resenha invasões bárbaras

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FDUFBA ÉTICA GERAL E PROFISSIONAL MOACIR ANTONIO OLIVEIRA MIRANDA INVASÕES BÁRBARAS “Les Invasions Barbares” SALVADOR-BAHIA 2010

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Page 1: Resenha Invasões Bárbaras

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – UFBA

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – FDUFBA

ÉTICA GERAL E PROFISSIONAL

MOACIR ANTONIO OLIVEIRA MIRANDA

INVASÕES BÁRBARAS

“Les Invasions Barbares”

SALVADOR-BAHIA

2010

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MOACIR ANTONIO OLIVEIRA MIRANDA

INVASÕES BÁRBARAS

“Les Invasions Barbares”

SALVADOR-BAHIA

2010

Resenha crítica do filme ―Les

Invasionas Barbares‖ (As Invasões

Bárbaras) do diretor Denys Arcand, de 2003.

Trabalho realizado pelo graduando do

terceiro semestre em Direito na Faculdade

de Direito da Universidade Federal da

Bahia, Moacir Antonio Oliveira Miranda,

para avaliação no Componente Curricular –

Ética Geral e Profissional – DIR189.

Orientadora: Cláudia Albagli.

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INVASÕES BÁRBARAS -“Les Invasions Barbares”- Análise Fílmica

RESUMO - SOBRE O FILME - ANÁLISE FÍLMICA - A QUESTÃO DA EUTANÁSIA NO FILME “AS INVASÕES BÁRBARAS”

COMPARADO COM O FILME “MAR ADENTRO” - PESQUISA DE APROFUNDAMENTO: FICHAMENTO DA OPINIÃO DE

DIVERSOS AUTORES SOBRE O TEMA EUTANÁSIA, EM OBRAS DE PONTO DE VISTA DIVERSIFICADO –

REFERÊNCIA

Moacir Antonio Oliveira Miranda, acadêmico de Direito da Universidade Federal da Bahia.

RESUMO

O filme ―Invasões Bárbaras‖, em resumo, conta a história de um doente

terminal, o professor Rémy, que se vê diante da situação de optar pela morte ao sentir as dores

tomarem conta de si. Para isso, conta com o auxílio dos amigos, inclusive do filho, Sebastien.

Essa obra fílmica leva-nos a pensar sobre a eutanásia e as possibilidades de suas aplicações

práticas, indagando se são legítimas ou não.

SOBRE O FILME

Invasões Bárbaras (do original, ―Les Invasions Barbares‖), é um filme de

drama do Canadá e da França de 2003, realizado por Denys Arcand.

No início do filme, o professor e pai de dois filhos, Rémy (Rémy Girard), está

num leito de hospital, sofrendo muito em virtude de uma doença que o impedira até de

lecionar. A sua esposa, Louise (Dorothée Berryman) , da qual ele era separada por

infidelidade – ele a traía com amantes e morava sozinho –, vem visitá-lo e informa que o filho

do casal, Sébastien (Stéphane Rousseau), que no momento estava ausente, vem da Inglaterra,

visitá-lo, junto com a sua esposa Gaëlle (Marina Hands).

No contexto do filme a criação dos filhos do casal, Sabástien e Sylvaine ficou

a cargo da mãe. O rapaz trabalha numa Bolsa de Valores e a moça veleja pelo mundo. Ambos

estão muito felizes com a vida que alcançaram.

Assim que o filho chega, cumprimenta o pai e o apresenta à sua esposa. Logo,

o médico requisita um exame ao paciente Rémy, por intermédio do seu filho, Sebástien.

Juntos, eles vão aos Estados unidos fazer o exame. A partir deles o médico constata que Rény

encontra-se num estado deplorável de saúde e, muito em breve, ele sofrerá bastante de

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complicações decorrentes de sua enfermidade. Adiante, O filho discute com o pai porque ele

o abandonara na juventude e decide ir embora, dizendo que não havia mais nada a fazer, pois

de qualquer forma a sua presença não fazia diferença diante do pai. Contudo, a mãe pede ao

filho que fique e o convence de que o pai sempre o ajudava quando ele precisava nos

momentos de infância, acalentando-o e zelando-o.

Então, Sebástien permanece e constata, através das palavras da enfermeira, que

no hospital muitas pessoas não têm a visita dos filhos. Esta enfermeira chega a contar isso a

Rémy. Ademais, o filho, para melhorar a situação do pai, que estava num quarto barulhento e

desorganizado, chama-o para se hospitalizar nos Estados Unidos da América, país vizinho e

com mais recursos. Contudo, o pai não aceita, dizendo que prefere ficar no hospital, perto de

seus amigos – mesmo que naquele momento não houvesse nenhum amigo dele. Então, sob

aconselhamento da mãe, Sebástien tem a idéia de efetuar melhorias numa sala do hospital

para que seu pai seja ali hospedado e possa receber visitas de amigos e parentes. Assim, às

espreitas, conversa com a administração e, de uma maneira sonegadora, tenta convencer os

funcionários a condizer com as suas vontades: restaurar um quarto desabilitado e torná-lo

confortável para o pai permanecer sendo medicado.

Sebástien deixa um laptop com o pai, para que ele assista a uma filmagem de

Sylvaine (Izabelle Blais), sua filha, amorosa, que enviou uma gravação de imagem a partir do

veleiro em que estava vivendo atualmente. Mas este é roubado no hospital de suas mãos

enquanto ele dormia, depois de ter assistido o vídeo, o que deixa Sebástien preocupado –

devido à perda de diversos e-mails provenientes do escritório. O filho vai buscar o laptop e

avisa às pessoas que ali trabalham. Elas dizem que furtos ali são comuns, então Sebástien

preenche um relatório e comunica às autoridades competentes. Mais adiante no filme ele

acaba recuperando o objeto perdido.

Já com o novo quarto arrumado e confortável, diversos amigos vêem visitá-lo,

entre eles Claude, Pierre, Alessandro, o que deixa Rémy muito feliz. Só que muitos desses

amigos só vieram porque foram pagos pelo filho – alguns ex-alunos, em especial. No entanto,

outros demonstraram sentimento verdadeiro ao não aceitar o pagamento, como uma ex-aluna,

que percebeu que tal atitude não seria ética.

Com o passar do tempo as dores de Rémy tornam-se mais fortes. O médico

recomenda a Sebástien que teste uma terapia à base de heroína para aliviar a dor que o pai

sente. Ele, visando fazer tudo certo, imaginando estar dentro da lei, vai à delegacia em busca

da droga para efeitos terapêuticos. Busca um policial ou detetive do departamento de

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narcóticos. Segue-se uma discussão. Os agentes imaginam que ele seja jornalista. Não cedem

a droga e ainda zombam dele. Ele, então, busca outros meios de conseguí-la.

O filho, então, comunica-se com Nathalie (Marie-Josée Croze), filha de uma

amiga do pai – Diane (Louise Portal) – para que essa compre a heroína. O trato seria que

Nathalie compraria a droga necessária com o dinheiro dado por Sebástien e ainda cuidaria de

Rémy. Em troca Sebástien forneceria drogas para ela. Ela, então, compra a heroína nas mãos

de um traficante por ela previamente conhecido.

A moça Nathalie dá a droga ao pai de Sebástien, Rémy. Ele se sente aliviado

imediatamente das dores, mas fica com terrível e avassaladora dependência da droga.

Chegando a ter terríveis convulsões quando Nathalie não comparece no momento certo para

aplicar a droga. Numa ocasião em que Nathalie estava muito abatida para aplicar o narcótico

nas veias de Rémy, a enfermeira entra no quarto e, ao ver naquele estado, questiona o que

havia acontecido e o filho pede a ele que aplique heroína no paciente. Ela reluta, mas, ao ver a

situação, acaba cedendo, mas afirma incisivamente que não faria aquilo novamente todas as

noites.

O filho de Rémy, Sebástien, pede o amigo do pai para ceder-lhe a casa de praia

para que o pai possa passar os últimos dias de vida entre os amigos. O amigo empresta,

mesmo que fosse contra a vontade da esposa.

Ao sair do hospital, uma enfermeira tenta convencê-lo a aceitar os

ensinamentos da religião dela para que seja salvo. Ele não responde, simplesmente manifesta

o seu respeito e ternura pelas convicções da moça – convicções estas que ele desrespeitou

anteriormente noutra ocasião, ao destratar o Papa e a Madre Teresa.

Rémy passa os últimos dias de sua vida na casa de praia de um amigo. Ele está

numa situação muito triste. Nem ao menos pode tomar vinho, que ele gostava muito. Isso o

deixa profundamente abalado. Logo ele decide que é um momento muito feliz para morrer e

recebe, com o seu consentimento e da família, através do soro, uma dose alta de remédios,

acarretando o seu óbito.

O filme termina com Sebástien proporcionando a filha da amiga de Rémy,

Nathalie (filha de Diana), a oportunidade de ter um apartamento para morar – aquele em que o

pai morava anteriormente. Posteriormente, Sebástien entra no avião que o levará de volta para

sua casa. No final, há, como trilha sonora, uma belíssima – e bem contextualizada – música,

L'amitié, de Françoise Hardy:

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L'amitié (Paroles: Jean-Max Rivière. Musique: Gérard Bourgeois 1965 © 1965 - Disque vogue )

Amizade

Beaucoup de mes amis sont venus des nuages Muitos de meus amigos vieram das nuvens, Avec soleil et pluie comme simples bagages

Com o sol e a chuva como bagagem. Ils ont fait la saison des amitiés sincères Fizeram a estação da amizade sincera,

La plus belle saison des quatre de la terre A mais bela das quatro estações da terra.

Ils ont cette douceur des plus beaux paysages

Têm a doçura das mais belas paisagens, Et la fidélité des oiseaux de passage

E a fidelidade dos pássaros migradores. Dans leurs cœurs est gravée une infinie tendresse

E em seu coração está gravada uma ternura infinita, Mais parfois dans leurs yeux se glisse la tristesse

Mas, às vezes, uma tristeza aparece em seus olhos.

Alors, ils viennent se chauffer chez moi Então, vêm se aquecer comigo,

Et toi aussi tu viendras e você também virá.

Tu pourras repartir au fin fond des nuages

Poderá retornar às nuvens, Et de nouveau sourire à bien d'autres visages

E sorrir de novo a outros rostos, Donner autour de toi un peu de ta tendresse

Distribuir à sua volta um pouco da sua ternura, Lorsqu'un autre voudra te cacher sa tristesse Quando alguem quiser esconder sua tristeza.

Comme l'on ne sait pas ce que la vie nous donne

Como não sabemos o que a vida nos dá, Il se peut qu'à mon tour je ne sois plus personne

Talvez eu não seja mais ninguém. S'il me reste un ami qui vraiment me comprenne

Se me resta um amigo que realmente me compreenda, J'oublierai à la fois mes larmes et mes peines

Me esquecerei das lágrimas e penas.

Alors, peut-être je viendrai chez toi Então, talvez eu vá até você aquecer

Chauffer mon cœur à ton bois Meu coração com sua chama.

ANÁLISE FÍLMICA

O filme aborda temas polêmicos, como eutanásia, drogas para fins

terapêuticos, conflito entre religião e ateísmo, política, corrupção. Seus diálogos são

inteligentes e a dramaticidade é bem desenvolvida. O personagem principal, apesar de ser um

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homem de elevada capacidade intelectual e muito culto, demonstra ser um mulherengo

compulsivo, que não deu a merecida atenção à esposa, relacionando-se com várias amantes.

Rémy encara a vida com muita despretensão, vive-a com intensidade, mesmo

que suas atitudes firam os sentimentos das outras pessoas. Contudo, ao perceber-se próximo

da morte, a vida toma um significado diferente, pois cada atitude que faz está próxima de não

ser repetida nunca mais. Assim, nunca mais se poderá abraçar o filho, tomar vinho, rever a

esposa, apreciar uma fotografia ou conversar com os amigos. Numa conversa com Nathalie,

esse assunto é abordado por Rémy:

"Eu quando era igual a você, na sua idade, podia morrer a qualquer minuto.

Pouco me importava. É por isso que os jovens dão os melhores mártires. É

paradoxal, quando envelhecemos é que nos apegamos à vida. Quando

começamos a subtrair, me restam 20 anos, 15 anos, 10... Quando sabemos

que é a última vez que fazemos alguma coisa, é a última vez que compro um

carro, a última vez que eu vejo Gênova, Barcelona..."

Em determinada parte da história, Rémy demonstra-se arrependido por não ter

usado o seu tempo para algo que tenha feito dele um homem de prestígio – escrever um livro,

conforme exemplifica no filme. Mesmo que tivesse sido um livro sem sucesso, mas pelo

menos ele teria tentado, teria se esforçado. Assim, percebe-se o foco que o personagem tem

no âmbito dos estudos, ou seja, mesmo nos momentos em que está prestes a morrer ele ainda

imagina o quanto seria bom ter estudado mais.

O enriquecimento das vidas humanas através da amizade também é claramente

demonstrado no filme, ao demonstrar que a vida de Rémy em seus últimos instantes, ao rever

os amigos que vieram de longe para vê-lo, trouxe muita alegria e contentamente a ele. Foram

amigos que, apesar das dificuldades (Pierre, por exemplo, teve de ir visitá-lo com a esposa e

os dois filhos menores), foram ao seu encontro, compartilhar uma mão amiga e carinhosa

naqueles momentos infinitos de significado para Rémy.

A esposa de Rémy, mesmo estando nervosa devido ao adultério do marido,

acaba por dizer pouco antes da morte de Rémy que ele era o homem da vida dela. Daí se

percebe que as atitudes de Rémy trouxeram para ela angústia, mas o seu companheirismo

naquele momento tão difícil trouxe consigo o perdão pelas falhas do marido. Ademais,

decerto ele perdeu diversos momentos significativos de uma vida fantástica que poderia ter

tido ao lado da família. Nesse sentido, seu filho, anteriormente na história, chegou a se irritar

com ele, dizendo que ele não o estimava como merecia. Contudo, ao final, também o perdoou,

assim como a sua filha que remeteu outra mensagem amorosa para Rémy.

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Com o intuito de tornar o pai mais feliz, usufruindo de um melhor tratamento

em um local mais tranqüilo, Sebástien propõe que ele vá ao Estados Unidos da América, pois

ele conseguiu uma vaga no ―melhor hospital do mundo‖, conforme diz no filme. Como Rémy

não concorda, o filho acaba por decidir efetuar melhorias, por sua conta, nas dependências de

um quarto vazio no hospital. Como não há consentimento da Direção, ele oferece quantia –

disfarçando num ―dossiê‖ – para que esta aceite a sua proposta. Isso demonstra o poder que

está atrelado ao dinheiro, que burla as normas do Sindicato do hospital e faz com que

capitalistas como Sebástien possam conseguir realizar aquilo que desejarem. No caso, foi uma

finalidade ética – auxiliar o pai, proporcionando a ele conforto nos últimos dias de sua vida –,

mas o meio foi anti-ético – seria uma espécie de ―propina‖. ― – Esse dossiê seria atualizado

semanalmente‖, diz Sebástien à funcionária do Hospital.

O filme também traz a discussão acerca do uso das drogas para fins

terapêuticos. Sebástien, por recomendação do médico do seu pai, almeja aliviar a dor de

Rémy e busca heroína para tal fim. Contudo, a heroína é uma droga ilegal, vendida

unicamente por traficantes de drogas. Sebástien, no intuito de agir eticamente, busca uma

delegacia de narcóticos e procura falar com um agente responsável sobre o assunto. Como não

obtém sucesso, sendo até ridicularizado, sente-se decepcionado, mas fica com a consciência

tranqüila por perceber que tentou fazer da maneira certa. Ademais, ao sair do local, o agente,

já acreditando em suas alegações, informou-o que a heroína era muito consumida por artistas

e poetas. Assim, ele concedeu a Sebástien essa dica para ele ir à procura da droga para o fim

que almejava, pois considerou ética a conduta do filho almejando amenizar a dor e sofrimento

do pai.

Contudo seria essa uma atitude ética? Seria conveniente levar o pai à

dependência de drogas somente para que ele possa usufruir de alguns momentos a mais de

alegria? Deve-se lembrar, nesse caso, que Rémy estava sentindo dores muito fortes e, se não

fosse o efeito do entorpecente, teria sofrido ainda mais. Como o tempo de vida dele era muito

curto, ele ainda pôde usufruir de momentos felizes ao lado da família e dos amigos e a droga,

nesse aspecto, foi decisiva, pois sem a heroína ele teria padecido de agonia extrema. Por isso

o médico recomendou-a – mesmo que tenha alertado que não era certa a eficiência pois a

pesquisa acerca do assunto estava em fase de testes.

No entanto, questiona-se se a atitude de Sebástien ao propor a Nathalie o

pagamento de droga para seu consumo em troca de ―drogar e cuidar‖ de Rémy foi ética. Ele

poderia ter prometido algum benefício para a moça, não algo que faz mal a ela. Contudo, ela

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era dependente do narcótico, e mesmo que Sebástien a pagasse com dinheiro pelos serviços

prestados, ela usá-lo-ia para comprar heroína.

Em um determinado momento Nathalie estava tão dopada que não pôde nem

cumprir a sua função e olvidou-se de ir aplicar a dose em Rémy, que quase morre em virtude

de uma crise de abstinência da heroína. Foi preciso Sebástien buscá-la e, como ela não

conseguiu aplicar a injeção na veia, Sebástien teve de implorar à enfermeira para fazê-lo.

Nesse momento, um conflito ético esteve na mente da enfermeira: como poderia aplicar

heroína em uma pessoa, isso é ilícito. Contudo, ao ver o padecimento de Rémy e a súplica do

filho vendo o pai desfalecer e se contorcer de agonia, ela se convenceu, solicitou que

fechassem a porta e aplicou o ―remédio‖ no paciente, que imediatamente teve o

restabelecimento do bem-estar. A enfermeira, depois, asseverou que não faria isso todas as

noites, imaginando escusar-se de responsabilidade tão tormentosa e provavelmente

incriminadora – mesmo com o consentimento dos familiares.

Acerca do conflito entre religião e ateísmo pode-se citar o diálogo entre Rémy

e a enfermeira, no qual ela, ao ouvir a menção de seu paciente de que teve diversas amantes,

indica que ele, depois de morrer, ―queimaria no mármore do inferno‖. Contudo, ele diz que a

enfermeira, por ser tão pacífica, teria um destino monótono quando morresse, dizendo: “Eu

não trocaria de lugar com a Senhora, irmã, condenada a tocar harpa eternamente sentada

entre João Paulo II, um polonês sinistro e Madre Teresa, uma albanesa viscosa”, diz o

personagem principal, Rémy.

Em outra ocasião Rémy conversa com a enfermeira sobre as matanças da

história da humanidade que passaram despercebidas pelos olhos da Igreja Católica e até de

outras em que a própria Igreja auxiliou, devido aos seus interesses. Ademais, demonstra-se

convicto em persistir acreditando em suas filosofias, mesmo com a insistência da enfermeira

em convertê-lo para o cristianismo, a fim de que ―sua alma pudesse ser salva‖.

Rémy age eticamente ao respeitar a escolha religiosa da enfermeira – mesmo

que tenha agido uma vez de forma desrespeitosa ao se referir a dois mártires da Igreja

Católica – e esta também age corretamente ao tentar convencê-lo, mas não forçá-lo, deixando

a alternativa de escolha, respeitando também as filosofias ateístas do paciente.

O mais importante para se analisar em questão ao filme é o assunto

―eutanásia‖. Teria agido Rémy com livre arbítrio ao escolher, naquele momento, que queria

morrer, não mais sofrer? E os seus parentes poderiam ter optado em deixá-lo continuar

sofrendo? A atitude de Nathalie ao aplicar a injeção no soro de Rémy, mesmo que tivesse sido

a pedido de Rémy e da família dele deve ser penalizada? Teria sido mais conveniente

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prolongar o sofrimento dele? Essas análises serão abordados no próximo tópico deste

trabalho.

A QUESTÃO DA EUTANÁSIA NO FILME ―AS INVASÕES BÁRBARAS‖

COMPARADO COM O FILME ―MAR ADENTRO‖

A eutanásia aplicada no filme ―As invasões bárbaras‖ difere daquela

visualizada no filme ―Mar Adentro‖.

O filme ―Mar Adentro‖, baseado na história de vida de Ramón Sampedro,

mostra um paciente que sofrera uma lesão no pescoço quando era jovem, algo que o deixou

tetraplégico, sem poder locomover-se, por mais de duas décadas. Insatisfeito com a situação,

agindo de pleno livre-arbítrio, solicita a amigos que forneçam a ele cianeto de potássio diluído

num copo com água contendo um canudo para que ele mesmo possa beber e suicidar-se.

Contudo, no decorrer do filme, percebe-se que não há o consentimento dos familiares, eles

não desejam vê-lo morrer, por mais que seja difícil e custoso cuidar dele e sustentá-lo naquela

situação.

Assim, a situação se assemelha mais com auxílio ao suicídio, haja vista que

Ramón não era doente em estado terminal, prestes a morrer, mas, mesmo assim, sofrera muito

tempo e estava cansado da vida que levava, permanentemente num leito, se movendo com o

auxílio dos parentes que tinham de mudá-lo de posição na cama a cada duas horas, trocando

sua roupa, banhando-o, barbeando-o e cuidando das necessidades fisiológicas dele.

No filme ―Invasões Bárbaras‖, é demonstrado como personagem principal um

doente em estado terminal, que sofre demasiadamente. Ele pode se locomover, mas tem

muitas dificuldades para fazê-lo. Ademais, sua família tem condições para fazê-lo sentir-se

bem – seu filho detém elevado poder financeiro. Contudo, num determinado momento, ele

toma a decisão de morrer e comunica isso a família que, ao contrário do que ocorre no filme

―Mar Adentro‖, aceita a decisão e despede-se de Rémy fraternalmente, sem contestar a sua

decisão. Rémy aceita morrer em um momento que ele julga adequado e feliz, almeja ter uma

―boa morte‖. Já Ramón quer morrer porque não vê sentido na vida em que levava, sendo que

a morte era preferível ao sobreviver naquele estado, estando tetraplégico e podendo mover

somente a cabeça.

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PESQUISA DE APROFUNDAMENTO: FICHAMENTO DA OPINIÃO DE DIVERSOS

AUTORES SOBRE O TEMA EUTANÁSIA, EM OBRAS DE PONTO DE VISTA

DIVERSIFICADO

Segundo José Renato Nalini em sua obra ―Ética Geral e Profissional‖, ―ao

homem não é dado dispor de sua vida. Precisa mantê-la em curso, com a higidez possível, até

que a ceifadeira venha a colhê-la. O que é inexorável. Por isso é que o suicídio não é aceitável

e só não se pune quem o pratica por absoluta impossibilidade. Ausente o fenômeno vida,

inviável qualquer espécie de punição para o morto. Ao menos no momento histórico em que

se vive‖ (NALINI, 2009, p. 209). Assim, do seu ponto de vista, a atitude de Rémy em

solicitar à sua família o momento de morrer demonstra-se inaceitável sob o ponto de vista de

Nalini, já que seria uma disposição sobre a própria vida, o que não é aceitável e só não é

punível por absoluta impossibilidade.

Nesse sentido, discorre Nalini: ―A ninguém é dado dispor da própria vida.

Menos ainda, da vida alheia‖. (NALINI, 2009, p.209). Na legislação penal brasileira, a

conduta de Nathalie, filha de Diane, amiga de Rémy, ao aplicar a injeção letal no soro de

Rémy é punível como homicídio. Isso está descrito no artigo 122 do Código Penal Brasileiro:

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Parágrafo único - A pena é duplicada: Aumento de pena I - se o crime é praticado por motivo egoístico; II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.

Para Capez, ―A legislação penal pátria não incrimina a conduta de destruir a

própria vida. O ordenamento jurídico ao não incriminar o suicídio tem em vista duas razões

de índole político-criminal, a primeira, segundo Nélson Hungria, diz respeito ao caráter

repressivo da sanção penal: não se pode cuidar de pena contra um cadáver (mors omnia

solvit); a segunda, conforme o mesmo autor, diz com o caráter preventivo da sanção penal: a

ameaça da pena queda-se inútil ante aquele indivíduo que nem sequer teme a morte. E se

hipoteticamente alguma pena fosse aplicada, como, por exemplo, o confisco dos bens, esta

atingiria exclusivamente os herdeiros do suicida, infringindo o princípio constitucional basilar

da personalidade da pena (CF, art. 5º, XLV). O ordenamento jurídico igualmente não

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incrimina a tentativa de suicídio, tendo também por base motivo de índole político criminal.

Com efeito, sancionar aquele que já padece de dor moral insuperável, irresistível, cujo ápice o

conduz a tentar a ocisão da sua própria vida, serviria apenas, segundo Nélson Hungria, para

aumentar no indivíduo o seu desgosto do gestor de auto-destruição‖. (CAPEZ, 2007, p. 87)

Sobre a eutanásia, discorre Nalini: ―Auxílio à morte ou eutanásia, no contexto

médico, é ‗toda ação ou omissão que tenha por fim abreviar a vida de um paciente para evitar

o sofrimento‘. Ela pode ser voluntária – resultante da exigência ou desejo expresso da pessoa

capaz de decisão – e involuntária – aquela sem exigência, no caso de pessoas incapazes de

decidir, pessoas inconscientes ou que não estão em condições de entender a decisão entre a

vida e a morte‖. (NALINI, 2009, p. 210). Adiante, ainda cita: ―Vida é pressuposto a que uma

coisa possa ter valor. Nada tem valor para um sujeito sem a vida dele‖. (NALINI, 2009, p.

211).

Ademais, para José Renato Nalini, ―Pensar na morte deveria ser exercício

diário. Exatamente porque se morre é que se pode conferir intensidade a cada dia que se vive.

Cada dia vivido é um dia a menos na trajetória terrena. Ninguém deixará de morrer. É a mais

democrática das ocorrências para a humanidade. A inseparável, a inevitável, a indesejável está

aí, à espreita. Viver com ética e pensar sobre o que se acumula nesta breve trajetória terena é

dever ético que, bem exercido, faria com que as pessoas se relacionassem melhor. Deixassem

as insignificâncias e o supérfluo para pensar no fundamental‖. (NALINI, 2009, p. 212)

Mais adiante, em sua obra ―Ética Geral e Profissional‖, este mesmo autor

indica: ―Hoje, lê-se a respeito da morte suave, de morte digna, como se fora tema longíquo.

Amanhã, a cada qual poderá estar reservado vivenciar essa realidade por si mesmo ou em

relação a uma pessoa muito querida. Então haverá necessidade de definições e de adequada

compreensão daquilo ora exposto, para que não se acrescentem angústias à carga já

naturalmente cometida a cada qual‖. (NALINI, 2009, p. 212).

Retomando o pensamento de Capez, ele expressa a historicidade da pena que é

imposta aos suicidas: ―As legislações estrangeiras, na antiguidade, em sua maioria,

consideravam crime o suicídio. Assim era na Inglaterra, cuja common Law previa a aplicação

de penas contra o cadáver e seus familiares, tais como privação de honras fúnebres, exposição

do cadáver atravessado com um pau, sepultamento em estrada pública, confisco de bens. Na

Grécia, o suicida tinha a sua mão direita cortada, a fim de ser enterrada à parte. Sob a

influência do cristianismo o suicídio, além de passar a ser considerado crime, passou a ser

concomitantemente pecado contra Deus, sendo negada aos suicidas a celebração de missas. O

Direito Canônico equiparou o homicídio ao suicídio ao ponto de, sob as Ordenações de São

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Luís, ser instaurado processo contra o cadáver do suicida, sendo seus bens confiscados. Em

algumas cidades, o cadáver do suicida, segundo os estatutos, devia ser suspenso pelos pés e

arrastado pelas ruas, com o rosto voltado para o chão‖. (CAPEZ, 2007, p. 87).

Quanto ao crime de auxílio em suicídio, indica Heleno Fragoso: ―Exige-se,

para configurar o crime previsto no artigo 122 do Código Penal brasileiro, que a vítima seja

capaz de praticar o suicídio com vontade livre não viciada‖ (FRAGOSO, 1981, p. 99).

Capez abre os seguintes parênteses na avaliação desse crime: ―[...] quem induz

uma criança a tomar veneno não a está convencendo a se matar, mas praticando homicídio, no

qual o menor atua como simples instrumento, longa manus, do assassino. (CAPEZ, 2007, p.

91). Ainda mais, ele cita uma decisão judicial envolvendo caso de auxílio a suicídio: ―TJSP

―age com dolo eventual o neto que entrega bolsa contendo arma municiada ao avô, que se

encontrava internado e suspeitava ser portador de moléstia incurável; confirmada a pronúncia,

cabe ao júri a última palavra‖ (RT, 720/407)‖ (CAPEZ, 2007, p. 92).

Outro penalista de renome, César Roberto Bitencourt, expressa: ―Não sendo

criminalizada a ação de matar-se ou a sua tentativa, a participação nessa conduta atípica,

conseqüentemente, tampouco poderia ser penalmente punível, uma vez que, segundo a teoria

da acessoriedade limitada, adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, a punibilidade da

participação em sentido estrito, que é uma atividade secundária, ―exige que a conduta

principal seja típica e antijurídica‖. A despeito dessa correta orientação político-dogmática, as

legislações modernas, considerando a importância fundamental da vida humana, passaram a

prever uma figura sui generis de crime, quando alguém, de alguma forma, concorrer para a

realização do suicídio‖. (BITENCOURT, 2007, p. 94-95).

Bittencourt, mais adiante, em seu livro, expressa: ―O bem jurídico tutelado,

indiscutivelmente, é a vida humana. Ferri sustentava que o homem pode livremente renunciar

à vida, e, por isso, a lei penal não deveria intervir. Não existe o ―direito de morrer‖ de que

falava Ferri, na medida em que não há um direito sobre a própria vida, ou seja, um direito de

dispor, validamente, sobre a própria vida. Em outros termos, a vida é um bem jurídico

indisponível! Lembrava Heleno Fragoso que ―não há direitos e deveres jurídicos perante si

mesmo‖. O fundamento da participação em suicídio não é, como sustentava Carrara, ―a

inalienabilidade do direito à vida‖. A vida não é um bem que se aceite ou se recuse

simplesmente. Só se pode renunciar o que se possui, e não o que se é. ―O direito de viver —

pontificava Hungria — não é um direito sobre a vida, mas à vida, no sentido de correlativo da

obrigação de que os outros homens respeitem a nossa vida. E não podemos renunciar o direito

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à vida, porque a vida de cada homem diz com a própria existência da sociedade e representa

uma função social‖. (BITENCOURT, 2007, p. 95-96).

Para incrementar a diversidade de opiniões, cita-se a da professora de Direito

da Universidade Federal da Bahia, Roxana Cardoso Brasileiro Borges, em sua obra intitulada

―Direitos de Personalidade e Autonomia Privada‖: ―Etimologicamente, a palavra ‗eutanásia‘

significa boa morte ou morte sem dor, tranqüila, sem sofrimento. Deriva dos vocábulos

gregos eu, que pode significar bem, bom, e thanatos, morte. No sentido que tinha em sua

origem a palavra ‗eutanásia‘, ela significaria, então, morte doce, morte sem sofrimento. Morte

doce, sem sofrimento, não significa morte provocada‖. Adiante, continua discorrendo: ―O

primeiro sentido de euthanatos faz referência a facilitar o processo de morte, sem, entretanto,

interferência neste. Na verdade, conforme o sentido originário da expressão, seriam medidas

eutanásicas não a morte, mas os cuidados paliativos do sofrimento, como o acompanhamento

psicológico do doente ou outros meios de controle da dor. Também seria uma medida

eutanásica a interrupção de tratamentos inúteis ou que prolongassem a agonia. Ou seja: a

eutanásia não visaria à morte, mas a deixar que esta ocorra da forma menos dolorosa possível.

A intenção da eutanásia, em sua origem, não era causar a morte, mesmo que fosse para fazer

cessar os sofrimentos da pessoa doente‖. (BORGES, p. 234)

Adiante, Roxana Borges indica: ―Atualmente, porém, tem-se falado em

eutanásia como a morte provocada por sentimento de piedade à pessoa que sofre. Em vez de

deixar a morte acontecer, a eutanásia, no sentido atual, age sobre a morte, antecipando-a. O

conceito foi modificado e tem causado muita confusão. (BORGES, p. 234)‖. ―Quando se

busca simplesmente causar morte, sem a motivação humanística, não se pode falar em

eutanásia. A eutanásia é comumente provocada por parentes, amigos e médicos do paciente.

Assim, a eutanásia eugênica, utilizada pelo nazismo alemão contra judeus e doentes, não é

considerada eutanásia própria, mas homicídio simples e qualificado. Também a morte de

velhos, pessoas com deformação e doentes, mesmo incuráveis, mas que não se encontram em

estado terminal e submetidos a forte sofrimento, também não é eutanásia (que se encaixa em

hipótese de homicídio privilegiado)‖. (BORGES, p. 234-235).

Em sua obra Roxana Cardoso Brasileiro Borges cita Maria Helena Diniz:

―Maria Helena Diniz relata que os Códigos Penais da Alemanha, da Suíça e da Itália

encaixam a eutanásia no tipo de homicídio atenuado por motivo piedoso, não se admitindo

absolvição nem perdão judicial‖ (DINIZ, 2001 apud BORGES, p. 235).

Para Roxana, ―No Brasil o que se chama de eutanásia é considerado crime.

Encaixa-se na previsão do art. 121, homicídio. Se se trata mesmo da eutanásia verdadeira,

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cometida por motivo de piedade ou compaixão para com o doente, aplica-se a causa de

diminuição de pena do § 1º do art. 121, que prevê: ―Se o agente comete o crime impelido por

motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em

seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço‖.

(BORGES, p. 235). ―O suicídio assistido, ou o auxílio ao suicídio, é também crime. Ocorre

com a participação material, quando alguém ajuda a vítima a se matar oferecendo-lhe meios

idôneos para tanto. Assim, um médico, enfermeiro, amigo ou parente, ou qualquer outra

pessoa, ao deixar disponível e ao alcance do paciente certa droga em dose capaz de lhe causar

a morte, mesmo com a solicitação deste, incorre nas penas de auxílio ao suicídio. A vítima é

quem provoca, por atos seus, sua própria morte. Se o ato que visa à morte é realizado por

outrem, este responde por homicídio, não por auxílio ao suicídio. A solicitação não afasta a

ilicitude da conduta‖. (BORGES, p. 236)

Do ponto de vista médico, é interessante citar o conteúdo de uma obra voltada

aos estudantes de Medicina, o Tratado de medicina interna, editado por Lee Goldman e

Dennis Ausiello: ―É muito comum argumentar que os modernos avanços da tecnologia

médica, os antibióticos, a diálise, o transplante e as unidades de cuidados intensivos criaram

dilemas bioéticos com os quais se defrontam os médicos do século XXI. Entretanto, as

preocupações sobre aspectos éticos são tão antigas quanto a prática da própria medicina. O

juramento de Hipócrates, composto por volta de 400 a.C., atesta a necessidade dos médicos

gregos antigos disporem de orientação sobre como abordar os muitos dilemas bioéticos com

os quais se deparavam. O juramento aborda assuntos como confidencialidade, aborto,

eutanásia, relações sexuais entre o médico e o paciente, conflito de lealdades e, pelo menos

implicitamente, atendimento caritativo e execuções. Outros trabalhos de Hipócrates abordam

questões como a suspensão do tratamento em pacientes em estado terminal e a comunicação

da verdade. Quer concordemos com a orientação fornecida ou não, o ponto importante é que

muitas questões bioéticas não são criadas pela tecnologia, porém são intrínsecas à prática

médica. A tecnologia pode intensificar a freqüência dessas questões e modificar o contexto

em que surgem, mas existem aspectos bioéticos básicos atemporais.

Muitos médicos conhecem os quatro princípios principais a serem invocados

ao abordar dilemas bioéticos: autonomia, não-maleficiência, beneficiência e justiça. A

autonomia compreende a idéia de que as pessoas devem ter o direito e a liberdade de escolher,

perseguir e rever seus próprios planos de vida. A não-maleficiência é a idéia de que as pessoas

não devem ser lesionadas ou feridas conscientemente; este princípio está encerrado no dizer,

muito repetido, de que o médico tem, em primeiro lugar, a obrigação de ―não fazer o mal‖ –

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primum non nocere. Esse enunciado não está formulado no juramento de Hipócrates e nem

em outros trabalhos desse autor: a única frase parecida, porém não idêntica, de Hipócrates, é:

―na pior das hipóteses, não fazer mal‖. Embora a não-maleficiência tenha relação com evitar

danos, a beneficiência está relacionada com ações positivas que o médico deve empreender

para promover o bem-estar de seus pacientes. Na prática clínica, essa obrigação costuma

basear-se nos compromissos implícitos e explícitos das promessas que cercam a relação

médico-paciente. Finalmente, existe o princípio da justiça, que é a justa distribuição de

benefícios e ônus. (p. 5-6)

DEFINIÇÕES DE SUICÍDIO ASSISTIDO E EUTANÁSIA (p.9)

TERMO DEFINIÇÃO

Eutanásia voluntária ativa Administração intencional de medicamentos ou outras

intervenções que visem causar o óbito do paciente, com

consentimento informado do próprio paciente.

Eutanásia ativa involuntária Administração intencional de medicamentos ou outras

intervenções que causem o óbito do paciente quando o

paciente tiver competência para consentir, mas não o tiver

feito (p. ex.: o paciente não pode ser consultado).

Eutanásia ativa não-involuntária Administração intencional de medicamentos ou outras

intervenções que causem o óbito do paciente quando o

paciente não tiver competência e estiver mentalmente

incapacitado para formular o consentimento (p. ex.: o

paciente pode estar em coma).

Eutanásia passiva Não administrar ou suspender tratamentos médicos de

suporte à vida em um paciente, para deixá-lo morrer

(tratamentos de suporte à vida no paciente terminal).

Eutanásia indireta Administração de narcóticos ou outros medicamentos

para alívio de dor que acidentalmente causem depressão

respiratória suficiente para resultar no óbito do paciente.

Suicídio assistido por médico O médico fornece medicamentos ou outros recursos ao

paciente, sabendo que o paciente pode utilizá-los para

cometer suicídio.

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Existem quatro argumentos contra a permissão da eutanásia e do suicídio

assistido por médico. Em primeiro lugar, Kant e Mill consideravam que a autonomia não

incluía a abolição voluntária das condições necessárias para a autonomia e, como

conseqüência, os dois filósofos eram contra a servidão e o suicídio voluntários.

Conseqüentemente, o exercício da autonomia não pode incluir dar fim à vida, pois isso

significaria dar fim à possibilidade do exercício da autonomia. Em segundo lugar, muitos

pacientes em estado terminal encontram-se em situação de dor e sofrimento por não estarem

recebendo tratamento apropriado. Sendo assim, é possível que uma atenção adequada

aliviasse grande parte dessa dor e sofrimento. Embora alguns pacientes possam continuar

padecendo de dores e sofrimento incoercíveis em detrimento de estarem recebendo a melhor

atenção possível, não é sensato recorrer à situação desses raros pacientes como justificativa

para permitir a eutanásia e/ou o suicídio assistido por médico em qualquer paciente em estado

terminal. Em terceiro lugar, existe uma intenção clara entre dar intencionalmente fim à vida e

tratamentos de suporte à vida em pacientes terminais. As ações efetivas são diferentes –

injetar uma medicação que interrompa a vida, como um relaxante muscular, ou fornecer uma

prescrição para esse tipo de substância não é o mesmo que suspender ou não iniciar uma

intervenção médica invasiva. Finalmente, devem ser contempladas as conseqüências adversas

da permissão da eutanásia e do suicídio assistido por médico. Existem relatos perturbadores

de eutanásia involuntária na Holanda e uma grande preocupação sobre a eventual pressão

exercida sobre pacientes caros ou trabalhosos para concordarem com a realização de eutanásia

e/ou suicídio assistido por médico. A permissão da eutanásia e do suicídio assistido por

médico provavelmente gerará uma intrusão ainda maior de advogados, tribunais e legislação

na relação médico-paciente. (p. 9)

Existem quatro argumentos paralelos a favor da permissão da eutanásia e do

suicídio assistido por médico. Em primeiro lugar, argumenta-se que a autonomia justifica a

eutanásia e o suicídio assistido por médico. Respeitar a autonomia pressupõe permitir que os

indivíduos decidam o melhor momento de dar fim a suas vidas pela eutanásia e/ou pelo

suicídio assistido por médico. O segundo ponto é que a beneficiência – a garantia do bem-

estar dos indivíduos – sustenta a permissão de eutanásia e suicídio assistido por médico. Em

alguns casos, viver pode provocar mais dor e sofrimento do que morrer; dar fim a uma vida

imersa em dor alivia mais sofrimento e, portanto, gera mais bem. A mera tranqüilidade de ter

a opção de eutanásia e/ou do suicídio assistido por médico mesmo para a pessoa que não a

use, pode oferecer ―alento psicológico‖ e ser benéfica para as pessoas. O terceiro ponto é que

a eutanásia e o suicídio assistido por médico não diferem da suspensão de tratamentos de

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suporte à vida, que é reconhecida e eticamente justificada. Nos dois casos, o paciente consente

em morrer; nos dois casos, o médico tem a intenção de interromper a vida do paciente e adota

alguma atitude para fazê-lo; e, nos dois casos, o resultado final é idêntico: a morte do

paciente. Se não há diferença no consentimento do paciente, na intenção do médico ou no

resultado final, não pode haver diferença na justificativa ética. O quarto argumento é que é

improvável que se abra uma porta para deslizes como decorrência da permissão para eutanásia

e suicídio assistido por médico. A idéia de que a permissão de eutanásia e suicídio assistido

por médico poderiam comprometer a relação médico-paciente e induzir eutanásias forçadas é

pura especulação, não respaldada pelos dados disponíveis. (p. 9)

O que é uma ―boa morte‖? Não existe uma forma correta de morrer, exceto na

medida em que corresponda aos desejos de um paciente bem informado. O ponto de vista do

paciente sobre o que seja uma ―boa morte‖ é muito pessoal e, com freqüência, diferente da

perspectiva dos médicos. Objetivos psicossociais e espirituais freqüentemente têm prioridade

em relação aos biomédicos. Bons cuidados no final da vida exigem que o médico compreenda

valores e aspirações do paciente. Os médicos tendem a considerar que seu papel é prolongar a

vida a qualquer custo razoável, ao passo que os pacientes podem dar prioridade a permanecer

em casa, viver alguns momentos significativos com a família e evitar um prolongamento

desnecessário, caro e fisicamente desgastante da vida. Os membros da família, embora sempre

esperem a cura ou o prolongamento da vida, podem reconhecer que transmitir o seu amor e

usufruir do relacionamento com o paciente são atitudes mais importantes do que deixar o

paciente suportar mais alguns dias em desconforto. (p. 13)

Desde os primórdios da medicina, era considerado ético não administrar

tratamento médico a pacientes com doenças terminais, deixando-se ―que a natureza seguisse o

seu rumo‖. Hipócrates argumentava que os médicos deveriam ―recusar-se a tratar daqueles

[pacientes] que já estejam excessivamente subjugados por sua doença‖. No século XIX,

eminentes médicos americanos defendiam a não-administração de ―tratamento‖ cartático e

hermético a doentes terminais, usando-se, em vez disso, o éter para aliviar a dor do final da

vida. Em 1900, os editores de The Lancet argumentavam que os médicos deveriam intervir no

sentido de minorar a dor da morte, mas não tinham obrigação de prolongar uma vida

claramente terminal. O debate contemporâneo sobre a atenção a pacientes terminais iniciou-se

em 1976, com o caso Quinan, no qual a Suprema Corte de New Jersey concluiu que os

pacientes tinham o direito de recusar intervenções de suporte à vida, com base no direito à

privacidade, e que a família poderia exercer esse direito pelo paciente que estivesse em estado

vegetativo persistente. (p. 7)

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O mercado de vendagem de revistas também encontra no tema uma

possibilidade de atrair leitores. Nesse sentido, uma matéria veiculada pela revista

Superinteressante, edição 162, de março de 2001, também merece ser citada: ―Para ele [jurista

Celso Ferenczi, professor de direitos humanos da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo], a eutanásia não viola apenas a lei divina - é uma afronta também à lei humana. "O que

se chama de morte piedosa vai contra a declaração dos direitos humanos da ONU", diz. A

declaração estabelece o direito fundamental à vida. Esse tipo de direito é inalienável, ou seja,

não se pode abrir mão dele. Como os direitos humanos são cláusula pétrea de nossa

Constituição, não podem ser modificados nem se todos os deputados votarem a favor - só uma

nova Assembléia Constituinte teria poder para aboli-los. "A legalização da eutanásia seria

inconstitucional", afirma Celso.

"Não há nada pior do que a sensação de morte iminente. O doente sabe que vai morrer

e isso não é fácil", diz o oncologista paulista Riad Younes. Ele é especialista no mais terrível

dos cânceres, o de pulmão, que lhe rouba 85% dos pacientes. Já viu muita gente morrer. E

conta que a maioria dos doentes terminais passa as noites em claro, não por causa da dor, mas

pelo pavor de algo acontecer quando não houver ninguém por perto para socorrê-lo. Essa

tensão, segundo Riad, é muitas vezes insuportável.

A revista Superinteressante, na mesma reportagem, indica a opinião de diversas

religiões acerca do tema em pauta:

Cristianismo Em 1980, o Vaticano divulgou uma Declaração Sobre a Eutanásia, na qual reitera que "nada nem ninguém pode de qualquer forma permitir que um ser humano inocente seja morto, seja ele um feto ou um embrião, uma criança ou um adulto, um velho ou alguém sofrendo de uma doença incurável, ou uma pessoa que está morrendo." Alguns cristãos defendem o sofrimento na hora da morte como uma oportunidade para que os cristãos se identifiquem com a agonia de Jesus. Judaísmo O Velho Testamento fala na sacralidade da vida humana. A posição da maioria dos religiosos é a de que a eutanásia e o suicídio assistido são uma ofensa a Deus. Alguns líderes judeus, entretanto, acreditam que manter uma vida por aparelhos pode impedir que a alma entre no paraíso. Islamismo O Alcorão diz: "Não tire a vida que Alá fez sagrada a não ser no exercício da Justiça". Os muçulmanos vêem a morte piedosa como um crime e um pecado. Hinduísmo Os hindus têm a obrigação de respeitar os velhos e de cuidar deles até a morte. Não se cogita tirar a vida de um moribundo. Budismo É a única das grandes religiões a aceitar a morte piedosa, quando o sofrimento de se manter vivo é pior que a morte. A decisão deve ser tomada caso a caso.

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