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1 Representações de religiosidades de matriz africana no samba de enredo “Festa de Batuque". Simone M. Custodio Maria Angélica Zubaran 1 INTRODUÇÃO Neste estudo pretende-se, inicialmente, discutir a abordagem teórica dos Estudos Culturais e o conceito de africanidades que aqui serão apropriados como ferramentas teóricas da análise cultural do samba de enredo Festa de Batuque. Posteriormente, empreende-se uma breve discussão do gênero do samba de enredo e da literatura sobre religiões afro-brasileiras e realiza-se uma análise cultural do samba de enredo ‘Festa de Batuque”, da Escola de Samba Bambas da Orgia, composto para o carnaval de Porto Alegre de 1995. O objetivo central desse estudo é discutir e problematizar como foram narradas as africanidades e o protagonismo negro nesse samba de enredo, mapeando-se os significados mais recorrentes atribuídos aos traços culturais de matriz africana e afro-brasileira e investigando-se o potencial pedagógico dessas narrativas e os possíveis ensinamentos que produziu e disseminou na cultura. Em termos teóricos, na perspectiva dos Estudos Culturais, entende-se que os significados não são intrínsecos as coisas, mas são culturalmente construídos na linguagem, por meio de representações culturais, que produzem e constituem os sentidos e modos de ser e estar no mundo. Portanto, entende-se que também o samba de enredo, para além de simples entretenimento, é entendido como um artefato cultural que produz sentidos e significados simbólicos que são compartilhados culturalmente pelos sujeitos sociais envolvidos no processo do carnaval e dissemina ensinamentos ou pedagogias culturais que contribuem para a constituição de subjetividades e identidades negras. Stuart Hall (1997), considerado um dos teóricos fundamentais dos Estudos Culturais, argumenta que a representação consiste na produção de significados compartilhados socialmente. Para Hall, a representação diz respeito aos sons, palavras, expressões, que

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Representações de religiosidades de matriz africana no samba de enredo “Festa de Batuque".

Simone M. Custodio

Maria Angélica Zubaran

1 INTRODUÇÃO

Neste estudo pretende-se, inicialmente, discutir a abordagem teórica dos Estudos

Culturais e o conceito de africanidades que aqui serão apropriados como ferramentas teóricas

da análise cultural do samba de enredo Festa de Batuque. Posteriormente, empreende-se uma

breve discussão do gênero do samba de enredo e da literatura sobre religiões afro-brasileiras e

realiza-se uma análise cultural do samba de enredo ‘Festa de Batuque”, da Escola de Samba

Bambas da Orgia, composto para o carnaval de Porto Alegre de 1995.

O objetivo central desse estudo é discutir e problematizar como foram narradas as

africanidades e o protagonismo negro nesse samba de enredo, mapeando-se os significados

mais recorrentes atribuídos aos traços culturais de matriz africana e afro-brasileira e

investigando-se o potencial pedagógico dessas narrativas e os possíveis ensinamentos que

produziu e disseminou na cultura.

Em termos teóricos, na perspectiva dos Estudos Culturais, entende-se que os

significados não são intrínsecos as coisas, mas são culturalmente construídos na linguagem,

por meio de representações culturais, que produzem e constituem os sentidos e modos de ser e

estar no mundo. Portanto, entende-se que também o samba de enredo, para além de simples

entretenimento, é entendido como um artefato cultural que produz sentidos e significados

simbólicos que são compartilhados culturalmente pelos sujeitos sociais envolvidos no

processo do carnaval e dissemina ensinamentos ou pedagogias culturais que contribuem para

a constituição de subjetividades e identidades negras.

Stuart Hall (1997), considerado um dos teóricos fundamentais dos Estudos Culturais,

argumenta que a representação consiste na produção de significados compartilhados

socialmente. Para Hall, a representação diz respeito aos sons, palavras, expressões, que

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importam para a linguagem não pelo que são, mas pelo que fazem, pela sua produtividade.

Conforme o autor, as representações não apenas constroem o significado e o transmitem, elas

significam (p. 5). Neste sentido, vale destacar, como argumenta Hall (1997), que o significado

é relacional, depende da diferença, e se dá no contexto de relações de poder. Nesta direção,

considera-se o conceito de representação, como uma prática de atribuição de significados e de

construção de sentidos partilhados socialmente. Neste sentido, pretende-se neste estudo

analisar as representações culturais mais recorrentes produzidas sobre as africanidades nas

narrativas do samba de enredo Festa de Batuque e investigar também as possíveis pedagogias

culturais que esse samba de enredo produz e dissemina, as formas de conduta e jeitos de ser

que institui e faz circular na cultura carnavalesca produzindo e ressignificando identidades

negras.

Vale destacar ainda, a importância do conceito de africanidades para esse estudo.

Segundo, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2003) a expressão africanidades refere-se às

raízes da cultura brasileira que têm origem africana. Ao usarmos essa terminologia estaremos

nos reportando às marcas da cultura africana que, independentemente da origem étnica de

cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia. No entanto, Petronilha destaca que esses

discursos devem ser vistos em seus contextos históricos e em suas possibilidades de

ressiginificação e de instituição de novos sentidos, flexibilizando e ampliando o uso do

conceito de africanidades. Silva sugere que os estudos étnicos-raciais produzam

conhecimentos que propiciem a superação dos preconceitos e discriminações, abolindo

sentimentos de superioridade e inferioridade e incentivando novas relações entre pessoas

negras e não-negras (p. 158). Desta forma, nesse estudo, pretende-se investigar as

representações de africanidades mais recorrentes no samba de enredo Festa de Batuque, de

modo a contribuir para uma educação antirracista e para a construção de identidades

afirmativas de afrodescendentes.

2 O GÊNERO SAMBA DE ENREDO

José Ramos Tinhorão (2013) argumenta que o samba de enredo teve como função

disciplinar os desfiles das Escolas de Samba, que não tendo uma música principal para

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organizar os desfiles, tocavam e compunham diversas temáticas ou temas de enredo. Segundo

Tinhorão, a inclusão dos sambas de enredo nos desfiles das Escolas de Samba na década de

1930, buscou também definir espaços sociais e acomodar as camadas sociais, dividindo os

espaços entre a rua dos negros e os salões frequentados pela burguesia.

Simas e Fabato (2015), argumentam que o samba de enredo surgiu no final da década

de 1930, mais precisamente em 1939, na Escola de Samba Portela.

Também Raymundo Jackson (2015), ao estudar o samba de enredo argumenta que

possui uma função pragmática, ser a canção composta para os desfiles das escolas de samba.

O autor aponta que esse gênero preserva elementos que o aproximam do gênero épico (p.315)

por ser o único gênero genuinamente brasileiro e que se desenvolveu espontaneamente, sem

influência de qualquer modalidade musical e estrangeira. Jackson analisa os sambas de enredo

produzidos no carnaval de Porto Alegre, entre 1976 e 2014 e os classifica em tempos de longa

ou curta duração e em eventos e ciclos. Segundo ele, a temática sobre o negro compõe o ciclo

de longa duração e é recorrente nos sambas de enredo do carnaval da década de 1990. É neste

contexto da década de 1990 e dentro da temática sobre o negro, que se situa o samba de

enredo Festa de Batuque.

3 AS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

Durante muito tempo, desde o Brasil Colônia, as religiões de matriz africana foram

demonizadas, representadas como feitiçaria, charlatanismo e perseguidas pela polícia, assim

como os símbolos étnicos associados aos negros, tais como, o samba. No período que medeia

entre o final do século XIX e as décadas de 30 e 40 deste século, inicia-se uma lenta operação

que consiste em metamorfosear determinados símbolos étnicos negros em símbolos nacionais.

Conforme Lilia Schwarcz (1993), em princípios do século XX, convivem no país dois

discursos paralelos acerca das relações raciais. De um lado, o do apartheid racial. presente nas

proposições de alguns cientistas da época, como o médico Nina Rodrigues, que advoga a

promulgação de códigos penais distintos para negros e brancos, o que levaria a uma

institucionalizaçäo da diferença.

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Os estudos sobre as religiões afro-brasileiras desenvolveram-se desde o século XIX,

através dos trabalhos de Nina Rodrigues, Manuel Querino, Arthur Ramos e Ruth Landes. Nas

décadas de 1930 e 1940, os estudos de Roger Bastide e do etnólogo Pierre Verger constituem

as principais referências teóricas das religiões de matriz africana.

Nas últimas três décadas, a afirmação das referências identitárias dos afrodescendentes

tem sido também uma das principais bandeiras de luta do movimento social negro e a

dimensão religiosa não pode ficar de fora do processo de compreensão e afirmação das

referências identitárias afrodescendentes (Santos, p.117). Neste sentido, entende-se que o

samba de enredo Festa de Batuque, é constituído por aspectos da dimensão religiosa de matriz

africana e afro-brasileira, enquanto prática sócio cultural do carnaval de Porto Alegre,

podendo ser pensado como parte do patrimônio cultural afro-gaúcho e de afirmação de

identidades negras.

No Rio Grande do Sul, o antropólogo Norton Correa (2006), em seu livro sobre o

Batuque no Rio Grande do Sul, argumenta que é nessa religiosidade de matriz africana que se

preservaram as raízes da cultura negra no Rio Grande do Sul. O autor destaca a existência de

cultos afro em Porto Alegre desde o século XIX. Segundo ele, de lá prá cá os terreiros de

batuque se proliferaram e hoje somam mais de 50.000 casas de batuque em todo o estado.

Também o antropólogo Pedro Ari Oro (2008), ao estudar as religiões afro-gaúchas,

destaca que o Rio Grande do Sul, apresenta um dos índices mais elevado de indivíduos que se

declararam pertencentes às religiões afro-brasileiras. O autor aponta a forte incidência de

pertencimento a este campo religioso no Rio Grande do Sul, fato constatado nos últimos

censos do IBGE, “que apontam o Rio Grande do Sul como o estado mais afro-religioso do

país” (p. 10) O autor argumenta que entre as décadas de 1990 e 2000, enquanto diminuiu o

número de indivíduos que afirmavam sua identidade religiosa associada às religiões afro-

brasileiras no país, no Rio Grande do Sul, houve um aumento de 33,6%. Para Oro, as religiões

afro-gaúchas constituem um complexo formado por diferentes expressões religiosas, com

destaque para o Batuque, a Linha Cruzada e a Umbanda. Segundo ele “O Batuque representa

a expressão mais africana do complexo afro-religioso gaúcho pois a linguagem litúrgica é

yorubana, os símbolos utilizados são os da tradição africana, as entidades veneradas são os

orixás e há uma identificação às “nações” africanas” (ORO, 2008, p. 12).

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4 REPRESENTAÇÕES DE AFRICANIDADES NO SAMBA DE ENREDO “FESTA

DE BATUQUE”

A conjuntura histórica de produção e composição do samba de enredo Festa de

Batuque insere-se no contexto das políticas afirmativas da década de 1990 e das políticas

públicas promovidas no âmbito da prefeitura municipal de Porto Alegre e também no cenário

nacional.

No cenário nacional, conforme argumenta José Rivair Macedo (2012, p. 30):

A partir dos anos de 1990 “algumas mudanças de orientação dos movimentos sociais

produziram alteração significativa nas formas de relação étnico racial no Brasil. Aos

poucos a ênfase deixou de ser dada à denúncia do racismo e foi direcionada para

medidas de combate ao fenômeno, com uma diferença essencial: o Estado passou a

ser mobilizado como ator no processo, a partir da discussão e das medidas adotadas

contra o chamado racismo institucional.

Já Marco Mello (2004) argumenta que na década de 1990, foram adotadas várias

políticas públicas para a população negra em Porto Alegre, no âmbito da Secretaria Municipal

de Direitos Humanos e Segurança Urbana (SMDHSU), da Secretaria Municipal de Educação

(SMED) e da Secretaria Municipal de Cultura. Entre essas iniciativas, o autor destaca as

edições municipais anuais da Semana da Consciência Negra, a implementação de cotas em

concursos públicos municipais para afrodescendentes, o ensino da História e da cultura afro-

brasileira nas escolas municipais e o reconhecimento da família Silva, no bairro Três

Figueiras, como remanescentes de Comunidades de Quilombos. Vale destacar ainda, que a

Secretaria Municipal de Cultura (SMC) produziu materiais diversos sobre o Carnaval de Porto

Alegre na década de 1990, a partir do entendimento de que “o carnaval é feito pelo povo e que

caberia a prefeitura apoiá-lo em todas as suas necessidades de manifestação cultural”. Um

desses materiais foi o Guia do Carnaval, com os temas e sambas de enredo que marcaram

aquela década (1994/SMC).

Destaco inicialmente que a ideia de festa que aparece no título da letra, parece estar

associada a noção de xirê, que se refere à festa dos orixás do candomblé e do batuque gaúcho,

previstos em um calendário anual.

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A letra do samba de enredo Festa do Batuque foi composta pelos compositores: Paulo

da Silva Dias "Jajá" e Delmar Barbosa, da Escola de Samba Bambas da Orgia, para o carnaval

de Porto Alegre de 1995. De acordo com Krawczyk, Germano e Possamai (1992), a escola de

samba, Bambas da Orgia surge na década de 1940, sendo formada por participantes da escola

em torno de 20,25 pessoas, participando do primeiro concurso carnavalesco em 1948.

A estrutura narrativa do samba está composta de três estrofes e dois refrãos. A

primeira estrofe do samba, que reproduzimos a seguir, evoca as nações Iorubas da Costa

Ocidental da África, Gegê, Nagô, Gexá, Oiô e Cabinda, origem de muitos dos africanos

trazidos para as Américas como escravos. De acordo com Yeda P de Castro (2012), em seu

estudo sobre o tráfico transatlântico e a distribuição da população negra escravizada no Brasil

colônia, apesar de escravizados, não quedaram mudos, falavam línguas articuladamente

humanas e participaram da configuração do português brasileiro não somente com palavras

que foram ditas a esmo e “aceitas como empréstimos pelo português” na concepção vigente,

mas também nas diferenças que afastaram o português do Brasil de Portugal.

A autora destaca para as importações atuais do iorubá pelo prestigio sociológico de

que passaram a gozar os terreiros de tradição Ketu como aqueles localizados em Salvador

onde se evidencia as matrizes iorubanas na sua liturgia e linguagem ritual. A autora destaca

que a convivência no terreiros tem atraído pesquisadores e sobretudo compositores brasileiros

cuja a entrada no mercado fonográfico terminam por tornar conhecidos e popularizados os

seus orixás Iemanjá, Xangô, Oxum, Oxóssi, Ogum, Iansã, Oxalá, Osssaim que são celebrados

em festividades públicas de repercussão nacional, no entanto, os termos sagrados são

esvazidos com extensão de sentido ao serem apropriados pelo português.

Ari Oro (2008) destaca que o Batuque representa a expressão mais africana do

complexo afro-religioso gaúcho pois a linguagem litúrgica é yorubana, os símbolos utilizados

são os da tradição africana, as entidades veneradas são os orixás e há uma identificação às

“nações” africanas.

O Batuque do Rio Grande do Sul, o mais antigo terreiro do estado é de nação Jeje e

que as nações Ijexá, nagô e cabinda também são expressivas no estado. Oro destaca que,

Independente da nação, o Batuque no Rio Grande do Sul cultua doze orixás: Bará, Ogum,

Iansã (ou Oiá), Xangô, Oba, Odé/ Otim, Ossanha, Xapanã, Oxum, Iemanjá e Oxalá. A cada

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um deles são atribuídas características específicas, símbolos, animais sacrificados e

correspondências com santos católicos, resultantes dos mitos relatados nas duas tradições

religiosas. (p. 14)

Gegê, Nagô, Gexá, Oiô, Cabinda (Nações)

O candomblé é cultuado na Bahia

Somos descendentes de africanos,

Da Nigéria e do Congo,

Moçambique, da Angola e da Guiné

Conforme argumenta Kelly Cristina Araújo (2004), o primeiro terreiro de Candomblé

do Brasil instalou-se em Salvador na Bahia e no Rio Grande do Sul essa prática religiosa do

Candomblé recebeu o nome de batuque. Jackson Raymundo (2015) salienta que no samba de

enredo Festa de Batuque constrói-se através de uma analogia entre o candomblé cultivado na

Bahia e o Batuque no Rio Grande do Sul e que ambos possuem os mesmos fundamentos

nagôs ou Iorubás, mas que são diferenciados pela sua territorialidade pelo seu lugar de

origem.

O primeiro refrão abre com uma (In)vocação ao orixá Bará (Exu), que em iorubá

significa “encontro” e que segundo José Carlos Gomes dos Anjos (2006), nos rituais de

batuque, é o orixá que abre os caminhos, a partir da saudação Alupô.

Alupô! Alupô!1

Alupô! Bará!

Abre os caminhos para os Bambas desfilar,

Nesta festa de batuque em homenagem aos orixás

Já a segunda estrofe, no excerto que segue, pode-se observar a presença de

representações relativas às funções dos orixás, dando destaque a Ogum, como orixá do fogo,

do trovão e do ferro, responsável pela justiça e igualdade. Os Orixás também aparecem

nomeados como signos de resistência que “se revoltam” com o cativeiro.

Deus do ferro, Deus do Fogo,

Violento Deus guerreiro,

Ogum se revoltava,

Vendo o negro em cativeiro.

1 Alupo, que em Nagô, dialeto de origem africana, tem significado de saudação.

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Por último, na terceira estrofe do samba, no excerto que segue, pode-se observar que a

estrutura narrativa do samba vai homenagear os principais orixás do batuque, que em sua

totalidade são doze orixás:

Ibeje é, criança é,

Lá na mata tem Ossanha, tem Obá, Otim e Odé.

Xapanã, Sapatá, de aê, aê,

Não deixe nunca quem é da nação sofrer.

Oxum-pandá, Oxum-docô são vaidosas,

Deusas do ouro, do perfume e da riqueza.

Iemanjá Cessum, Olobomi, Babá, Oxalá,

Hoje o Bambas faz a festa em homenagem a os Orixás.

Reginaldo Prandi (2001) destaca que a diferença entre a religião dos orixás e outros

credos religiosos é a dinâmica existente dentro do mundo dos orixás que tem como espelho a

vida dos seres humanos: Os orixás alegram-se, sofrem, vencem ou perdem, conquistam e são

conquistados, amam e odeiam (p. 24) observa-se também no samba de enredo Festa de

Batuque que o panteão dos orixás é adjetivado conforme qualidades humanas.

Oxum-pandá, Oxum-docô são vaidosas,

Deusas do ouro, do perfume e da riqueza.

Iemanjá Cessum, Olobomi, Babá, Oxalá,

5 PEDAGOGIAS CULTURAIS DO SAMBA DE ENREDO: FESTA DE BATUQUE

Ao produzir significados sobre o batuque, o samba Festa de batuque faz circular na

cultura ensinamentos sobre aspectos mitológicos e simbólicos da cultura afro-gaúcha e o

papel desempenhado por cada orixá. Entre esses significados, os mais recorrentes são de

exaltação dos orixás e de personalidades negras ligadas ao batuque.

O samba de enredo Festa de Batuque também dissemina ensinamentos vinculados a

resistência cultural e ao caráter guerreiro da religião afro, em contraponto aos sambas de

enredo que investem no caráter de acomodação do negro. Destaca-se particularmente, que o

samba Festa de Batuque celebra a religiosidade afro-gaúcha, a tradição do Bará do Mercado,

considerada um patrimônio cultural afro-gaúcho, edificado no centro da cidade, no centro do

Mercado Público.

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Segundo Olavo Marques, a tradição do Bará do mercado refere-se a um conjunto de

mitos, saberes e rituais dos adeptos das religiões de matriz africana de Porto Alegre, que

afirmam que o Bará (orixá responsável pelos caminhos, dono das encruzilhadas) foi assentado

no mercado público. Entre os rituais iniciáticos que torna “pronto” um adepto das religiões

africanas no Rio Grande do Sul está o passeio. O ritual pode ser sintetizado através dos

seguintes elementos: Fartura – No centro do mercado são jogadas sete moedas para o Bará,

jogando três com a mão direita na primeira vez que atravessamos o cruzeiro central do

mercado e mais quatro quando o cruzamos novamente na direção em direção ao cais do porto,

defronte ao mercado. Lá, na beira d’água, jogaremos mais oito moedas para Oxum, também

com a mão direita, e, por fim, daremos moedas com a mão esquerda para algum pedinte na

porta da Igreja. Segundo ele, não importa o valor, importa o número, sete, número do Bará.

Essa prática cultural religiosa constitui “Os caminhos invisíveis do negro em Porto Alegre: a

Tradição Bará do Mercado”.

Norton Corrêa (2006) salienta que esse pacto místico entre indivíduo e orixá precisa

ser renovado de tempos em tempos, constituindo os contornos de um território sagrado para

as tradições de matriz africana no Rio Grande do Sul que se convencionou chamar de

“batuque” gaúcho e que representa uma forma de construção de identidades negras no cenário

da diáspora africana no Rio Grande do Sul.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, buscou-se mapear os significados mais recorrentes atribuídos aos traços

culturais de matriz afro-brasileira no samba de enredo Festa de Batuque e os possíveis

ensinamentos que disseminou sobre africanidades. Entre os resultados da análise destaca-se

que as representações de africanidade mais recorrentes foram de exaltação da religião afro-

gaúcha, por meio da valorização dos orixás do batuque. Desta forma, conforme Stuart Hall,

contesta-se estereótipos e substitui-se significados negativos por positivos, valorizando-se o

batuque afro-gaúcho e os seus orixás, particularmente, a valorização do orixá Bará (Exu)

como símbolo de resistência cultural. São atribuídas múltiplas representações aos orixás, que

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ora são representados de forma simbólica pelos seus ritos e funções sagradas, ora

representados associados aos sofrimentos terrenos e resistência à escravidão.

No entanto, destaca-se que esse samba de enredo não se refere às mães de Santo, que

foram marcantes na história do batuque no Rio Grande do Sul, como a Mãe Rita, a primeira

mãe de santo que se tem registro na cidade de Porto Alegre. Uma das fontes da nação Oyó na

cidade de Porto Alegre foi a Sra. Ermínia Manoela de Araújo, conhecida como mãe Donga de

Oxum. Era filha de Oxum (Osun) com Ossãe (Osányìn) e morava na colônia africana. Neste

sentido, conforme salienta Paul Gilroy (2001), em seus estudos sobre o Atlântico Negro, é

urgente que as análises culturais levem as histórias negras a sério nos círculos acadêmicos,

visibilizando uma história intelectual que lhes foi negada pelo racismo moderno (p.40).

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