reportagem especial o futuro estÁ na sala de aula · em cachoeiro, a recuperação vem pela...

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18 CIDADES A GAZETA DOMINGO, 30 DE JUNHO DE 2013 O FUTURO ESTÁ NA SALA DE AULA No Estado, mais de 3 mil detentos estão apostando no estudo FOTOS: VITOR JUBINI Isaías, Alexandre e Edson estudam diariamente no Complexo Penitenciário de Xuri. Eles esperam por nova vida quando saírem de lá FREDERICO GOULART [email protected] Quando se viu trancado dentro de um presídio, há cinco anos, Isaías Oliveira, 46, imaginou que sua vida estaria terminando ali. Preso por tráfico de dro- gas, ele sabia que poderia perder alguns anos, e que esse tempo tornaria qual- quer recomeço quase im- possível. Seis meses de- pois, passou a frequentar as primeiras aulas que o fariam, enfim, avançar da quinta série. Hoje, com o diploma de técnico em logística nas mãos, ele já enxerga um futuro diferente. Seu exemplo reflete a realida- de de muitos outros presos do Estado. De 2006 para cá, segundo dados da Se- cretaria de Estado da Jus- tiça (Sejus), o número de detentos que estudam nas unidades prisionais capi- xabas cresceu aproxima- damente 2.114%. O Espírito Santo é hoje a segunda unidade da fe- deração nesse ranking, perdendo apenas para o Estado de Pernambuco. Ao todo são 3,3 mil aten- didos pela oferta educa- cional, o que representa 21% do total. Entre as mulheres, os números são ainda mais positivos. Nesse quesito, o Estado tem o maior índice nacional: cerca de 60% es- tão estudando, e o índice de analfabetismo entre elas é quase zero. ESCOLARIDADE Segundo o secretário de Justiça, Sergio Alves Pereira, esse é o reflexo da reforma das unidades pri- sionais pela qual o Estado passa desde 2006. Hoje, o trabalho de ressocializa- ção é pautado no tripé tra- balho, qualificação profis- sional e educação. “Con- seguimos reduzir o índice de analfabetismo a quase zero, mas a baixa escolari- dade ainda é grande e me- nos de 1% está no ensino superior”, avalia. O secretário aponta que, na maior parte dos casos, não se trata de um trabalho de ressocialização, mas de socialização. “Para a grande maioria, essa é a primeira oportunidade para estudar e trabalhar que eles têm. Pereira explica que 27 unidades prisionais já con- tam com o padrão avança- do de estrutura, onde 29 cursos profissionalizantes são oferecidos. Resta ainda a reforma de outras sete. “Nessas unidades antigas ainda não há espaço ade- quando para que as aulas sejam ministradas”. PRECONCEITO Ainda que os detentos estejam ampliando sua formação, ainda não é fácil sua aceitação no mercado de trabalho. “Prevalece um sentimento de vingança para afastar essas pessoas do convívio social. Temos que nos empenhar mais para impedir que esse pon- to de vista permita que eles voltem de forma progressi- va ao mundo do crime” avalia o secretário. E Sérgio Alves Pereira ar- gumenta que a participação da família é fundamental. “Eles precisam cobrar dos empregadoresedeixarclara a importância da oportuni- dade. A parte do Estado também é forte nesse senti- do. Nosso objetivo é ampliar o nível de escolaridade dos internos, qualificá-los pro- fissionalmente e inseri-los no mercado de trabalho ain- da durante o cumprimento da pena e prepará-lo a uma vaga de trabalho assim que deixarem o sistema prisio- nal”, argumenta. PROFISSIONAIS Para o secretário de Es- tado de Educação, Klinger Barbosa, os professores alocados em cada unidade têm a mesma referência dos da escolas da rede. “Nosso planejamento para o próximo ano é fortalecer a formação profissional oferecida nas unidades”. “Os livros que a gente lê ajudam a nos transportar para fora dessa realidade. Tem hora que até esqueço que estou preso” EDSON FERREIRA 31 ANOS REPORTAGEM ESPECIAL

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18 CIDADESA GAZETA DOMINGO, 30 DE JUNHO DE 2013

O FUTURO ESTÁNA SALA DE AULANo Estado, mais de 3 mil detentos estão apostando no estudo

FOTOS: VITOR JUBINI

Isaías, Alexandre e Edson estudam diariamente no Complexo Penitenciário de Xuri. Eles esperam por nova vida quando saírem de lá

FREDERICO [email protected]

Quando se viu trancadodentro de um presídio, hácincoanos, IsaíasOliveira,46, imaginou que sua vidaestaria terminando ali.Preso por tráfico de dro-gas, ele sabia que poderiaperder alguns anos, e queesse tempo tornaria qual-quer recomeço quase im-possível. Seis meses de-pois, passou a frequentaras primeiras aulas que ofariam, enfim, avançar daquinta série.

Hoje, com o diploma detécnico em logística nasmãos, ele já enxerga umfuturo diferente. Seuexemplo reflete a realida-dedemuitosoutrospresosdo Estado. De 2006 paracá, segundo dados da Se-cretaria de Estado da Jus-tiça (Sejus), o número dedetentos que estudam nasunidades prisionais capi-xabas cresceu aproxima-damente 2.114%.

O Espírito Santo é hojea segunda unidade da fe-deração nesse ranking,perdendo apenas para oEstado de Pernambuco.Ao todo são 3,3 mil aten-didos pela oferta educa-cional, o que representa21% do total.

Entre as mulheres, osnúmeros são ainda maispositivos. Nesse quesito, oEstado tem o maior índicenacional: cercade60%es-tão estudando, e o índicede analfabetismo entreelas é quase zero.

ESCOLARIDADESegundo o secretário

de Justiça, Sergio AlvesPereira, esse é o reflexo dareforma das unidades pri-sionais pela qual o Estadopassa desde 2006. Hoje, otrabalho de ressocializa-ção é pautado no tripé tra-balho, qualificação profis-sional e educação. “Con-seguimos reduzir o índice

de analfabetismo a quasezero, mas a baixa escolari-dade ainda é grande e me-nos de 1% está no ensinosuperior”, avalia.

O secretário aponta que,na maior parte dos casos,não se trata de um trabalhode ressocialização, mas desocialização.“Paraagrandemaioria, essa é a primeiraoportunidade para estudare trabalhar que eles têm.

Pereira explica que 27unidades prisionais já con-tam com o padrão avança-do de estrutura, onde 29cursos profissionalizantessãooferecidos.Restaaindaa reforma de outras sete.“Nessas unidades antigasainda não há espaço ade-quando para que as aulassejam ministradas”.

PRECONCEITOAinda que os detentos

estejam ampliando suaformação,aindanãoé fácilsua aceitação no mercadodetrabalho.“Prevaleceumsentimento de vingança

para afastar essas pessoasdo convívio social. Temosque nos empenhar maispara impedirqueessepon-todevistapermitaqueelesvoltemdeformaprogressi-va ao mundo do crime”

avalia o secretário.ESérgioAlvesPereiraar-

gumentaqueaparticipaçãoda família é fundamental.“Eles precisam cobrar dosempregadoresedeixarclaraa importância da oportuni-

dade. A parte do Estadotambém é forte nesse senti-do.Nossoobjetivoéampliaro nível de escolaridade dosinternos, qualificá-los pro-fissionalmente e inseri-losnomercadodetrabalhoain-da durante o cumprimentoda pena e prepará-lo a umavaga de trabalho assim quedeixarem o sistema prisio-nal”, argumenta.

PROFISSIONAISPara o secretário de Es-

tado de Educação, KlingerBarbosa, os professoresalocadosemcadaunidadetêm a mesma referênciados da escolas da rede.“Nossoplanejamentoparao próximo ano é fortalecera formação profissionaloferecida nas unidades”.

“Os livros quea gente lêajudam a nostransportarpara fora dessarealidade. Temhora que atéesqueço queestou preso”—EDSON FERREIRA31 ANOS

REPORTAGEM ESPECIAL

Documento:AG30CA018;Página:1;Formato:(274.11 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:29 de Jun de 2013 14:02:00

CIDADES19DOMINGO, 30 DE JUNHO DE 2013 A GAZETA

A EDUCAÇÃO NOS PRESÍDIOS

Presos estudandot Ranking

– Atualmente, são 3.339mil presos do Estadoestudando desde aalfabetização até o EnsinoMédio e na modalidadede Educação para Jovense Adultos (EJA)– Enquanto a médianacional de presos naescola é de 10%, o índicedo Estado é de 21% dapopulação carcerária– Considerando apenas ospresos condenados, esseíndice passa para 34% noEstado– O índice de presosprovisórios estudando ébem menor, de 7%, já quemuitos deles nãopermanecem no sistemadurante muito tempo ousão transferidos de unidade

Crescimentot Sete anos

– O número de alunos nospresídios capixabas cresceu2.114% desde 2006,quando 149 estudavam

Rankingt Média nacional

O Espírito Santo é osegundo no rankingnacional, perdendoapenas paraPernambuco, onde24,3% dos 27,8 mildetentos estudam– De 2008 a 2012 houveuma evolução de 44,5%no total de presos ematividade educacional nopaís. Ainda assim, essenúmero é muito pequenoem relação ao total donúmero de presos,chegando somentea 9% deles– No Brasil, 94 em cada1.000 presos estavamexercendo algum tipo deatividade educacionalem 2012

Mulherest Resultado positivo

O Estado tambem tem omaior índice de mulheresestudando (60%). Oíndice de analfabetismoé zero

Retrato do Estadot Ensino superior

Um detento (homem)t Ensino médio

726 (149 mulheres e 577homens)

t Ensino fundamental(de 1ª a 4ª)

1.077 (114 mulheres e963 homens)

t Ensino fundamental(de 5ª a 8ª)

1.536 (260 mulheres e1.276 homens)

Estruturat Oferta educacional

– Para 2013, foramcontratados 230professores para as 27unidades onde há salas– Hoje, são 35 unidadesprisionais. Dessas, 27contam com salas deaula. Em 2006, eramapenas 3

Cursost Qualificação

– Em 2013, a expectativada Sejus é ofertar 5 milvagas em 50 diferentescursos de qualificação.

São cursos presenciais eà distância– Há vagas nas áreas deinformática, costuraindustrial, confeiteiro,panificação, manicure,cabeleireiro, eletricistabásico, bombeirohidrossanitário, gesseiro,entre outros– Até junho de 2013,estão previstos mais trêslaboratórios paraqualificação profissional(costura, tijolosecológicos e panificação)– A carga horária varia deacordo com cadacapacitação. Os cursosofertados à distância duram14 horas, já os cursospresenciais têm duraçãoentre 24 e 240 horas

Egressost Faculdade

– Em 2012, 1.327 presosfizeram a prova doEnem. Com a nota,alguns egressos dosistema prisionalconquistaram vagas emalgumas faculdades

ESPERANÇA

“FIQUEI DEZ MESES PRESOE FOI LÁ QUE ENCONTREIMINHA OPORTUNIDADE”C.32 anos

Da prisãoà carreirado Direito

A pressão da falta dedinheiro e de comida pa-ra a família me fez entrarno mundo do crime. Arealidade é que, na maio-ria dos casos, o ser hu-mano se adapta ao meio.O meu era de crime, trá-fico e homicídio. Não fuiexceção. Participei de umsequestro relâmpago efui preso. Quando conse-gui o relaxamento (daprisão), desapareci. Só

me acharam dez anos de-pois. Fiquei dez mesespreso e foi lá que encon-trei minha oportunidade.Concluí o ensino médio ecomecei a faculdade deDireito quando fui para osemiaberto. Hoje, estouno 6º período e quero acarreira criminal. Queromontar estandes em co-munidades carentes paraatender aos mais pobres.Depois que a gente sai, opreconceito é grande, in-clusive do Estado. A bu-rocracia para conseguirregularizar a documenta-ção nos tira grandesoportunidades.

LIVROS

“NUNCA HAVIA LIDO UMLIVRO. AGORA, JÁ TENHOMAIS DE 35 NO CURRÍCULO”Alexandre Rodrigues dos Santos34 anos

Portasabertas enovo sonho

Estou aqui há quatroanos e entrei por causade meu envolvimentocom o tráfico. Só haviacursado até a 5ª série.Quando fui preso pelaterceira vez, decidi estu-dar. Naquela época, euvalia ferro; hoje, valhoouro. Quando somosmuito pobres, temos von-tade de ter o que não

podemos. Mas essa éuma vida mentirosa. Eramuito triste ouvir meu fi-lho pedindo a ajuda nodever de casa e não con-seguir responder. Eu nun-ca havia lido um livro an-tes. Em três anos, já te-nho mais de 35 no cur-rículo. E virei fã de SidneySheldon. Quando sair, seique terei portas abertasem pelo menos seis pro-fissões por conta dos cur-sos que fiz aqui, comogesseiro, pintor e eletri-cista. E quero tentar umafaculdade de Engenharia.

Em Cachoeiro, a recuperaçãovem pela Palavra de Deus

O cenário é de um refei-tório. No lugar de pratos etalheres, há apostilas e Bí-blias.AfomenaPenitenciá-ria Regional de Cachoeirode Itapemirim, no Sul doEstado, não é de alimento,mas sim de conhecimentoda Palavra de Deus. São 24detentos que participam,toda sexta-feira, das aulasministradas por uma semi-narista, que não recebe pe-lo trabalho realizado.

O uniforme dos estu-dantes é o padrão da uni-dade: camisa amarela ecalça ou bermuda laranja.As aulas de Teologia Bási-ca são ministradas há um

ano. No início, eram 30alunos, mas como algunsdeles conseguiram passarpara o regime semiabertoo número caiu para 24.

SEM RESTRIÇÃOSegundo a professora e

seminarista IraniRodriguesTavares, o curso não estárestritoareligiãoespecífica,e nele transmitem-se os en-sinamentos de Deus. “Acei-tamos aqui todo o tipo decredo e não trazemos rótu-los”, disse. O curso chegouaopresídiopormeiodeumainstituição de Piúma, no Li-toral Sul, que o custeia.

A escolha dos alunos é

feita pelos próprios deten-tos.Deacordocomasemi-narista, durante os cultosrealizados na unidade, fo-ram selecionados os no-mes daqueles que partici-pariam. As aulas têm du-ração de duas horas, e osdetentos são de nível deescolaridade diferentes.

“Os que têm maior difi-culdaderecebemajudadoscolegas”, explica Irani. De-pois de 12 meses de aulas eapós aprovação, os alunosrecebem um diploma e po-dem fazer o Curso de Ba-chareladoemTeologiaparadar sequência aos estudos.(Gustavo Ribeiro)

GUSTAVO RIBEIRO

A professora Irani Tavares e os alunos: “Todos os credos são respeitados”

NOVA CHANCE

“NO CURSO, MEREENCONTREICOM DEUS”

Cristiano Miranda34 anos

Para mim, este cursoque estou fazendo ago-ra foi uma grandeoportunidade que apa-receu no meu caminhopara me encontrar comDeus. Antes de entraraqui, fui evangélico porseis anos. Isso foi antesde me enveredar pelomundo do crime. Antestivesse seguido a Pala-vra de Deus. Graças aEle, aqui dentro encon-trei uma nova oportu-nidade. E, com ela,espero mudar de vidae continuar seguindominha fé.

Documento:AG30CA019;Página:1;Formato:(274.11 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:29 de Jun de 2013 14:02:22