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    A FORMAO DAS REPRESENTAES SOBRE A CIDADE COLONIAL NO BRASIL

    George Alexandre Ferreira Dantas

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    A formao das representaes sobrea cidade colonial no Brasil

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Arquitetura e Urbanismo da Escola deEngenharia de So Carlos Universidade de SoPaulo como requisito parcial para obteno do ttulode Doutor

    DoutorandoGeorge Alexandre Ferreira Dantas

    OrientadorProf. Dr. Carlos Roberto Monteiro de Andrade

    FinanciamentoFundao de Amparo Pesquisa do Estado deSo Paulo [05/51462-8]

    EESC-USP

    So Carlos, junho de 2009

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    Capa: talo Dantas de Arajo MaiaImagem da capa: J. M. Rugendas, Rua Direita no Rio de JaneiroFonte: BELLUZZO, Ana Maria de M. O Brasil dos viajantes. 2 ed. So Paulo: Metalivros: Rio deJaneiro: Objetiva, 1999, vol. III, p.79.

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    ParaAna KarinaeAna Helena.

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    Todo lenguaje es un alfabeto de smbolos cuyo ejercicio presuponeum pasado que los interlocutores comparten

    Jorge Luis Borges, El Aleph,El Aleph

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    AGRADECIMENTOS

    Sou um leitor de pginas de agradecimentos. Repetitivas, por vezes,

    inusitadas outras tantas, mesmo assim sempre ajudam a contar a histria pessoal e de

    pesquisa de uma tese, as interlocues e os alicerces tericos, metodolgicos e,

    antes de mais nada, afetivos que a sustentam. No posso deixar de fazer o mesmo e

    espero que essas pginas possam assim ser lidas.

    Os anos para o desenvolvimento de uma tese de doutorado so intensos,

    longos. uma tessitura sem fim, pea que recebeu mos amigas no desenrolar inicial,

    na construo da estrutura, na distribuio dos fios e nos arremates, moldando

    pequenas mas significativas iluminuras no resultado final, cujo desenho, ainda

    incompleto, foi rabiscado em vrios momentos tambm literalmente, em uma folha

    sulfite avulsa no mais to branca que acompanha meu caderno de notas de pesquisa

    , acrescentando linhas, palavras-chaves e muitas interrogaes. Assim, dessas mos

    me ocupo agora.

    Antes de mais nada, lembro que voltar a So Carlos foi enriquecedor, pessoal,

    profissional e academicamente. E dessa satisfao pessoal de estar por mais de

    sete anos, somando o perodo de mestrado, em uma cidade que aprecio que inicio

    meus agradecimentos:

    Uma vez mais, ao Prof. Carlos Roberto Monteiro de Andrade, pelo

    compromisso intelectual de ajudar a levantar os alicerces desta tese, pelos contatos e

    conversas inmeras, mesmo distncia, desde o incio do mestrado em 1999 e na

    volta para o doutorado em 2005, pelo incentivo, confiana e pela amizade que vo

    alm da orientao;

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e

    Urbanismo da EESC-USP, cujas reflexes, dentro e fora das disciplinas curriculares,

    foram importantes para meus prprios questionamentos. Dentre todos, no posso

    deixar de citar nominalmente Carlos Martins, Renato Anelli, Telma Correia, Cibele

    Saliba Rizek e Sarah Feldman;

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    Aos funcionrios do Departamento de Arquitetura, pelo apoio para desfazer

    ns burocrticos e pelas amenidades da hora do caf: Joo Tessarin, Paulo Ceneviva,

    Ben, Geraldo, Osvaldo, Zanardi e, em especial, Ftima e Marcelo Celestini, por

    meio de quem agradeo aos outros no nomeados;

    Aos funcionrios das diversas bibliotecas da USP onde pesquisei ao longo

    dos ltimos quatro anos (da Faculdade de Direito do Largo So Francisco, da Central

    da Politcnica, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, da Faculdade

    de Arquitetura e Urbanismo na Cidade Universitria e na Rua Maranho, e, em

    especial, do Instituto de Estudos Brasileiros e da Central da EESC); importante

    tambm o trabalho da equipe do Lig Doc, sobretudo Adriana Perez Gomes,

    operadora constante dos meus inmeros pedidos de artigos e captulos;

    Do mesmo modo, aos funcionrios das diversas bibliotecas e arquivos de

    outras cidades por onde pude passar e trabalhar: em Natal, na Biblioteca Central Zila

    Mamede, da UFRN; em Recife, na Fundao Joaquim Nabuco; no Rio de Janeiro, na

    Biblioteca Nacional e na Biblioteca Paulo Santos; em Campinas, na Biblioteca

    Central da Unicamp (em especial, na seo de obras raras), do IFCH e no Arquivo

    Edgard Leuenroth, a quem agradeo em especial ao Mrio e Isabel, que sempre

    facilitaram e agilizaram a pesquisa nas micro-fichas; em Buenos Aires, na Biblioteca

    Nacional, no acervo da Sociedad Central de Arquitectos e na Academia Nacional de

    Historia; em So Carlos, na Biblioteca Comunitria da UFSCar, em especial aos que

    mantm a sala de colees especiais;

    Em meio s viagens de pesquisa, recebi a ajuda de vrias pessoas. Em Buenos

    Aires, o prof. Luis Maria Calvo (da Universidad de Buenos Aires) deu-me indicaes

    importantes para o trabalho nos arquivos; Maria Martina Acosta tambm apontou

    arquivos e ajudou-me com informaes diversas sobre Buenos Aires; o prof. AdrinGorelik (Universidad de Quilmes) discutiu meu projeto e apontou vrias

    possibilidades de histria comparada (que teremos que guardar para depois). Em

    Quito, o prof. Eduardo Kingman (Flacso-Ecuador) foi muito gentil ao nos receber

    na sesso de histria urbana do Congreso Latinoamericano de Cincias Sociales e nas

    andanas pela cidade;

    s professoras Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno (FAUUSP) e Cibele Saliba

    Rizek (EESC-USP) pela leitura cuidadosa, pelas indagaes inspiradoras e pelas

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    inmeras contribuies para pensar esta tese, seus argumentos e estrutura; na banca

    final, tive a satisfao de contar tambm com as argies precisas dos professores

    Paulo Cesar Garcez Marins (Museu Paulista-USP) e Carlos Alberto Ferreira Martins

    (EESC-USP).

    Ao professor Nestor Goulart Reis (FAUUSP), pela entrevista/conversa que

    ajudou a esclarecer vrias questes na reta final da escrita e me levou a repensar

    algumas partes e concluses;

    Aos professores Jos Xaides e Antonio Carlos, do Departamento de

    Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo da UNESP, campus de Bauru-SP, pela

    confiana e oportunidade oferecidas durante o ano e meio que trabalhei como

    professor na disciplina de Linguagem e valor esttico; aos alunos que aceitaram

    partilhar (e, assim, se enlevar em) a trama fugidia que a discusso sobre arte,

    cultura, arquitetura e histria; l contei tambm com a gentileza do Leopoldo e da

    Mitsue na secretaria do curso;

    Aos amigos que so tambm parceiros intelectuais leais e crticos, por vezes

    severa e necessariamente crticos, mas, antes de tudo, afetuosos: Hamilton Varela,

    Paula e famlia, que sempre nos deram muito apoio; Giuseppe Cmara e Janete Giz;

    Francisco Sales e Ingrid; Rodrigo Firmino e Alessandra; Michelly Ramos e Vitor de

    ngelo. Dentre esses, no posso esquecer do Fernando Atique, cujo apoio material e

    fraterno foi imprescindvel tantas vezes, em So Carlos e, depois, em Campinas; na

    reta final, o incentivo da Renata Cabral foi decisivo;

    No posso esquecer tambm que foi com Rodrigo, Sales e Michelly que

    partilhamos a construo do projeto do Caf com Pesquisa, srie de seminrios

    (realizados entre 2005 e 2008) que nos ajudou a conversar mais entre ns mesmos e

    com nossos colegas, afastando-nos, ainda que por alguns momentos, do

    encastelamento por vezes inevitvel da pesquisa e da reflexo; a nossas amizades e

    respeito se fortaleceram;

    Aos amigos e colegas que partilharam os anos iniciais, em meio disciplinas,

    elaborao de monografias, conversas, cafs, angstias, risadas, enfim ao cotidiano

    acadmico da ps-graduao: Amanda Ruggiero, Caliane Almeida, Carolina Rossetti,

    Ceclia Almeida, Dbora Foresti, Flvio Teixeira, Juliano Ceclio, Luiz Peixe

    Teixeira, Marcus Vincius Queiroz, Paula Francisca, Sara Grubert, Teresa Cordido;

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    depois, tambm, Adriana Almeida, Carolina Chaves, Mayara Mendona, Marcos

    Santos e Olvia Maia; no posso deixar de lembrar tambm de Claudius Barbosa,

    Cristina Campos, Fabiano Oliveira e Pedro Rossetto;

    Aos inestimveis colegas e amigos do Urbis, que sempre acreditaram e

    torceram muito por mim: Ceclia Lucchese, Fabola Cordovil, Lucas Cestaro, Luisa

    Videsot, Maristela Janjulio, Thais Cruz e, depois, Ana Carolina Froes e Lorenza

    Pavesi;

    Tenho uma dvida grande para com o HCUrb (grupo de estudo em Histria

    da Cidade e do Urbanismo, vinculado Base de Pesquisa Estudos do Habitat, do

    Depto. de Arquitetura da UFRN), pelo incentivo constante s minhas pesquisas, pelo

    aprendizado que o trabalho e a reflexo coletivos so possveis e importantes e,

    enfim, pela amizade: a Angela Ferreira, Ana Caroline Dias, Anna Rachel Eduardo,

    Alexsandro Ferreira, Gabriel Medeiros, Hlio Farias, Yuri Simonini, alm de Adriano

    Wagner, Luiza Lima, Clara Rodrigues, Fabiano Fechine, Giovana Oliveira e Paulo

    Nobre; no final, Yuri, Gabriel e Rachel deram-me um grande ajuda na reviso dos

    captulos e Hlio ps nos eixos o que eu tinha alinhavado como abstract;

    Aos amigos de Natal, Joo Pessoa e alhures: Alex e Janana, Andr e Alndia,

    Marco Coutinho, Marcos Dantas Jr., Nilton Santos, Philippe Guaigner e Rosa,

    Rossana Honorato, Sheila Paiva, Vincius Dantas, Wagner Martins e tantos outros;

    A Fapesp (processo 05/51462-8), cujo apoio material e conceitual (por meio

    das contribuies e crticas do/a parecerista) foi de fundamental importncia para o

    desenvolvimento desta tese;

    Por fim, minha famlia, sempre presente e divertida, ainda que distncia:

    aos meus pais, Edmundo Eugnio e Expedita Ferreira, e a meus irmos, cunhadas esobrinhos, Leonardo, Sunia, Murilo e Diogo, Gustavo, Aline, Anastcia e Alicia

    (recm-nascida), Cludio e Jamile. Em Campinas, contei sempre com o apoio e o

    entusiasmo de Hlio Ferreira e Idati Sigo, Alexander e Raquel, Alessandro, Ana Paula

    e Vincius. Aos meus sogros, Marcos e Albanita; a Marcos Jr. e rika. H outros que

    gostaria de aqui nomear, mas a tarefa seria longa, ainda assim registro que so

    tambm especiais para mim. Por fim e em especial, para Ana Karina e Ana Helena,

    que construram comigo esta tese. Helena nasceu em meio a toda essa histria (em

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    julho de 2006) e fez-me reescrever minhas escolhas, planos, itinerrios, para faz-las

    nossas, para fazer tudo valer a pena, nossa iluminura.

    So Carlos, junho (ainda outono) e agosto de 2009.

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    RESUMO

    A formao das representaes sobre a cidade colonial no Brasil.

    A crtica da cidade colonial foi um dos principais temas nas discusses e justificativas para as

    reformas e melhoramentos por que passaram muitas cidades na virada para o sculo XX.Desde aquelas mais importantes administrativa e economicamente nos trs primeiros sculosde colonizao, como o Rio de Janeiro, Salvador e Recife, at as que pouca relevncia tinhamna incipiente rede urbana do perodo colonial, como Natal, a crtica repetiu-se,homogeneamente primeira vista, nas vrias cidades em transformao, independente dasparticularidades das vrias estruturas urbanas e da maior ou menor irregularidade dos seustraados. Para alm da questo sobre a existncia ou no de planejamento por parte docolonizador portugus, esta tese discute como se formaram as representaes sobre a cidadecolonial no Brasil. Nas trilhas dessa imagem construda amide em negativo, aborda-se: aleitura empreendida pelos viajantes estrangeiros no incio do sculo XIX, com nfase nolivro de Henry Koster, Travels in Brazil (1816); a problematizao e instrumentalizao dotema em meio s formulaes higienista e sanitarista sobre a necessidade de reformar e

    modernizar o espao urbano ao longo do sculo XIX; da mesma maneira, no processo deformao do campo disciplinar do urbanismo no Brasil na virada para o sculo XX; e, aapropriao do tema na constituio da historiografia sobre a arquitetura brasileira. Por fim,tecem-se algumas consideraes sobre o texto que seria tomado como o momento fundantedessa representao: o captulo O semeador e o ladrilhador, de Razes do Brasil (1936), deSrgio Buarque de Holanda.

    Palavras-chaves: cidade colonial representaes historiografia arquitetura urbanismo

    ABSTRACT

    The formation of representations on Brazilian colonial cities.

    The critique of the colonial city was one of the most usual themes on the discussion andjustification of reforms and improvement plans targeted at several Brazilian cities in the turnto the twentieth century. The critique was reiterated in a virtually homogeneous fashion allover Brazil, regardless of the specific urban characteristics in each settlement, whether it wasbeing applied to cities that concentrated great administrative and economic importanceduring the colonial times, such as Rio de Janeiro, Salvador and Recife, or to those thatcarried little relevance in the colonys fledgling urban network, such as Natal. Beyond theissue of whether the Portuguese colonizers were planning settlements, this thesis discusseshow representations on Brazilian colonial cities came to be. As the development of thisgenerally negative image is tracked down, this work explores the images of Brazilian citiesforged by foreigner travelers, focusing on Travels in Brazil (1816), by Henry Koster; thethemes problematization by physicians and sanitary and polytechnic engineers, for whomthe theme of colonial city was instrumental to demand for the urban reforms andmodernization they sought over the nineteenth century; the appropriation of this themeduring the process of formation of urbanism as a discipline; and in the many texts and booksthat delineated modern historiography on Brazilian architecture. Finally, some considerationsare made on the text that could be considered the foundation for these representations:Srgio Buarque de Holandas O semeador e o ladrilhador, a chapter from his 1936 work,Razes do Brasil.

    Key-words: colonial city representations historiography architecture urbanism

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    SUMRIO

    Introduo

    19Primeiras cartografias de representaes

    As partes da teseNotas sobre o conceito de representao

    252833

    Captulo 1Leituras Viajantes: a cidade colonial entre olhares estrangeiros 63

    1.1 Leituras formativas1.2 O observador que participa1.3 Narrar a cidade, viver a cidade

    738593

    Captulo 2As cidades estreitas e sujas: esforos para constituio de uma (nova)ordem urbana 105

    2.1 Higiene para as cidades2.2 o traado sanitrio das cidades

    110134

    Captulo 3A arte que lhe falta: legitimaes do campo disciplinar do urbanismo 147

    3.1 A primeira cidade da Amrica do Sul 157

    Captulo 4A cidade colonial na histria da arquitetura: usos, indcios, ecircularidades 171

    4.1 Antiurbanismo ou as limitaes impostas pelo passado4.2 delineamentos narrativos4.3 estudos sobre arte e arquitetura colonial

    177185194

    Consideraes finaisImagens e representaes em um texto fundador 203

    Referncias 213

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    INTRODUO

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

    2

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    __________________________________________________________A formao das representaes sobre a cidade colonial no Brasil

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    E se estiver na pausa e no no assovio o significado da mensagem?Se for no silncio que os melros se falam?

    Italo Calvino, Palomar

    Os textos de abertura de dois livros pioneiros e importantes sobre o estudo

    das vilas e cidades do perodo colonial brasileiro1 so significativos em suas

    preocupaes congneres, revelando um esforo historiogrfico de discusso

    aprofundada, baseada em um amplo levantamento documental que abrangeuarquivos brasileiros e europeus, sobremaneira, para refutar e estabelecer novas bases

    para o tema.

    Tanto Nestor Goulart Reis quanto Roberta Delson apontam para a imagem

    comum e inconteste, de conotao negativa, que at ento se tinha sobre a cidade

    colonial no Brasil. Imagem que, diga-se, constitua-se numa premissa dos estudos de

    histria latino-americana e dos compndios de arquitetura: o desalinho, o

    enviesamento das ruas, a ocupao espontnea e aleatria, a trama urbana irregular eestreita, escura e insalubre, denunciariam a falta de ordem e de plano na sua

    construo, reflexo do desleixo portugus na colonizao do Brasil. Como

    lembraria Delson, a construo de Braslia na dcada de 1960 representou para

    muitos o incio da planificao urbana formal no pas2 o que desconsideraria at

    mesmo a criao de Belo Horizonte e Goinia.

    Ambos os trabalhos viriam desmontar portanto esta imagem, o carter

    negativo na leitura do espao urbano colonial brasileiro, que homogeneizara umainterpretao sobre o seu processo de urbanizao e at mesmo obscurecera os

    1Nestor G. Reis, Contribuio ao estudo da Evoluo Urbana do Brasil 1500/1720 , 2000, e Roberta Delson,Novas vilas para o Brasil-Colnia: planejamento espacial e social no sculo XVIII, 1997; o trabalho do professorNestor Goulart foi apresentado em 1964 e conheceu sua primeira edio em 1968, pela LivrariaEditora Pioneira; o livro de Delson foi publicado originalmente em ingls, em 1979.

    Observao: optamos por uma entrada simplificada, em nota de rodap, das referncias completas quese encontram no final desta tese, permitindo assim saber desde logo quem o autor e qual o ttulo daobra; assim, nem nos limitamos ao sistema autor-data, nem nos estendemos demais para anotar todasas informaes bibliogrficas. Esse procedimento foi adotado ao longo de toda a tese.2R. Delson, op. cit., p.xi.

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

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    vrios exemplos de novas comunidades planejadas no sculo XVIII. Primeiro, dando

    a lume alguns planos urbansticos dos dois primeiros sculos de colonizao em

    especial o que orientou a criao de Salvador ainda na primeira metade do sculo

    XVI e o processo social de ocupao do territrio, ao qual certa preocupao com

    o ordenamento urbano esteve desde o princpio vinculado, quer em traados

    regulares ou no;3em segundo lugar, deslindando o amplo programa de criao de

    vilas e cidades para o serto do Brasil durante o Setecentos, uma clara poltica

    urbana dos administradores portugueses para expandir e garantir o controle da Coroa

    sobre a colnia; ademais, a regularidade e a homogeneidade dos novos espaos

    seriam tambm expresso do pensamento racional iluminista e absolutista europeu e

    indutores de novos padres culturais e sociais.4

    Outros estudos avanaram nessas questes, colocando novos elementos na

    discusso sobre a existncia de um processo de ordenamento e de planificao

    portuguesas na sua maior colnia ultramarina, desde um chamado urbanismo

    vernacular portugus no interior, passando pela definio dos diversos agentes

    modeladores do espao urbano, em especial o papel do almotac e do engenheiro

    militar, at a relao entre a forma urbana e as tecnologias de guerra. 5Contudo, se

    todos esses estudos tm demonstrado que de fato houve planejamento na criao demuitas vilas e cidades desde o sculo XVI, e no apenas sob o governo absolutista do

    Marqus de Pombal, o que evidenciaria uma poltica urbanizadora para a Amrica

    Portuguesa, permanece em aberto a questo sobre a formao dessa representao

    sobre a cidade do perodo colonial no Brasil. Afinal, como essa imagem se forma e

    adquire carter historiogrfico? Quais as suas razes e quais as suas repercusses no

    estudo e, conseqentemente, na transformao das cidades brasileiras? Como ela

    assume um vis predominantemente negativo que, como afirmaria Nestor Goulart,

    3N. G. Reis, op. cit.4R. Delson, op. cit.5Como exemplo no avano nas discusses sobre a cidade colonial brasileira, basta ver o crescenteinteresse e nmero de trabalhos sobre o tema nos ltimos Seminrios de Histria da Cidade e doUrbanismo, em especial a partir da IV edio (Rio de Janeiro, 1996), dos quais fizemos aqui algumasreferncias. A esses, somem-se pesquisas recentes que se constituem referncias fundamentais paraesta discusso, como: Laurent Vidal,Mazago, 2008; Amlcar Torro,A arquitetura da alteridade: a cidadeluso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845), 2008; Rodrigo Baeta, Ouro Preto cidade barroca, 2003;

    Beatriz Bueno, Desenho e Desgnio, 2001; Manuel Teixeira e Margarida Valla, O urbanismo portugus: sculosXIII-XVIII, 1999.

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    desqualificaria os ncleos urbanos brasileiros como objeto de estudo?6Estas so

    algumas das questes que moveram os interesses das pesquisas que fundamentam

    esta tese desde o incio.

    Responder a tais questes no obviamente o interesse dos estudos acima

    citados, voltados que esto ao problema da interpretao dos significados da

    colonizao portuguesa, na qual a forma das cidades e a conduo ou no no seu

    processo de construo constitui-se como uma das expresses mais fortes. De

    forma esquemtica, pode-se afirmar que a oposio se coloca entre aqueles que

    defendem a existncia de uma clara poltica de urbanizao portuguesa para o Brasil,

    expressa em modelos, ordenamentos e planos, e aqueles que a negam ou diminuem a

    sua importncia frente ao poder do mundo rural ou s especificidades da colonizao

    lusitana.

    Cabe aqui abrir um parntese: ao discutir os estudos sobre as cidades

    coloniais no Brasil, Paulo Santos identificaria trs enfoques que estruturavam essa

    discusso: o primeiro, tributrio da oposio semeador-ladrilhador de Srgio

    Buarque, enfatizaria o desleixo do colonizador portugus; o segundo leria com

    complacncia a suposta ingenuidade canhestra das solues do povoador; o terceiro

    elogiaria a diligncia e o sinal de progresso das cidades construdas a partir de

    traados regulares. Insatisfeito com tais enfoques, Santos proporia um quarto:

    reconhecer a genuinidade das cidades de traado irregular como herdeiras de um

    outro sistema de conceitos urbansticos, que remontariam Idade Mdia.7 Antes

    ainda, o crtico de arte Maria Barata, durante sua exposio na primeira sesso

    (dedicada ao tema da Cidade nova) do Congresso Internacional Extraordinrio de

    Crticos de Arte, em 1959, afirmaria que mesmo construdas de acordo com tradio

    medieval lusa, essas primeiras cidades brasileiras parecem ter tido traado originalmais regular e ortogonal do que geralmente se supe. A expanso posterior,

    6N. G. Reis, op. cit., p.13.7Paulo Santos, Formao de cidades no Brasil colonial, 2001 [1968]; Cf. tambm a reviso bibliogrfica deA. Torro Filho, Imagens de pitoresca confuso: a cidade colonial na Amrica Portuguesa, RevistaUSP, 2003. No se pode deixar de mencionar que tanto Formao quanto Quatro sculos de

    Arquitetura (1965) so posteriores participao de Santos na banca de livre-docncia do professorNestor Goulart.

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

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    descendo as acrpoles originais de defesa dos stios, que teria acentuado as

    irregularidades.8

    Seguindo a exposio de Roberta Delson e Nestor Goulart, estariam na

    segunda categoria alguns autores como Robert Smith, Richard Morse e Henrique

    Mindlin, aqueles para quem a ordem era ignorada pelos portugueses (a frase de

    Smith, em Arquitetura colonial, de 1955). Poder-se-ia acrescentar ainda entre esses

    Yves Bruand. Quando o palegrafo francs concluiu o seu amplo panorama sobre a

    arquitetura brasileira do sculo XX, a primeira edio do livro de Nestor j era

    conhecida no meio acadmico; contudo, considerando o exemplo da planificao de

    Salvador inconsistente, embasar-se-ia em Srgio Buarque (no que diz respeito ao tipo

    de cidades criadas pelos portugueses, em oposio aquele dos espanhis) para

    afirmar que o urbanismo portugus foi mais negativo do que positivo em relao

    tarefa de planificao....9

    Estaria a, portanto, a oposio bsica e fundamental que, diga-se, tem

    fomentado algumas importantes discusses e controvrsias no campo disciplinar da

    histria urbana, da arquitetura e, principalmente, do urbanismo. A polmica de

    fundo, congnere aos dois estudos iniciais j citados, abre-se a partir do captulo O

    semeador e o ladrilhador, do clssico Razes do Brasil, no qual Srgio Buarque

    trabalha com a metodologia dos contrastes10 para comparar e estabelecer as

    diferenas entre o empreendimento colonizador espanhol e o portugus em matria

    de urbanismo.

    A fantasia com que em nossas cidades, comparadas s da Amricaespanhola, se dispunham muitas vezes as ruas e habitaes , semdvida, um reflexo de tais circunstncias [a primazia do mundorural, o carter mercantil da colonizao portuguesa, a maiorliberalidade de sua administrao, etc.]. Na prpria Bahia, o maiorcentro urbano da colnia, um viajante do princpio do sculoXVIII [L.G. de la Barbinais] notava que as casas se achavamdispostas segundo o capricho dos moradores. Tudo ali era

    8Atas do Congresso Internacional Extraordinrio de Crticos de Arte, Braslia, So Paulo e Rio de Janeiro, set.1959, p.13-15.9 Y. Bruand, Arquitetura contempornea do Brasil, 1997, p.325; o seu livro foi fruto de uma pesquisarealizada durante a dcada de 1960, que resultou em tese defendida na Universit de Paris IV, em 1971;foi publicado em portugus apenas em 1981.10A. Candido, O significado de Razes do Brasil [1967], in Razes do Brasil, 2006, p.237.

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    __________________________________________________________A formao das representaes sobre a cidade colonial no Brasil

    25

    irregular, de modo que a praa principal, onde se erguia o Palciodos Vice-Reis, parecia estar s por acaso no seu lugar. 11

    Se a riqueza da anlise concisa e sinttica, mas no menos profunda e erudita,

    de Srgio Buarque influenciou decisivamente estudos posteriores sobre a formao

    social brasileira advinda do perodo colonial, inegvel que o tema da cidade colonial

    j estava presente, bem antes da dcada de 1930, no meio intelectual e tcnico

    brasileiro. Uma das representaes iria tom-la, em negativo, como a expresso

    material do atraso que deveria ser superado para a construo da cidade moderna no

    Brasil e, no fim, para a constituio de uma moderna nao.

    Primeiras cartografias de representaes

    A crtica da cidade colonial foi um dos principais temas nas discusses e

    justificativas para as reformas e melhoramentos por que passaram muitas cidades na

    virada para o sculo XX, formulada por mdicos, higienistas, sanitaristas,

    engenheiros, mas tambm como objeto dos ensaios e textos de carter

    historiogrfico. Desde aquelas mais importantes administrativa e economicamente

    nos dois primeiros sculos de colonizao, como o Rio de Janeiro, Salvador e Recife,at as que pouca relevncia tinham na incipiente rede urbana do perodo colonial,

    como Natal, a crtica repetiu-se, homogeneamente primeira vista, nas vrias cidades

    em transformao, independente das particularidades das vrias estruturas urbanas e

    da maior ou menor irregularidade dos seus traados. O engenheiro sanitarista

    Saturnino de Brito, por exemplo, um dos nomes mais importantes na constituio do

    urbanismo moderno no Brasil e cuja original e vasta obra terica e prtica teve

    grande ressonncia no pas,12no deixou de comentar e condenar a chamada cidade

    antiga em muitos dos seus planos de extenso, saneamento e melhoramentos para

    cidades como Campos, Recife e Santos.

    Deve-se afirmar, ademais, que o interesse por essa questo nasceu de certas

    indagaes e constataes sobre o processo de transformaes urbanas de Natal nos

    anos 1920. Trabalhando com o contraste entre as leituras histrico-literrias

    11S. B. Holanda, Razes do Brasil, 2006 [1936], p.109.12Cf. C. Andrade,A peste e o Plano: o urbanista sanitarista do Eng. Saturnino de Brito, 1992.

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

    26

    formuladas durante a Primeira Repblica sobre a cidade colonial e a sua forma fsica,

    representada na parca iconografia existente sobre a cidade at o incio do sculo XX,

    seria aventada a hiptese de que o seu processo de modernizao pressups a

    construo historiogrfica da (imagem da) cidade colonial.13

    Isto , a transformao fsica dar-se-ia no apenas sobre a trama urbana

    herdada do perodo colonial e imperial, mas principalmente sobre o conjunto de

    significaes (negativas) do qual foi eivado este espao: territrio de prticas

    incivilizadas e rudes, de insalubridade, de estagnao econmica, do capricho, do

    acaso, contra o qual era erguida e sustentada a ordem do plano urbano, produto da

    razo humana guiando os caminhos do futuro. Mas, poder-se-ia questionar, esse

    processo ocorreu apenas em Natal ou conheceu correlatos e similares em outros

    contextos de modernizao de cidades, onde a herana urbana do perodo colonial

    era bem mais presente?

    Sabe-se que Saturnino de Brito, j mencionado aqui, apoiava a sua teoria da

    urbanizao numa leitura evolucionista do crescimento das cidades brasileiras que

    tinha forte correlao com o positivismo comteano. maneira dos trs estados

    intelectuais da humanidade, haveria trs fases na vida de uma cidade, das quais a

    primeira era a lenta expanso do acaso colonial. Significativamente, Brito concordaria

    com Camillo Sitte outra de suas grandes referncias tericas no elogio do espao

    orgnico das cidades medievais europias, mas no o faz na anlise do espao urbano

    do perodo colonial brasileiro mesmo quando a disposio de praas e igrejas

    poderia ser enquadrada em exemplos sitteanos.14

    No Recife, evocava-se uma ordem mtica da cidade Maurcia, fruto da

    presena holandesa no sculo XVII, que buscava legitimar, no passado, a

    racionalidade dos planos do urbanismo moderno do sculo XX. Mauritzstadt, a

    urbanizao da ilha de Antonio Vaz, formaria ento o contraste com o espao (mal)

    construdo pelos portugueses ao longo dos sculos. Os aplogos da modernizao

    tentavam mostrar assim que havia no prprio passado da cidade uma vocao natural

    para a regularidade e a racionalidade, e no apenas as tipologias e a morfologia do

    13Cf. George Dantas, Linhas convulsas e tortuosas retificaes: transformaes urbanas em Natal nos ano 1920,2003, em especial o captulo 2, No h-tal, Natal: movimentos de construo e desconstruo dacidade colonial.14Essas questes sero retomadas no captulo 2.

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    __________________________________________________________A formao das representaes sobre a cidade colonial no Brasil

    27

    espao tradicional.15 Em meados do sculo XIX, os elementos materiais que

    marcavam os usos religiosos do espao pblico da capital pernambucana foram

    considerados, de maneira reiterada, como a expresso de um passado obscuro que

    deveria ser expurgado. As formas antigas eram tomadas como entraves fsicos e

    simblicos ao progresso. Assim, defendia-se como

    Indispensvel [a] demolio dos arcos de Santo Antonio e daConceio, logo antes da abertura do trnsito. A existncia dessesarcos hoje incompatvelcom o estado atual (...).

    Pelo lado material vemos que o aumento extraordinrio daedificao e aformoseamento da cidade reclama semelhanteprovidncia, por quanto esses arcos, alm de impedirem o livrotrnsito da grande massa de povo que por ali ter de passar, so por

    suas antigas formas, um completo antagonismo da atualidade, umaanomaliaperfeita.16

    No Rio de Janeiro, a modernizao da cidade para transform-la numa capital

    integrada ao circuito internacional do capitalismo comercial pressups a destruio a

    golpes de picareta da configurao scio-espacial antiga, substituindo-a pelos

    referenciais ditos civilizados, importados da Belle poqueeuropia.17Em So Paulo,

    cidade que se assemelhava a Natal no tamanho acanhado e na menor importncia

    econmica durante o perodo colonial, transformar-se em metrpole significaria nosomente a ruptura com os limites de fundao, o chamado Tringulo, mas a defesa

    da destruio dos resqucios da cidade antiga, como faria Alexandre de Albuquerque

    em seu plano de melhoramentos para o Vale do Anhangaba, em 1910.18

    Percebe-se assim que a questo da cidade colonial seus significados, sua

    herana estava em disputa e em construo. Neste processo, vrias referncias

    fazem-se presentes e revelam o olhar que se volta e inquire o passado colonial.

    Olhares que como toda operao historiogrfica constroem e, ao faz-lo,selecionam, recortam, eliminam, hierarquizam. Essas referncias so diversas e

    provm de vrias disciplinas e matrizes do pensamento, quer vinculadas gnese do

    15Jos Lira,Mocambo e Cidade: regionalismo na arquitetura e ordenao do espao habitado,1996, p. 212-225.16Jornal do Recife, 26 jul. 1865, apud Raimundo Arrais, O Pntano e o Riacho: a formao do espao pblico noRecife do sculo XIX, 2004, p.334-35.17Cf. Giovana Del Brenna, O Rio de Janeiro de Pereira Passos, 1985; e Nicolau Sevcenko, Literatura comomiss: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica, 1999 [1983].18

    H. Segawa, Preldio da metrpole : arquitetura e urbanismo em So Paulo na passagem do sculo XIX ao XX,So Paulo: Ateli Editorial, 2000, p.16; Jose Geraldo Simes Jr,Anhangaba: histria e urbanismo, 2004.

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

    28

    urbanismo moderno no Brasil, quer s influncias tericas (histricas, filosficas,

    cientificistas, etc.) do pensamento social brasileiro.

    Assim, esta tese partiu da hiptese de que a cidade moderna constituiu-se

    tambm como oposio aos chamados valores confusos, s ruas estreitas e

    desalinhadas, aos registros fsicos de uma cidade sem ordem do perodo colonial. So

    representaes que, portanto, revelariam muito mais sobre o carter e os significados

    do projeto de modernizao que se pretendia para o pas do que sobre a prpria

    cidade do perodo colonial.

    Assim, quando, e.g., um importante engenheiro como Loureno Baeta Neves

    atestava, na introduo s Obras Completas de Saturnino de Brito, que

    (...) a realizao do servio de esgotos de Santos onde pelaprimeira vez se concretizaram em larga escala ensinamentos deSaturnino de Brito afirma de modo eloqente e positivo a grandevitria do Brasil moderno contra o torpor colonial que abatia o seu esprito enos colocava numa dependncia passiva da intervenoestranha nas solues prticas dos nossos problemas sanitrios.19

    entrev-se um momento em que uma certa leitura da cidade colonial estava

    consolidada. Mas, que leitura essa? unvoca, homognea, ou, ao contrrio,

    resultado de uma batalha pelos sistemas de percepo e enunciao de conceitos,

    interpretaes, leituras, imagens que, por sua vez, passam a ter valor operativo (a

    produzir e ou orientar estratgias e prticas, como lembra o historiador Roger

    Chartier)?20Como se formou? e, em conseqncia, qual sua lgica narrativa, quais

    referncias, quais palavras-chaves (com poder de sntese), quais recorrncias?

    As partes da tese

    Interessa a esta pesquisa, ento, discutir o que se reputa como o problema

    historiogrfico da formao de uma determinada representao negativa sobre as

    vilas e cidades do Brasil colonial. Assim, a problemtica, em muitos aspectos

    superada, sobre a existncia ou no de planejamento portugus para suas colnias

    ultramarinas e, em especial, para o Brasil, , aqui, de relevncia, a princpio,

    19L. Baeta Neves, Introduo, in Obras Completas de Saturnino de Brito, v.1, 1943, p.xv.20O conceito de representao ser discutido na nota final introduo.

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    __________________________________________________________A formao das representaes sobre a cidade colonial no Brasil

    29

    secundria e quando ajudam a cartografar essa representao, seus lugares-comuns

    e fundos-comuns.

    Quais os elementos formativos, quais as matrizes do pensamento que

    informaram e influenciaram a construo historiogrfica sobre a cidade colonial no

    Brasil? Quais representaes se formam para alm da longeva e quase inconteste

    imagem negativa que se lhe foi atribuda? Um problema de fundo historiogrfico,

    como dito, que, defende-se, pode ser revelador das estratgias de legitimao e

    justificao de diversos saberes modernos em emergncia e consolidao no Brasil.

    Para enfrentar esse problema, foram propostos trs eixos investigativos para

    tentar deslindar os possveis emaranhados na construo da narrativa historiogrfica

    sobre a cidade colonial, procurando identificar sobreposio de teses e argumentos,

    dilogos entre textos de campos disciplinares distintos, referncias comuns, etc. O

    primeiro eixo aborda o que se chamou aqui de matriz higienista/sanitarista,

    enfatizando as representaes oriundas da emergncia do saber mdico e do papel

    reformador do engenheiro sobre a cidade, ao longo do sculo XIX e das primeiras

    dcadas do sculo XX. O segundo eixo discute a matriz urbanstica, acompanhando

    de perto as representaes provenientes da consolidao de uma disciplina que

    arrogaria autoridade, autonomia e especificidade para transformar, reformar, derrubar

    a cidade e seu legado urbano do perodo colonial (que, seguindo essa formulao,

    adentraria e marcaria o perodo imperial). O terceiro eixo inquire a formao da

    historiografia da arquitetura no Brasil no sculo XX ao tomar as relaes com o

    passado como moto explicativo fundamental, permitiu reconstruir uma ou mais das

    possveis genealogias das representaes que aqui se problematizam, perceber

    referncias que se repetem, palavras que emulam ou que deslizam semanticamente.

    Eixos que, invariavelmente, remetem-se, direta ou indiretamente, crtica ou

    acriticamente, aos relatos dos viajantes estrangeiros que vieram ao Brasil desde o

    sculo XVI e, em especial, aqueles que testemunhariam a acelerao do processo de

    transformaes por que a ainda colnia passaria a partir do incio do sculo XIX.

    Afinal, o olhar de fora foi fundamental para a conformao das maneiras como se

    leu e como se deu a ler as paisagens natural, urbana e cultural do Brasil, implicando

    na construo do prprio olhar de dentro, do conhecimento e das formas de ler e

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

    3

    narrar o passado do pas21 nesse sentido, significativo que o marco inicial da

    historiografia brasileira seja o ensaio de Carl Friedrich von Martius (autor da longa e

    abrangente Viagem pelo Brasil, ao lado de Johann Baptiste von Spix), vencedor do

    concurso promovido pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e publicado em

    1845, intitulado Como se deve escrever a histria do Brasil. Martius no escreveu

    tal histria, mas os princpios de seu ensaio teria larga circulao entre os prprios

    membros do IHGB, desde a Histria de Varnhagen.22

    Assim, a presente tese parte, no captulo 1, da discusso sobre a leitura acerca

    das cidades coloniais luso-brasileiras que seriam construdas pelos viajantes

    estrangeiros no incio do sculo XIX, enfatizando o livro Travels in Brazil, de Henry

    Koster, publicado em Londres em 1816. Apenas um livro para construir

    generalizaes, encontrar respostas e delimitar os elementos constitutivos da

    representao que esta tese persegue? No h tal pretenso. Aqui, mais do que nos

    outros captulos, reconhecem-se as limitaes que se enfrenta forosamente ao tentar

    articular tramas e formulaes derivadas de diversos campos de conhecimento.

    Assim, foi necessrio o trabalho constante com fontes secundrias e

    compilaes, seletas de texto, etc., para contemplar um conjunto amplo e variado de

    reas de interesse que, reconhea-se, amide se cruzam. Entretanto, isso no implica

    a desconsiderao das fontes primrias, do acesso direto e sempre que possvel

    fsico e no apenas virtual aos documentos originais, s edies originais. Enfatizar

    tal dimenso explica-se porque, e.g., ao propor abarcar as representaes de cidade

    formuladas pelo olhar de fora no se possvel no mbito de uma pesquisa de

    doutorado que no as tem como objeto principal abarcar todos os documentos

    originais da mirade de relatos deixados pelos viajantes durante o sculo XIX (e, veja-

    se, tal recorte j aponta para uma circunscrio dentro de uma produo queremonta, com muitos exemplos, ao sculo XVI). Assim, o acmulo de releituras e

    discusses sobre o tema torna-se ainda mais fundamental,23 ajudando a iluminar o

    21Ana Maria Belluzzo, O Brasil dos viajantes, 1999; Flora Sussekind, O Brasil no longe daqui, 1990.22 Amlcar Torro Filho, A arquitetura da alteridade: a cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845), 2008, p.249 et seq.23 Nesse sentido, os textos j citados de Amlcar Torro Filho (2008) e de Ana Maria de Moraes

    Belluzzo (1999) foram referncias importantes, abrindo-nos portas e apontando possibilidades deanlises e mesmo possveis concluses.

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    __________________________________________________________A formao das representaes sobre a cidade colonial no Brasil

    31

    prprio texto de Koster e a compreend-lo dentro de uma rede de significaes

    sobre o tema no perodo.

    O captulo 2 aborda o primeiro eixo de anlise proposto, procurando mapear

    como o tema do passado das cidades foi tematizado pelos profissionais que se

    debruaram sobre as transformaes por que os espaos urbanos brasileiros

    passaram ao longo do sculo XIX. A nfase inicial considera a tica higienista e,

    principalmente, a cidade do Rio de Janeiro, porque seria onde os esforos mais

    sistemticos foram feitos (e por alguns dos principais profissionais, aqueles que

    fizeram parte do crculo real e imperial) e onde primeiro foram discutidos. Na

    segunda parte do captulo, aborda-se a instrumentalizao do tema da cidade colonial

    pelas formulaes do urbanismo sanitarista, que, desde fins do sculo XIX, vinha

    tecnicalizando as discusses higienistas e apontando caminhos decisivos para a

    formao do campo disciplinar do urbanismo no Brasil.24

    O captulo 3 prope discutir um momento especfico e fundador das

    discusses sobre o urbanismo no Brasil embora assim ainda no se nomeasse: o

    processo que levaria fundao de Belo Horizonte na dcada de 1890, considerando

    em especial os documentos da Comisso, liderada pelo engenheiro Aaro Reis, que

    escolheria, dentre cinco localidades preestabelecidas, o antigo arraial de Curral dEl

    Rei.25

    Para o captulo 4, trabalhou-se com a hiptese de considerar os textos

    constituintes da historiografia da arquitetura brasileira como, de certa maneira,

    ensaios de interpretao do Brasil. Assim, ao mobilizar temas de fundo como o da

    cidade colonial para construir a leitura sobre o objeto principal do ensaio, vrias

    palavras, expresses, exemplos e conceitos so utilizados, permitindo mapear quais

    referncias eram explicitadas, diretamente ou no, e como eram mobilizadas,

    iluminando, assim, linhas narrativas que retrocedem, e.g., de Yves Bruand para

    Fernando Azevedo, desse para Gilberto Freyre e, desse, para o relato de muitos

    24Para esta segunda parte, os trabalhos do professor Carlos de Andrade (1992 e 1996) serviram comopontos de partida importantes.25A compilao de Ablio Barreto (1996), reeditada por ocasio do centenrio de Belo Horizonte, e os

    textos da pesquisadora Heliana Salgueiro (1997; 2001) foram um suporte fundamental para construodesse captulo.

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

    32

    viajantes, que, a exemplo de Henry Koster, pousaram no Brasil na primeira metade

    do sculo XIX, dentre muitas outras fontes.26

    Por fim, estabelecem-se algumas consideraes sobre aquele texto que, ao

    longo desta pesquisa, serviu como ponto de partida para as indagaes que a

    fundamentam e transformaram-se em ponto de inflexo quando das inescapveis

    crticas e auto-crticas sobre a pertinncia da problemtica acerca das representaes

    sobre a cidade colonial no Brasil, i.e., questionar se tais representaes foram de fato

    to longevas e, mais importante, se foram extensivas, homogneas, operativas.

    Assim, pensar como o texto o semeador e o ladrilhador, do clssico Razes do Brasil,

    de Sergio Buarque de Holanda, ajudou a construir e a consolidar o estatuto

    historiogrfico dessas representaes (principalmente a partir das revises da segunda

    edio, de 1948), mesmo que fundamentando debates e querelas que lhe escapavam,

    conformam o ponto de chegada desta tese.

    Assim, h que se fazer algumas advertncias sobre esta tese. Antes de mais

    nada, deve-se reconhecer as limitaes inerentes ao enfrentamento de um problema

    historiogrfico que comporta muitas sobreposies, tramas diversas, uma genealogia

    no mais das vezes difusa, que parece escapar das mos do investigador envolvido

    com muitas fontes primrias e secundrias e sem recorte temporal muito preciso.

    A narrativa que articula essas preocupaes, organizada nos quatro captulos

    j explicitados, no pretende montar linhas de continuidade de representaes, dos

    lugares-comuns e dos fundos-comuns, mas elas se impem vez ou outra, como se

    poder perceber. O texto , em alguns momentos mais fragmentrio, quase

    episdico, em outros, h mais fluidez na narrativa. De fato, o interesse fincou-se em

    cartografar nfases, usos reiterados, indcios, circulaes e mesmo mudanas de

    significaes de palavras, cortes especficos em relao a uma crescente construo

    da leitura da cidade antiga, da cidade do passado, da cidade colonial brasileira.

    Desta maneira, no interessou especificamente, e.g., fazer uma histria da

    literatura dos viajantes no Brasil, mas mapear/cartografar/descobrir as peas de um

    quebra-cabeas imenso e incompleto; outrossim, no interessou fazer uma histria da

    medicina ou da higiene pblica no Brasil ou mesmo da estruturao da engenharia

    26

    A dissertao do professor Carlos Martins sobre a formao da trama narrativa hegemnica dahistoriografia da arquitetura brasileira deu-nos a moldura para comear a compor esta captulo.

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    33

    sanitria. Ao tomar como campo de atuao principal a cidade, pode-se acompanhar

    a construo narrativa de justificativas e legitimidades para a ao profissional, como

    se nomeou e equacionou o problema a ser enfrentado e a cidade existente foi,

    claramente, transformada em problema.

    Talvez a imagem do quebra-cabea de Ginzburg e Prosperi, conforme narra

    Manfredo Tafuri na introduo ao livro A esfera e o labirinto (quando expe uma

    espcie de suma do seu projeto e mtodo de investigao), seja apropriada para

    aclarar essas limitaes para enfrentar um problema que eminentemente

    historiogrfico mas que, bvio, se rebate nas prticas culturais e materiais que

    transformam e significam a cidade. Em determinado momento, as peas acumuladas

    nos caminhos tortuosos e complexos do curso labirntico da anlise histrica,

    comeam a se juntar e a fazer sentido podem ser colocadas, uma a uma, agrupadas;

    contudo, ao contrrio do jogo, nem a imagem a ser composta apenas uma e nem

    mesmo todas as peas estaro a mo.27

    Cr-se assim que esta tese conseguiu juntar peas diversas em torno do

    problema aqui exposto, algumas compondo reas maiores, outras dispersas em torno

    de uma idia, uma palavra, uma sugesto a partir de um texto obscuro ou de menor

    importncia dentro de tramas disciplinares hegemnicas. Outras reas ficaram como

    lacunas explcitas e, acredita-se, de significativas possibilidades (como as

    representaes na literatura, na pintura histrica do sculo XIX ou na das vanguardas

    artsticas brasileiras do incio do sculo XX).

    Notas introduo: sobre o conceito de representao

    PrembuloPalomar, personagem irrequieto, meditabundo e nervoso de Calvino, pe-se a

    nadar num final de tarde ensolarado. A superfcie ondulada e acobreada do mar

    excita o vislumbre do reflexo do sol que o acompanha a espada do sol que se

    forma continuamente, inexoravelmente, entre o observador e a manifestao tica da

    existncia fsica do astro.

    27

    M. Tafuri, Introduccin: el proyecto histrico, In La esfera y el laberinto: vanguardias y arquitectura dePiranesi a los aos setenta, 1984, p.05.

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

    34

    Em um processo de contnuo questionamento, Palomar pensa sobre o seu

    lugar no mundo, sobre o lugar do homem no mundo. Existiria o sol sem algum a

    nome-lo? a observ-lo? Se a projeo dos raios solares segue o olhar de cada

    nadador-observador, continuariam ento a existir sem o olho que a v? Essa

    inquietude leva o personagem a afirmar:

    Tudo isso acontece no no mar, nem no sol, pensa o nadadorPalomar, mas dentro de minha cabea, nos circuitos entre osolhos e o crebro. Estou nadando em minha mente; apenas alique existe essa espada de luz; e o que me atrai precisamenteisto.28

    O sol que refulge, brilha e segue, refulge sobre algo, brilha para algum, segue

    algo. Depende daquele que o observa e nomeia a condio de refulgir, de brilhar, de

    seguir. Se o reflexo uma construo interna, no haveria outra concluso possvel:

    Todo o resto reflexo entre reflexos, inclusive eu.29O silogismo resulta lgico para

    Palomar. O que lhe fora a desdobrar o raciocnio num emaranhado relativista:

    Seu olhar voltado para cima contempla agora as nuvens vagantes eas colinas nebulosas dos bosques. Seu eu tambm est ao revsnos elementos: o fogo celeste, o ar que corre, a gua que bera e aterra que sustenta. Seria isso a natureza? Mas nada do que v

    existe na natureza: o sol no se pe, o mar no tem aquela cor, asformas no so as que a luz projeta na retina. (...). A natureza noexiste?30

    Armadilha retrica que o incomoda e que no sobrevive ao primeiro sinal da

    presena humana. Um barco irrompe e turva o mar. Espalha resduos de leo e

    fumaa. Outros detritos so revelados pela baixa-mar. Palomar, o homem, detrito

    entre detritos, que se chocam, se misturam, no pode mais negar a existncia, ainda

    que insuportvel, daquilo que est para alm de si.

    28 Italo Calvino, Palomar (conto A espada do sol), 1994, p.16 (a referncia completa desta e dasdemais notas de rodap esto listadas ao final). Esse conto foi publicado originalmente em LaRepublica, Roma, 29 jun. 1983 (cf. Valria Arauz, Lentes de Palomar, 2002).29Calvino, op. cit., p.17.30Ibidem, p.17-18.

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    35

    Em meio polifonia que marca os discursos internos dessa reflexo (cujo

    pndulo toca tanto a negao quanto a descrio ferina do real), Palomar, por fim,

    convence-se de algo.31

    Pensando bem, tal situao no nova: j durante milhes desculos os raios de sol pousaram sobre a gua antes que existissemolhos capazes de recolh-los.

    (...). Um dia o olho saiu do mar, e a espada, que j estava ali a suaespera, pde finalmente ostentar toda a esbelteza de sua pontaaguda e seu fulgor cintilante. Tinham sido feitos um para o outro,a espada e o olho: e talvez no tenha sido o nascimento do olhoque tenha feito nascer a espada, mas vice-versa, porque a espadano podia recusar um olho que a observasse de seu vrtice.

    [...].

    (...).Est convencido de que a espada existir mesmo sem ele.32

    Construindo-se como uma metanarrativa que problematiza tanto a natureza

    quanto a confiabilidade da percepo, da capacidade de o homem descrever e

    explicar aquilo que v e vivencia (e, em conseqncia, como reflexo acerca do

    prprio ato de ler), o final do conto aqui citado expressa aquilo que os

    fenomenologistas chamam de o a priori do mundo.33

    Esse texto de Calvino serve assim como entrada e provocao ao temas dasrepresentaes na historiografia. Afinal, e aparentemente enredados numa trama sem

    fim de referncias, a qual nvel de realidade e ou verdade aspira o historiador? Ou,

    afinal, o que cantam as sereias?34

    31

    Diga-se, a propsito, que o movimento pendular, sempre em suspenso, comum nos demaiscontos que compem a obra, exceo desse conto A espada do sol e de Lua do entardecer (Cf.Arauz, Lentes de Palomar, 2002, p.58-63, 91).32Calvino, Palomar, 1994, p.18-19, grifos nossos.33a priori of the world, its status as always, already there (J. Cannon, Calvinos lattest challenge tothe Labyrinth, Italica, 1985, p.191); a sugesto de ler Palomar como uma metfora do olhar dalinguagem, como uma metanarrativa sobre o prprio ato de ler, de V. Arauz, op. cit., p.82-88.34Ao discutir os usos da literatura e, portanto e mais especificamente, as obras de fico, Calvinoprope uma diferenciao entre o nvel de realidade (que diz respeito ao mundo da obra, within thework) e o nvel de verdade (que se refere ao mundo externo obra), ambos importantes paraconstruir uma compreenso do universo da escrita. A frmula que sintetiza esses vrios nveis queinterpenetram o texto est na assero I write that Homer tells that Ulysses says: I have listened to

    the song of the Sirens (cf. Calvino, Levels of reality in literature, The uses of literature, 1986, p.103, 108,111-119).

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

    36

    Introduo

    O pesquisador da Escola de Administrao Pblica da University of South

    Califrnia, Robert Daland, viajou ao Brasil, no vero de 1965, para realizar as

    pesquisas de campo que fundamentariam a publicao do livro Brazilian Planning,

    em 1967. Das suas investigaes e entrevistas com personalidades como o ex-

    Ministro do Planejamento Celso Furtado, os professor Candido Mendes e Nelson

    Mello e Souza, alm do contato com a Fundao Getlio Vargas, resultaria um

    esforo de compreender as relaes entre planejamento lato sensu e o processo de

    desenvolvimento dos pases no caso, a partir do estudo especfico do Brasil,

    which has a twenty-year history of conscious, institutionalized, central planning.35

    Dos estudos empreendidos por Darland sobre o conjunto de planos do

    governo federal desde o Estado Novo e, principalmente, desde o Plano de Metas de

    Juscelino Kubitschek interessa aqui sobremaneira o ponto de partida para entender

    a histria do planejamento no Brasil. Observe-se o trecho a seguir, que abre o

    captulo 2, intitulado The history and context of Brazilian Planning:

    Central government planning has come to Brazil, not because of anyinnate sense of rationality and ordersuch as that attributed to Germany,or because of a statist ideology as in the Soviet Union, or yetbecause of any crisis of survival in a hostile world as in Israel. Inmany respects, on the contrary, the temperament and values ofthe Brazilian people do not accept the order, efficiency, and therationalitywhich planning implies.36

    Significativas, apesar de lacunares, tais afirmaes so indcios de um

    conjunto de representaes sobre o Brasil (como nao, como povo, como cultura,

    como histria) que marcou e, talvez se possa afirmar, ainda marca parte

    significativa da sua produo historiogrfica.37Que representaes so essas que se

    insinuam em algumas palavras chaves (ou, melhor, como prope a filsofa Myriam

    DAllones, lugares-comuns)?38 Em que registro operam? Palavras que funcionam,

    35Robert Darland, Brazilian planning, 1967, p.01; cf. tambm o Preface.36Ibidem, p.12; grifos nossos.37 No poderemos aprofundar esse tema (da permanncia de algumas representaes) aqui, masapenas indicar uma importante leitura a respeito: Maria Stella Bresciani, O charme da cincia e a seduo daobjetividade, 2005.38Myriam R. DAllones, Le dpressiment de la politique, 1999; devo essa indicao leitura de Bresciani,

    op. cit., p.41 ; o lugar-comum[] constitudo por palavras, crenas, opinies ou mesmo preconceitos quetm significado para uma comunidade poltica efetiva e que, mesmo confusas, errticas e sem

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    __________________________________________________________A formao das representaes sobre a cidade colonial no Brasil

    37

    diga-se desde logo, como registros de ausncias: o brasileiro no aceitaria a ordem, a

    eficincia, a racionalidade; ou, mais ainda, tais elementos essenciais cultura do

    planejamento, como o brasilianista ressalta no se encontrariam inscritos em sua

    histria.

    Darland no as inventa ou prope, claro. Tampouco se apia em fontes

    primrias para construir tais afirmaes. Apia-se, sim, em um conjunto de autores

    que cita direta ou indiretamente (como se revela na lista muito mais longa da selected

    bibliographydo que nos usos ao longo do texto). Fernando Azevedo, Gilberto Freyre,

    Nelson W. Sodr, Jos Honrio Rodrigues, Vianna Moog, alm do prprio Celso

    Furtado e de outros autores, compem o seu quadro de leituras de interpretao do

    Brasil. Da certamente advm o seu repertrio de representaes e lugares-comuns

    Representaes que no so necessariamente homogneas embora

    compartilhem, amide, lugares-comuns, interpretaes, idias e palavras chaves, a

    exemplo dessa imagem em negativo (de falta de ordem, eficincia, racionalidade),

    uma das representaes mais correntes e significativas (com clara dimenso

    operativa), defende-se aqui como hiptese, sobre a histria do Brasil e, mais

    especificamente, sobre o passado de suas cidades.

    Investigar o processo de formao das representaes sobre a cidade colonial

    no Brasil pressupe deslindar uma trama muitas vezes emaranhada e difusa em vrias

    matrizes do pensamento e de tradies intelectuais e profissionais do Brasil, seus

    lugares-comuns, seus pontos de convergncia e de dissenso, suas lgicas narrativas.

    Mais ainda, tal investigao implica, do ponto de vista metodolgico, pr em questo

    o prprio conceito de representao seus usos, possibilidades e problemas para a

    histria da cidade e do urbanismo.

    Para tanto, toma-se como ponto de partida a leitura de textos-chaves do

    historiador francs Roger Chartier aquele que talvez mais diretamente tenha

    retomado e defendido o conceito de representao e, assim, ajudado a estruturar a

    chamada nova histria cultural.39Ademais, por intermdio de Chartier possvel

    preciso, deitam razes na vida e na experincia das pessoas; o fundo-comum o repositrio das idias,noes, etc., que subsidiam anlises, interpretaes. Isto , o lugar-comum a imagem resultante, [eo] fundo-comum o material com o qual elaborada e cuja genealogia necessita ser interrogada.

    39O professor Ciro Cardoso aponta o papel central de Chartier na conformao da nova histriacultural, cf. Ciro F. Cardoso, Introduo: uma opinio sobre as representaes sociais, in

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

    38

    ler em dilogo (direto e indireto) autores como Pierre Bourdier e Carlo Ginzburg,

    alm de vrios comentadores, atento s questes e mtodos que permitem uma

    investigao do passado suspenso no delicado equilbrio entre, por um lado, o

    reconhecimento de que a narrativa construda pelas questes postas e repostas a

    cada momento e por cada pesquisador; e, por outro, a possibilidade de tornar o

    passado inteligvel pela sua (do passado) prpria utensilagem mental (conceito-chave

    que Chartier toma emprestado de L. Febvre) ou habitus(de Norbert Elias), i.e., pelos

    seus prprios limites, materiais, escolhas.

    Articula-se, ainda, a discusso sobre o conceito de representao s noes de

    lugar-comum e fundo-comum, como as define DAllones, como suporte analtico

    para compreender diacronicamente a construo e ou uso de imagens recorrentes

    que formam, conformam ou sustentam as representaes.

    Estas notas no tm pretenses de esgotar a discusso ou mesmo de abarcar

    os mltiplos aspectos e campos disciplinares que utilizam o conceito (como na

    Filosofia, na Psicologia, na Cincia Cognitiva).40Intenta-se, sim, mapear alguns dos

    pontos principais das discusses que se articularam em torno do conceito com o

    intuito de problematizar o campo disciplinar da histria da cidade e do urbanismo.

    Por uma histria cultural

    Na introduo coletnea de artigos sobre A histria cultural, Chartier

    coloca desde logo o lugar central que o conceito de representao teria para uma

    nova abordagem na prtica historiogrfica. Como pedra angular, as representaes

    permitiriam discutir e articular trs maneiras com que se constroem as relaes com

    o mundo social, a dizer:411) as operaes de classificao e delimitao que os grupos

    sociais utilizam para construir e ou apreender a realidade; 2) as prticas que implicam(e que fazem reconhecer) uma identidade social, que estruturam uma maneira de

    estar no mundo e que significam (simbolicamente) uma posio e um estatuto; e 3) as

    Representaes: contribuies a um debate transdisciplinar, 2000, p.12; cf. tambm J. Devald, Roger Chartierand the fate of cultural history, French Historical Studies, 1998.40 Para tanto, sugiro a leitura dos artigos que compem a coletnea organizada pelos professoresCardoso e Malerba, Representaes: contribuies a um debate transdisciplinar, 2000; cf. tambm M. Alexandre,Representao social: uma genealogia do conceito, Comum, 2004.41

    R. Chartier, Introduo: por uma sociologia histrica das prticas culturais, In A Histria Cultural,1988, p.23.

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    __________________________________________________________A formao das representaes sobre a cidade colonial no Brasil

    39

    formas objetivas e institucionais por meio das quais os representantes (coletivos ou

    singulares) marcam e perpetuam sua existncia (do grupo, classe ou comunidade).

    Mas, o que seriam as representaes para Chartier? Antes de mais, diga-se,

    no conformam uma palavra ou conceito que desempenha o mesmo lugar analtico

    de ideologia ou mentalidades. De fato, os artigos reunidos na coletnea

    supracitada expressam, como afirma o prprio autor, uma insatisfao com a histria

    francesa das dcadas de 1960 e 1970, fortemente marcada pela noo das

    mentalidades e pela abordagem serial, quantitativa.42

    Note-se que no h nenhuma pretenso em desqualificar essas vertentes

    historiogrficas. Ao contrrio, Chartier reconhece a importncia e filia-se herana

    dos Annales embora invertendo pressupostos estruturais e recuperando o que

    chamaria de as inspiraes fundadoras dos anos 1930 (como a noo de

    utensilagem mental, de Lucien Febvre). O que o incomoda seria a incapacidade de

    enfrentar os impasses que novas disciplinas trouxeram ao campo da Histria, pondo

    em xeque tanto objetos quanto certezas metodolgicas.

    A histria das mentalidades, afirma Chartier, teria se construdo, de maneira

    geral, buscando fundar-se nos mesmos critrios de inteligibilidade da histria

    econmica e social (i.e., atenta s estruturas na longa durao, aos nmeros e

    quantificaes, s repeties encontradas nas sries, etc.). No toa, Le Goff

    apontaria que a histria das mentalidades foca a ateno no quantitativo cultural.

    Busca, assim, pelo que escapa aos sujeitos particulares da histria, porque revelador

    do contedo impessoal de seu pensamento.43Isso teria gerado alguns problemas aos

    quais Chartier resumiria sob o epteto do primado quase tirnico do social.44

    Tal primado implicava como premissa analtica uma srie de

    enquadramentos que impediam a ateno s formas de apropriao (de idias,

    objetos, modelos culturais, representaes, etc.), quer individuais, quer de um grupo

    mais especfico. Relacionava-se, assim, quase mecanicamente, grupos sociais a nveis

    42R. Chartier, A Histria Cultural, 1988, p.13-14, 40-44; sobre a crtica abordagem quantitativa dahistria, em especial a cultural, e a retomada da narrativa, Cf. P. Burke, A Escola dos Annales, 1997,p.93-107.43J. Le Goff, As mentalidades: uma histria ambgua, in Histria: novos objetos, 1988, p. 71.44

    R. Chartier, A Histria Cultural, 1988, p.45; essa discusso est presente tambm em Idem, Omundo como representao,Estudos Avanados, 1991.

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

    4

    culturais; distines sociais (por renda, profisso, etc.) a diferentes sistemas de

    pensamentos sem considerar tenses internas, e.g. Mais ainda, a noo de

    mentalidades considerava e investigava principalmente os pontos comuns de um

    indivduo com os demais homens e mulheres de seu tempo por mais extraordinrio

    que tenha sido esse sujeito. Da, inclusive, como j alertaram Carlo Ginzburg e Peter

    Burke, a redundncia de apor o adjetivo coletivas a mentalidades.45

    Quais as mentalidades dos engenheiros sanitaristas envolvidos com as

    reformas urbanas da virada para o sculo XX no Brasil? A identificao de pontos

    comuns, conquanto importantes, seriam suficientes para discutir atuaes especficas

    de indivduos ou para construir histrias urbanas atentas s escalas locais e regionais?

    A noo positivista de progresso que permeia a formao de tantos politcnicos,

    desde Andr Rebouas at Aaro Reis ou Francisco de Paula Souza, dentre muitos,

    explicaria os vrios projetos de construo do territrio nacional (por meio das infra-

    estruturas de suporte s atividades produtivas) na segunda metade do sculo XIX?

    Listam-se essas questes sem a pretenso de respond-las para traar um

    paralelo com as inquietaes levantadas por Chartier em prol da necessidade de

    construo de um esforo metodolgico e conceitual que aponte para uma

    abordagem, sem redues deterministas, das relaes entre sistemas de crenas, de

    valores e de representaes, por um lado, e de pertenas sociais, por outro.46

    Se certo que, por um lado, a compreenso das mentalidades dos grupos

    sociais (no caso, de crculos profissionais, se pensarmos nos engenheiros

    politcnicos) importante para compreender processos de institucionalizao, de

    organizao de saberes e poderes, alm dos repertrios de abordagens e construo

    de solues tcnicas o horizonte de possibilidades latentes do qual fala Carlo

    45C. Ginzburg, O queijo e os vermes, 2005, p.28; Peter Burke, Abertura: a nova histria, seu passado eseu futuro, in A Escrita da Histria, 1992. No se pode esquecer que, j na dcada de 1970, Le Goffapontava para os potenciais e, ao mesmo tempo, para as dificuldades da histria das mentalidades emmeio a objetos e fontes de pesquisa difusos, a pontos e lugares-comuns, a elementos de repetio docotidiano, dos textos, dos monumentos, etc., enfim, ao chamado quantitativo cultural; no deixavatambm de ressaltar a necessidade de ficar atento s especificidades de cada forma de expresso mentalidade no reflexo, diria e de manter uma relao estreita com a histria da cultura,levando em conta o equipamento intelectual no qual as mentalidades se formam, se desenvolvem evivem, cf. J. Le Goff, As mentalidades: uma histria ambgua, in Histria: novos objetos, 1988 [ed. orig.1974].46R. Chartier,A histria cultural, 1988, p.53.

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    41

    Ginzburg;47por outro, ser preciso ficar atento s idiossincrasias, aos movimentos

    individuais, para entender como os motivos intelectuais e ou as formas culturais

    so apropriados, como circulam, como se enrazam e (se quisermos seguir a

    metfora) como do novos frutos.48

    Por exemplo, e sem nos aprofundarmos muito, no se pode entender a

    circulao da noo de cidade-jardim no Brasil (ou, se quisermos, para alm do seu

    ambiente cultural de origem, a Inglaterra do final do XIX) sem considerar as

    discusses pr-existentes sobre a cidade salubre no Brasil mobilizadas desde

    meados do sculo XIX. Obviamente, no se estava falando em cidade-jardim antes

    do incio do sculo XX.49 Falava-se (por vrios vieses, como o moralista, o

    econmico, o tcnico, sobretudo higienista, etc.) em como construir a cidade

    moderna e saudvel nos trpicos. Tema recorrente que encontraria nas discusses

    sobre a cidade-jardim um, considerava-se, slido fundamento para a formulao de

    polticas e propostas de ao e de reforma urbana. No toa o mdico Alfredo da

    Matta, ao levantar e descrever a topografia mdica de Manaus, em 1916, propugnaria

    a cidade-jardim como soluo para o tema no Brasil.50

    E, observe-se, essa ateno s maneiras e s condies de circulao e de

    apropriao no implica apenas uma escolha metodolgica (e conceitual ou de escala

    de abordagem). Implica, sim, reconhecer o papel ativo daqueles que lem na

    construo do conhecimento; implica reconhecer inclusive os suportes materiais dos

    textos, das idias, dos modelos culturais, alm dos anteparos ou filtros prvios que

    conformam as maneiras das leituras.

    47

    C. Ginzburg, O queijo e os vermes, 2005, p.25.48Cf. Chartier,A histria cultural, p.51.49No no sentido howardiano (strictu sensu) ou no da tradio cidade-jardim (lato sensu) que se formoua partir dos esforos para concretizar as propostas originais na Inglaterra e alhures no incio do sculoXX; contudo, falava-se em cidade jardim (para enfatizar o verde, a presena dos elementos naturaisordenados como fato da civilizao e do progresso) no XIX, como se usou para, e.g., a cidade deChicago reconstruda ps-incndio de 1871 (a propsito, uma provvel inspirao para Howard, cf. P.Hall, Cidades do amanh, 1995, p.104-06).50Cf. George Dantas et alli, A difuso do termo cidade-jardim, in Surge et Ambula, 2006, p. 155-168;para uma discusso ainda mais abrangente sobre o tema no Brasil, cf. Carlos de Andrade, Barry Parker,1998.

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

    42

    Depois de materializado, o texto escapa ao autor.51A insistncia em analisar

    os processos de apropriao e circulao de idias, textos e modelos pelo vis da

    comparao ao original (o que leva, invariavelmente, ao tema do desvirtuamento) ,

    no mnimo, problemtico pelo pressuposto que desconsidera (como incapaz ou

    qualquer outro adjetivo restritivo) o ambiente cultural de recepo que desvirtuaria

    o original. No limite, essa insistncia idealiza e autonomiza o prprio texto original,

    desconsiderando as condies culturais e materiais de sua gestao.

    Se voltarmos ao exemplo da circulao da noo de cidade-jardim, seria

    ilustrativo um exerccio (apenas retrico) do uso de tal abordagem na anlise dos

    esforos e embates para institucionalizar a proposta de cidade-jardim na prpria

    Inglaterra. Como se discutiriam ento os empreendimentos para Letchworth e

    Welwyn, os desenhos de Unwin e Parker para Hampstead ou mesmo a constituio

    da Garden City Associatione os seus esforos para manter a perspectiva de construo

    de redes de cidades ao invs de subrbios-jardins como alternativa para a

    reconstruo do primeiro ps-guerra? O prprio Howard e epgonos, como Frederic

    J. Osborn, estariam desvirtuando o texto sagrado ao buscar adequar as propostas

    de 1898 para torn-las possveis e disputar espao (e verbas estatais, obviamente) em

    meio a outros projetos?52

    Reconhecer as maneiras de circulao e apropriao no significa, assim,

    limitar-se ao possvel ou aceitar os fatos como inexorabilidade histrica esse seria

    uma outra armadilha determinista que desemboca, invariavelmente, no conformismo

    diante dos processos sociais. No, ao contrrio, tal reconhecimento implica mapear e

    analisar as lutas, os embates, os jogos de interesse, as foras, os smbolos e os

    51Utiliza-se aqui a palavra texto mas sem a inteno de restringi-la aos documentos impressos. Otexto pode ser, em sentido lato, um modelo, um plano, um projeto, um monumento, um conjuntoiconogrfico, etc., enfim, um elemento que sirva de referncia, sintetize e expresse idias, sentimentos,etc. Ao mesmo tempo, essa extenso da noo de texto, embora reconhea, no se apia naantropologia cultural de C. Geertz, i.e., no procura tratar tudo (comportamentos no-escritos, festas,folguedos, crenas, etc., os elementos da histria cultural) a partir da grade da textualizao (EliasSaliba, Perspectivas para uma histria cultural, Dilogos, 1997, p.14). Assim, no se pretende incorrer natextualizao semitica do mundo que nos rodeia, como adverte de maneira divertida R. Darton: (...)tentem se comportar como se todo comportamento fosse um texto, e [como se] todos os textospudessem ser desconstrudos: logo vocs se vero presos num labirinto de espelhos, perdidos numreino semitico encantado, tomados por tremedeiras epistemolgicas (cf. Introduo, in O beijo deLamourette, 1990, p.18).52Cf. P. Hall, cidades do amanh, 1995, cap. 4; observe-se que esse rico e instigante captulo do livro de

    Peter Hall marcado pela condenao do que considera apostasias em relao ao texto original deHoward.

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    43

    projetos (de cidade, de sociedade, de mundo) em disputa, a construo (ou a

    destruio) de possibilidades. Como j afirmou Beatriz Sarlo, interessa no apenas

    afirmar que um fato ocorreu, mas, sim, entender como pde ocorrer.53

    Isso implica reconhecer tambm que h falseamentos e deformaes,

    deliberadas ou no, conscientes ou no, em relao a textos originais. H inclusive o

    esforo do autor em tentar controlar e manter a ortodoxia do seu texto. O glossrio

    que F. J. Osborn prope em 1949, na 3 edio inglesa do livro de Howard,

    ilustrativo desse embate. A terminologia compulsada no prefcio revela a

    preocupao em distinguir, ao menos dentro da literatura sobre planejamento

    urbano, o iderio original das vrias propostas e tendncias que se desenvolveram a

    partir de ento.54

    Assim, acompanhar esses movimentos, jogos e disputas resulta mais

    produtivo (para a prtica historiogrfica) do que a condenao a priori (pelo

    afastamento do metro original) ou do que o exerccio estril de lamentar a no

    realizao conforme esse mesmo metro; ou, mais ainda, de especular como teria sido

    se a proposta original fosse implementada tal qual, aqui ou alhures. Diante de tal

    postura, teramos que argir, diga-se de passagem, onde, quando e como algum plano

    urbanstico foi realizado integralmente.

    Natal teria se tornado uma cidade melhor se o Plano Geral de Sistematizao

    tivesse sido implementado integralmente (ou em grande parte)? Ou o Rio de Janeiro

    com o Plano Agache? E So Paulo, com o Plano de Avenidas? Difcil (e, talvez,

    intil) responder. H mais problemas na formulao desse tipo de pergunta para

    alm do (frequentemente lembrado) anacronismo do uso da conjuno condicional

    se na disciplina historiogrfica.

    Afinal, assume-se que o plano (o projeto de interveno urbana) seria

    portador de uma virtude parti pris. Assim, autonomiza-se o plano como um objeto

    que pairasse acima do tecido social e cultural. H a, de fato, um lamento de fundo

    que se remete s pretenses totalizantes do projeto ilustrado no qual se nutriria a

    53A crtica argentina, nessa passagem, discutia o holocausto a partir do filme Shoah, do diretor ClaudeLanzmann, que lhe suscitava tais questes fundamentais, i.e., no apenas o lamento e o pesar peloocorrido, mas a reflexo sobre os processos que o tornaram possvel, cf. B. Sarlo, A histria contra oesquecimento, in Paisagens imaginrias, 2005, p. 38, 42.54Frederic J. Osborn, Preface, in E. Howard, Garden cities of To-morrow, 1949, p.26.

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

    44

    cultura tcnica moderna e, consequentemente, o campo disciplinar da arquitetura e

    do urbanismo. Lamento que, vez ou outra, se insinua nos trabalhos de histria

    urbana e urbanstica, dominados predominantemente ainda, no Brasil, por

    profissionais de formao de base em Arquitetura e Urbanismo.55

    O outro lado dessa moeda considerar o plano apenas como uma pea do

    jogo poltico em busca de hegemonia, um engodo para mascarar ou atender

    interesses de (setores das) classes dominantes, enfim, como ideologia em seu sentido

    mais determinista.

    Ideologia e representaesInvestigar as representaes pressupe, como discute Chartier, tom-las

    dentro do campo de disputa e concorrncias em que se inserem e ajudam a

    estruturar, cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominao.

    Destarte, as lutas de e pelas representaes seriam to importantes quanto as lutas

    econmicas e polticas para o ofcio historiogrfico porque aquelas as

    representaes podem revelar as estratgias dos grupos e ou classes sociais para

    elaborar e (tentar) impor vises e valores de mundo. Indo alm, enfatiza-se que a,nas representaes, pode-se identificar pontos de confrontamento decisivos

    conquanto menos ou mesmo no materiais.56

    Apoiando-se nos estudos de Pierre Bourdieu e recuperando textos inaugurais

    de Emile Durkheim e Marcel Mauss,57o historiador francs afirmaria a necessidade

    de deitar por terra de vez os falsos debates entre a objetividade das estruturas e a

    subjetividade das representaes.

    H, de fato, a uma oposio noo de ideologia tal qual tomada da matrizmarxista do materialismo histrico. No sentido mais restrito da palavra em Marx, a

    55Como se percebe claramente na composio de participantes e conferencistas dos Seminrios deHistria da Cidade e do Urbanismo, desde a sua primeira edio, em 1990, em Salvador; a asseroaqui claramente especulativa, mas pode encontrar fundamento, como j apontaram os professoresMarco Aurlio Gomes e Elosa Pinheiro, na constatao de que as pesquisas em histria urbana e dourbanismo no Brasil caracterizaram-se, desde o final dos anos 1970, pela perspectiva de repensar acidade (e a possibilidade do projeto) pelas dimenses da cultura e da histria (Cf. Os arquitetos, acidade e o fascnio pela histria, inA cidade como histria, 2004, p.09-18).56R. Chartier,A histria cultural, 1988, p.17-18.57

    A referncia ao texto De quelques formes primitives de classification. Contribuition ltude desreprsentations collectives, publicado emAnne sociologique, em 1903.

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    __________________________________________________________A formao das representaes sobre a cidade colonial no Brasil

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    ideologia conceito que englobaria as representaes aparece marcada e

    diferenciada pelos cortes sociais, expressando os interesses de cada classe e operando

    principalmente pelo ilusrio e pelo irreal. Numa perspectiva teleolgica, a emergncia

    da classe operria como fora histrica levaria ao desvelamento de todo e qualquer

    aparato ideolgico (mitos, representaes, etc.) porque no haveria a necessidade

    num futuro sem classes de criar iluses sobre si mesma; sem divises sociais, no

    haveria a necessidade da ideologia para embotar os conflitos e suas causas. Baczko

    ressalta, contudo, que na leitura de situaes histricas coetneas, como em o 18

    Brumrio, Marx empreenderia um uso mais complexo da noo de ideologia,

    considerando a construo de imagens, as disputas do imaginrio, etc., como parte

    das prticas sociais.58

    De fato, deve-se reconhecer que, a despeito da crtica acertada prtica

    historiogrfica da chamada vulgata marxista ou da leitura ortodoxa de autores de

    inspirao marxista, o materialismo histrico apontava para uma abordagem mais

    complexa do chamado fenmeno histrico-social do que o mero determinismo

    economicista denunciado a posteriori.

    Outro trao caracterstico oriundo dessas formulaes encontra-se na leitura

    especular entre, para se utilizar os termos marxistas, estrutura e superestrutura; essa

    refletiria, no necessariamente de maneira sincrnica, os elementos fundamentais

    daquela. No toa, ao abrir o clebre ensaio sobre a obra de arte na era de sua

    reprodutibilidade tcnica, Walter Benjamim partiria da anlise de Marx sobre o

    modo de produo capitalista para afirmar que a superestrutura se modifica mais

    lentamente que a base econmica; da porque aquelas mudanas percebidas por

    Marx nas condies de produo da primeira metade do sculo XIX tivessem levado

    mais de cinqenta anos para refletir-se na cultura.59

    Obviamente, no se pretende reduzir a complexa e por vezes contraditria

    prtica historiogrfica de Benjamim a essa relao especular e determinista entre a

    58B. Baczko, Imaginacin social, imaginarios sociales, in Los imaginrios sociales, 1991, p.20-21; lembre-se que no prefcio a A Ideologia Alem, Marx conclamaria seus pares a se libertarem das quimeras,idias, dogmas e seres imaginrios que moldariam as false conceptions about themselves, about whatthey are and what they ought to be, cf. K. Marx, Preface, in The German Ideology, 1968, p.03. Dequalquer maneira, reconhea-se a distncia entre o pensamento complexo de Marx e a reduo aquioperada, em prol de um determinado corte narrativo sobre um uso preciso da noo de ideologia.59W. Benjamim,Magia e tcnica, arte e poltica, 1994 [1935-36], p. 165.

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    introduo________________________________________________________________________________________________________________

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    base econmica e as manifestaes culturais, artsticas, sociais, etc. Afinal, o prprio

    Benjamim, nas suas teses sobre o conceito de histria, lembraria que as coisas

    refinadas e espirituais no so meros despojos deixados ao vencedor da luta de

    classes, da luta pelas coisas brutas e materiais luta que deveria interessar a

    qualquer historiador educado em Marx; ao contrrio, as coisas refinadas, sob a forma

    da coragem, da astcia, da confiana, etc., pem em xeque sempre, ontem e hoje, a

    vitria dos dominadores. Uma porta de entrada, portanto, para uma histria que,

    opondo-se perspectiva teleolgica, volta-se para o sofrimento do passado e no

    para as promessas do futuro.60 De resto, o interesse de Benjamim estava voltado,

    nesse aspecto, para a expresso da economia na cultura e no para a origem

    econmica da cultura.61

    Essa pequena digresso sobre a questo da ideologia praticamente

    inescapvel, tendo em vista a influncia na prtica historiogrfica e no

    questionamento do prprio lugar do historiador. Em relao aos usos da noo de

    ideologia na construo da narrativa historiogrfica, h dois trabalhos (importantes,

    diga-se) que mostram os limites da sua aplicao (como o que vela o real) nos

    escritos de histria do urbanismo.62

    Nesse sentido, faa-se ainda outra observao: nas ltimas dcadas, os

    trabalhos da filsofa Marilena Chau parecem ter sido decisivos para disseminar essa

    leitura do conceito de ideologia no Brasil, amplamente fundamentado nas teses de

    Marx (em especial nA Ideologia alem).63

    60Ibidem [1940], tese 4, p. 223-24.61B. Sarlo, Esquecer Benjamim, in Paisagens imaginrias, 2005, p.102 esse ensaio da crtica argentina particularmente importante para entender a platitude de muitas apropriaes de temas e categorias deBenjamim na onda dos estudos culturais das ltimas dcadas. Adrin Gorelik recupera essa discusso,apontando um certo mal-estar (e mesmo esgotamento) dos estudos sobre os imaginrios urbanos, cf.Transformaciones urbanas e estudios culturales (para um recorrido por los lugares comunes de losestdios culturales urbanos), in Miradas sobre Buenos Aires, 2004, p.259-279. Srgio Paulo Rouanetestabeleceu discusso prxima: embora reconhea a existncia de muitos e vlidos Benjamims,condenaria ainda assim a leitura irracionalista que se daria no Brasil, segundo a qual ele [Benjamim]defenderia o primado da vida contra a razo, da experincia imediata contra a abstrao, da atualidadehistrica contra a histria (cf. Benjamim, falso irracionalista, inAs razes do iluminismo, 1987, p.111).62V. Rezende, Planejamento urbano e ideologia, 1982, e F. Villaa, Uma contribuio para a histria doplanejamento urbano no Brasil, In C. Dek e S. R. Schiffer (orgs.), O processo de urbanizao no Brasil,1999.63M. Chau, O que