levanta-se e corre para o interior da casa. A me, acompanhando a filha, tambm sai rapidamente. O pai levanta-se com semblante fechado, vai at a porta de entrada, puxa, forado, um escarro da garganta e fica olhando ao longe. Assustado, preso cadeira, 9

Manoel no entende o que se passa, e nem lhe ocorre nada para dizer. Decorridos alguns segundos, Pedro vira-se um pouco de lado, na direo do vendedor ambulante e diz, com voz aborrecida, sem olhar para ele: O senhor falou mal da minha fia e vira-se de novo para fora. Eu?!... No estou a compreender... Chamou ela de rapariga replica o homem, sem se virar. Ora pois... rapariga qualquer donzela! Aps um momento de reflexo acrescenta: Pelo menos na minha terra... Pra nis aqui, mui que num presta... O jovem portugus assusta-se e sente medo. Ele sabe que os habitantes do vale so rudes, afeitos ao trabalho pesado, pouco instrudos e sensveis aos maus-tratos. Muitas vezes matam, em resposta a uma ofensa banal. Por isso se apressa em responder: ... Manoel levanta-se e diz, de modo pausado e solene, curvando inicialmente a cabea na direo da mulher: A senhora, dona Risoleta Santos da Cruz, e tu curva agora a cabea na outra direo , donzela Maria das Dores Santos da Cruz, queiram me desculpar. Eu no pretendia ofender, eu no sabia... Disculpado diz a me. Disculpado faz coro a filha, que em seguida se junta me. A famlia, sob certo constrangimento, retoma o exame das mercadorias, mas no tarda e o ambiente est de novo descontrado. O casal compra alguns objetos. Para seguir viagem completamente tranqilo e seguro de que no est deixando nenhum rastro de aborrecimento, Manoel conta alguns casos de sua terra natal, que os trs ouvem com interesse. Quando, por fim, comea a guardar as mercadorias, Pedro lhe faz um convite. J t de tarde; o senhor pode posar aqui com nis, se quiser. Aceito com muito prazer, ora pois! responde alegremente. Manoel tem razes para ficar feliz com o convite. Em primeiro lugar, porque isso indica uma deferncia. No praxe fazer esse tipo de convite a estranhos; o habitual o viajante procurar o rancho de beira de estrada 10

mais prximo. Em segundo lugar, porque passar a noite com conforto e, principalmente, porque poder apreciar mais a donzela em flor. ... Durante o jantar na cozinha, Manoel volta a ver a jovem. Os dois se olham de soslaio. "Como bonita esta rapariga...", repete para si mesmo vrias vezes. Depois se renem na sala e conversam animadamente. Trs filhos do casal, que moram no stio em casas mais afastadas, chegam com mulheres e filhos, movimentando ainda mais o ambiente. ... Essa faquinha a, o senhor comprou adonde? entra um dos filhos, apontando para o lado direito da cintura dele. Esta eu trouxe de minha terra responde com certo entusiasmo. E, para satisfazer mais a curiosidade, desembainha-a e mostra-lhes. uma faca de cabo branco, de chifre, com desenhos feitos em metal amarelo cravado, e uma lmina de pouco mais de dez centmetros. Cuidado para no te cortares adverte, ao entreg-la. Mantenhoa sempre amolada. Pode-se at fazer a barba com ela completa, vangloriando-se. Passam a faquinha de mo em mo, apreciam sua beleza e seu fio, que realmente lembra o da navalha. A conversa prossegue, e ele, com discrio, continua a observar a jovem. Tem certeza de que ela lhe retribui os olhares. Sente vontade de lhe dirigir a palavra, mas contido pelo receio de que se sintam ofendidos. Das Dor, arruma o quarto pro s Manoel dormir ordena Risoleta a certa altura. A moa obedece e vai para dentro da casa. Os trs filhos e suas famlias se despedem. Pouco depois, das Dores chega e informa, com aquela sua voz meiga: S Manoel, o quarto t rumado. Podes me mostrar? a jovem balana a cabea, e ele a segue. aqui diz ela mostrando o quarto. Quer lavar os p? Estava eu a pensar nisso... Intonces, o senhor espera um cadiquinho. Manoel est acostumado a ouvir as pessoas dessas bandas falar errado, coisa que, alis, o diverte, mas os erros cometidos por das Dores o enchem de encantamento. "Cadiquinho...", "Lavar os p...", "T rumado...", 11

rememora ele, achando graa, enquanto espera. A jovem retorna com uma bacia e coloca-a junto cama onde ele est sentado, sai e volta em seguida com duas jarras. O vendedor ambulante j est descalo, com os ps no assoalho de madeira, ao lado da bacia, e as barras das calas levantadas at os joelhos. Das Dores curva o corpo e despeja a gua quente de uma das jarras; depois, ajoelha-se e comea a despejar lentamente a gua fria da outra, enquanto passa a mo para controlar a temperatura. Acho que t bom ela diz, depois de alguns segundos. ia! Ele se curva e, ao passar a mo na gua, toca de leve no dorso da mo de das Dores, que ficou apoiada no fundo da bacia. A jovem encolhe o corpo, como se tivesse tomado um choque, mas no retira a mo. Ele continua o movimento em crculo como que sentindo a temperatura da gua, mas na verdade roa, prazerosamente, o dorso da mo da jovem. Ela, por sua vez, a vira, instintivamente, de modo que, por uns instantes, as duas palmas se roam. O barulho dos passos de Pedro faz com que a jovem ergase rapidamente e saia do quarto, levando as duas jarras. ...

Alegrias e PressesManoel continua sua viagem e leva consigo a imagem daquela jovem. Imagem que inspira fantasias de um namoro delicado e de um casamento feliz. "Cadiquinho...", "T rumado...", rememora, com ternura e saudade, nos momentos de solido. E indaga a si mesmo se Deus a reservou para ele. Das Dores tambm um estmulo para reativar o sonho de estabelecer-se em algum lugar. " tudo que quero: um comrcio e uma mulher para amar." Entretanto, vez por outra, um leve temor ronda-lhe o esprito: "A famlia aceita um estrangeiro?" Evita, tanto quanto pode, pensar nessa dvida, pois tem muitas lembranas boas para ocupar a mente, no havendo razes para dar asas a pensamentos negativos. Em menos de quarenta dias, numa quarta-feira, ele est de volta, trazido pelo anseio de rev-la. ... "Oh, l, l! J no apenas uma rapariguinha!", admira-se Manoel de modo tal que os pensamentos saltam pelos olhos. Das Dores, sentada numa 12

cadeira, perto da mesa, mantm o tronco ereto e a cabea erguida. Traja um vestido simples, mas com aspecto de novo, e cala sapatos. Os olhos exibem o brilho da alegria contida. Os cabelos, to brilhantes quanto os olhos, esto presos por uma estreita fita de seda branca em cada lado da cabea e se esparramam pelos dois lados do pescoo, cobrindo os ombros e parte dos seios. Ela abre um leve e tmido sorriso quando o jovem portugus se aproxima. Como vais, Maria das Dores? Ele sente o incitante cheiro de banho, misturado ao perfume do leo de cabelo que lhe dera de presente, quando lhe estende a mo. Eu c vou bem. E o senhor, s Manoel? Bem, muito bem responde com indisfarvel alegria. Parece que cresceste! Ela grande pra idade comenta Risoleta, orgulhosa. Tem s 16 ano. Senta, s Manoel completa, oferecendo-lhe uma cadeira. Dezesseis?! Ora pois! parece ter mais... volta ele, procurando ser gentil, enquanto se assenta a pouco mais de um metro de distncia da jovem. J moa casadoira entra Pedro. O jovem toma o comentrio como uma insinuao e o acha timo. ... ... Manoel interrompe o caso que est contando, levanta-se e, quando Pedro, ainda de p, comea a se servir, diz ao casal, com voz firme e solene, o que sonhou durante todos os dias, desde que esteve ali. Eu queria pedir licena ao senhor, seu Pedro Horcio da Cruz, e senhora, dona Risoleta Santos da Cruz, para namorar a das Dores. Aparentemente surpreso com o pedido, Pedro se senta numa cadeira prxima da mesa, ao lado da mulher, sorve um gole de caf, pe a caneca sobre a mesa, tira um leno do bolso e enxuga o rosto. Mais um gole de caf e repe a caneca sobre a mesa; olha para fora pela janela lateral, leva a mo ao rosto e faz aquele movimento repetitivo de escorrer as pontas dos dedos sobre a barba rala, dando aparncia de dvida, tudo acompanhado com grande expectativa pelo vendedor ambulante. Por fim, vira-se para a filha. Oc quer? A jovem sacode a cabea. Ento ele se volta para Manoel: Vai 13

dar muito gosto pra nis fala tambm em nome da esposa, como hbito na regio. Risoleta faz um discreto sorriso, o suficiente para mostrar que est feliz. Os olhos do vendedor ambulante brilham, acompanhando um sorriso de alegria, justificvel porque nos seus sonhos havia espao pequeno, verdade para uma negativa. O caminho est aberto para a mudana de vida que ele almeja. Os dois jovens namorados tm outras oportunidades de ficar a ss na sala e na cozinha, mas no se tocam. Manoel espera ansioso a hora de deitar-se, a hora de lavar os ps. noite repete-se o encontro da famlia inteira, e a novidade j conhecida. Pedro anuncia que vai promover uma dana no sbado, ali na sua casa. Nem precisa dizer o motivo esto todos contentes com o casamento que das Dores far. ... H uma grande expectativa em relao chegada de das Dores. Os olhares se voltam de tempos em tempos para a porta de acesso ao interior, onde se dar o seu aparecimento. Quando ela surge, acompanhada pela me, os olhares de expectativa se transformam em olhares de admirao. O vendedor ambulante empina o corpo. " uma princesa!", afirma a si mesmo. A jovem traja um vestido cor-de-rosa, adornado por uma fita de seda vermelha, larga, brilhante, amarrada cintura com um gracioso lao na frente, com as pontas caindo at as coxas. O cabelo foi dividido em duas longas tranas que terminam com fitinhas, tambm de seda vermelha, abaixo dos seios. Presa cabea, do lado direito, uma pequena flor, tambm vermelha, completa a harmonia do conjunto. Cala um sapato novo e se dirige, devagar, para onde esto as cunhadas. O sanfoneiro, sentado numa cadeira a um canto da sala, comea a tocar. Os que esto do lado de fora se aglutinam junto porta de entrada e s duas janelas da frente e das laterais, mas ningum inicia a dana. Pedro cutuca Manoel e sussurra-lhe ao p do ouvido: Comea! Ento ele percebe que lhe cabe a honra de iniciar o festejo. Caminha em direo a das Dores em passos solenes e, quando chega, faz uma mesura: estende-lhe a mo direita, curva a cabea e ao mesmo tempo estende a perna direita para trs, 14

apoiando-a sobre o bico da botina; recolhe-a rapidamente e repete o movimento com a perna esquerda e a cabea. A jovem se aproxima, pousa sua mo sobre a dele, e os dois vo para o centro da sala. As pessoas, em volta, admiram o requinte. E ambos, com o corao palpitando, comeam a danar. "No estou a acreditar! pois, pois, pois, pois! admira-se logo aps os primeiros passos , ela leve como uma pluma!" ... ... No domingo o jovem vendedor ambulante acorda decidido a acelerar as coisas. Espera ansioso o pai de das Dores terminar a ordenha de algumas vacas e fala-lhe, ali mesmo, junto entrada do curral. Senhor Pedro comea, ao mesmo tempo em que faz a gentileza de tomar-lhe e segurar um dos baldes de leite , estou a pensar em casar-me com Maria das Dores e quero saber se concordas. Nis faiz gosto, s Manoel. Sorri em seguida. Estou a pensar num casamento rpido, sem delongas. Pra quando, s Manoel? Um ms, dois meses no mximo. E pensa em morar adonde? O senhor andejo, veve viajano... Penso em estabelecer-me em Cachoeirinha; tenho umas economias. Manoel sabe que o povoado tem muito futuro. Situado junto ao rio Doce, ponto de parada dos trens da Estrada de Ferro Vitria a Minas. A recente abertura de estradas de rodagem ligando-o a alguns municpios produtores de cereais, especialmente ao norte, do outro lado do rio, contribui para o comeo de sua transformao num plo mercantil, j que a estrada de ferro facilita a entrada e a sada de mercadorias. o lugar ideal para realizar o outro sonho o de ficar rico. O senhor podia morar aqui mesmo no stio, pra famia ficar toda junta. Com as suas inconomia pode comprar um gado separado, s seu, e trabai com nis na roa. Eu no tenho experincia com gado e nem com roa, ora pois, senhor Pedro. Isso coisa face, que aprende logo. 15

O jovem portugus fica em silncio. Acha melhor nem discutir a questo. Para uma pessoa como ele, que j andou meio mundo, acostumado a uma vida solitria, at impossvel ver problema em morar to perto. Por isso, d uma resposta evasiva: No bem o que eu estava a pensar, mas vou conversar com das Dores. E muda rpido de assunto. Aqui as pessoas no tm costume de rezar? De veiz em quando. Junta o povo e reza numa casa. Hoje mesmo, de noite, vai ter. Ah, mesmo? E onde ser? Gostaria de ir. Vai ser aqui perto. Eu sou catlico apostlico romano praticante; rezo toda noite. Isso bo, comenta Pedro. E sou tambm oblato beneditino completa, sem notar a compreensvel expresso de estranheza de Pedro, posto tratar-se da filiao de um leigo Ordem dos Beneditinos e de sua participao especial em certas cerimnias. tarde, fala a ss com das Dores. Ela j sabe que seu pai concordou com o casamento. E tu, queres? Quero. S num queria se mudar daqui. Numa cidade ou num povoado como Cachoeirinha ns temos mais futuro, ora pois, das Dores! A me morre se eu se mudar; ela falou. Mas Cachoeirinha fica ali! So apenas quinze quilmetros!... Nis num gosta de rua, Manoel. Ele d um sorriso, balanando a cabea como sinal de incredulidade. Achava que ia ter o apoio da noiva e, mais do que isso, o seu empenho, e no entanto, ouve isto! A notcia de que das Dores pode sair do stio aps o casamento causa grande impacto na famlia. Ela, alm de ser a nica filha, bem mais nova do que os trs irmos, cujas idades variam de 23 a 27 anos. Estas particularidades contriburam para que se tornasse o centro dos cuidados e afeies de todos, especialmente de Cndido, o irmo mais velho. Embora no te16

nham feito um acordo formal, esto todos imbudos do propsito de demover Manoel da idia de morar em outro lugar. Esperam o encontro da noite para discutir o assunto. ... Manoel se retira e vai ao quarto. Pouco depois surge na sala vestindo, sobre a roupa normal, uma capa de cor preta, sem mangas, que vai at os joelhos. Todos o olham com surpresa. Que ropa essa, Manoel?... indaga das Dores, exprimindo a perplexidade deles. No centro da sala, em postura altiva, orgulhoso, ele responde: uma opa, ora pois! Opa?... retorna ela. . O-p-a, opa, uma vestimenta da Igreja, para leigos, ora pois! Eles no entendem, mas no fazem outras perguntas. Quando chegam casa onde haver a reza, as pessoas ficam tambm surpresas. Chama opa cochicha das Dores para os curiosos. Durante todo o ato religioso ele o centro das atenes. Os presentes rezam de forma mecnica, pois esto mais interessados em ouvir seu sotaque, ou apreciar seu fervor, ou ver sua imagem com a opa atravs de olhares furtivos, ou por uma combinao dessas novidades. Quando retornam, a famlia envolve Manoel num processo de seduo para que se estabelea no stio. ... Num outro dia, Antnio, o mais novo, comenta de passagem: Nis num dexa a das Dor sair daqui no. Este comentrio alarma Manoel. O casamento corre risco, e viver ao lado de das Dores, agora, est acima de qualquer coisa. Percebe que est diante no de uma simples resistncia, mas de forte oposio. Acaba sucumbindo. "No se pode querer tudo de uma vez", diz aos seus botes, buscando consolo, e suspende por algum tempo parte dos planos que acalenta. Comunica noiva o que decidiu: Vou viajar para vender as mercadorias que restam; depois volto e nos casamos. Vamos viver aqui no stio. At quando, no sei. 17

A famlia fica aliviada e feliz.

Casamento... Aps trocarem a roupa do casamento, Manoel e das Dores saem da casa onde vo morar, aquela situada prxima de Pedro, e se juntam pequena multido postada diante das casas para participar dos festejos. Cndido se aproxima puxando o cavalo branco pela rdea. Aqui o seu cavalo diz, sorrindo. Manoel assusta-se. No imaginei que tu estavas a falar srio. Ainda sorrindo, Cndido completa: Comprei esta sela e o coxenil. Que beleza! Que beleza! O cavalo lindo, mas com aquele enorme coxinilho vermelho, de pele de carneiro, sobre a sela nova, forma um conjunto maravilhoso, admirado pelos presentes. Manoel no resiste, monta-o e d uma volta. Observa a cabea majestosa, sempre erguida, a crina alva, comprida e lisa, balanando com graa, qual uma onda, pelo longo pescoo. Sente a marcha macia e observa a pronta resposta ao mnimo contato da espora. Muito obrigado, Cndido, muito obrigado! agradece efusivamente ao apear. Alm de belo, timo! A noite de npcias completa a realizao dos dois. Terrivelmente apaixonados, entregam-se de corpo e alma. Os desejos, insaciveis, no lhes permitem dormir. De madrugada, meia-luz do lampio, das Dores levantase. Sai do quarto e da a pouco reaparece porta e pra. Manoel fica atordoado com a imagem. Nos cabelos soltos e desdenhados, sem fita e sem flor, nos olhos serenos de nsias atendidas, no corpo envolto pela camisola branca, da menina-moa que acaba de se tornar mulher, a natureza exibe todo o seu brilho. Ele se levanta devagar, sem desviar dela os olhos, vai ao seu encontro, olha-a enlevado por alguns segundos e a reconduz carinhosamente para a cama. Deita-a com cuidado e, sob o lampio, os dois se olham por um longo tempo. No dizem nada, e nem precisam dizer, mesmo porque, em momentos assim, as palavras so vazias, so apenas sons que se perdem no espao. Os sentimentos, em sua essncia, espe18

cialmente estes, de pura paixo, so inexprimveis... indescritveis... No mximo, apenas tangenciando o que se passa, pode-se dizer que, nesse estado, tanto faz, para os dois, se a Terra gira em torno do Sol ou vice-versa, se a vida tem fim ou eterna, se sero ricos ou pobres. Estou a sonhar ou verdade? murmura ele, com voz terna, depois de muito tempo contemplando sua to querida esposa. Das Dores sorri docemente. Em seguida eles se amam de novo, desta feita com delicadeza, para que as almas possam se juntar.

O ApelidoCasamento rpido comum na regio, e a vida dos recm-casados previsvel; mas com uma pessoa de outra nacionalidade uma incgnita, seja ali ou em qualquer lugar do mundo. Agora, na convivncia, o portugus ser conhecido tal como . Para ele, a esposa uma ddiva de Deus. E como entende que casamento feliz aquele em que a esposa feliz, desdobra-se em atenes para com ela. Resignado com a pedra que o destino colocou no caminho do outro sonho, o de ter o seu comrcio num centro urbano, trata de facilitar a sada quando a pedra for removida. Compra gado e grava nele sua marca pessoal, constri uma pocilga prpria e toca a roa em conjunto com a famlia. Esfora-se por aprender e integrar-se s atividades do stio e aplica nelas toda a sua grande fora fsica. Sua disposio para o trabalho tal que enche de orgulho os sogros e cunhados. Participa das rezas aos domingos, vestido sempre com a opa, e logo est liderando o pequeno grupo de praticantes. Julga que precisam de um templo e comea a visitar fazendeiros, sitiantes e trabalhadores rurais para se unirem na construo de uma igreja. Numa das fazendas, depois de expor suas idias, ele passa por uma experincia que ser um marco em sua vida e na sua descendncia. O fazendeiro, a certa altura, argumenta: S Manoel da opa... O portugus sorri com o tratamento. a primeira vez que o ouve e fica de tal 19

modo encantado que no presta ateno pergunta que se segue. Num tem tanta gente assim pra encher uma igreja, o senhor num acha? "Manoel da opa... Manoel da opa...", repete mentalmente, com um meio sorriso e a cabea erguida para o teto, apreciando a sonoridade, enquanto o fazendeiro, a esposa e os filhos aguardam a resposta. Como esta no vem, o fazendeiro insiste: O senhor num acha? ... O apelido "Manoel da opa" j se espalhara pela regio sem que ele soubesse. Para algumas pessoas era um trato natural, uma forma de identific-lo com preciso; para outras, que consideravam aquela vestimenta um espalhafato, tinha o tom de deboche. O projeto da capela mais bem aceito pela comunidade, e sua construo fica marcada para o incio de 1935, quando acabarem as chuvas. O local escolhido o stio da famlia de Pedro Horcio da Cruz.

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Captulo 3 - Paixo AtormentadaNascimento de Joman, o caso extra-conjugal do seu pai, os dramas dentro da famlia. (Informao: Trs ponto (...) entre pargrafos indicam que outros pargrafos foram retirados; no comeo ou final de pargrafo indicam que textos foram retirados daquele pargrafo)

A Famlia CresceO jovem casal vive a expectativa da vinda do primeiro filho. Decorridos mais de quatro meses do casamento, a notcia chega para Manoel na noite de 24 de dezembro, aps sua volta de uma reza de Natal, dada de modo cndido por das Dores: T esperando um nenm. Ele, que acaba de chegar e entrar em casa antes de desarrear o cavalo para tirar a opa e vestir uma capa, j que foi apanhado no caminho por uma fina e persistente chuva, fica alguns segundos mudo e quase sem flego, fitando a esposa. Tu tens certeza? pergunta finalmente. Das Dores, de p a pouco mais de um metro, balana a cabea e sorri alegremente. Manoel se atira, abraa-a riem ambos , ergue-a presa pela cintura, d um giro no ar e exclama exultante: Vou ser papai! Vou ser papai! Em seguida olha-a enlevado, ainda envolvida pela cintura, e retoma: A Virgem Maria me ouviu, ela sempre me ouve. Ao dizer isto exibe aquele brilho nos olhos, prprio das pessoas que acabam de ter confirmao da sua f. A Santssima me ouviu, podes crer, das Dores! Ela manda o sinal agora, na noite do nascimento do menino Jesus, e depois da reza! No de impressionar? ... Mas para haver batizado preciso existir a capela. E a sua construo, 21

que foi adiada por causa das chuvas, precisa comear j. Lidera a comunidade num mutiro para a obra. ...O local escolhido bem em frente casa de Manoel e do outro lado da estrada. ... No incio de agosto, antes de completarem um ano de casamento, sua esposa entra em trabalho de parto, um parto laborioso, demorado, no qual ela sente tantas dores que chega a pensar que vai morrer. Manoel acompanha o desenrolar, sob intensa angstia, e com preces permanentes Virgem Maria, na capela, aos ps da imagem santa, ou junto ao leito. Num dos momentos de maior desespero, quando est na capela, faz uma promessa pela vida da esposa e da criana. Suas splicas so atendidas e a criana nasce, nasce berrando, aparentemente em protesto pela demora. um menino saudvel, que enche o pai de orgulho porque o rosto, a despeito de amassado em algumas partes e inchado em outras, tem muitos traos seus. Na primeira vez que o jovem casal conversa sobre o nome do menino, o orgulhoso pai diz o que tem em mente: Estou a pensar em Manjo. Explica que o nome resulta da fuso das duas primeiras slabas do seu nome e do de seu pai, que se chamava Joaquim. Manjo?... Isso num nome de minino no. Home chama Z, Antonho, Pedro, Man, quer dizer, Manoel, Quinzim... Manjo? Eu c nunca vi!... Ele insiste, diz que uma homenagem que presta a si e a seu pai, mas a esposa continua achando inapropriado. A idia de dar o nome 'Manjo' antiga. Ainda no Rio de Janeiro, ouviu um dilogo em que uma pessoa a certa altura indagou outra: 'Voc manja disso?' para saber se ela entendia de um dado assunto. 'Manjo', foi a resposta. Manoel encantou-se no apenas pela unio das slabas, mas pelo seu significado, de uso apenas no Brasil. 'Manjo, Manjo, Manjo, Manjico...', repetia ele, de quando em quando, deliciando-se tambm com a sonoridade. Acabou decidindo que, se um dia tivesse um filho, lhe daria esse nome. Maria das Dores pede a ajuda da me, pois percebe que est difcil mudar a cabea do marido. O pai e os irmos tambm entram no assunto, mas o impasse perdura durante algum tempo. resolvido quando apelam 22

para Jos Vtor, seu nico amigo, e cujas opinies ele leva em conta. Manoel da opa, a gente tem de arrespeitar os mais vio comea o amigo, com um argumento previamente estudado. O respeito tem de ser premero com seu pai. Chama o minino de Joman. ... Agora tempo de cuidar do batizado. Manoel lidera um movimento na comunidade que leva um padre pela primeira vez quela regio. Depois de benzer a capela, ele reza uma missa, e quando recolhe os nomes completos das crianas para os batismos Manoel, sem consultar ningum, dita: Joman de Oliveira Opa. Jos Vtor e a esposa Matilda, tratada por Tilda, so escolhidos para padrinho e madrinha, a maior prova de amizade que se pode dar. No momento em que o menino est sendo batizado que das Dores toma conhecimento do sobrenome Opa. sada da capela, com o filho no colo, ela exprime seu desagrado: Isso nome da capa, num nome de gente, Manoel. Ele d seus motivos: Quando Joman estava para nascer, cheguei a pensar que tu e a criana iam morrer. Ento eu fiz uma promessa Virgem Maria: se tu e ela se salvassem, todos os meus filhos receberiam o sobrenome Opa. E graas a essa promessa que estamos todos juntos e felizes aqui hoje. Surpresa com a revelao, a jovem mulher desanuvia o semblante e comenta: Intonces o nome t bem dado. ... Das Dores d luz uma menina em julho de 1936, quando Joman tem onze meses. Se por um lado isto a deixa alegre, porque ansiava por uma filha, por outro aumenta suas preocupaes com o menino. Ele est dando os primeiros passos, muito ativo e exige cuidados para que no se machuque. ... O crescimento da famlia o leva a pensar em ganhar mais dinheiro. ...Aps algum tempo de observaes, constata que o arroz dos itens que mais pesam nas compras que fazem em Cachoeirinha, posto quase ningum plant-lo nas redondezas. Vislumbra a a alternativa que procura. Conversa sobre o assunto com o compadre. 23

Arroiz tem de ser ni terra incharcada comea Jos Vtor explicando. Agora, que bo, bo. Se arranjar uma terra boa, vende tudo por aqui mesmo. Tu sabes de alguma? Eu c sei, s num sei se o dono vende. Ele planta arroiz s num pedao, mas num todo ano no. ...

Florinda, a Tentao... Estou a pensar em plantar arroz comea Manoel , e o senhor tem aquela vrzea que me interessa. O senhor a vende? Vendo no. Preciso dela pra isso mesmo. Mas estou a ver que ela quase no tem uso... Mas eu c num vendo no. As veiz o senhor arrenda ela sugere Jos Vtor. O velho aceita discutir o arrendamento, e eles chegam a um acordo. O direito de uso ser de cinco anos, e Manoel pagar uma pequena importncia depois de cada colheita. Ele precisa de trabalhadores com experincia no cultivo do arroz. Aproveita a oportunidade para saber se os encontra por perto. Tem uns agregado a que intende informa o fazendeiro. Depois de receber as indicaes de duas casas, os compadres vo at l. Na primeira mora Zeca, um homem forte que, ao ser inquirido se quer o trabalho, mostra logo ser de poucas palavras. Quanto que oc paga? Dez tostes por dia, est bom? T no! responde rispidamente. Vou por mil e quinhentos ris. ... Na casa seguinte, encontram dois irmos negros uma moa, Florinda, e um rapaz, Abidias. a jovem que toma a iniciativa da conversa. Diz que a vrzea muito frtil e que ele, Manoel, vai ganhar dinheiro l. Ao falarem do salrio ela informa: Aqui nis trabaia por mil e quinhento os home e mil as mui. 24

Manoel olha para o compadre e balana os ombros. Est bem. Vamos comear logo. J t passano da hora adverte a jovem. Tem de prantar em outubro pro mode que ni dezembro l enche de gua. Vo os dois? Os dois. Tamo parado mesmo de novo, ela. Ento fica combinado para segunda-feira. A jovem ainda faz recomendaes sobre as ferramentas necessrias no comeo. Os dois voltam casa do tal de Zeca e seu servio contratado tambm. A caminho de casa, Manoel comenta: Que negrinha esperta! voc viu, compadre? Ela danadinha. E sada... vai falano e resorveno. E sabe o que fala. ... Devido distncia, para no perder tempo nas idas e vindas dirias, resolve fazer o trajeto no seu gil cavalo branco. Na segunda-feira ele chega cedo, entrega as ferramentas aos trs trabalhadores que j o esperam, tira o arreio, guarda-o na palhoa e pe o cavalo para pastar nas proximidades. Na volta indagalhes sobre a melhor forma de tocar o servio. A jovem toma a dianteira: Tem de comear capinano essas parte rala daqui e roar aquele mato l, e despois arrancar os toco diz ela, mostrando com gestos. Nis divede: uns capina, outros roa e tira os toco. preciso arrancar os tocos?" pergunta Manoel. Percisa volta ela , pra mode passar o arado, e num atrapai nis quando tiver cheio dgua. Vai ter que cunsertar aquela barrage l aponta para um amontoado de terra numa extremidade do terreno pra segurar a gua, porque arroiz gosta de gua no p e sol na cabea. Manoel examina a rea com os olhos, ao mesmo tempo em que pensa, admirado, no interesse e na boa vontade que a jovem demonstra. ... Manoel tenta raciocinar, mas no consegue seus olhos ficam fixos na 25

jovem. Ela espera a resposta, mas, ao notar seu olhar insistente, abre um sorriso matreiro, alegre, que exibe dentes alvos e olhos que brilham qual nix lapidado. Os cabelos crespos e a face graciosa completam a imagem que parece hipnotiz-lo. Os olhos de Manoel escorregam pelo corpo abaixo, passando pelos seios fartos e firmes, a cintura delgada, o quadril bem torneado, a pequena parte das pernas que o vestido longo, de chita, permite ver, e chegam aos ps rudes, fortes, que calam chinelos toscos. Ele se esfora, desvia os olhos e, ainda sem conseguir raciocinar, responde de modo automtico: No me parece mal. Vamos. Florinda toma a dianteira e ele volta a fixar os olhos no corpo que caminha sua frente, exibindo um traseiro ondulante. Pela cabea passam-lhe pensamentos obscenos. Faz o sinal-da-cruz. 'Santssima, por que tenho de aspirar sempre mais?', indaga com certa tristeza, lembrando-se do quanto feliz e realizado com a esposa. Os dois comeam a capina lado a lado, e de vez em quando ele lana um rpido e furtivo olhar sobre a jovem. O balano daquele corpo, quando ela bate com vigor a enxada no solo, parece-lhe um estremecimento de prazer. Faz o sinal-da-cruz vrias vezes. 'Santssima, por que tenho de aspirar sempre mais?' ... Tenta pensar no stio, no servio que o aguarda quando chegar depois das quatro horas da tarde, e se distrai um pouco. E, sem perceber, aquele sorriso matreiro lhe vem mente, como um retrato. ' uma praga!' Faz o sinal-da-cruz. 'Santssima...' ... No demora, aqueles seios fartos e firmes se agitam na sua mente. 'Maldio!' Faz o sinal-da-cruz. '...por que tenho de aspirar sempre mais?' Rememora sua chegada ao stio pela primeira vez e se distrai com o encantamento que das Dores lhe causara. Lembra-se de detalhes, inclusive dos momentos em que ela tirava os chinelos e pousava sobre eles os ps delicados. E ento lhe vem mente a imagem dos ps rudes que compem a beleza selvagem desta jovem, beleza de fmea em cio permanente, espera de um homem, macho como ele. 'Sai, Satans!' 26

O pobre homem passa a manh nessa luta interna. ... Na mesma tarde vai para a capela e comea a expiar seus pecados. Dobra as calas at acima dos joelhos, derrama caroos de milho no cho, ajoelha-se sobre eles, estende os braos para os lados em forma de cruz. ...Virgem Santssima, perdoa os meus pecados e me livra dessa tentao... e prossegue, diante da imagem santa adornada por jarros de flores plantadas e colhidas pela esposa. ... Que que isso, s Manoel? indaga ela, simulando surpresa, ao mesmo tempo em que faz um movimento para juntar seu corpo ao dele. Qual um garanho possesso, ele a deita sobre o coxinilho e a possui freneticamente. Agora eu s sua diz ela, um tanto enigmtica, com voz relaxada, quando descansam. ... A certa altura, diz ele a Florinda: Estou a pensar num lugar seguro para nos encontrarmos. Eu c sei de um... Qual, qual? Hoje, quando nis acabar, vou na frente na tria e espero o sinh. ... Mas, como nem tudo so flores na vida, num dos encontros a jovem negra faz uma revelao. S Manoel, o Zeca t discunfiado... Por qu? Eu c num seio... Acho que pro que num t querendo mais abrir as perna pra ele. Tu tinhas um caso com aquele gajo? Ela balana a cabea. E j o largaste? Ela demora um pouco, mas volta a balanar a cabea. Quando o largaste? Despois que eu c conheci o sinh. Manoel fareja problema no ar. Os dois esto sentimentalmente ligados e existe um homem mordido de cimes no meio. Pensa em tomar uma providncia qualquer, para afastar um eventual perigo, mas, como si acontecer 27

na maioria dos casos, fica apenas na inteno. ...

Tocaia... E nesse astral to elevado que, subitamente, Zeca, de tocaia numa curva, aparece com um porrete de mais de metro de comprimento e, antes que Manoel entenda o que se passa, aplica-lhe uma bordoada nas costas, mais para o lado do flanco esquerdo. Com o susto e a pancada, ele solta a rdea, ao mesmo tempo em que toca o ventre do cavalo com a espora. O animal dispara. Desequilibrado, meio de lado, com os ps fora dos estribos, tenta acertar o corpo segurando-se no cabealho da sela e na longa crina. No consegue, percebe que vai cair. Decide pular para evitar uma queda pior e o atropelo. Salta, mas assim mesmo cai desengonado, esparramando-se e revirando-se no solo duro e em pequenos arbustos beira da trilha. Quando consegue se situar no espao e comea a ajeitar o corpo, Zeca chega correndo com o porrete. Numa frao de segundo Manoel percebe que sua cabea ser partida. Faz um esforo extremo, d um salto e intercepta o golpe. Os dois caem, Manoel fica por baixo e, quando sente que a fora de Zeca est superando a sua pela posse do porrete, mantm a mo esquerda fazendo resistncia, e com a outra, num movimento rpido como o raio, puxa a faquinha da cintura e aplica-lhe um golpe no pescoo. O sangue esguicha. Num primeiro momento, os dois se olham, perplexos, segurando o porrete, agora sem fazerem fora. Em questo de segundos, Zeca tomba ao seu lado, enquanto o sangue continua a jorrar. Aturdido, exausto, dodo, Manoel ergue-se com dificuldade. Ao ver a cena de p, fica desesperado e, mancando um pouco, caminha em torno de Zeca. Ai, ai, Virgem Santssima! O que foi me acontecer?! Ai, ai, ai, meu Deus! ai, ai, ai. Faz o sinal-da-cruz repetidas vezes. O sangue que continua a jorrar forma uma grande poa. Zeca ainda se remexe, se estrebucha, depois pra. Manoel, em crescente desespero, bate a cabea contra o tronco de uma rvore vrias vezes, enquanto lamenta: Ai de mim! Ai de mim! 28

... Compadre, compadre! grita ao chegar. Segundos depois a porta se abre, Jos Vtor aparece com uma lamparina na mo, logo seguido pela mulher e dois filhos pequenos. Cumpadre Manoel, oc? indaga, afastando a lamparina para o lado, para enxergar melhor. Sim, sou eu. Oc aqui essa hora?... Acaba de chegar. No, obrigado responde, contendo a aflio. Eu ca do cavalo e estou ferido. Intonces apeia, cumpadre! insiste Jos Vtor com aquela sua voz afvel e cadenciada. No, obrigado. Eu s queria que me acompanhasses at em casa porque estou a sentir muitas dores. ... Continuam a conversar e, quando chegam trilha principal, Manoel pede que o amigo pare. E todo o seu desespero vem tona. Aconteceu uma coisa terrvel compadre, ai, ai, ai, terrvel!... O Zeca, aquele gajo que trabalhava para mim tentou me matar. E eu acabei por mat-lo! Ai, ai, ai! Num diga, cumpadre!... Ai, ai, ai, compadre, o que vai ser de mim? Por que havia de acontecer logo comigo? Ai, ai, ai. E continua a se lamentar. Alguns segundos aps o impacto Jos Vtor retorna: Acarma, cumpadre. Me conta cumo que foi. ...

Podia Ser Um PesadeloEm casa Manoel encontra das Dores aflita. Fala-lhe rapidamente da queda e evita expor-se a uma claridade maior. Oc t machucado? No a ponto de que te preocupes. Preciso apenas que me arrumes um pouco de gua com sal para passar depois do banho. Pega rapidamente uma ceroula limpa, um lampio e vai para o crrego. Lava-se bastante, depois lava a roupa, que tem ainda muito sangue. ... 29

Deita-se, mas no consegue dormir. A cena, com todo o seu horror, passa e repassa pela sua mente a sbita bordoada, o cavalo em disparada, ele pulando, Zeca sua frente com expresso de dio, o porrete erguido com as duas mos, a luta e, de repente, o sangue esguichando. 'Podia ser um sonho... um pesadelo...' uma noite infernal. 'Nem rezar consigo', constata com arrepios. Os tormentos so tais que comea a duvidar at de Jos Vtor. 'Para que fui lhe contar? Agora minha vida est nas mos dele!' Manoel o criminoso! Manoel o criminoso!, grita repetidamente a turba liderada pelo compadre. Um soldado marcha frente. 'Podia ser um sonho... um pesadelo...' ... Em casa, Manoel pega Joman no colo, aproxima-se do compadre e diz ao filho: Pede a bno ao padrinho. O garoto estende a mo direita. Bena, padim. Deus te abenoa. T cada veiz mais isperto, hein? Est a falar qual um papagaio comenta Manoel. Artero, que s ele atalha das Dores, em tom de queixa, enquanto serve o caf. D trabaio o tempo todo. Mexe ni tudo. Criana assim mesmo, cumadre. ... Decorridos trinta dias da tragdia, ele procura a viva. Precisa saber como est vivendo e o que pensa. Estou triste com a morte do seu marido comea Manoel. Ele tava com muita raiva do sinh... diz ela levantando suspeita. Pro mode qu? Ele se assusta e arregala os olhos. No sabia, minha senhora responde, gaguejando ligeiramente. Ficam em silncio. Ele retoma, inventando uma justificativa: Um dia reclamei que ele estava lento no trabalho. Talvez esta tenha sido a razo. Ele se aborrecia com pouca coisa. Mais um curto silncio, e continua: A senhora deve estar a passar dificuldades... 30

T difice mesmo. Os minino to piqueno. Estou a pensar numa maneira de ajud-la. Afinal, seu marido trabalhou para mim at uma semana antes. Eu c preciso de trabai pra d de cum pras criana. A senhora pode trabalhar no arrozal, no lugar do seu finado marido. At a ocasio dos servios vou lhe pagar mil ris por semana para a senhora olhar o arroz que est guardado na palhoa. Aquele arroz vai servir de semente para o prximo plantio. Queres? Eu quero, uai! Manoel a conduz palhoa e sai de l satisfeito. ...

Definitivamente LigadosNa primeira vez que ele e Florinda ficam juntos no relvado, aps toda a tragdia, a jovem est um pouco calada. O que tens, minha boneca de bano? indaga a certa altura. Minha doena do meis num veio... No veio?... D um meio sorriso e exulta em seguida. Ento vou ser papai de novo? Que maravilha! Florinda se assusta com esta reao. Ela esperava um xingatrio, o abandono, ou, na melhor das hipteses, uma indiferena. Leva alguns segundos para se recuperar e d, por fim, um sorriso meio amarelo. Ser menino ou menina? volta o entusiasmado portugus, deitado ao lado, cotovelo na grama, cabea apoiada na palma da mo, sorrindo. O que tu achas? Eu c num seio replica, ainda sem participar da animao dele. T priucupada.... No te preocupes. No vou te deixar faltar coisa alguma. Vou registrar a criana! conclui, olhando-a, torcendo para que o sorriso franco volte. Eu c t com medo. No h motivo para temeres. Apenas no vamos dizer que a criana minha. Faz uma pausa. ... ... 31

Entretanto, quando o ventre de Florinda se avoluma, circula pela comunidade, boca pequena, que Manoel o pai da criana. Circula tambm uma conversa de que ele d uma ajuda financeira viva do Zeca. Um sujeito, conhecido por sua maledicncia, comenta com todos que encontra: O Manoel da opa um trem doido. D conta de treis mui e ainda trabaia que nem um burro de carga. Os comentrios ganham mais fora na poca de preparo da vrzea e do novo plantio do arroz. Ele contrata mais dois homens e destina s duas mulheres servios leves. A viva, que tambm est grvida, e Florinda gozam de privilgios: podem ir em casa quando precisam, no sendo necessrio avisar a quem quer que seja. A viva abusa da permisso, enquanto Florinda raramente se afasta do servio. As relaes dos trs cunhados com ele azedam. No incio passaram por cima dos rumores de que Manoel tinha um caso com Florinda. Mas agora diferente: ela carrega um filho e, para piorar, existe outro caso com a viva do tal de Zeca. Os trs irmos articulam um encontro com ele no stio, em local mais afastado, sem avislo, e cada um d seu recado. ... A vida continua, e a comunidade vive a expectativa do nascimento da criana.

Separao na FamliaEm dezembro de 1937 Florinda d luz um menino, e a notcia corre rpido. um mulato que tem a cara do Manoel da opa cochicham, em tom de fofoca. ... Nesse mesmo dia, Manoel e dois trabalhadores esto, como nos demais dias dessa poca, ocupados nas tarefas de arrancar ervas esparsas que resistiram inundao da vrzea, em controlar a vazo da gua e desobstruir reas para garantir uma irrigao uniforme. tarde, quando se prepara para ir embora, Manoel indaga a Abidias, um dos trabalhadores, como esto 32

passando Florinda e a criana. To bem responde timidamente, como seu jeito. Quero que me digas se est a faltar alguma coisa. T no. Faz uma pausa e balbucia: Meu pai... no conclui. Teu pai, o qu? Ele... volta vacilante ele t triste pro causa das coisa ruim que o povo t falano... Manoel sente um aperto no corao. desnecessrio fazer mais perguntas ao jovem e humilde Abidias. Ao voltar para casa, toca o cavalo em passo mido. Imagina que Florinda tambm sofre humilhaes e sente-se responsvel. Pensa no futuro do filho que ainda nem conhece , criado em tais circunstncias. Precisa encontrar uma sada para esse problema. ... No dia seguinte, quando est escurecendo, Manoel, j de volta, antes de chegar ao stio, pega outra trilha que tambm leva regio onde mora Florinda. Chega casa dela quando j noite. A primeira coisa que faz pedir para conhecer o filho. Florinda o tira de um balaio, suspenso por cordas amarradas ao madeiramento do telhado. Manoel, assentado, recebe a criana e a pe no colo. Sua emoo no expressa em palavras, mas no longo silncio de embevecimento em que fica olhando para o beb, sob a luz de uma lamparina. Depois informa a todos: Estou a pensar que preciso sair daqui. O melhor lugar que encontrei perto de Itanhomi. O que acham? Eu c acho que vai ser um discanso responde Chico, pai de Florinda. Ento, preparem-se. Depois de amanh, antes do sol nascer, estarei aqui com a tropa para levar a mudana. Prossegue a viagem para casa, pela outra trilha, usada habitualmente. Sua chegada um alvio para das Dores que, contudo, no ousa indagarlhe o que planeja. Teme ouvir do marido que sua deciso seja ir-se embora. ... A comunidade toma conhecimento da mudana de Florinda, porm de forma distorcida. E a notcia corre. O Manoel da opa largou a das Dores! comentam uns com os ou33

tros, excitados, naquele estado prprio das pessoas que se deliciam com a desgraa alheia. Como em qualquer comunidade do mundo, nesta tambm existem os que querem ver o circo pegar fogo. Especialmente se o fogo est atingindo gente bem-sucedida, seja em que rea for. Um peo, ao cruzar com Cndido na estrada, no mesmo dia, comenta, jogando lenha na fogueira: Que coisa, hein Cndido! o Manoel da opa t to cado pela Florinda que foi simbora levando int a famia e a mudana dela, numa tropa de todo o tamanho. ... Sei no... Acho que num carece. Ele vai vortar replica das Dores. Vortar?... retorna Cndido, indignado. Ser que a minha irm num tem vergonha? E d um ultimato, gritando: Se ele vortar argum dia e oc quiser ele, eu vou simbora, t avisada. Se oc num tem vergonha, eu c tenho. J avisei e t avisado! Das Dores comea a chorar. Mame! Mame! exclama Joman ao lado. Mam! Mam! faz coro Belma. ... Manoel, por outro lado, est viajando com a famlia de Florinda. Ela vai montada num cavalo com a criana, a me no outro. O irmo e o pai seguem caminhando. A mudana vai nos animais de carga. Ao fim de dois dias chegam a uma fazenda perto de Itanhomi, cujo proprietrio, chamado Tonico, concordou em acolher a famlia numa pequena casa que est desocupada. Manoel fica ali trs dias, durante os quais toma providncias para que se sintam acomodados e seguros. Deixa-lhes uma quantia em dinheiro e avisa que periodicamente enviar mais. Combina com Tonico para que este lhes preste assistncia nos primeiros dias de adaptao. Seis dias depois de ter sado do stio, est de volta. Nesse perodo, as trs cunhadas se revezaram em permanente companhia a das Dores. Ela, que sabe a falta que o marido lhe faz, recebe-o com alegria, mas tambm com preocupao. Manoel, num sai de casa no, o Cndido t muito arrevortado. 34

O que est ele a dizer? Aps alguns segundos de silncio, responde baixinho: Falou em te matar... Despois em ir simbora. Ele acha prudente seguir a advertncia da mulher. Cndido cumpre a promessa. Ao ver que o cunhado voltou e foi recebido pela irm, monta um cavalo e vai a Cachoeirinha. Aluga um caminho, volta e pe nele a mudana e a famlia. Segue para Figueira do Rio Doce. ... ... A assistncia financeira a Florinda dada mensalmente, de modo sigiloso, por intermdio do compadre Jos Vtor, que atua como portador. Ele traz, naturalmente, notcias de Florinda e do filho. E as notcias, sempre boas, aumentam a saudade que Manoel tem deles. Isso o leva a idealizar uma forma de assisti-los pessoalmente, sem causar constrangimentos a das Dores e a sua famlia, e, de quebra, ganhar mais dinheiro: comprar caf na regio e revend-lo em outra. Em maio de 1938 nasce Peri, nome dado em homenagem a Pedro, o sogro, e Risoleta. O sobrenome tambm Oliveira Opa. ... A essa altura Joman est com quase trs anos, tem uma atividade impressionante e recebe as primeiras chineladas Pra aprender a obedecer, diz das Dores. Curioso, mexe em tudo que est a seu alcance e faz perguntas incessantes. O pai responde a todas, mas a me tem pouca pacincia para isso. Inicia-se uma luta entre me e filho, um desses embates em que os dois lados saem perdendo.

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Captulo 4 A LutaComea uma luta entre o ativo Joman e sua aflitiva me. A dinmica do ncleo familiar. O autor faz reflexes sobre a dinmica da famlia. (Informao: Trs ponto (...) entre pargrafos indicam que outros pargrafos foram retirados; no comeo ou final de pargrafo indicam que textos foram retirados daquele pargrafo)

Punies Fsicas e Represses que se ConsolidamA despeito de achar que sua dedicao aos filhos pode estar comprometendo o convvio com o marido, das Dores no muda neste particular. Ao contrrio, os zelos aumentam de tal modo que se tornam atormentados. Receosa de que se machuquem, ou adoeam, ela os mantm o tempo todo sua volta. Risoleta participa desses cuidados, muitas vezes at cobrando maior vigilncia da filha. A vontade de das Dores manter o filho e a filha mais velhos confinados em casa e no quintal delimitado por cerca de madeira; ou, no mximo, permitir-lhes ir casa dos avs, ou brincar na frente das duas casas, sob seu olhar vigilante. Por outro lado, a vontade de Joman exatamente o oposto: quer explorar o mundo ao seu redor. Ele parece uma pequena tocha, de combustvel inesgotvel. ... Os dias na casa de Manoel so entrecortados por gritos nervosos de das Dores e choro de crianas, especialmente de Joman. ia o que oc feiz, seu artero! grita ela um dia em que o garoto derruba a prateleira da cozinha, esparramando vasilhas, ao tentar subir para alcanar um doce. E completa a reprimenda com algumas chineladas. Oc muito malvado queixa-se das Dores, em outra feita, tomando-lhe uma boneca de pano que ele acabara de pegar, depois de puxar os cabelos da irmzinha. 36

Oc num tem cabea, no? pergunta, irritada, outro dia, quando ele entra em casa triunfante, segurando pelo pescoo uma galinha que se debate. Sorta ela, disalmado! grita, aplicando-lhe em seguida uns tapas na mo. ... Encontra-o trepado numa goiabeira a pouco mais de um metro do cho. Num tem jeito, oc num me obedece mesmo; veve me passano susto diz, entre aliviada e irritada, aos gritos. Tira-o com certa violncia e ali mesmo aplica-lhe vrias chineladas, dizendo coisas como Com oc s amarrado, muleque dimais, Toda hora desobedece sua me e sua v, sem dar ouvidos ao seu choro. Em casa a av completa as reprimendas: Joman, Joman, oc pode cair da arve e quebrar o brao. Pro mode qu oc num obedece? Qualificaes de arteiro, mau, desobediente, esto definitivamente associadas ao pequenino Joman. Contudo, as depreciaes, palmadas e chineladas so insuficientes para apagar aquela tocha, at que ocorre um fato mais dramtico, pelo menos na viso de das Dores. ... Quando Manoel assiste a essas cenas, mostra-se condodo e pede pacincia mulher. Com este muleque artero num tem jeito, s cortano no coro responde invariavelmente. Ele, sempre que pode, leva as crianas roa e, enquanto trabalha, elas se esbaldam por ali. noite, depois que as crianas dormem, das Dores tem sossego. quando se volta para o marido, meiga e atenciosa, como era, o tempo todo, antes do nascimento de Joman. at capaz de sustentar um dilogo sensato. Manoel quase sempre espera essas ocasies para conversarem. Tem esperana de que a mulher mude com os filhos. Em uma dessas oportunidades retoma o assunto, uma vez que naquele dia ela aplicara uma surra no garoto por um motivo banal. Teus medos e aflies esto a prejudicar as crianas. Precisas mudar, das Dores, deix-las mais livres... comea. 37

Eu c acho que se acontecer arguma coisa com quarquer um eu indido. s vezes fico a pensar que na tua cabea e na de tua me s existem as crianas em perigo. Ela fica em silncio, um silncio de assentimento. J me disseram que quando eras criana ela tinha as mesmas aflies contigo. Num alembro... E que quando eras crescida, tu s ficavas dentro de casa. Isso eu alembro. Tu ests a repetir o que ela fez. E as crianas esto a ficar medrosas como tu. Eu queria tanto ser dispriucupada, Manoel... Oc num sabe cumo que eu fico cansada... Imagino... Os fio d muito trabaio. Quando criados com aflies. Sem aflies um trabalho normal, ora pois! ... Falano assim parece face, mas aminh... retorna ela, a indicar que existe uma diferena entre pr em prtica o que lhe sugerido e o que consegue fazer. De fato, na manh seguinte est ela com o Num faiz isso!, Fica queto!, Num sai no!, Cuidado!, Se num obedecer apanha! As palavras de Manoel ficam no vazio. E ele perde a f naquela mudana por parte da esposa. A luta entre me e filho comea a ser perdida por este, e antes dos cinco anos o ativo e intrpido Joman est com a aparncia da luz de uma vela prestes a se apagar. Ele quase no sai e at ajuda a me nos afazeres domsticos. Outrora falante, passa a maior parte do tempo calado. Quando aparece alguma visita, pede a bena, tal como a me o ensinou, responde s perguntas com monosslabos, encosta-se a uma parede e, de boca aberta, acompanha as conversas. Fica de tal modo absorto que escorre saliva pela boca, molhando a camisa. Vez por outra, das Dores o repreende na frente das visitas: Fecha a boca, Joman! 38

Ele obedece. Mais alguns minutos e est babando de novo. Que futuro aguarda esse garotinho?

HiatoParece que a meiga das Dores transformou-se numa megera e que Manoel um fraco. Mas isso, talvez, no corresponda realidade. A descrio sucinta dos acontecimentos que envolveram o pequeno Joman, transformando-o de menino ativo em uma tnue luz de vela, deixou de fora elementos importantes para um julgamento justo. Por isso, necessrio colocar pingos em alguns is. E, por fidelidade aos fatos, preciso destacar que das Dores movida por um cuidado em relao aos filhos que surte resultado naquilo que a fonte de suas preocupaes: a sade fsica deles. ... So cabveis algumas reflexes sobre Manoel tambm. Primeiro, lembrando que o seu grande amor pela esposa, associado crena de que casamento feliz aquele em que a esposa feliz, tornou-o uma pessoa extremamente dedicada. No se sabe como essa crena surgiu; provvel que tenha sido como a maioria: transmitida subliminarmente de modo voluntrio ou no , no quotidiano. E seu pai pode ter desempenhado papel importante neste particular. ... Com respeito ao pequeno Joman, conveniente tornar claras algumas coisas que esto implcitas. O convvio com a me apresenta uma ambivalncia. De um lado, das Dores transmite-lhe os medos que tem, reprime fora sua natureza ativa, sobrecarrega-o com julgamentos negativos; de outro, volta e meia tem um carinho para dar, em atos e palavras. Uma segunda ambivalncia implcita encontra-se no ncleo da famlia, na me e no pai. Das Dores, sempre preocupada, cerceia-o pela fora; Manoel, com sua pacincia sem limites, d todo o espao que pode e mostra claramente seu desacordo com algumas condutas da esposa. De modo inverso, ... 39

Voltam as BarreirasEm maro de 1941 Manoel recebe uma notcia ruim do fazendeiro dono da vrzea. Este lhe diz que, depois da colheita, completados os cinco anos de arrendamento, quer o terreno de volta. "Como ser daqui para frente?", indaga-se com uma ponta de temor, e com razo. Ele d dinheiro com regularidade para Florinda e, de quando em quando, viva de Zeca. A perda dessa renda com o arroz inverte as perspectivas: ele que vinha tendo sobras, e aumentando o gado, corre o risco de passar a ter faltas, de se descapitalizar. Como evitar que isso acontea? E como fica o sonho de enriquecer-se no Brasil, acalentado durante a adolescncia? impossvel sepult-lo. Desistir do sonho desistir da vida, e ele no pessoa de entregar os pontos com facilidade. Reflete muito sobre o assunto e conclui que chegou a hora de sair, de estabelecer-se em Cachoeirinha. Alm da questo financeira e econmica, alimenta a esperana de que, longe de Risoleta, das Dores se torne mais amena com os filhos e, ainda, que eles freqentem escola e tenham mais convvio com outras crianas. ... Num carece nis se mudar replica ela. Oc arruma otro negcio e o Joman entra na escola daqui mesmo. Aqui no tem escola, ora pois! Essa professora que tem aqui mal sabe ler e escrever. As crianas precisam freqentar uma escola de verdade. Devemos pensar no futuro delas. Das Dores fica apreensiva com a conversa. Sabe que o marido tem razo, mas alguma coisa no seu ntimo resiste. Procura a me no dia seguinte para relatar o propsito de Manoel. Fala que oc num vai! rebate Risoleta em tom enrgico. Aonde j se viu morar num lugar iscumungado que nem aquele? Tem trem, tem rio, tem cavalo correndo nas rua, e todo dia tem gente matada. Faz uma pausa e pergunta em tom dramtico: Oc quer ver seus fio morto? Alejado? Ele fala que tem a escola... Dexa de ser boba. Se oc falar que num vai, ele tomm num vai. Das Dores segue o conselho da me. Mais uma vez o marido se dobra 40

e adia a mudana. ... Todas as vezes que passa pela estrada, d uma chegada na casa da viva, ouve seus queixumes e, penalizado, sempre lhe arruma algum dinheiro. No incio de 1942, alertado pelo comeo do perodo letivo, Manoel volta ao sonho da mudana, mas das Dores finca o p. Ela retruca dizendo que no adianta se mudarem agora porque Joman s vai fazer 7 anos em agosto, idade mnima para entrar em uma escola regular. Mas eu posso cuidar de estabelecer o comrcio este ano replica. Eu morro naquele lugar, num vou ter sussego. Deixa pro ano que vem, dexa?... suplica ela, qual uma criana quando pede algo ao pai complacente. A ele vai t mais grande. Outra vez o amor se curva razo. Mas Manoel tenta um acordo: colocar o filho, j, para freqentar as aulas na casa da tal professora, situada a trs quilmetros do stio. Quer que ele comece a conviver com outras crianas, pois no stio brinca no mximo com os primos e, mesmo com estes, s na presena de das Dores. Acredita at que vai ser bom para o filho ficar afastado da me e da av numa parte do dia se, de uma lado, a tal professora tem pouco para ensinar, de outro, aquela convivncia poder torn-lo mais ativo. No revela tais pensamentos esposa, para que ela no se sinta ofendida. Usa como argumento a necessidade do garoto aprender a ler e a escrever, e que ela, das Dores, havia dito, no ano anterior, que os filhos podiam entrar na escola da regio. Essa lonjura toda, cumo que ele vai andar isso tudo? replica ela, levantando dificuldade. J pensei nisto tambm. Para que fiques sossegada, o Zezito vai levar e buscar todos os dias na garupa de um cavalo. Das Dores cede a contragosto. O primeiro dia de aula um suplcio para a aflitiva me. sada, faz repetidas recomendaes a Zezito para ir andando devagar, jamais trotar, e nem em sonho galopar. Assim mesmo, fica em casa imaginando coisas dramticas ora o rapazinho no segue as instrues e, na sua mente, v o fi41

lho caindo; ora, a um descuido da professora, Joman sai da casa onde so dadas as aulas e se embrenha pelo mato. ... Por outro lado, o garoto mostra um interesse incomum em aprender. Quando est em casa, fica horas lendo a cartilha e fazendo cpias na lousa um minsculo quadro negro com moldura de madeira com um giz achatado e resistente. Um dia, no primeiro ms de aula, o prprio Manoel que leva o filho. Aproveita para conversar com a professora. Como est a se sair o Joman? Ele aprende fcil, mas muito queto, num brinca no recreio, parece triste responde a professora. Mas ele gosta de vir. Creio que com o tempo vai passar a brincar. Contudo, o tempo mostra que Manoel est equivocado. O mximo que o garoto faz ficar, durante o recreio, olhando os colegas brincar. Prefere mesmo andar volta da casa, observar animais, pegar borboletas ou bichinhos nas plantas. ... No final de 1942 ele decide enfrentar a resistncia da esposa, a fim de se mudarem. Opta em definitivo por Cachoeirinha, que desde 1938 distrito. l que vai, com mais regularidade, vender e comprar, e assiste ao seu intenso progresso. Por outro lado, a zona urbana j no se apresenta como lugar onde corra maior risco de ser preso do que na roa. E desta vez no consulta a esposa simplesmente comunica sua deciso. Mas Manoel... ele a interrompe. Lembre-se do que me prometeste. J no posso esperar mais. O que oc vai fazer l? Vou montar uma padaria, ora pois! responde com animao. L no tem nenhuma. freguesia certa. E vou ganhar mais dinheiro no negcio do caf. Aqui estou no meio do caminho: no onde se compra e nem onde se vende. Faz uma pausa e prossegue: Eu vou primeiro, ponho-me a construir a casa e mudamos quando estiver pronta. Todos os sbados tarde virei aqui. 42

... No calor dos preparativos, elabora um plano para no s continuar com o comrcio do caf, mas tambm aumentar sua escala. Procura o compadre Jos Vtor e prope que ele venda seu pequeno pedao de terra e compre outro prximo de Cafezinho ou Itanhomi, e se torne seu comprador l. Nas pocas de colheita, dever comprar e estocar, como ele prprio fez nas duas ltimas, porm em maior escala. Cuidar tambm do transporte para Cachoeirinha e receber uma porcentagem do lucro. Depois de ouvi-lo com interesse, Jos Vtor responde: Uai, cumpadre, a idia boa. Eu t mesmo massano barro aqui. E o negcio de caf, sendo muito, bo. E tu ainda vais me fazer o favor de dar assistncia Florinda e ao menino. Com a minha mudana ficar mais difcil minha ida l. Faz uma pausa e acrescenta: Acho que nem precisava dizer, mas esse assunto fica s entre ns dois. Eles detalham o acordo. Na safra que vai comear em maio, Jos Vtor j estar fazendo as compras e transportando. Manoel, alm de fincar o p em definitivo nesse comrcio, uma vez mais, unir negcios e sentimentos.

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Captulo 5 Reveses da VidaJomam comea a conviver com outros meninos e a freqentar a escola, e sofre as primeiras decepes fora de casa. O sofrimento dos primeiros anos, a paixo oculta na pr-adolescncia, as dificuldades em se ajustar, as angstias, as humilhaes, os esforos desesperados para conseguir conviver com es outros e ser respeitado, assim como os perigos, so temas deste captulo, o qual alcana at a idade dos dezoito anos. (Informao: Trs ponto (...) entre pargrafos indicam que outros pargrafos foram retirados; no comeo ou final de pargrafo indicam que textos foram retirados daquele pargrafo)

A Caminho do Outro SonhoFinalmente, em janeiro de 1943, Manoel segue para Cachoeirinha. Segue contente, feliz at. Faz esta viagem com nove anos de atraso... nove anos! "Como o tempo passa depressa! E quanta coisa aconteceu!" diz para si mesmo. "Mas vou comear em situao melhor do que naquela poca", completa satisfeito. Tem a convico de que o outro sonho, que o levou a cruzar o oceano, vai comear a se concretizar agora ficar rico, sem dvida alguma. Com entusiasmo, compra um terreno, contrata gente especializada e inicia logo a construo. Ele tambm pega firme no servio. E, tal como acontecia na roa, o sotaque portugus, aliado sua jovialidade, o tornam popular e estimado. O apelido, j conhecido de muitos, consolida-se por causa do seu semblante orgulhoso ao desfilar pelas ruas trajando a opa, quase todo fim de tarde, nas idas igreja para rezar. Na caminhada ouve gracejos e os responde bem-humorado. Manoel da opa, oc t indo na igreja rezar ou procurar uma neguinha? O caso com a jovem negra conhecido por alguns. Procurar sua mamezinha, ora pois! responde ele rindo. Manoel, por que oc num manda fazer logo uma batina no lugar da 44

opa? No sabes que ela est guardada para a tua extremauno? A bena, dom Manoel. Deus te abenoe, filho de uma digna senhora. As pessoas repetem as perguntas diariamente, apenas para ouvir seu sotaque. Mas os gracejos no se limitam ao trajeto dessa caminhada. Em qualquer lugar aonde vai, h sempre algum que brinca com ele. Manoel da opa, oc travessa mata-burro? De jeito nenhum responde ele com bom humor. No sou tolo, ora pois! Mata-burro uma estrutura de madeira, geralmente de dois ou trs troncos, assentados na direo do leito da estrada de terra, sobre os quais so pregadas ou encaixadas pranchas estreitas, perpendicularmente, a espaos, para impedir a passagem de animais. , obviamente, uma brincadeira de mau gosto, mas tambm a pergunta que mais lhe fazem. ...

Desgostos do MeninoAo chegar em Cachoeirinha, num final de tarde, das Dores fica transtornada ao perceber a quantidade de perigos a que estaro expostos os filhos. Pela rua passa todo o movimento de gente e mercadorias de um lado para o outro do rio. Aquilo, para ela, um espanto. O rio, que fica prximo, e que avistado da frente e dos fundos da casa, parece-lhe um espelho traioeiro. O trem de ferro, na sua mente, um monstro que vai esmagar as crianas, se no ficar vigilante. E para completar suas atribulaes, o povoado tem uma meninada ociosa que lhe causa arrepios. Ela esteve no lugar umas poucas vezes, com o pai, e depois com o marido, mas sempre rapidamente; j agora, com os trs filhos, e ainda para morar, parece um horror! As crianas, ao contrrio, ficam excitadas com as novidades. Das Dores passa em claro a primeira noite, tal sua agonia. Quando amanhece, ela previne os filhos: Num sai pra rua, ninhum docis. Joman vai para frente da casa e observa. O sol, que comea a se le45

vantar, bate em cheio em seu rosto, como se fosse em linha reta. L embaixo, esquerda, no fim da rua, a aproximadamente duzentos metros, o rio corre em direo ao sol. Em frente casa comea uma outra rua, que termina cerca de cem metros adiante, num muro alto; dizem-lhe que l o cemitrio. Mais acima, onde comea a Rua da Barca, h um enorme espao, pelo qual passaram na chegada. Seu corao acelera-se com esse panorama. As novidades parecem despertar o menino curioso que ficou adormecido em um longo sono hibernal. Ele aproveita que a me est ocupada em organizar as coisas e d uma escapada at a beira do rio. ... ... Depois sai e vai rpido para onde comea a rua. Chega beira das duas linhas do trem, numa suave depresso, bem no meio da rea espaosa, que alm de larga comprida a perder de vista, tanto do lado esquerdo como do direito. Ocis num vem aqui no!, lembra-se da me falando quando chegavam, na tarde anterior, o que foi, naturalmente, um estmulo sua curiosidade. Volta e fica um pouco na esquina da Rua da Barca com aquele espao. Do lado de l e do lado de c, existem casas esparsas, algumas estranhas, compridas, de tamanho to grande que ele jamais imaginou existir (so galpes de atacadistas de cereais). Em toda a extenso, rvores enormes, distantes umas das outras e distribudas aleatoriamente, lembram as que existem nas manchas de matas do stio. Carroas puxadas por animais transitam de um lado para outro, carregando coisas e levantando um pouco de poeira. Gente a p ou a cavalo anda para todos os lados. Pessoas conversam, entram e saem de casas de comrcio. Ele fica de boca aberta, pasmo com tudo isso. Logo, logo, cercado por alguns garotos. Tal como ele, usam calas curtas; diferentemente dele, andam descalos. Seu retraimento d margem a que comecem a zombar. Oc chama Manezinho da opa? indaga um dos meninos, seguido de risos dos demais, numa aluso alcunha do pai. Joman no responde, mas estranha existe algo errado consigo? Manezinho da opa? insiste o menino. 46

Eu c chamo Joman responde, quase em sussurro. Chama cumo? Ele repete, um pouco mais alto. Joman? Isso nome? volta o mesmo menino. Macaquero tem cada nome... comenta outro. Mais risos. Oc tomm num travessa mata-burro no? Ele conhece mata-burro, por isso no entende a pergunta, e menos ainda os risos debochados. O grupo se dispersa e ele continua vagando ali por perto. Algum chama a ateno para a maria-fumaa, que surge ao longe, do leste para o oeste, e a maioria das pessoas interrompe o que est fazendo para v-la. A primeira reao que ele tem de medo e mpeto de correr para casa. Olha para os lados e observa que as pessoas esto tranqilas. Resolve esperar. Para se garantir, fica quase encostado a um homem; se este correr, ele corre tambm. Quando compreende que ela caminha sobre os trilhos, acalma-se um pouco. Fica a observ-la, com uma ponta de assombro, tentando entender as manobras que faz. No tarda, sua me aparece, com semblante desvairado. Joman, j pra casa! j pra casa! grita ela. No caminho ouve reprimendas o tempo todo. Mame, num bate ni mim, no... suplica. Em casa suas splicas se repetem em vo. Toma algumas chineladas. proc num me desobedecer mais diz ela com energia e, em seguida indaga, em tom dramtico: Oc quer morrer dibaxo do trem? ... Mais tarde, j refeito, o garoto relata para a me, que est na cozinha preparando o almoo, o que os meninos disseram. Esses muleque num tem o que fazer comenta das Dores. Eles fica bestano na rua, caano increnca. E faz um alerta: Num vai brigar com eles, no! Eles pode te bater. Em seguida, interrompe o trabalho, olha para o filho e adverte: Joman, num cunfia ni ningum viu! Oc num pode cunfiar nem na camisa que oc veste. Todo o mundo s quer atrapai nis. Volta-se para o fogo, em seguida. 47

Ele fica, pensativo, observando a me por alguns segundos. ... No terceiro dia ele arrisca nova sada. O encontro com a garotada do mesmo jeito: todos fazem zombarias, em seqncia, um aps o outro. ia o macaquero que veve na barra da saia!... risos. Ele fala eu c... mais risos. Oc tomm num travessa mata-burro, no? continuam os risos. Travessa ou num travessa? Travessa? Travessa? Ele chama Travessa! Joman fica mudo o tempo todo, apesar de aborrecido e irritado. Quer ir embora, mas a vontade de apreciar o movimento o mantm ali, at que sua me aparece. Nos encontros seguintes, os meninos continuam a zombaria: ia o Travessa! Ele, que j sabe o significado implcito do apelido, explicado por Zezito, limita-se a responder desgostoso: Eu num burro no. O desgosto demonstrado um estmulo para que retornem gritando: Travessa! E, quanto mais ele insiste em responder, mais alto gritam. ... Nessa poca mudam o nome do distrito para Tumiritinga, um nome indgena, mais adequado do que o anterior, porque significa pequena corredeira, que , efetivamente, o que existe mais abaixo no rio.

Horror SbitoEm um desses primeiros dias, Joman e o irmo Peri, movidos pela curiosidade, entram num beco. No fundo existe uma construo em que as paredes so feitas de tbuas de madeira, colocadas na vertical. A porta est aberta; algum os chama l de dentro. Vem c! 48

Eles entram. Um sujeito ergue-se, pega uma vasilha qualquer e, ante o espanto dos dois, urina nela e a entrega a Peri. Bebe o ch! ordena ele, sentando-se em uma cama. Peri chora. A ordem volta atravs de gritos. Joman, atordoado, fica esttico. Peri toma um gole e continua a chorar. O sujeito, de pnis ereto, est agora diante de Joman. Este diz algo, recebe um tapa no rosto, cai, e entorna a urina. O sujeito o agarra dizendo: Me d, me d... Mame! Mame! gritam os dois, desesperados. ...

Brincadeira InfelizPassados pouco mais de dez dias da mudana, com a padaria funcionando e dados os ltimos arremates na construo, Manoel procura a professora com a inteno de matricular Joman no segundo ano primrio. Embora ele no tenha completado 8 anos de idade, ela se dispe a estudar o caso e ver se o menino pode acompanhar a turma, mas precisa da sua certido de nascimento. ... Sai de l com os trs papis, sem examin-los e, para ganhar tempo, passa na escola. Como no horrio de aula, entrega o de Joman a uma jovem de vinte anos, chamada Valdete, encarregada da arrumao. ... ... Assim que chega ao ptio, Joman ouve gritos de vrios meninos. Olha o Travessa pa! Olha o Travessa pa! - risos e gargalhadas ecoam simultaneamente. A algazarra generaliza-se. Fazem um crculo em torno dele. pa Travessa! pinha!... pa! pa! pa! ba! Travessa pa ba!... O pobre Joman, atnito no meio daquela gritaria e daquelas gargalhadas, ouve a estranha pronncia de seu sobrenome, sem entender o significa49

do. No entende tambm a razo de tanto alarido e galhofa envolvendo sua presena. Com os olhos arregalados, permanece mudo, ouvindo essas coisas por vrios minutos, at que a professora aparece e manda que todos se calem. Ela o chama para dentro da sala e carinhosamente lhe explica que houve um erro no seu registro de nascimento. ... A aula comea e Joman continua atordoado. O pai no o informou sobre a certido e ele nem sabe o que isso. De tempos em tempos algum menino sussurra: pinha!... risos de deboche ecoam pela sala. A aula termina s quatro e trinta e, puxados por um lder, os meninos gritam em coro na sada: pa Travessa! pa Travessa! pa Travessa! Ele sai correndo, deixando os gritos para trs. Em casa, ofegante, d o recado da professora sua me. Ela, que sabe apenas assinar o nome, leva o caso a Manoel, que, por sua vez, se d conta de que houve um pequeno engano no registro, coisa fcil de ser corrigida. No espao reservado para o nome est escrito: Joman de Oliveira pa! Como a interjeio pa no conhecida dele, pois seu uso limitado ao Brasil, Manoel no v problema no assunto porque opa, substantivo, a paixo dele, no tem assento, disso ele tem certeza. s apagar o circunflexo, ora pois! diz, olhando para o papel. Quanto exclamao, comenta: mais uma ignorncia daquele gajo do cartrio. O que mais tem no Brasil gente ignorante. Apanha as outras duas certides e verifica que esto com os mesmos erros. Joman e das Dores escutam esses comentrios sem entender, naturalmente. Mas ficam convencidos de que o problema ser resolvido logo. Contudo, Manoel tem de esperar o outro dia. ...

Iniciao Sexual Precoce... Certa tarde, no recreio, a servente Valdete pergunta-lhe: Voc me ajuda a varrer e arrumar, depois da aula? Ele aquiesce naturalmente, j que fazer as coisas para ter as graas de 50

algum est se tornando imperioso. Quando os dois terminam de varrer as duas salas e o ptio, que compem a escola, e de fechar as janelas e portas, a moa lhe faz um convite sedutor no contedo e no adocicado da voz: Vamos l em casa? Vou te dar uma coisa. Ela mora numa pequena casa a poucos metros dali, sozinha.Os dois entram e Joman conduzido diretamente ao quarto onde existe uma cama de solteiro. Apesar de a janela estar fechada, o ambiente fica com meia-luz pela falta de forro na moradia. Tira a butina e deita aqui diz ela com a mesma voz doce, sentada ao p da cama. Ele obedece, apesar de um tanto assustado. Vou tirar sua cala... volta, olhando-o, para ver sua reao. ...

Encurralado Pelos OutrosParalelamente, Joman continua a ser o esturio de deboches dos colegas, uma espcie de caixa de pancadas. Sem motivo algum, mexem com ele na sada das aulas. Numa tarde acrescem outras ofensas. Travessa pa, muiezin-in-in-nha! grita um dos meninos, ladeado por outros. Estes ecoam: Muiezin-in-in-nha! muiezin-in-in-nha! Eu num s mui no retruca, falando baixo. muiezinha sim! volta o primeiro menino. Muiezinha, fia do padre. Eu num s filho de padre no! retruca de novo, falando alto, mostrando leve irritao. Quer briga, quer briga? retorna o menino que, a seguir, pega um graveto e, num movimento rpido, risca uma linha reta no cho. Ato contnuo, coloca-se do lado de l da linha, fecha as mos, ergue os punhos em posio de luta e desafia: Se oc home, travessa essa linha, Travessa! Joman lembra-se das advertncias da me e, tomado pelo medo, abaixa a cabea, vira as costas para ir embora. Aps os primeiros passos, escuta um coro dos meninos: Correu de medo, cagou no dedo! Correu de medo, cagou no dedo! Correu de medo, ... Ele se vira, sem interromper a caminhada. Os meninos esto andando em sua direo. Assustado, comea a correr e deixa para trs o coro. 51

... Por outro lado, a padaria foi apenas o incio do comrcio. O espao daquele cmodo grande foi logo ocupado por cereais, latas de banha de porco, caixas de bacalhau, latas de azeite, potes de azeitona, doces, balas, e outros alimentos e guloseimas. Os pes ficaram limitados a uma pequena vitrina. A padaria tornou-se um armazm de secos e molhados. Agora, decorrido pouco mais de um ano, esto se incorporando diversos utenslios domsticos, ferragens, ferramentas para trabalhar a terra e um tanto de miudezas, de sorte que o nome de armazm de secos e molhados est sendo substitudo aos poucos por venda, a venda do Manoel da opa. ... Certa tarde, no recreio, um dos meninos mais exaltados, chamado Joel, aproxima-se de Joman e faz um pedido em tom amistoso: Pega um espelhinho na venda e traz pra mim refere-se a espelhos redondos, pequenos, que trazem figuras coloridas no verso, em geral de mulheres, e que os homens costumam carregar num dos dois bolsinhos das calas. ... O bate-boca termina quando Joel faz um desafio: Vamo acertar isso de noite. A minha turma contra a sua. Combinam se encontrar s sete horas da noite no final da Rua da Capivara, que comea tambm naquele espao amplo, em sentido contrrio da Barca. Joman sente uma ponta de alegria porque encontrou algum para proteg-lo, fato com o qual no contava. Oc vai, num vai? indaga-lhe Joel, enquanto se afastam. Vou responde, titubeante, sem alternativa, e fazendo aquele movimento com os dois braos. noite, morrendo de medo, pensa no ir ao local combinado. Eu num sei nem brigar..., pensa. Depois acha que se faltar vai ficar muito ruim, pois a briga ser por sua causa. Ressabiado, chega ao lugar, uma parte pouco iluminada. L esto quatro meninos da outra turma e ningum da turma do Joel, nem mesmo este. Z Malta passa o p descalo no cho, como se riscasse uma linha reta, assume a posio de luta e desafia: Se oc home, 52

travessa essa linha, Travessa! Como Joman permanece parado, os meninos caminham em sua direo. Horrorizado, no consegue falar nem fugir. A urina escorrelhe pelas pernas. Dexa ele pra mim grita Z Malta, muito maior e mais forte, o que no faz diferena, porque, ainda que fosse o mais fraco, no o enfrentaria. O garoto avana sobre ele e comea a dar-lhe socos a nica alternativa virar-se meio de lado, para atenuar os golpes. A pancadaria s termina quando Z Malta o obriga a ficar de frente e lhe desfere um murro no rosto. Joman se abaixa e comea a chorar, enquanto os meninos continuam a dirigir-lhe os habituais improprios. Ele encontra foras e sai correndo. Os garotos o perseguem por vrios metros, gritando: Correu de medo, cagou no dedo! Correu de medo, cagou no dedo! Correu de medo, cagou no dedo! ... O espelho dado a Joel serviu, pelo menos, de lio. O menino parou de mexer com ele, e Joman descobre que pode diminuir seu infortnio dando coisas para os outros. E periodicamente surrupia um espelhinho, uma bola de gude, um pirulito, umas balas, e os oferece aos meninos. At o Z Malta agraciado. Com isso param de atorment-lo. Desse modo controla todo o grupo, pelo menos por uns tempos. Embora continuem a se dirigir a ele pelo apelido habitual, a hostilidade na escola quase zero. Mas, na rua, outros meninos fazem com ele as mesmas brincadeiras debochadas que adultos fazem com o pai. Ele sempre se mostra desgostoso, o que atia a molecada. Certo dia os problemas na escola retornam por intermdio de Z Malta, que faz uma investida em outra rea: Me empresta um tosto. Eu num tenho. Tira l na venda. Joman sente o frio do medo e repete aquele movimento com os dois braos para frente e para trs, indicativo de que quer negar e no consegue. Um tosto, ou cem ris, d para comprar duas dzias de bananas ou um punhado de balas. (A despeito da mudana da moeda, que transformou os ris em cruzeiros e eliminou trs zeros, a denominao antiga ainda continua a 53

ser usada no distrito.) Em casa pensa muito no assunto, mas resiste sugesto. Ao se encontrarem de novo, o menino pergunta pelo emprstimo. Eu num tenho repete, gaguejando de medo. Por que oc num tira na venda? A mame me bate. O menino mostra as garras, falando baixinho, meio cantado: Correu de medo, cagou no dedo! Correu de medo, cagou no dedo! Joman entende o recado: ou arruma o dinheiro ou volta tudo ao que era antes. Isso gera-lhe um drama. ... ... Coagido, Joman se torna refm das ameaas.Toma todo o cuidado para que as cenas de hostilidades no se repitam um agrado para este ou aquele garoto, um dinheirinho extra para Joel e Z Malta, mudana no tom da voz, de modo a parecer sempre amistoso. ... Tornar-se bonzinho, amvel, em atos e palavras, mostrar-se diferente do que , do que pensa e do que sente, violentar sua conscincia so, em conjunto, o preo que tem de pagar pela liberdade e pelo sossego. Mas a liberdade e o sossego comprados geram uma revolta silenciosa, contida, que cresce com o tempo. E a revolta contida acaba por gerar angstia no pequeno Joman. Uma vez que o convvio lhe custa to caro, busca abrigo na solido, de forma natural, no deliberada. A solido no ruim ou m em si mesma, pode at ser construtiva, despertar foras criadoras; mas, nestas circunstncias, em que contraria a natureza do menino curioso e ativo, aniquilante. Os dramas silenciosos so os mais terrveis, pois, alm de corroerem o eu, parecem atrair mais desgraas. E no caso de Joman, alm de todo esse drama pessoal, nessa mesma poca surge um outro, da famlia. Toma conhecimento dele numa conversa com um jovem que est fazendo compras no distrito. Sabe que oc tem um irmo mulato? Eu?... Irmo mulato?... 54

Intonces oc num sabe mesmo?! Pergunta pro seu pai... Ele tem int mais duas mui. Chocado, Joman corre para casa. Procura a me e comea a narrar-lhe a conversa. Cala a boca! ordena ela rispidamente, interrompendo-o, e afastando-se em seguida. ... Entre os dez e onze anos o garoto presencia a primeira altercao sria entre os pais. Acaba de concluir o quarto ano primrio, e Manoel levanta a questo da continuidade dos estudos. Joman comea ele, dirigindo-se ao filho , precisas ir para um colgio, e estou a pensar para qual cidade vamos te mandar. Talvez... interrompido com alarme por das Dores. Sair daqui, ir pra outro lugar, sozinho?! Ora pois! para continuar os estudos s possvel em alguma cidade... responde ele pacientemente. Mandar uma criana desta sozinha pra uma cidade grande? Onde que oc t com a cabea, Manoel? diz ela, um pouco exaltada. Tu continuas a ver nossos filhos como se fossem criancinhas indefesas. Olha como ele est crescido. No vs? Ele muito criana pra sair pelo mundo. Ests a exagerar, das Dores argumenta com o mesmo tom ponderado de voz. Com expresso dramtica, ela retorna: Se aqui perto de mim j pirigoso, imagina longe! Oc quer me matar, matar ele? Podemos nos mudar para uma cidade onde haja colgio sugere Manoel. Ir pra uma cidade, um lugar grande? Cumo que eu vou olhar eles num lugar grande, Manoel? responde, ainda em tom dramtico. Tu tens de pensar no futuro deles, ora pois! Que futuro havero de ter sem estudos? argumenta com certa rispidez. a primeira vez que Joman v o pai exprimir uma ponta de irritao. Num carece, Manoel