rÉquiem para a cultura popular - noelio spinola

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1 Réquiem para a cultura popular Noelio Dantaslé Spinola 1 "Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver." Ariano Suassuna (2007) Resumo Texto elaborado para o IX Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos. Trata do conflito entre as formas primitivas e ingênuas da arte, que integram a cultura popular e consequentemente a economia cultural, e a indústria cultural engendrada pelo sistema capitalista. Parte de um conjunto de definições e analisa alguns aspectos do carnaval, da produção de instrumentos musicais e do artesanato, fazendo a ligação destes com a influência africana e suas repercussões na economia do turismo. O texto é centrado num quadro que o autor, num estilo irreverente e heterodoxo, pinta para a cidade do Salvador, no estado da Bahia. Palavras-chave: Economia cultural. Indústria cultural. Cultura popular. Salvador. Abstract Text prepared for the IX National Meeting of the Association of Urban and Regional Studies. This text deals with the conflict between the primitive and naive art, incorporated popular culture and consequently the cultural economy and cultural industry engendered by the capitalist system. Starting on a set of definitions, examines some aspects of carnival, the production of musical instruments and crafts, linking them with the African influence and its impact on the tourism economy. The text is centered on author’s framework, in an irreverent style and unorthodox city of Salvador painting in Bahia state. Key words: Cultural economy. Cultural industry. Popular culture. Salvador. Uma introdução pouco formal Meus mestres me ensinaram há muito tempo que um texto acadêmico deve ser austero, rígido, mais frio que um defunto, recheado de citações, atento às normas da ABNT que mudam frequentemente aos caprichos de um comitê de “sábios”, para o desespero de autores e revisores indefesos, e sem qualquer concessão ao humor, sarcasmos e ironias. Distância! Use sempre a terceira pessoa! Rident castigat mores, ensinaram os romanos, mandando para o inferno o formalismo, no que foram bem copiados por Gil Vicente e Voltaire, mestres da irreverência. O humor, o riso, está na base da nossa cultura popular. Por que não celebrarei seu funeral segundo a ortodoxia acadêmica? Porque estou com o poeta Noel Rosa cantando Fita Amarela: “quando eu morrer, não quero choro nem vela…”. Porque também estou com o poeta Ariano Suassuna, em sua Iniciação à Estética: “do ponto de vista social, o riso é uma espécie de castigo ou reprimenda que a sociedade inflige a alguma coisa que a ameaça” (2007, p. 155). Através do riso, relata Petry (2010, p.1) os costumes que estavam em desacordo com a moral eram castigados e, a partir disso, o riso passa a ser um fenômeno, sobretudo social e 1 Doutor em Geografia e História pela Universidade de Barcelona (ES). Professor Titular de Economia Regional e Métodos de Análise Regional no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano (PPDRU) da Universidade Salvador (UNIFACS). E - mail: [email protected]

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Réquiem para a cultura popular

Noelio Dantaslé Spinola1

"Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver." Ariano Suassuna (2007)

Resumo Texto elaborado para o IX Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos. Trata do conflito entre as formas primitivas e ingênuas da arte, que integram a cultura popular e consequentemente a economia cultural, e a indústria cultural engendrada pelo sistema capitalista. Parte de um conjunto de definições e analisa alguns aspectos do carnaval, da produção de instrumentos musicais e do artesanato, fazendo a ligação destes com a influência africana e suas repercussões na economia do turismo. O texto é centrado num quadro que o autor, num estilo irreverente e heterodoxo, pinta para a cidade do Salvador, no estado da Bahia. Palavras-chave: Economia cultural. Indústria cultural. Cultura popular. Salvador. Abstract Text prepared for the IX National Meeting of the Association of Urban and Regional Studies. This text deals with the conflict between the primitive and naive art, incorporated popular culture and consequently the cultural economy and cultural industry engendered by the capitalist system. Starting on a set of definitions, examines some aspects of carnival, the production of musical instruments and crafts, linking them with the African influence and its impact on the tourism economy. The text is centered on author’s framework, in an irreverent style and unorthodox city of Salvador painting in Bahia state. Key words: Cultural economy. Cultural industry. Popular culture. Salvador. Uma introdução pouco formal Meus mestres me ensinaram há muito tempo que um texto acadêmico deve ser austero, rígido, mais frio que um defunto, recheado de citações, atento às normas da ABNT que mudam frequentemente aos caprichos de um comitê de “sábios”, para o desespero de autores e revisores indefesos, e sem qualquer concessão ao humor, sarcasmos e ironias. Distância! Use sempre a terceira pessoa! Rident castigat mores, ensinaram os romanos, mandando para o inferno o formalismo, no que foram bem copiados por Gil Vicente e Voltaire, mestres da irreverência. O humor, o riso, está na base da nossa cultura popular. Por que não celebrarei seu funeral segundo a ortodoxia acadêmica? Porque estou com o poeta Noel Rosa cantando Fita Amarela: “quando eu morrer, não quero choro nem vela…”. Porque também estou com o poeta Ariano Suassuna, em sua Iniciação à Estética: “do ponto de vista social, o riso é uma espécie de castigo ou reprimenda que a sociedade inflige a alguma coisa que a ameaça” (2007, p. 155). Através do riso, relata Petry (2010, p.1) os costumes que estavam em desacordo com a moral eram castigados e, a partir disso, o riso passa a ser um fenômeno, sobretudo social e

1 Doutor em Geografia e História pela Universidade de Barcelona (ES). Professor Titular de Economia Regional e Métodos de Análise Regional no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano (PPDRU) da Universidade Salvador (UNIFACS). E - mail: [email protected]

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humano e que ocorre somente em circunstâncias onde, de alguma forma, a sociedade vê-se ameaçada. Eu penso que a morte da cultura popular pela sua massificação é uma grande ameaça. Sorrio então, com este estilo, cansado de ser academicamente correto, já encerrando a simbólica idade de 69 anos, e correndo o risco de ter meu texto reprovado por ser assim heterodoxamente irreverente. Sorrindo decidi com desencanto dar meu adeus à cultura popular, naif, e a economia por esta engendrada a partir de múltiplos lugares, como o interior do Nordeste que gerou sertanejos famosos a exemplo dos Vitalino, Nhô Caboclo, Luiz Antônio da Silva e tantos outros; dos undergrounds de Salvador e Recife, responsáveis pelos magníficos carnavais, verdadeiros vulcões que transbordavam uma preciosa criatividade nos batuques dos afoxés, do pau elétrico de Dodô e Osmar,2 transformado em guitarra baiana por Moraes Moreira, da Vassourinha de Joana Batista3 e Matias da Rocha, sucedidos por tantos outros cuja lista é interminável. Seguindo o conselho de Chaplin, quando dizia: “Ei! Sorria... Mas não se esconda atrás desse sorriso...” trato neste artigo de um problema identificado, ainda na década de 1940 por Horkheimer e Adorno (1944) que em sua Dialética do Iluminismo denunciam o surgimento da indústria cultural que no sistema capitalista passa a dominar e absorver a economia cultural. Assim la participación en tal industria de millones de personas impondría métodos de reproducción que a su vez conducen inevitablemente a que, en innumerables lugares, necesidades iguales sean satisfechas por productos estándar. La industria cultural, en suma, absolutiza la imitación (p. 50). Sorrindo vejo sumir a arte ingênua responsável por muitos empregos na economia da cultura popular que nesta implacável marcha da modernidade é transformada em produto da indústria cultural e dá lugar a uma estética padronizada pela máquina e o computador, ou é descartada e esquecida quando inadaptável aos gostos padronizados. Talvez pareça que sou um saudosista romântico daqueles que gostariam de congelar o passado. Sou não! Concordo apenas com Adorno e Horkheimer que há 66 anos diziam: no se trata de conservar el pasado, sino de realizar sus esperanzas (1944, p. 4). Apenas deploro e protesto pela sorte dos pequenos artesãos nordestinos que enfrentam a concorrência desleal e maciça da China que copia descaradamente e sem pagar direitos autorais as suas imagens4; dos músicos e outros artistas populares que de protagonistas vão sendo reduzidos a assalariados eventuais da indústria fonográfica; dos produtores de instrumentos musicais que são massacrados pela concorrência das multinacionais; dos mestres carpinteiros dos saveiros do Recôncavo Baiano liquidados pelo fiberglass e o IBAMA; dos cordelistas que não substituem mais um Patativa do Assaré, um Cuica de Santo Amaro, um Leandro Gomes de Barros ou João Martins de Athayde, até porque as feiras, que eram seus palcos originais, estão acabando, substituídas por centros de abastecimento e pela Internet que decretou o fim do papel impresso. Não vivemos mais na galáxia de Gutenberg, e eu que sou um velho reacionário não acredito em cordelista digital. Não vejo mais a banda passar pelo coreto da praça, nem os circos anunciados pelos palhaços de longas pernas de pau, cantando inocentemente o hoje politicamente incorreto refrão: “olê, olê, olê bambu, fio de nego é urubu!” e seguidos por uma multidão de crianças deslumbradas que lotavam os espetáculos. Os “theatros” desaparecem por falta de salas e patrocinadores. As salas de cinema viraram

2 A “fobica” de Dodô foi transformada em Trio Elétrico. 3 Como sempre nesta seara: há controvérsias. 4 Encontrei similares de produtos da cerâmica afro-baiana fabricados artesanalmente em Maragogipe e Nazaré das Farinhas, e vendidos na Feira dos Caxixis, no Mercado Modelo e na Feira de São Joaquim, em lojas de artesanato de Buenos Aires, Santiago, Lima, Lisboa e Madrid. Todos muito bem feitos, perfeitos, made in China!

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igrejas evangélicas. As “philarmônicas” e as “lyras” populares também sumiram. Estão acabando os músicos que tocavam por partitura. Os festejos religiosos estão sumindo gradualmente ou sofrendo transformações radicais que os descaracterizam como é o caso da Lavagem do Bonfim e das festas da Conceição da Praia, do Rio Vermelho de São Lázaro, de Santa Bárbara e de São Cosme e São Damião. Os que sobrevivem se transformam em carnaval ou desfile de políticos como a famosa lavagem do Bonfim. E por ai vai… Pois bem, é nestas categorias da cultura popular, ingênua, naif, (que geravam emprego e renda e absorvia muitas vezes na informalidade um montão de gente) que agoniza a economia cultural. Neste artigo, pretendo apresentar algumas considerações sobre o problema tratando de alguns aspectos conceituais e de setores da economia cultural popular, como: o carnaval e as festas populares, o artesanato popular, a música, as artes plásticas e cênicas, e a culinária. Limito-me ao território baiano, notadamente Salvador, onde fica a minha tribo, com um lembrete para os demais nordestinos: quando a gente vê as barbas do vizinho arder, é melhor meter as nossas de molho! E o que vem a ser economia cultural? Segundo dizem os doutos, economia cultural é uma categoria que abarca um notável campo de produção, circulação e consumo de bens e serviços simbólicos, de natureza material e imaterial, genericamente denominados bens ou produtos culturais. O uso desta terminologia é frequente na academia, e na mídia, embora a bibliografia sobre o assunto seja exígua. Assim sendo, não há uma conceituação explícita do seu significado. Não existe uma separação entre a economia cultural popular que estuda as categorias mais simples e mais pobres e a economia cultural da elite que estuda as categorias mais sofisticadas. Para compreendê-la melhor analisaremos os seus termos em separado, para depois ressignificá-los em seu conjunto. Sobre a economia, ciência por demais conhecida, a sua importância pode ser observada nos diversos mundos culturais, em todas as épocas históricas e em todas as sociedades. No modo de produção capitalista o mercado torna-se o regulador da vida social. Nestes termos tudo é interpretado como mercadoria. Marx (1971, p.79) destaca que “o sistema capitalista transforma todos os objetos úteis em mercadorias”. Para ele, o fetiche ou caráter ilusório das mercadorias, que afinal satisfazem necessidades humanas, não se deve ao seu valor de uso, mas, sim, ao seu valor simbólico.

A primeira vista, uma mercadoria parece uma coisa trivial e que se compreende por si mesma. Pela nossa análise mostramos que, pelo contrário, é uma coisa muito complexa, cheia de sutilezas metafísicas e de argúcias teológicas. Enquanto valor-de-uso, nada de misterioso existe nela, quer satisfaça pelas suas propriedades as necessidades do homem, quer as suas propriedades sejam produto do trabalho humano. O caráter místico da mercadoria não provém, pois, do seu valor-de-uso. Não provém tão pouco dos fatores determinantes do valor. O carácter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente em que ela apresenta aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como se fossem características objetivas dos próprios produtos do trabalho, como se fossem propriedades sociais inerentes a essas coisas; e, portanto, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho global. Este fetichismo do mundo das mercadorias decorre do caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias. Os objetos úteis só se tornam em geral mercadorias porque são produtos de trabalhos privados, independentes uns dos outros. (MARX, 1971, p.81)

Galbraith (1968) e Canclini (1997) destacam que a sociedade capitalista, ao generalizar e expandir o mercado, aumentando a quantidade de mercadorias nele transacionadas promovendo a diversificação dos seus padrões de qualidade e ampliando

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através do marketing a escala das necessidades, transforma os consumidores, massificando-os e reduzindo subliminarmente a sua liberdade de escolha. Esta generalização dos mercados e de ampliação das necessidades e padrões de consumo da sociedade contemporânea é responsável pela “cultura do consumo”, primordialmente, entendida como “consumo de signos”. O caráter simbólico das mercadorias é quem nos permite falar em economia cultural. Mas, e o que é cultura? É um território em permanente conflito. No nosso entendimento cultura é uma categoria polissêmica e, como tal, são vários os seus significados. Em alguns contextos, que certamente não é o nosso, ela aparece como sinônimo de erudição ou educação acadêmica. No cenário midiático, cultura aparece geralmente vinculada ao mundo das artes: televisão, teatro, cinema, música, literatura, artes plásticas, esportes etc. Do ponto de vista antropológico, entretanto, a cultura é concebida de forma muito mais ampla. O velho antropólogo britânico Edward Burnett Tylor ([1881] 2011) citado por todo mundo, definiu cultura como a expressão da totalidade da vida social do homem. Para ele a cultura trata de “todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade. Trata-se de uma categoria onipresente, pois ocorre em todos os setores do dia a dia: econômico, político, espiritual religioso, etnolinguístico, genético, e sociocomportamental. A cultura dos povos é a interconexão de todas estas esferas, perpassando ainda os aspectos históricos e geográficos do tempo e do espaço. Towse (2003, p.19) ensina que a expressão economia cultural ou da cultura é, em certa medida, uma denominação incorreta e que se utiliza na falta de outra melhor. Sua denominação pioneira foi “economia das artes”, mas este rótulo “se mostrou inadequado por ser restrito e elitista” 5. Ficou-se então com a economia da cultura, como la aplicación de la economia a la producción, distribución y consumo de todos los bienes y servicios culturales, e a explicitação de que todos os bens e serviços culturais devem ter em comum o fato de incluir um elemento artístico ou criativo. Os economistas que constituem uma fauna estranha, da mesma forma que desprezaram os aspectos espaciais da economia, não tomaram conhecimento da economia cultural. Nas palavras de Lasuén (2005, p.39):

Mientras, desde Ia Ilustración, Ias otras ciencias sociales han venido dando, en su seno, una importancia creciente a Ia cultura; Ia economía, llevada de su propósito obsesivo de convertirse en una ciencia natural, hasta fechas muy recientes Ia ha considerado irrelevante o perniciosa. A. Smith y K. Marx, y sus escuelas respectivas, es decir, Ia mayor parte de los economistas, han juzgado, durante los dos últimos siglos, que su actividad era, como Ia de todos los servicios, improductiva y, por tanto, irrelevante. Los únicos economistas que rompieron una lanza por Ia cultura y el arte fueron, naturalmente, los más cultos, Robbins y Keynes. EI primero, como se ha dicho, superando Ia línea clásica que afirrnaba que el objeto de Ia economía era aumentar y distribuir mejor Ia riqueza nacional, dijo que el objeto genérico de Ia economía era garanrizar Ia mejor asignación de recursos escasos a Ia obtención de fines dados, y que éstos podían ser tanto maximizar a riqueza como la cultura. Keynes, por su parte, consiguió que, en Ia Inglaterra tradicionalmente opuesta a toda subvención pública del arte, se creara el National Endowment for the Arts. Pero ninguno de los dos adujo que hubiera que estudiar con criterio económico las actividades culturales y, mucho menos, que se

5 Discordo da autora, por que a arte só existe (na e) para a elite?

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analizara la influencia de la cultura en el análisis y política económicos. (Grifos nossos).

A economia cultural abrange a arte produzida tanto por ricos quanto por pobres. Tanto o Louvre e a Opera de Paris quanto o Circo Picolino, baiano e o gaúcho Teatro de Lona Serelepe são objetos do seu estudo. A literatura disponível sobre o tema, produzida substancialmente nos países do chamado “primeiro mundo” (detesto esta expressão, é tão ridícula quanto “primeira dama”) contempla normalmente os produtos culturais para a “elite” (não só a burguesia, mas também os sofisticados da classe média). Já a literatura brasileira que conheço está geralmente vinculada aos piedosos e esperançosos propósitos dos devotos do desenvolvimento sustentável e solidário. E a cultura popular? Não vou entrar na briga e nas controvérsias sobre o que é popular ou erudito. Porém faço minhas as palavras de Saldanha (2010) quando diz que a indefinição dos termos tende invariavelmente a derivar no preconceito, e na criação de hierarquizações axiológicas de âmbito sociocultural, ou mesmo socioeconômico, excessivamente datadas. Por isto me socorri em Mascelani (2009) que numa linguagem antropológica diz que no Brasil, “costuma-se chamar de “arte popular” a produção de esculturas e modelagens feitas por homens e mulheres que, sem jamais terem frequentado escolas de arte, criam obras de reconhecido valor estético e artístico.” 6 Para mim também estão incluídos nesta classificação os artistas cênicos, da escrita e da música. Esta é, pois, a cultura do povo a quem me dedico. É o resultado de uma interação contínua entre pessoas de determinadas regiões. Nasceu da adaptação do homem ao ambiente onde vive e abrange inúmeras áreas de conhecimento: crenças, artes, moral, linguagem, idéias, hábitos, tradições, usos e costumes, artesanato, folclore, etc. Ainda nas palavras da antropóloga Angela Mascelani:

O universo da arte popular é fecundo e está em permanente movimento. Atravessa todos os recantos da imaginação e em seu rastro revolve e traz à tona antigas tradições quase esquecidas, inventa temas nunca antes pensados, colhe novidades no repertório da vida cotidiana, transforma com frescor o patrimônio de muitas gerações. No Brasil, seus revigorantes caminhos conduzem a campos praticamente ilimitados: da música e do cancioneiro aos shows de habilidades e performances; da literatura de cordel às invenções e bricolages; das festas comunitárias ao folclore; do teatro às brincadeiras de rua, das artes plásticas ao artesanato. Abrange variada gama de produções feitas por pessoas que, sem jamais terem freqüentado escolas de arte, criam obras nas quais se reconhecem valor estético e artístico. Obras que encontram sentido e, de certa forma, revelam importantes aspectos da cultura em que surgem. (MASCELANI, 2009, p.12)

Acredito que a arte popular vem sendo gradativamente absorvida, transformada e canibalizada, pela indústria cultural que, nas palavras de Adorno e Horkheimer (1944 p.37) ao introduzir a tecnologia viabiliza o atendimento simultâneo a milhões de pessoas impondo a adoção de métodos automatizados de reprodução e possibilitando que em inumeráveis lugares, necessidades iguais sejam satisfeitas por produtos padronizados.

La tarea que el esquematismo kantiano había asignado aun a los sujetos la de referir por anticipado la multiplicidad sensible a los conceptos fundamentales le es

6 Seus autores são gente do povo, o que, em geral, quer dizer pessoas com poucos recursos econômicos, (pouca ou nenhuma instrução formal) que vivem no interior do país ou na periferia dos grandes centros urbanos e para quem “arte” significa, antes de mais nada, trabalho. Apesar de fortemente enraizada na cultura e no modo de viver das pequenas comunidades nas quais tem origem, a arte popular exprime o ponto de vista de indivíduos cujas experiências de vida são únicas. Apresenta os principais temas da vida social e do imaginário — seja por meio da criação de seres fantásticos ou de simples cenas do cotidiano — numa linguagem em que o bom humor, a perspicácia e a determinação têm lugar de destaque. (MASCELANI, 2009).

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quitada al sujeto por la industria. La industria realiza el esquematismo como el primer servicio para el cliente. Según Kant, actuaba en el alma un mecanismo secreto que preparaba los datos inmediatos para que se adaptasen al sistema de la pura razón. Hoy, el enigma ha sido develado. Incluso si la planificación del mecanismo por parte de aquellos que preparan los datos, la industria cultural, es impuesta a ésta por el peso de una sociedad irracional - no obstante toda racionalización-, esta tendencia fatal se transforma, al pasar a través de las agencias de la industria, en la intencionalidad astuta que caracteriza a esta última. Para el consumidor no hay nada por clasificar que no haya sido ya anticipado en el esquematismo de la producción. El prosaico arte para el pueblo realiza ese idealismo fantástico que iba demasiado lejos para el crítico. Todo viene de la conciencia: de la de Dios en Malebranche y en Berkeley; en el arte de masas, de la dirección terrena de la producción. No sólo los tipos de bailables, divos, soap-operas retornan cíclicamente como entidades invariables, sino que el contenido particular del espectáculo, lo que aparentemente cambia es a su vez deducido de aquéllos. Los detalles se tornan fungibles. (ADORNO; HORKHEIMER, 1944 p.40)

Segundo Adorno (1999), na Indústria Cultural, tudo se torna negócio. Enquanto negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais É aí que mora o problema, posto que a indústria cultural na busca da maximização dos lucros preconiza a produção em massa. Nisto padroniza o “produto cultural” e prostitui o criador. Fazendo isto mata a criatividade que deriva da espontaneidade posto que dispensa o fluxo de experiências e movimentos na relação com o meio. Em 1978, o eminente antropólogo e etnólogo francês Claude Lévi-Strauss, em seu clássico Myth and Meaning, dizia com grande propriedade:

Provavelmente, uma das muitas conclusões que se podem extrair da investigação antropológica é que a mente humana, apesar das diferenças culturais entre as diversas frações da Humanidade, é em toda a parte uma e a mesma coisa, com as mesmas capacidades. Creio que esta afirmação é aceite por todos. Não julgo que as culturas tenham tentado, sistemática ou metodicamente, diferenciarem-se umas das outras. A verdade é que durante centenas de milhares de anos a Humanidade não era numerosa na Terra e os pequenos grupos existentes viviam isolados, de modo que nada espanta que cada um tenha desenvolvido as suas próprias características, tornando-se diferentes uns dos outros. Mas isso não era uma finalidade sentida pelos grupos. Foi apenas o mero resultado das condições que prevaleceram durante um período bastante dilatado. Chegados a este ponto, não queria que pensassem que isto é um perigo ou que estas diferenças deveriam ser eliminadas. Na realidade, as diferenças são extremamente fecundas. O progresso só se verificou a partir das diferenças. Atualmente, o desafio reside naquilo que poderíamos chamar a supercomunicação – ou seja, a tendência para saber exatamente, num determinado ponto do mundo, o que se passa nas restantes partes do Globo. Para que uma cultura seja realmente ela mesma e esteja apta a produzir algo de original, a cultura e os seus membros têm de estar convencidos da sua originalidade e, em certa medida, mesmo da sua superioridade sobre os outros; é somente em condições de subcomunicação que ela pode produzir algo. Hoje em dia estamos ameaçados pela perspectiva de sermos apenas consumidores, indivíduos capazes de consumir seja o que for que venha de qualquer ponto do mundo e de qualquer cultura, mas desprovidos de qualquer grau de originalidade. (LÉVI-STRAUSS, 1978, p.31/32) Grifos nossos.

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Onde floresce a economia cultural popular É na informalidade que nasce, cresce e morrem a maioria dos protagonistas da economia cultural popular. No seio deste gigante invisível operam milhões de despossuídos, visto não haver restrições de entrada; o aporte de recursos é mínimo e normalmente de origem doméstica; a propriedade dos instrumentos de produção, quando existe, é individual ou familiar; as operações ocorrem em pequena escala sendo os processos produtivos intensivos em trabalho e tecnologia adaptada; a mão de obra é qualificada externamente ao sistema escolar formal; a atuação ocorre em mercados competitivos e não regulados; possui tendências fortemente anarquistas por rejeitar a autoridade governamental e seus ditames burocrático-fiscalistas. O segmento reúne atividades que empregam tecnologias simples ou rudimentares, que alcançam baixa produtividade, entre as quais se inclui uma ampla gama de unidades produtivas que vão desde a pequena oficina de trabalho manual até o ponto de venda ambulante, agrupando, por um lado, trabalhadores que atuam numa modalidade de contratação não legal e, por outro, aqueles que se auto-empregam em atividades de serviço de pouca qualificação, não sendo nítida a divisão entre capital e trabalho e, portanto, a configuração de classes, no seu interior, não obedece à configuração de classes predominantes nos setores modernos. O retrato da informalidade modifica-se continuamente no que se refere à variedade de atividades que abrange.

“A informalidade é um campo criativo, que infiltra a sociedade econômica formalmente organizada, pondo-a contra seu próprio tabu da eficiência. Famílias e pessoas sobrevivem na informalidade, quando não conseguem sobreviver no mercado formal de trabalho. Assim, a informalidade é continuamente infiltrada pelas transformações técnicas da economia formal, que em grande parte realiza uma burocratização do saber” (PEDRÃO, 1998, p.19).

Nos países do apelidado “Terceiro Mundo” a informalidade e a pobreza são fenômenos vinculados, em grande parte devido ao caráter errático das rendas geradas pelo setor e pela precariedade das condições de vida e trabalho dos seus agentes e associados aos:

“(...) segmentos mais pobres da população ocupada sem levar em conta as formas de inserção do trabalhador na produção, (...) se por conta própria ou assalariado -, a forma de organização do estabelecimento produtivo e sua inserção no mercado de bens e ou produtos e o tecido heterogêneo e diversificado do setor informal” (CACCIAMALI, 1991, p.125).

O segmento informal é dito subordinado no sentido de que seu espaço econômico é delimitado pela dinâmica do capital, sendo continuamente redefinido. As atividades informais atuam em espaços “ainda não ocupados, abandonados, criados e recriados pela produção capitalista” (CACCIAMALI, 1983, p. 608), caracterizando-se, pois, por uma inserção intersticial na estrutura econômica. Trata-se de ressaltar a aderência do segmento à dinâmica do capital, sem resvalar para o mecanismo do atrelamento funcional. O setor informal tende a guiar-se por uma lógica empresarial diversa da racionalidade econômica formal, baseada no retorno sobre o capital investido, na taxa de lucro e na acumulação (reinvestimento). Entende-se, então, que o setor informal possui, sim, uma lógica própria de atuação no mercado. É a lógica da sobrevivência que consiste na busca de um retorno financeiro de curtíssimo prazo priorizando a manutenção das necessidades básicas da família. Trocando em miúdos: a metamorfose econômica do carnaval.

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A produção cultural baiana transita entre a informalidade e a formalidade. Nesta

passagem a economia cultural cede lugar à indústria cultural. Parte dos artistas se transforma em empresários, outra parte em assalariados e muitos desaparecem.

Na análise deste fenômeno recorremos a Singer (1980), que observou serem o progresso e a miséria produtos do mesmo processo, que consiste na penetração e na expansão do capitalismo num meio em que predominavam outros modos de produção. Trata-se de um processo de transformação estrutural, que evolui ao longo do tempo. O capital penetra em determinados ramos de atividade em que possui maiores vantagens em relação ao modo de produção preexistente, revolucionando os métodos de produção e introduzindo outras relações de produção. Ou então, ele surge mediante a implantação de atividades novas, que só ele é capaz de suscitar. Cria-se, então, um inter-relacionamento dinâmico entre o segmento capitalista e os outros modos de produção que são postos à disposição do capital, transformando-se, por exemplo, em reservatório de mão de obra.

Aí está exatamente o que vem ocorrendo com o Carnaval, a maior manifestação da cultura popular baiana Como demonstram as estatísticas oficiais, o carnaval baiano transformou-se num mega-empreendimento capitalista, onde as chances de geração de micro e pequenos negócios estão sendo gradativamente eliminadas pela maior capacidade de articulação e competitividade de diversos grupos de interesse internos e externos à festa. Os conhecidos efeitos de Hirschman (1958) “para trás” (backward linkage effects) e “para frente” (forward linkages effects) que a festa produzia em relação a uma miríade de atividades culturais que gravitava em seu entorno vão gradativamente se transferindo para outras regiões (Sudeste) onde um parque manufatureiro com custos competitivos (escala) possibilita um suprimento mais eficaz. E aí desaparece a fonte local de renda para artesãos dos mais diversos segmentos e outros produtores culturais. Veja, por favor, a figura 1, perto daqui. Em 2003 surgiu na Bahia uma brilhante idéia de organizar os micro e pequenos empresários do carnaval para que suprissem com mais eficácia e produtividade as demandas dos grandes blocos carnavalescos e dos foliões em geral, tratava-se da fábrica do carnaval. Nas palavras de Eliana Dumet que, com o finado Nilo Coelho de Araújo (grande técnico), foi a autora do projeto: a fábrica funcionaria como uma oficina de criatividade na área de instrumentos (principalmente percussão), fantasias, elementos decorativos etc. e ofereceria cursos voltados para a formação e gestão de bandas com músicos que soubessem ler partitura. Hoje em dia, qualquer tocador de pandeiro ou atabaque, de qualquer esquina, forma uma banda para tocar de ouvido. As partituras, na Bahia, perderam a finalidade. A fábrica funcionaria o ano inteiro e seria uma grande geradora de emprego e renda para a população da cidade. A idéia era também a de criar núcleos nos bairros, nos anos seguintes, e em cada um deles os trabalhadores cadastrados seriam do próprio bairro. Esta idéia de Dumet foi copiada no Brasil por inúmeros estados, principalmente no Sudeste. Sabe-se que as “fabricas” estão funcionando muito bem no Rio de Janeiro e São Paulo. A da Bahia, criada com “pompa e circunstância” em 2006, fechou sem maiores explicações. Faltou interesse e competência ao poder público para organizar grupos complexos, administrar conflitos e conciliar interesses. A demanda que seria desta fábrica acabou direcionada para a região Sudeste.

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Nossa tese é a de que o Carnaval da Bahia é uma festa negra7 e, como tal, fortemente influenciado pela cultura africana. Sendo assim não se pode deixar de falar na negritude e pobreza da cidade.

Figura 1 – Cadeia produtiva do carnaval baiano. Fonte: O autor.

Salvador é uma cidade negra e pobre, sendo pobre porque é negra. Nas raízes desta pobreza estão os esforços mobilizados pela filosofia e evangelização da Igreja Católica, que ao longo dos séculos sempre se postou a serviço das classes dominantes. Objetivando trazer os negros para os “braços de Jesus” através da catequese e, de tabela, amansá-los para as senzalas canavieiras, os zelosos padres jesuítas que compactuaram cinicamente com uma escravidão cruel, não conseguiram suprimir sua cultura ancestral, conservada e transmitida de geração a geração através da tradição oral maior parte do tempo encapuzada no sincretismo. Muito grave, porém foi que, como sequela, os fez conformarem-se com o pouco, num determinismo fatalista que os levou a aceitarem pacificamente a pobreza como sendo uma condição, um destino, “uma sina”, convencidos nas recompensas da eternidade posto que Jesus mandara lhes dizer que era mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus.

Atualmente quem perpetua estruturalmente o quadro é o circo montado pela indústria cultural

A movimentação negro-mestiça está calcada no sentido genérico de “raízes africanas”. Essa referência a uma origem ancestral procura afirmar uma memória coletiva localizada numa África, muitas vezes, mítica e genérica. O que é apropriado do vasto repertório africano são elementos como a religião, a gastronomia, a música-dança, a moda expressa na indumentária e nos penteados, em variadas formas de usar os cabelos-sinais diacríticos que

7 A extrema direita irá discordar desta afirmativa. Não estou dizendo que os negros criaram o carnaval. Uma festa que segundo Cardoso (2010) surgiu no Egito quatro mil anos antes de Cristo e foi trazida para o Brasil como o Entrudo português. Quem acompanha – analiticamente – o carnaval baiano pode perceber claramente a influência negra e mística no carnaval baiano com os Filhos de Ghandi, Ylê Ayê, Olodum, Timbalada e outros menos votados.

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procuram estabelecer o contraste através da imagem de africanidade (GUERREIRO, 2000). Cada um desses elementos apresenta um vasto potencial econômico.

Penso que a exploração colonialista do negro, com todas as suas trágicas consequências, impediu que ele se inserisse no processo de acumulação capitalista européia ocorrido na Bahia, fazendo com que, sincreticamente, assumisse uma lógica econômica própria. A religião negra, praticada nos numerosos terreiros de Salvador foi, e continua sendo, a esfera sociocultural em que é mais evidente a compreensão ingênua ou crítica, das condições alienadas da sua vida e o ponto de partida de organização da sua consciência social. Assim, a religião, em conjunto com a magia, o folclore e a música reteve as características africanas, mais do que a vida econômica.

Segundo eu mesmo [Spinola (2003)] é neste contexto que o negro pratica a arte da sobrevivência com alegria. E é aí que ele desponta inovador e empreendedor. Com acesso deliberadamente limitado à instrução básica (até o século XIX a educação dos negros era, por lei, proibida na sociedade escravagista) e muito menos à científica e tecnológica, o negro baiano valorizou, da sua herança cultural, o corpo e os sons, somatizando a dor da discriminação e da injustiça social a que foi condenado, num processo atávico de defesa, subconsciente e coletivamente percebido, inovando, adaptando e empreendendo na dança, na música e no carnaval que passaram a constituir novos modos de produção, resistentes à racionalidade econômica e cultural das classes dominantes. Mesmo com a mudança de postura da elite intelectual negra a partir da década de 1960, com os movimentos da consciência negra pipocando pelo mundo a fora, esta alternativa genuína de subsistência começou a ser gradativamente subtraída pela ação de diversos grupos de interesse internos e externos à festa carnavalesca. Isto é o que se constata ao observarem-se os rumos que assume esta festa eminentemente popular. Percebe-se o desenvolvimento de uma elite negra (mas de alma e preconceitos brancos (FANON, 1983)) cooptada pela indústria do entretenimento que, utilizando um discurso racial de apologia aos negros, na realidade apenas os manipula para satisfazer seus projetos de acumulação. E, neste plano, é apoiada tacitamente pelo sistema político dominante (principalmente por aqueles interesses vinculados à mídia, notadamente à televisiva) que, numa apropriação indevida do espaço público, gradativamente expulsa da folia o pequeno negociante do carnaval, os pequenos blocos, o vendedor ambulante etc. Esta postura é reforçada no plano governamental pois, segundo Olivieri (2002) apud Doria (2003) “com a criação das leis de incentivo fiscal à cultura (...) o Estado brasileiro passou a atuar apenas como facilitador da ação cultural”. Entenda-se: o governo federal se estruturou apenas para facilitar que portadores de direitos de saque sobre o Tesouro da União, por força da renuncia fiscal, pudessem agir no mercado como compradores de bens e serviços culturais “segundo os seus interesses publicitários, promovendo a subordinação do fazer cultural ao marketing institucional das corporações. No final do processo, uma prestação de contas formal encerra o controle público, e é só.” (DORIA, 2003)

Várias foram as consequências desse laissez-faire cultural. A primeira foi substituir o artista, o criador de cultura, por empresários culturais na apropriação dos recursos públicos. Não é mais quem escreve um livro, quem canta, quem compõe, quem toca, quem pinta, o beneficiário imediato dos recursos financeiros: é uma empresa ou uma associação, uma pessoa jurídica constituída com o precípuo objetivo de gerenciar a produção cultural como um negócio. O impacto dessa mudança foi profundo numa economia onde o mercado de consumo, por ser limitado, elitizado, segmentado e especializado, se baseava essencialmente no artesão. O artesanato cultural era o aspecto contraditório da produção cultural brasileira que o atual governo resolveu “pelo alto”: ao mesmo tempo em que expressava a desorganização e fragilidade do setor ele garantia minimamente uma presença difusa da produção cultural no tecido social. Pequenos grupos, produtores isolados, ou foram cooptados por estruturas empresariais

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ou simplesmente desapareceram por absoluta falta de recursos a irrigar suas atividades localizadas e descontínuas. O artesão foi substituído pelo produtor cultural, essa figura nova, mista de intérprete do gosto geral da sociedade e dos complexos cálculos da relação custo-benefício que estavam fora do alcance dos artesãos culturais. (DORIA,2011) (Grifos nossos).

Assim o carnaval baiano deixou de ser uma festa popular transformando-se em show business. E, neste plano, é conduzido pelo poder público que, por conta de um processo organizacional dos palcos da cidade, vai tornando, gradativamente, mais difícil a exploração da folia pelos pequenos artistas e produtores culturais. Em síntese, a elite artística, hoje milionária e integrada ao show business nacional, notadamente o televisivo, não somente monopoliza os espaços físicos da festa, como absorve grande parte dos patrocínios e dos benefícios fiscais como os da Lei Rouanet. Conclusão a qualidade artística musical baiana vem declinando sensivelmente, dada a falta de inspiração e de criatividade que leva os compositores atuais a descambar para a “mesmice” e para uma produção de péssimo gosto e qualidade. Justiça se lhes faça o estímulo e a pressão que sofrem da indústria fonográfica e dos empresários do ramo que insistem na exploração de uma temática vulgar, mas de grande aceitação pelo povão. Agindo em conluio, consciente ou não, artistas já famosos – os mesmos donos da festa que brilham todos os anos – empresários do ramo, a mídia e a indústria fonográfica, restringem o acesso à criação de novos valores que não encontram espaço para divulgar a sua produção. Assim sendo elimina-se as chances de renovação artística e cultural. Na ânsia pelo lucro rápido, a indústria cultural não quer perder tempo investindo na formação de novos valores. Alguns produtores artísticos acrescentam que o fácil acesso aos equipamentos de gravação e reprodução tem feito com que muitos jovens – com talento ou não – dispensem a orientação técnica de produtores experientes e se lancem no mercado de forma atabalhoada acabando por se queimar precocemente ou a vegetar em um limbo do qual dificilmente sairão. Candomblé informatizado & orixás8 cibernéticos Sendo o carnaval, na sua essência, uma festa predominantemente negra, o Candomblé tem tudo a ver, por constituir o elemento dominante na formação da cultura popular de Salvador, uma cidade que contava 1 961 256 pretos e pardos no total de 2 675 656 habitantes em 2010, (IBGE, 2011). Segundo pesquisa deste autor nos registros da Federação dos Cultos Afro, constatava-se a existência de 617 terreiros funcionando na cidade do Salvador no ano de 2005. Entre seus responsáveis predominavam os descendentes da nação Ketu (Yorubá) que possuíam 414 terreiros, ou 67% do total registrado. Em segundo lugar apareciam os descendentes da nação Angola (Bantos) com 166 terreiros ou 27% . Em menor número apareciam os oriundos da nação Ijexá (também dos Yorubás) , com 20 terreiros, equivalentes a 3%; seguidos dos jegê (daomeanos) com 14 terreiros, ou 2%; e apenas 2 da nação Congo (0,3%). Este número é discutível porque muitos terreiros fecham e não dão baixa do registro e outros surgem e não se registram. Tomando-se por base estes dados e considerando-se que a cidade possui cerca de

8 A rigor seria Orisá ou Orixá porque em Yorùbá não existe plural formado pela adição da letra "s" ou quaisquer outras modificações das palavras, como no Idioma Português. O plural é formado pela adição dos pronomes. Como a palavra foi aportuguesada seguiremos as regras gramaticais do idioma português.

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20 mil logradouros registrados pela Prefeitura, observa-se que os terreiros ocupam um espaço equivalente a apenas 2,7% dos logradouros da cidade. O candomblé, embora com adeptos em todos os extratos sociais, tem a grande maioria de seus membros entre as camadas pobres da população sobre a qual exerce grande influência, e um papel dinâmico de estímulo a certas atividades econômicas, particularmente o comércio e o artesanato. Os ricos patrocinam, compram a proteção dos Orixás. São os Obás. No seu culto as divindades, se revestem de rica e complexa simbologia que, na prática, se expressa em vestimentas, adornos os mais diversos e objetos rituais, próprios a cada divindade. Existe ainda o emprego de sementes, ervas, folhas, plantas em diversas cerimônias e rituais. Todos esses elementos têm a peculiaridade de obedecer a certos requisitos rituais, o que implica na observância de procedimentos consagrados pela liturgia na sua produção, levando a que sua oferta não seja afetada por qualquer tipo de modernização9. Assim sendo, o candomblé é responsável direto pelo emprego de artesãos que produzem os adornos e objetos rituais; costureiras encarregadas das vestimentas e produtores e comerciantes dos diversos gêneros e materiais antes citados. Tendo conquistado o reconhecimento e o respeito da sociedade em geral, o candomblé amplia o seu prestígio, verificando-se, nos últimos anos, a disseminação do uso de muitos de seus adornos (pulseiras, colares, etc.) por pessoas e turistas sem qualquer vínculo com a prática ou compromisso com a fé religiosa (SPINOLA, 2006) Pode-se afirmar que a existência e a força do candomblé em Salvador constituem um fenômeno peculiar de nossa sociedade, com reflexos evidentes e poderosos na vida da sua economia e cultura popular, particularmente sobre atividades desenvolvidas em bases informais. Esta influência ocorre e é transmitida de forma sutil, dissimulada e misteriosa. Existe um silêncio, um pudor cuidadoso e uma reserva atávica que remonta aos tempos da repressão, do feitor e da polícia. Este é um mundo onde não existe o sim ou o não absolutos. Predomina o talvez. E às vezes um sim pode significar um não e o não um sim. Definitivamente este é um mundo diferente do ocidental. Nele um alemão, ou um paulista, pirariam. A comercialização dos produtos e serviços referentes a esta religião é geralmente clandestina e as transações são feitas por numerosos atravessadores. São vários os fornecedores para alguns produtos e, para outros, a situação é de monopólio ou oligopólio comercial por se tratar de itens específicos. Porém os cultos afro estão ameaçados de extinção ou degradação, sendo absorvidos pela indústria cultural numa escala crescente. A divulgação da sua prática e dos seus produtos vem alastrando-se na rede mundial de computadores através de uma imensa quantidade de sites que comercializam objetos e serviços dos mais variados pela Internet, quase todos sem demonstrar preocupação com a veracidade das informações que propagam, misturando o candomblé com umbanda, macumba e espiritismo e outros divulgando propositadamente informações falsas para adquirirem vantagens comerciais. Tudo isto vem abastardando o culto e reduzindo a sua capacidade cultural de influência.10 Percebe-se que a divulgação do candomblé pela internet coincide com a sua destruição pela modernidade. A expansão urbana tem levado à aquisição das áreas dos terreiros pelas grandes imobiliárias. Os Orixás precisam de espaço, o Ylê Axé Apó Ofanjá, por exemplo, é dono de uma área que mede cerca de 39.000 m2. Porém a redução de áreas verdes da cidade

9 Se você ouvir a explicação de um Babalorixá ou Yalorixá autênticos de como se faz uma vestimenta, prepara uma comida ou um banho de “descarrego”, um patuá ou de como se consagra um atabaque, nunca mais abriria uma página sobre o assunto na Internet. 10 Caso o leitor queira conhecer um candomblé genuíno, puro, visite o Ilê Axé Opó Afonjá, tombado pelo IPHAN, e um dos templos mais importantes das religiões de matriz africana no mundo. Governado por yalorixás, este Candomblé rompeu com o sincretismo, eliminando a relação dos seus santos com os santos católicos. Estiveram ou estão vinculados a ele personalidades como Jorge Amado, Vivaldo da Costa Lima, Antonio Olinto, Pierre Verger e Gilberto Gil, entre outros.

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vai reduzindo o espaço para a prática, o que leva a situações esdrúxulas como as de candomblés funcionando nos espaços restritos de apartamentos. E os Orixás estão gradativamente perdendo a força original. Balagadans, brinco de ouro, colar no pescoço e patuás O artesanato de Salvador também sofre uma forte influência dos cultos afro. Verdadeiras obras de arte popular são produzidas em cerâmica, madeira e metal. A Feira de São Joaquim, o Pelourinho e o Mercado Modelo são os maiores centros de comercialização de artesanato religioso da capital baiana. Os patuá11, que revelam a fé do povo negro baiano, são comercializados através das miniaturas de Orixás cerâmicas, quadros, esculturas, pulseiras e colares de contas, e metal, búzios, contreguns12 etc. Entre os produtos artesanais que merecem destaque está a fitinha do Senhor do Bonfim, que é utilizada sincreticamente também por membros do candomblé. Os materiais utilizados nos cultos afro-brasileiros vêm sendo modificados pela introdução de técnicas e materiais novos, como tecidos sintéticos, metalóides, linhas de nylon, contas plásticas e de resinas, galvanização de metais, que são amplamente usados por artesãos, possibilitando a produção de objetos em maior escala, o que barateia o produto final. As fitinhas do Senhor do Bonfim, por exemplo, deixaram de ser fabricadas em tecido de algodão substituído pelo nylon. Seu uso obedece a um rito que exige a benção da fita. Ao amarrá-la no pulso o crente deve dar três nós. Para cada nó faz um pedido. Quando a fita se arrebenta é porque os pedidos são atendidos. Segundo alguns crentes, confeccionadas em nylon, as fitas se tornaram mais resistentes e perderam o seu efeito, pois, neste novo material custa muito se romper no pulso do fiel. É o que dá misturar tecnologia com religião. As fitas são fabricadas em São Paulo... Em geral, lucros elevados são obtidos no processo de comercialização dos objetos confeccionados pelos artesãos religiosos. Os padrões têm sido apropriados à revelia de seus criadores. Na maioria dos casos o controle desse processo escapa aos artistas, que muitas vezes, costumam receber quantias quase simbólicas por seu trabalho de criação. Os artesãos baianos não recebem qualquer apoio governamental. Estão sendo expulsos do mercado pelos concorrentes oriundos de outros estados e da China, que inunda o mercado com réplicas, vendidas a preços bastante inferiores. Rum, Lé e Rumpi13, do sagrado ao profano No embalo da sonoridade, Salvador e o Recôncavo eram conhecidos pela produção de instrumentos musicais. Dizia-se até que as empresas de aviação que serviam à cidade deveriam mudar o design e o tamanho dos porta bagagens das cabinas dos seus aviões para melhor acomodarem os berimbaus que os turistas em retorno conduziam. Tudo isto acabou, as fábricas localizadas em São Paulo ocuparam o mercado e vendem berimbaus pela Internet em condições vantajosas para os consumidores. Os fabricantes locais de berimbaus e de outros instrumentos de percussão estão dispersos pelos subúrbios da cidade, trabalhando artesanalmente em fabriquetas de “fundo de

11 Amuleto. Bentinho. 12 Um dos objetos mais populares do candomblé é o contregun, um bracelete de palha que se coloca em torno do pulso ou braço, que serve para afastar, após uma cerimônia fúnebre do candomblé, a alma do morto, que pode possuir aqueles que assistem à cerimônia. Então se usa esse objeto para proteger as pessoas que ali estão, mas hoje em dia, caiu no gosto popular e foi disseminado o seu uso pelos baianos e turistas que muitas vezes nada têm a ver com a religião e não sabem o que estão fazendo. 13 São os três atabaques sagrados que comandam os cultos do Candomblé.

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quintal”, na maioria das vezes em condições as mais rudimentares possíveis. Os equipamentos utilizados são pouco sofisticados (usuais de carpintaria), muitos fabricados ou adaptados pelos próprios artesões e as instalações físicas também são extremamente precárias e insalubres. O trabalho é realizado em família, numa tradição que passa de pai para filho. Utilizam como matéria-prima restos de madeira obtida na construção civil (num autêntico mercado de sucata). A pele dos instrumentos é originária do interior do Estado, sendo muito utilizado o couro de bode e de cobra. A cidade de Araci é o ponto de partida de vários fornecedores, sendo que a intermediação é muito grande havendo o caso de existirem três intermediários entre o produtor e o fabricante. O nível de instrução beira o analfabetismo e a propensão associativa é inexistente (no que pouco difere das camadas mais esclarecidas da população). Vêem com profunda desconfiança e ceticismo a possibilidade de receberem algum tipo de ajuda.A Fazenda Garcia, a Baixa do Fiscal, o Pelourinho e Periperi são alguns dos locais onde ficam estes artesanatos. Alguns comerciantes do Mercado Modelo também possuem fabricos localizados em outros bairros da cidade. Setenta por cento dos fabricantes de instrumentos que entrevistamos, trabalham na informalidade, pois não possuem qualquer tipo de registro junto aos órgãos públicos competentes. Segundo eles, o principal motivo para que não ocorra uma formalização é o receio de pagar impostos, de sofrer qualquer tipo de fiscalização e serem obrigados a pagar multas ou de terem seus estabelecimentos fechados pelo governo. Ademais, não vêem qualquer vantagem em seres formais. Os pequenos produtores alegam que a margem de lucro do setor é muito baixa, tornando-se insustentável a legalização de alguns deles. Para se ter idéia, a maioria possui uma receita mensal de até R$ 5.000,00 e outra parcela, também significativa, não ultrapassa a receita mensal de até R$ 3.000,00. Desta forma, quando os custos são pagos, o que se obtêm de resultado é insignificante. Estes valores de receita poderiam ser muito maiores se não existisse uma quantidade exorbitante de atravessadores no sistema, que se apropriam da maior parte do lucro gerado na comercialização final dos instrumentos. Ver tabela 1. O mercado funciona na forma de um oligopsônio. Os grandes compradores (comerciantes) muitas vezes recebem os produtos em consignação (só paga ao produtor depois que vende, além de pagar com atraso) e costumam fixar os preços que pagarão. É pegar ou largar. Os artesãos não encontram alternativa. O Instituto Mauá que é a instituição responsável pela política de fomento e preservação do artesanato da Bahia, não dá conta do recado. Carente de recursos humanos qualificados e de recursos financeiros o órgão transforma-se num expectador privilegiado do processo. Cerca de sessenta por cento dos produtores não possuem ponto de vendas e, por isto, vendem para lojas localizadas em pontos de grande passagem turística, como o Pelourinho, o Mercado Modelo, o shopping Barra e o aeroporto. Segundo dados coletados por Spinola (2006), a maior parte das vendas ocorridas no Mercado Modelo, são para turistas. Os outros mercados também possuem as mesmas características. Assim sendo, os instrumentos musicais aqui fabricados possuem como destino final os outros estados da federação sendo também levados por visitantes estrangeiros para diversos países14. Estes bens culturais possuem uma demanda sazonal que atinge seu pico no verão, quando a Bahia recebe o maior número de visitantes. As grandes lojas que atuam no mercado local de instrumentos musicais são supridas por instrumentos fabricados fora do estado procedentes em sua maior parte da região Sudeste e do exterior. Neste caso, predominam verdadeiras grifes estabelecidas por marcas que

14 Constatou-se na pesquisa de campo a existência de uma pequena fábrica na Baixa do Fiscal que tinha franceses como clientes. Periodicamente faziam encomendas e levavam quantidades razoáveis de produtos para a França (Marselha).

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conferem status aos seus possuidores. Grandes músicos brasileiros poderiam também usufruir a qualidade sonora dos instrumentos baianos, auxiliando o crescimento e a profissionalização do setor. Porém, isto não ocorre, pois as grandes fábricas produtoras, muitas vezes utilizando-se do know how baiano, acabam produzindo instrumentos em série, com qualidade sonora um pouco inferior, porém padronizados, o que acaba influenciando a decisão de compra dos músicos. Ademais, as grandes fábricas de percussão possuem ampla vantagem de venda sobre os pequenos produtores locais devido a sua associação com as grandes lojas de instrumentos do Brasil. Tabela 1 – Relação preço/custo de alguns instrumentos musicais em 2006.

Denominação Preços Margem (%)

Mercado Modelo (A) Pelourinho (B) Custo Fábrica (C) A/C B/C

Berimbau Gunga 25 23 15 166,67% 153,33%

Berimbau Viola 25 23 15 166,67% 153,33%

Berimbau Médio 25 23 15 166,67% 153,33%

Bongô 8 9 5 160,00% 180,00%

Atabaque (lé) 75 62 40 187,50% 155,00%

Agogô 12 10 6 200,00% 166,67%

Ganzá 5 5 2 250,00% 250,00%

Cabuletê 5 5 3 166,67% 166,67%

Pau-de-chuva 10 8 5 200,00% 160,00%

Pandeiro 9 6 5 180,00% 120,00%

Xequerê 35 29 15 233,33% 193,33%

Bacurei 25 20 13 192,31% 153,85%

Triângulo 25 20 10 250,00% 200,00%

Afoxé 15 12 8 187,50% 150,00%

Jebê 0 400 50 0,00% 800,00%

Kalimba 10 8 4 250,00% 200,00%

Kechada 25 20 12 208,33% 166,67%

Xequerê 35 29 15 233,33% 193,33%

Pífano 15 10 3 500,00% 333,33%

Apito 12 8 3 400,00% 266,67%

Maraca 15 10 7 214,29% 142,86%

Berrante 70 70 25 280,00% 280,00%

Arpa 50 50 30 166,67% 166,67%

Baculete 7 5 4 175,00% 125,00%

Timbal 35 30 20 175,00% 150,00%

Tchimba 35 30 15 233,33% 200,00%

Mini-Tchimba 20 15 10 200,00% 150,00%

Kaxixi 12 10 5 240,00% 200,00%

Fonte: Pesquisa do autor Segundo os principais estabelecimentos comerciais de Salvador, especializados em instrumentos musicais, existem poucas possibilidades de venderem produtos locais pela absoluta falta de legalização dos fabricantes. Para mim isto é desculpa para esconder o preconceito.

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Apenas uma loja adquire no mercado produtor local os aguidá15, numa quantidade média de cem unidades mensais. Admitem, contudo, que se superado este problema de legalização e investindo-se em tecnologia será vantajosa a comercialização, notadamente dos instrumentos de percussão Assiste-se, assim, ao gradativo desaparecimento dos grandes artesãos locais que desistem de dar continuidade ao ofício, preparando sucessores, pois inclusive a maioria dos seus filhos e netos não manifesta interesse pela atividade sendo atraídos por outras mais interessantes e promovidas pela mídia. Mas, nem tudo está perdido, como diz o povão cuja esperança não morre, “quando Deus fecha uma porta, abre uma janela”. Registra-se que alguns blocos como o Olodum, o Araketu, a Timbalada, o Ilê Aiyê e o Malê de Balê , além da Banda Didá, “retrabalham” alguns instrumentos de percussão tradicionais, dotando-os de adereços que os adequam às suas peculiaridades. Observe-se que os instrumentos de percussão podem ser obtidos com os mais diversos materiais, desde que estes sejam tocados com as mãos ou baquetas. Todos estes blocos possuem escolas de percussão realizando um trabalho de cunho social, retirando crianças das ruas, e ao mesmo tempo utilitário, por preparar novas gerações para as suas bandas A Pracatum, de Carlinhos Brown, é uma escola de percussão. Ensina as crianças a tocar. Brown é um músico criativo que inova constantemente, de forma heterodoxa, (adoro este termo pela forma de ser que expressa) fabricando os mais inusitados instrumentos de percussão. Isto não quer dizer que estes possam ter cunho comercial em nível de escala. Admite-se, contudo, a hipótese de que, deste processo criativo, possam aparecer alguns novos instrumentos que venham a ser produzidos em massa e se constituam num sucesso de mercado, como tantas coisas que surgem na Bahia. Afinal, onde há vida sempre sobra esperança. Fim de festa Todos sabem que as atividades turísticas estabelecem uma forte relação entre a cultura e o mercado. E, na cidade do Salvador, dona de uma marcante personalidade cultural isto não é diferente. Por isso mesmo o turismo cultural é uma prioridade na velha capital baiana que já mudou do patamar de turismo de demanda para o de turismo de oferta. Isto, para quem não entende destas terminologias, quer dizer que passamos do estágio onde os ditos turistas vinham até nós, nos “descobriam” e ficavam embasbacados, para outra onde somos nós que corremos atrás deles. Éramos cantados em prosa e verso por gigantes como Dorival Caymmi, Ary Barroso, Jorge Amado. A nossa negritude era pintada por Presciliano da Silva, Mário Cravo, Hansen Bahia, Carybé, Sante Scaldaferri e fotografada por antropólogos como Pierre Verger. E depois, na obra de poetas mais novos como Capinam, Caetano Veloso e Gilberto Gil e no cinema de Glauber Rocha. Mas o tempo passa, muitos gigantes morreram e mesmo os poetas mais novos são hoje sessentões cuja inspiração e criatividade já “brocharam”. O pior é que, depois da “gloriosa” de 1964, não surgiu uma nova geração de poetas compositores do porte dos anteriores. Provavelmente devido à brutal queda de qualidade da educação básica e secundária. No meu tempo os colégios da Bahia, Severino Vieira e o Instituto Normal Isaías Alves, todos públicos, eram uma referência de excelência. Hoje não são sequer sombras do que foram. Associe-se a censura da ditadura que castrou toda uma geração; os mecanismos da eletrônica sonora que tornou muito fácil a produção de besteirol e a urbanização intensiva que desarticulou todo um modo de vida que servia de base para a construção da velha cultura.

15 Baquetas para os não iniciados. São pequenas varas de madeira com que se percutem os tambores. São sagradas. Antes do uso devem “dormir com os santos”.

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Surgiram novos polos turísticos, todo Nordeste se transformou, Recife passou a oferecer um carnaval bem melhor que o baiano. Apesar da repetição obsessiva de Vassourinha, o frevo rei, o grau de participação popular nele é bem maior. Fortaleza e Natal são as mecas do turismo sol e praia. Em toda a região muitas praias, muita arte popular e beleza natural. E também muitas “sodomas “e “gomorras” para todos os gostos. Assim, passamos para o turismo de oferta. Temos de correr atrás, pegar o “turista a laço”. Sendo esta argumentação verdadeira é possível imaginar que, do ponto de vista da atração turística a destruição da herança cultural implica numa substancial perda de “clientes” e da renda que eles aqui deixam, alimentando a nossa economia cultural. Do que falei, o carnaval, no estágio em que se encontra, é um produto de uma política neoliberal, que vem sendo desenvolvida pela Prefeitura de Salvador desde o governo do PFL ao do PT. A ideologia ficou no discurso! A Prefeitura vem preparando os palcos da cidade para que neles prospere uma indústria cultural que fatura milhões de reais e surja uma nova classe, a do artista-empresário que acumula fortunas. Ali se observa uma acelerada concentração da renda em poder de um oligopólio , que elimina as chances competitivas dos pequenos atores e reduz o espaço de chão da festa para os “foliões pipocas” que constituem a parcela majoritária do público brincante. Isso, além de elitizar a festa, está matando a galinha dos ovos de ouro. Ao romper com suas raízes culturais, ao sufocar a criatividade natural que brota dos pequenos, ao deixar de ser original, ao ser bitolada pelos parâmetros tecnológicos da mídia, a festa vai ficando chata, repetitiva e começa a cansar. E aí o público foge. Se não mudarem rápido vai piorar. Os soteropolitanos fogem da cidade nesta época, cansados do repeteco. A cidade fica em mãos dos turistas. Não se renovando, e haja criatividade, vai acabar. Quem viver verá! Quanto aos instrumentos musicais acredito que a tendência será a de expandir a sua venda pela Internet. As fábricas da região Sudeste, notadamente São Paulo e Paraná suprirão a demanda com imbatível qualidade e preço. Viva o capitalismo tupiniquim! Os nossos artesãos já são poucos, não deixam herdeiros, com o tempo sumirão. Talvez fique um ou outro excelente para servir de referência. As festas populares, berços da cultura popular, como falei no início, estão acabando ou se prostituindo numa baderna de cachaça, sexo e pó. Veja-se a Conceição da Praia que abre o ciclo de festas baiano. Há muito que Exu assumiu o lugar de Oxum que se mandou e não dá a ousadia de aparecer por lá. E o restante vai mais ou menos ao mesmo ritmo. Perguntem aos mais velhos… Por tudo isto meus nobres (ah que saudade do cordel!) vos conto este conto sem aumentar um ponto. Manda o Rei meu senhor que me contem outro. Estou concluindo este relato, questionando se não perdi o meu tempo. Quem teve paciência para ler este texto até o fim deve ser um poço de tolerância ou um idealista romântico como eu. Todos sem poderes para interferir ou mudar a situação que descrevi. E aqueles que poderiam fazer alguma coisa, nunca o lerão. Ou porque são iletrados ou porque os “interesses” são outros… Assim, estamos naquela situação em relação à cultura popular: se ela correr o bicho pega, se ela ficar o bicho come. Não posso fazer mais nada senão sorrir. Sorrir pra não chorar!

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