reportagemcostasantoandré

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da or l a cost ei ra que ent raram em vigor no passado mês de F everei ro des t e ano. Inde c i sa ent re desej os urbanos e sent i ment os rurais, mel ancóli c a quando olha para a t rás e ansi osa pelo que v ê à sua f rent e , a Cos t a espera o seu des t i no. Espera-se que sej a um fut uro responsáv el. Um c resc i ment o t ur í s t i co equilibrado na f orma e no c on t eúdo . Ou , c omo gos t am de d i zer pot i c os e e c ol ogi s t as en c ar t ados, ambi ent a l men t e sus t ent ado. Come ç ar pe l a ques t ão da arqui t e ct ura f rent e ao mar será um bom pr i nc í pio. Para não se t ermi nar num muro de l ament a ções à seme lhanç a de Quar t e i ra , para re cuperar um exempl o l ament áve l do Al gar v e. Est a não é apenas ma i s uma ngua de are i a a l ent e j ana f rent e ao mar do sul . È a sua pra i a . Mesmo que, vol t a e mei a , se esque ç a del a, t roc ando- a por uma São Torpes aque c ida ou um Por t o Covo ent oado em t rês t ons. É est a, a sua prai a. Mesmo que sej a pre ciso um forast ei ro a l embrar - l he i sso. É aqui que , me t ros adi an t e , se des c obrem a l guns c en t í me t ros de pe l e . Não v a i encont rar o Bur t Lanc as t er a beij ar a Deborah Kerr a t é à e t erni dade, cober t os pel a f úr i a das ondas mas pode apa ixonar -se , out ra v ez. Es t a é a sua pra i a . Não se esque ç a disso. Não a per c a de vi st a. Vol t e. El a espera por si. E si m, cont inua a t er bande i ra azul , a pedi do dos ma i s f aná t i c os europe í s t as. Do azul , a Mar i a L abareda havi a de gost ar. Azul Mar inho. A c or dos o l hos que não abandona o pensamen t o , mesmo quando el e se re f ugi a no pôr -do-sol. COSTA DE SANTO ANDRÉ Do pr in c í pio da are i a ao f i m do mar REPORTAGEM Junho de 2008 João Car l os Mart i ns j orna li sta e i nvest i gador Na mi nha j uventude antes de ter sa í do da c asa dos meus pa i s di sposto a vi a j ar eu c onhe c i a j á o rebentar do mar das pági nas dos li vros que j á t i nha li do E TUDO ERA POSSÍ VEL Obra Poét i c a de Ruy Be l o, vol . 1 Edi ç ões Presen ç a#1981 Exi st em pra i as grandes, a perder de vi s t a na vas t idão do area l e ou t ras , pequenas nguas de are i a enc ra v adas nas roc has onde es t endemos a t oa l ha . Exi s t em loc a i s que são de mera passagem. Chegamos, pousamos as mal as, qualquer coisa corre ma l e quando damos por el a , el a j á se ve io embora e nós a t rás del a . El e há out ros sí t ios onde depoi s de pousar as ma l as, ape t e c e f i c ar . A Cos t a de Sant o André é um desses sí t ios. A arei a é a mesma dout ras pra i as ao longo da cos t a , a água é do mesmo oc eano e o sol nasc e igua l para t odos mas, quando des c e em pro f und i dade no mar , pare c e demas i ado i rrea l . Apenas quando o agarramos , i mpresso em pape l f o t ográ f i c o, é que a c redi t amos. Corpo na c adei ra . No pr i nc ípio da arei a , no Bar do F i m. Não era pre ciso, pés ent errados na arei a f r i a da manhã, ouvi r pel a or l a , pe l a bei ra , pel a are i a a f ora , a t arde int e i ra. A Adr i ana Ca l c anhott o a a companhar a queda no pre ci pí ci o sol ar . Não se pre t ende um c ruzament o c h i c en t re o Car v a l ha l e a Compor t a mas a j uda a mel horar um c a f é revigorant e , um sumo de l aranj a super l a t ivo e um ser vi ço adorme c ido. Bem que se qui s depoi s de t udo a inda ser f eliz dizi a a Mar i sa Mont e. E dev em t er sido f e lizes. Quando c hegaram do Nor t e, de Es t arrej a , da Mur t osa e Torre i ra , os pre cursores da Cos t a assent aram arra i a i s nas pr i mei ras dunas, na zona onde hoj e se abre a l agoa ao mar . Ent re M ana f a i as , V i nagres , Dom i ngos e depo i s Can i ç os , Mer c an t i s t as e L abaredas , c res c eram gera ç ões e t radi ç ões. Uma f oi a da c a l de i rada e ensopado de engui as da t aberna da Ti Padei ra . Mar i a do Rosár i o Si mão Labareda era a responsáv el. Aprov ei t ava o peixe durant e os meses em que el e c r i a ( Ma io e Se t embro) e na a l t ura em que a l agoa abre ao mar , a cont e c i ment o e t ernizado no sagrado mês de Mar ço. Ou uns di as mai s t arde. Es t e ano, a cont e c eu nos pr i mei ros di as de Abr il. Venha assi s t i r à aber t ura da l agoa ao mar e per c eba a ut ili za ç ão sa c ra l do mês, ant es da arei a enc errar a c omuni c a ç ão c om o mar . Quando j á não se v ê o rompi ment o do cordão dunar por f or ç a de homens e ani ma i s para que a l agoa se ent regue ao mar , como a cont e c i a no sé cul o passado. Uma époc a em que o búz i o c hama v a os pes c adores à sa f ra , as v ezes pre c i sas t ambém para pux ar as redes. Homens e mulheres, l ado a l ado. Anos ma i s t arde, a Cos t a sof r i a a sua t ransf orma ç ão i ni c i a l , en t re o e x er c í c i o pi s c a t ór i o e a t emporada ba l near , quando se v i s l umbra v a o de c ni o da ar t e xáv ega e das companhas, ent re a es c assa c apt ura de pei xe f res co e novos pes c adores. As nov as inv asões f ran c esas t i nham en t rado pra i a aden t ro, segundo Dani e l Cons t ant . Numa t erra de Luí ses, Luí s Mana f a i a f oi o pr i mei ro anfi t r i ão na F raga t e i ra , quando t odos se a c o t ov e l a v am em c ompor as f i nan ç as domés t i c as a t ravés do a luguer de quar t os e c asas. Numa ver t igem ent re o azul do mar e o azul do f ranco na v elha colóni a de pes c adores da Bei ra Li t ora l. Pes c adores que conf essav am amores no Ba il e de São Romão, quando o Verão el ev ava as hormonas a 9 de Agos t o. No out ro di a de manhã , c hegavam-se à be i ra- mar e a j ust avam a t empera t ura corpora l à água do mar , ent re c a l ç as pe los j oelhos e sa i as arrega ç adas. Os que t inham f e i t o o melhor negóci o da vida - c asar - e aque l es que o c on t i nua v am a ad i ar . Os que regressa v am a c asa . Soz i nhos . Sem pr i n c i p i o de namoro nem a jus t e de c asament o. Com o c a lor que j á come ç ava a pesar nas ruas. Um c a lor que v em das t épidas águas da Lagoa que f az par t e do ma ior si s t ema l agunar da Cost a Al ent ej ana, a par da Lagoa de Melides e da Lagoa da Sanc ha , que se pensa t er s i do a sa í da ao mar da vil a romana de Mi róbr iga . Uma sa ída int empes t iv a de um mar bravio, onde se deve respei t ar a prof undidade , à semel hanç a das pra i as v i z i nhas das Are i as Bran c as , F on t e do Cor t i ço e Mont e Velho. quer i a de t i um pa í s de bondade e bruma quer i a de t i o mar de uma rosa de espuma Már i o Cesar i ny Aqui , o t empo passa l ent ament e , como se o ar se t i v esse t ornado um qui do espesso que se c ol a às pa l mas das mãos suadas. Exi st em out ros sí t ios onde as pedras da rua t ranspi ram de di a e respi ram à noi t e. Ou pe l a manhã , ant es do a l moço ma i s f resco que as redes de Bruxe l as permi t em, uma e f i c az a li anç a ent re t e c nol ogi a e na t ureza na B i bli ot e c a I t i neran t e , com a c esso a t odas as j ane l as do mundo, a par t i r des t e peda ço de arei a . Por l á , t ambém cont inuam os v el hos amigos de lombadas de t ermi nadas perant e qua lquer v en t an i a quando j á não há pa c i ên c i a para dobrar resmas de me io quilo de papel, ao sábado de manhã . No meio de pa t os, ma ç ar i cos, gar ç as e mergulhões, rest a des cobr i r para onde c ami nha a Cost a de Sant o André, depoi s dos pl anos de pormenor e ordenament o

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Page 1: ReportagemCostaSantoAndré

da orla costeira que entraram em vigor no passadomês de Fevereiro deste ano. Indecisa entre desejosurbanos e sentimentos rurais, melancólica quando olhapara atrás e ansiosa pelo que vê à sua frente, a Costaespera o seu destino. Espera-se que seja um futuroresponsável. Um crescimento turístico equilibrado naforma e no conteúdo. Ou, como gostam de dizerpolíticos e ecologistas encartados, ambienta lmentesustentado. Começar pela questão da arquitectura

frente ao mar será um bom princípio. Para não seterminar num muro de lamentações à semelhança deQuarteira, para recuperar um exemplo lamentável doAlgarve.

Esta não é apenas mais uma língua de areia alentejanafrente ao mar do sul. È a sua praia. Mesmo que, volta emeia, se esqueça dela, trocando-a por uma São Torpesaquecida ou um Porto Covo entoado em três tons. Éesta, a sua praia. Mesmo que seja preciso um forasteiroa lembrar-lhe isso. É aqui que , metros adiante , sedescobrem a lguns cent íme t ros de pe le . Não va iencontrar o Burt Lancaster a beijar a Deborah Kerraté à eternidade, cobertos pela fúria das ondas maspode apaixonar-se, outra vez. Esta é a sua praia. Nãose esqueça disso. Não a perca de vista. Volte. Ela esperapor si. E sim, continua a terbandeira azul, a pedido dosma is fanát icos europe ístas.Do azul, a Mar ia Labaredahavia de gostar. Azul Marinho.A cor dos o lhos que nãoabandona o pensamen to ,mesmo quando ele se refugiano pôr-do-sol.

COSTA DE SANTO ANDRÉ Do princípio da areia ao fim do mar

REPORTAGEM Junho de 2 0 0 8

João Car los Mart insjornalista e invest igador

Na minha juventude antes de ter saídoda casa dos meus pais disposto a viajareu conhecia já o rebentar do mardas páginas dos livros que já t inha lido

E TUDO ERA POSSÍVELObra Poét ica de Ruy Belo, vol.1Edições Presença# 1 9 8 1

Existem praias grandes, a perder de vista na vastidãodo a r ea l e ou t r as , pequenas l ínguas de a r e iaencravadas nas rochas onde estendemos a toa lha.Existem locais que são de mera passagem. Chegamos,pousamos as malas, qualquer coisa corre mal e quandodamos por ela, ela já se veio embora e nós atrás dela.Ele há outros sítios onde depois de pousar as malas,apetece ficar.

A Costa de Santo André é um desses sítios. A areia é amesma doutras praias ao longo da costa, a água é domesmo oceano e o sol nasce igual para todos mas,quando desce em profund idade no mar , parecedemas iado ir rea l . Apenas quando o agarramos ,impresso em papel fotográfico, é que acreditamos.Corpo na cadeira. No princípio da areia, no Bar do Fim.Não era preciso, pés enterrados na areia fria da manhã,ouvir pela orla, pela beira, pela areia afora, a tardeinteira. A Adriana Calcanhotto a acompanhar a quedano precipício solar. Não se pretende um cruzamentochic entre o Carva lha l e a Comporta mas a juda amelhorar um café revigorante, um sumo de laranjasuperlativo e um serviço adormecido. Bem que se quisdepois de tudo ainda ser feliz dizia a Marisa Monte.

E devem ter sido felizes. Quando chegaram do Norte,de Estarreja, da Murtosa e Torreira, os precursoresda Costa assentaram arraiais nas primeiras dunas, nazona onde hoje se abre a lagoa ao mar. Entre Mana fa ias , V inagres , Dom ingos e depois Can iços ,Mercant istas e Labaredas, cresceram gerações etradições. Uma foi a da ca lde irada e ensopado deenguias da taberna da Ti Padeira. Maria do RosárioSimão Labareda era a responsável. Aproveitava o peixedurante os meses em que ele cria (Maio e Setembro)e na altura em que a lagoa abre ao mar, acontecimentoeternizado no sagrado mês de Março. Ou uns dias maistarde. Este ano, aconteceu nos primeiros dias de Abril.Venha assistir à abertura da lagoa ao mar e perceba autilização sacral do mês, antes da areia encerrar acomunicação com o mar . Quando já não se vê orompimento do cordão dunar por força de homens eanimais para que a lagoa se entregue ao mar, comoacontecia no século passado. Uma época em que obúz io chamava os pescadores à sa fra , as vezesprecisas também para puxar as redes. Homens emulheres, lado a lado.

Anos mais tarde, a Costa sofria a sua transformaçãoinicia l, entre o exercíc io pisca tór io e a temporadaba lnear , quando se vislumbrava o dec línio da ar texávega e das companhas, entre a escassa captura depeixe fresco e novos pescadores. As novas invasõesfrancesas t inham entrado pra ia adentro, segundoDaniel Constant. Numa terra de Luíses, Luís Manafaiafoi o primeiro anfitrião na Fragateira, quando todos seacotove lavam em compor as finanças domést icasatravés do aluguer de quartos e casas. Numa vertigementre o azul do mar e o azul do franco na velha colóniade pescadores da Beira Litoral.

Pescadores que confessavam amores no Baile de SãoRomão, quando o Verão elevava as hormonas a 9 de

Agosto. No outro dia de manhã, chegavam-se à beira-mar e ajustavam a temperatura corporal à água domar, entre calças pelos joelhos e saias arregaçadas.Os que tinham feito o melhor negócio da vida - casar - eaque les que o con t inuavam a ad ia r . Os queregressavam a casa . Sozinhos . Sem pr inc ipio denamoro nem ajuste de casamento. Com o calor que jácomeçava a pesar nas ruas.

Um calor que vem das tépidas águas da Lagoa que fazparte do maior sistema lagunar da Costa Alentejana, apar da Lagoa de Melides e da Lagoa da Sancha, que sepensa ter sido a sa ída ao mar da vila romana deMiróbriga. Uma saída intempestiva de um mar bravio,onde se deve respeitar a profundidade, à semelhançadas pra ias vizinhas das Are ias Brancas, Fonte doCortiço e Monte Velho.

quer ia de t i um país de bondade e brumaquer ia de t i o mar de uma rosa de espuma

Már io Cesariny

Aqui, o tempo passa lentamente, como se o ar setivesse tornado um líquido espesso que se cola àspalmas das mãos suadas. Existem outros sítios ondeas pedras da rua transpiram de dia e respiram à noite.Ou pela manhã, antes do almoço mais fresco que asredes de Bruxelas permitem, uma eficaz aliança entretecnologia e natureza na B iblioteca It inerante, comacesso a todas as janelas do mundo, a partir destepedaço de areia. Por lá, também continuam os velhosamigos de lombadas determinadas perante qualquerventania quando já não há pac iênc ia para dobrarresmas de meio quilo de papel, ao sábado de manhã.

No meio de patos, maçaricos, garças e mergulhões,resta descobrir para onde caminha a Costa de SantoAndré, depois dos planos de pormenor e ordenamento