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CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DAS PROMOTORIAS DE JUSTIÇA CÍVEIS FALIMENTARES, DE LIQUIDAÇÕES EXTRAJUDICIAIS, DAS FUNDAÇÕES E DO TERCEIRO SETOR __________________________________________________________________________________________________________ Av. Mal. Deodoro, n° 1028 – Edifício Baracat – 4º andar – Centro – Curitiba/PR – CEP n° 80060–010 E–mails: [email protected]/[email protected] Fone: (41) 3250–4852/4848 1 Estudo n° 02/18 CAOP CFTS – Repercussões do Estatuto da Pessoa com De- ficiência (Lei n° 13.146/15) nos institutos da prescrição e decadência. I. Considerações iniciais Este CAOP CFTS vem estudando a Lei n° 13.146/15, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), notadamente em seus aspectos que tangenciam o Direito Civil e Processual Civil, desde o início de sua vigência 1 . Avança-se, nesta feita, abordando-se o impacto provocado pelo EPD no fluxo da prescrição e da decadência, em relação àqueles que não podem exprimir a sua vontade, devido a prejuízo de discernimento causado por en- fermidade ou deficiência ou outra causa transitória ou permanente, tendo em vista a modificação do rol de incapacidades dos arts. 3º e 4° do Código Civil, em especial do primeiro dispositivo, e o liame existente entre este e o art. 198, inc. I, do mesmo Código. Tal novidade legislativa originou um campo de dúvida doutrinária e dis- sonâncias em sede jurisprudencial, com discussão, até mesmo, sobre a constitu- cionalidade do EPD. 1 V. Informativo n° 74 - O Estatuto da Pessoa com Deficiência e as alterações no instituto da curatela: linhas gerais; Informativo n° 76 – A legitimidade do Ministério Público para a propositura das ações relativas à curatela e à tomada de decisão apoiada; Alteração do regime civil de incapacidades, decorrente do Estatuto da Pessoa com Deficiência; Protocolo n° 157/2016; Consulta n° 20/2016; Slides de apoio à palestra “Capacidade, Interdição e Tomada de Decisão Apoiada” apresentada no evento “Nova Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da Pessoa com Deficiência) promovido pelo CAOP de Defesa dos Direitos do Idoso e da Pessoa com Deficiência, em 17.05.16.

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Estudo n° 02/18 CAOP CFTS – Repercussões do Estatuto da Pessoa com De-ficiência (Lei n° 13.146/15) nos institutos da prescrição e decadência.

I. Considerações iniciais Este CAOP CFTS vem estudando a Lei n° 13.146/15, conhecida como

Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), notadamente em seus aspectos que

tangenciam o Direito Civil e Processual Civil, desde o início de sua vigência1.

Avança-se, nesta feita, abordando-se o impacto provocado pelo EPD no fluxo da prescrição e da decadência, em relação àqueles que não podem exprimir a sua vontade, devido a prejuízo de discernimento causado por en-fermidade ou deficiência ou outra causa transitória ou permanente, tendo em vista a modificação do rol de incapacidades dos arts. 3º e 4° do Código Civil, em especial do primeiro dispositivo, e o liame existente entre este e o art. 198, inc. I, do mesmo Código.

Tal novidade legislativa originou um campo de dúvida doutrinária e dis-

sonâncias em sede jurisprudencial, com discussão, até mesmo, sobre a constitu-

cionalidade do EPD.

1 V. Informativo n° 74 - O Estatuto da Pessoa com Deficiência e as alterações no instituto da curatela: linhas gerais; Informativo n° 76 – A legitimidade do Ministério Público para a propositura das ações relativas à curatela e à tomada de decisão apoiada; Alteração do regime civil de incapacidades, decorrente do Estatuto da Pessoa com Deficiência; Protocolo n° 157/2016; Consulta n° 20/2016; Slides de apoio à palestra “Capacidade, Interdição e Tomada de Decisão Apoiada” apresentada no evento “Nova Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da Pessoa com Deficiência) promovido pelo CAOP de Defesa dos Direitos do Idoso e da Pessoa com Deficiência, em 17.05.16.

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Nesse cenário, far-se-á exposição da problemática e apontar-se-á o posi-

cionamento deste CAOP CFTS em relação ao tema, o qual se sustenta no entendi-

mento de reconhecida doutrina e no mais recente posicionamento do Tribunal Re-

gional Federal da 4ª Região sobre o assunto em comento.

II. Desenvolvimento i) A alteração legislativa realizada pelo EAD e o seu reflexo no art. 198, inc. I, do CC

O art. 198, inc. I, do CC estabelece que a prescrição não corre contra os

incapazes elencados no artigo 3º do CC:

Art. 198. Também não corre a prescrição: I - contra os incapazes de que trata o art. 3°; (...)

Antes do advento do EPD, com a redação original do art. 3° do CC2, os

prazos da prescrição e da decadência3 eram suspensos em favor daqueles que, por

enfermidade ou deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para

a prática de atos da vida civil e daqueles que, por causa transitória, não pudessem

exprimir a sua vontade.

No entanto, o EPD alterou essencialmente o rol de incapacidades do

Código Civil, ex vi:

2 Art. 3° São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. 3Art. 208. Aplica-se à decadência o disposto nos arts. 195 e 198, inciso I.

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Art. 3° São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) I – (Revogado); II - (Revogado); III – (Revogado). Art. 4° São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV - os pródigos.

Dessa maneira, contemporaneamente, apenas os menores de 16

(dezesseis) anos são considerados absolutamente incapazes para efeito do art. 3°

do CC. Ao seu turno, aqueles que não puderem exprimir sua vontade, em

decorrência de causa transitória ou permanente, passaram a fazer parte do rol de

incapacidades relativas do art. 4° do CC.

Essa modificação legal propicia interpretação meramente gramatical das

regras em tela, possibilitando o decurso do prazo prescricional para as pessoas

que não puderem exprimir sua vontade, seja em virtude de comprometimento

cognitivo decorrente de deficiência ou doença ou outra causa.

Tal interpretação deve ser combatida, uma vez que é incoerente com a

finalidade do EPD e configura verdadeiro retrocesso para os direitos das pessoas

com deficiência e a proteção daquelas acometidas por doença ou em circunstância

que as impeçam de exprimir sua vontade.

ii) Entendimento jurisprudencial Em pesquisa na jurisprudência dos Tribunais de Justiça Estaduais e dos

Tribunais Regionais Federais, o estudo constatou que os acórdãos, de maneira

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geral, optam por utilizar uma interpretação gramatical e declarativa da lei, no

sentido do reconhecimento do curso do prazo prescricional contra pessoas com

incapacidade civil, em razão de déficit cognitivo originado de doença ou deficiência

mental ou outra causa, a partir da publicação do EPD, eis que doravante elas não

são mais consideradas absolutamente incapazes pelo art. 3° do CC e a benesse da

suspensão da prescrição alcançaria apenas esse segmento.

Confiram-se alguns julgados4:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO CIVIL. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. RECONHECIMENTO DE PRESCRIÇÃO RETROATIVA. IMPOSSIBILIDADE. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ABSOLUTAMENTE INCAPAZ. PRESCRIÇÃO. NOMEAÇÃO DE CURADOR NÃO INTERROMPE O CURSO DO PRAZO PRESCRICIONAL. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. A enfermidade ou deficiência mental deixaram de ser consideradas como causa de incapacidade absoluta com a vigência da Lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) em 2 de janeiro de 2016. 2. A alteração legal afeta diretamente a prescrição contra o incapaz, uma vez que o artigo 198 do Código Civil impede o curso da prescrição somente contra os absolutamente incapazes. 3. Não é possível o reconhecimento retroativo da prescrição, a atingir períodos em que a situação da agravada se encaixava nas hipóteses de incapacidade absoluta e, consequentemente, contra ela não corria prescrição. 4. Contra a agravada não correu o prazo prescricional, porquanto até a modificação do artigo 3º do CC pela vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência, incidia, indubitavelmente, o previsto no artigo 198, inciso I, do Código Civil sobre o caso. (...) Inicialmente, antes de analisar detidamente os argumentos lançados no presente recurso para reconhecimento da imprescritibilidade, importante tecer algumas considerações acerca das modificações que o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) promoveu nos preceitos do Código Civil acerca da incapacidade e seu impacto na leitura e interpretação do artigo 198 do Código Civil. Nesta linha, verifico que a enfermidade ou deficiência mental deixaram de ser consideradas como causa de incapacidade absoluta com a vigência da Lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) em 2 de janeiro de 2016.

4 Nesse mesmo sentido: AC n° 70075840728 TJRS; AC n° 70076862812 TJ-RS; ED n° 70075495341 TJ-RS; Reexame Necessário n° 0301095-49.2014.8.24.0004 TJSC; AC n° 1009923-60.2015.8.26.0405 TJ-SP; AC n° 1052483-69.2016.8.26.0053 TJ-SP; Ap Cível/Rem Necessária n° 1.0324.11.000283-3/00 TJ-MG; Acórdão n° 971897 TJ-DF.

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Com a vigência do Estatuto, os casos em que a deficiência ou enfermidade geram a incapacidade da pessoa exprimir sua vontade são tratados como causas que ensejam a incapacidade relativa, nos termos do artigo 4º do Código Civil. Tal alteração afeta diretamente a prescrição contra o incapaz, porquanto o artigo 198 do Código Civil impede o curso da prescrição contra os absolutamente incapazes. (Agravo de Instrumento 07102075520178070000 TJDF, 5ª Turma Cível, Rel. Des. Robson Barbosa de Azevedo, julgado em 19/04/2018, DJe 04/05/2018). (Destacou-se) ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. PENSÃO GRACIOSA. PRESCRIÇÃO. AUTOR PORTADOR DE DEFICIÊNCIA. INCAPACIDADE ABSOLUTA. ART. 3º DO CÓDIGO CIVIL. PRESCRIÇÃO INTERROMPIDA. ART. 198, I, DO CC/02. DISPOSITIVO QUE SE APLICA TAMBÉM À FAZENDA PÚBLICA. PRECEDENTE DO STJ. O art. 3º do Código Civil consignou, expressamente, que é absolutamente incapaz aquele que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiver o necessário discernimento para a prática desses dos atos da vida civil, razão pela qual, contra estes, não corre o prazo prescricional. "A teor do artigo 198, inc. I, do Código Civil, a incapacidade absoluta obsta o curso da prescrição, qualquer que seja seu lapso, e, inclusive, em desfavor da Fazenda Pública" (TJSC, AC n. 2012.022737-3, relª. Desª. Sônia Maria Schmitz, j. 21.6.12). Anote-se que, em que pese a modificação legislativa promovida pela Lei n. 13.146/15 na redação do art. 3º do CC/02, eventual alteração do prazo prescricional ou alteração na forma de sua contagem - mormente quando prejudicial ao beneficiário - somente poderia produzir efeitos a partir da vigência da nova lei a qual, nos termos do art. 127, "entra em vigor após decorridos 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação oficial", ocorrida em 6.7.15. (Apelação/Reexame Necessário n. 0002876-77.2013.8.24.0017 TJSC, Rel. Des. Francisco Oliveira Neto, Segunda Câmera de Direito Público, julgado em 27/02/2018). (Destacou-se) Obrigação de fazer. Plano de saúde. Prescrição. Requerente interdito desde 2004, fator que suspendeu a prescrição até 07/01/2016, quando o Estatuto da pessoa com deficiência (Lei nº 13.146/2015) modificou o art. 3º do Código Civil e, consequentemente, restringiu o impedimento de transcurso do prazo prescricional apenas aos menores de 16 anos (art. 198, I, do CC). Demanda ajuizada antes de 07/01/2016. Prescrição afastada. Autor demitido sem justa causa. Pedido de manutenção de seu plano de saúde nas mesmas condições usufruídas pelos empregados ativos e por tempo ilimitado. Inteligência do artigo 30 da Lei nº 9.656/98. Em se tratando de dispensa imotivada, é assegurada a permanência no plano de saúde, desde que o autor arque com o pagamento integral das prestações. Possibilidade de manutenção pelo prazo correspondente a um terço do tempo de permanência no plano de saúde, com tempo mínimo de 6 meses e máximo de 24 meses. Impossibilidade de imposição da obrigação por tempo ilimitado. RECURSO PARCIALMENTE

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PROVIDO. (…) De início, há que se afastar a prescrição reconhecida na sentença. Embora o prazo prescricional aplicado ao caso seja de fato o trienal, em 13/08/2004 foi decretada a interdição do demandante, declarando-o totalmente incapaz para exercer pessoalmente os atos da vida civil (fls. 51), fator que suspendia a prescrição (art. 198, I, do Código Civil) até 07/01/2016, quando entrou em vigência o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), que modificou o artigo 3º do Código Civil e, consequente, passou a restringir o impedimento de transcurso do prazo prescricional apenas aos menores de 16 anos. No caso, a revisão das mensalidades se refere ao período de 2009 a 2014, ou seja, quando o autor já era interdito. Assim, a prescrição só começou a transcorrer a partir de 07/01/2016, data em que a presente demanda já havia sido ajuizada. Neste panorama, o reconhecimento da prescrição quanto à revisão das mensalidades de 2009 a 2011 deve ser afastado. (Apelação Nº 1009923-60.2015.8.26.0405 TJSP, Rel. Des. Beretta da Sil-veira, 3ª Câmara de Direito Privado, julgado em 21/09/2017). (Destacou-se)

Em contrapartida, também se encontraram julgados no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região com entendimento de que a publica-ção do EPD não afastou a suspensão do prazo prescricional contra pessoas com verdadeiro prejuízo de discernimento provocado por deficiência mental:

PREVIDENCIÁRIO. RESTABELECIMENTO DE PENSÃO POR MORTE DE GENITOR. FILHO INVÁLIDO. TITULARIDADE DOS HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. ARTIGOS 22 E 23 DA LEI Nº 8.906/1994. 1. Embora a redação do art. 3º do Código Civil tenha sido alterada pela Lei 13.146/2015 ("Estatuto da Pessoa com Deficiência"), para definir como absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil apenas os menores de 16 anos, e o inciso I do art. 198 do Código Civil disponha que a prescrição não corre contra os incapazes de que trata o art. 3º, a vulnerabilidade do indivíduo portador de deficiência psíquica ou intelectual não pode jamais ser desconsiderada pelo ordenamento jurídico, ou seja, o Direito não pode fechar os olhos à falta de determinação de alguns indivíduos e tratá-los como se tivessem plena capacidade de interagir em sociedade em condições de igualdade. Assim, uma interpretação constitucional do texto do Estatuto deve colocar a salvo de qualquer prejudicialidade o portador de deficiência psíquica ou intelectual que, de fato, não disponha de discernimento, sob pena de ferir de morte o pressuposto de igualdade nele previsto, dando o mesmo tratamento para os desiguais. 2. Sob pena de inconstitucionalidade, o "Estatuto da Pessoa com Deficiência" deve ser lido sistemicamente enquanto norma protetiva. As pessoas com deficiência que tem discernimento para a prática de

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atos da vida civil não devem mais ser tratados como incapazes, estando, inclusive, aptos para ingressar no mercado de trabalho, casar etc. Os portadores de enfermidade ou doença mental que não têm o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil persistem sendo considerados incapazes, sobretudo no que concerne à manutenção e indisponibilidade (imprescritibilidade) dos seus direitos.5 3. In casu, tendo restado comprovado que a parte autora não possui discernimento para a prática dos atos da vida civil, deve ser rigorosamente protegida pelo ordenamento jurídico, não podendo ser prejudicada pela fluência de prazo prescricional ou decadencial. (TRF4 5017423-95.2013.4.04.7108, QUINTA TURMA, Relator PAULO AFONSO BRUM VAZ, juntado aos autos em 29/03/2017). (Destacou-se) PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. PRESCRIÇÃO. NÃO INCIDENTE. CONSECTÁRIOS LEGAIS. CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS MORATÓRIOS. 1.Não corre a prescrição em desfavor dos deficientes, considerados absolutamente incapazes, pois não se há de interpretar as disposições da Lei nº 13.146/2015, norma protetiva, em desfavor dos indivíduos que se busca amparar, ainda mais quanto a deficiência se instaurou antes da referida alteração legal, como no caso, incidente, ainda, o princípio da irretroatividade. 2. Nos termos do julgamento do RE nº 870.947/SE (Tema 810), pelo STF, em 20/09/2017, a correção monetária dos débitos da Fazenda Pública se dá através do IPCA-e. Os juros moratórios devem atender a disciplina da Lei nº 11.960/09, contados a partir da citação. (…) Dessa forma, a partir da edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência, tem-se que aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, são relativamente incapazes, fazendo com que incorra o prazo prescricional, eis que não mais amparados pelo disposto no art. 198, I, do CC. Entretanto, entendo que a vulnerabilidade do indivíduo, não pode jamais ser desconsiderada, ainda mais, para tornar sua esfera de direitos ainda mais vulnerável. Neste contexto, a Lei 13.146/2015, cujo propósito6 foi o de promover uma ampla inclusão das pessoas portadoras de deficiência, não pode ser interpretada de forma a colocar estas pessoas em situação de maior vulnerabilidade o que contraria a própria lógica de proteção aos direitos humanos constitucionalmente protegida. No caso dos autos, é evidente que o demandante não possui discernimento para a prática dos atos da vida civil e, em razão disso, deve ser rigorosamente protegido pelo ordenamento jurídico, não podendo ser prejudicado pela fluência do prazo prescricional. (TRF4, AC 5000910-53.2017.4.04.7127, QUINTA TURMA, Relator ALTAIR ANTONIO GREGÓRIO, juntado aos autos em 11/05/2018). (Destacou-se)

5Observa-se que nesse acórdão há uma preponderância do método sistemático do EPD. 6Observa-se que nesse acórdão há uma preponderância do método teleológico do EPD.

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PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. QUALIDADE DE SEGURADO. RURAL. ECONOMIA FAMILIAR. EXTENSÃO DA PROVA. CONDIÇÃO DE DEPENDENTE. FILHO MAIOR INVÁLIDO. DEPENDÊNCIA RELATIVA. COMPROVADA. BENEFÍCIO DEVIDO. CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS DE MORA. FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DIFERIMENTO. TUTELA ESPECÍFICA. 1. Para a obtenção do benefício de pensão por morte, deve a parte interessada preencher os requisitos estabelecidos na legislação previdenciária vigente à data do óbito, consoante iterativa jurisprudência dos Tribunais Superiores e desta Corte. (...) Dessa forma, a partir da edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência, tem-se que aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, são relativamente incapazes, fazendo com que incorra o prazo prescricional, eis que não mais amparados pelo disposto no art. 198, I, do CC. Entretanto, embora a redação do art. 3º do Código Civil tenha sido alterada pela Lei 13.146/2015 ("Estatuto da Pessoa com Deficiência"), para definir como absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil apenas os menores de 16 anos - situação essa na qual não se encontra o demandante -, e o inciso I do art. 198 do Código Civil disponha que a prescrição não corre contra os incapazes de que trata o art. 3º, entendo que a vulnerabilidade do indivíduo - inquestionável no caso do autor - não pode jamais ser desconsiderada pelo ordenamento jurídico, ou seja, o Direito não pode fechar os olhos à falta de determinação de alguns indivíduos e tratá-los como se tivessem plena capacidade de interagir em sociedade em condições de igualdade. (...) A Lei 13.146/2015, embora editada com o propósito de promover uma ampla inclusão das pessoas portadoras de deficiência, ao contrário, acabou por aniquilar a proteção dos incapazes, rompendo com a própria lógica dos direitos humanos.7 No caso dos autos, é evidente, pelas conclusões do perito judicial (evento 50, LAUDPERI1), que o demandante não possui discernimento para a prática dos atos da vida civil e, em razão disso, deve ser rigorosamente protegido pelo ordenamento jurídico, não podendo ser prejudicado pela fluência do prazo prescricional. (TRF4, AC 5001195-60.2014.4.04.7124, SEXTA TURMA, Relatora VÂNIA HACK DE ALMEIDA, juntado aos autos em 31/03/2017). (Destacou-se)

Ocorre que, mesmo na esfera do TRF-4, há controvérsia.

7Já nesse acórdão verifica-se tanto o uso de uma interpretação sistemática quanto teleológica do EPD.

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Parte dos julgados entende que a melhor técnica para a solução do im-

bróglio seria a declaração de inconstitucionalidade do EPD, a qual não poderia ser

anunciada no acórdão, sob pena de violação do princípio da reserva de plenário8.

Outra corrente prefere utilizar uma interpretação meramente gramatical9. Como a publicação do EPD é relativamente recente, o tema ainda não

foi objeto de discussão no âmbito do STF e STJ, fato que contribui ainda mais para a divergência jurisprudencial.

iii) Entendimento doutrinário Cristiano Chaves de Farias sugere a aplicação do princípio contra non

valentem agere non currit praescriptio - oriundo do Direito Romano - para afastar

os efeitos corrosivos da prescrição contra as pessoas relativamente incapazes, que

não podem exprimir sua vontade:

A teoria contra non valentem agere non currit praescriptio (tradução: contra aqueles que não podem agir não fluem os prazos de prescrição), ou contra non valentem, de origem romana, propõe uma compreensão meramente exemplificativa das causas de suspensão e impedimento da prescrição, admitindo outras hipóteses paralisantes do lapso temporal baseadas em fortuitos ou em causas que, embora não previstas em lei, obstam o exercício da pretensão do titular. O seu fundamento é ético: um prazo prescricional não pode correr contra aquele que está incapacitado de agir, mesmo não havendo previsão legal para a suspensão ou interrupção do prazo. Trata-se de uma compreensão equitativa, e não legalista, das hipóteses de suspensão e de interrupção dos prazos extintivos. Essa teoria era a regra geral até o advento do Code de France, em 1804. Devido à sua aplicação elástica e indiscriminada, ela gerava insegurança.

8AC n° 5000226-53.2016.4.04.7131, QUINTA TURMA, TRF-4; AC n° 5010231-95.2018.4.04.9999, QUINTA TURMA. 9 AC n° 5006826-50.2016.4.04.7112, QUINTA TURMA; AC n° 5004799-61.2015.4.04.7005, QUINTA TURMA; AC n° 5004504-82.2015.4.04.7115, QUINTA TURMA, AC n° 5057194-98.2017.4.04.9999, QUINTA TURMA; AC n° 5005969-30.2013.4.04.7202, QUINTA TURMA; AC n° 5006359-20.2015.4.04.7108, SEXTA TURMA; AC n° 5001867-38.2013.4.04.7113, SEXTA TURMA. E ainda: TRF-3, AC n° 00036095120154036141 SP.

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Com o advento do Código Napoleônico, essa teoria foi banida, passando a existir um sistema taxativo de causas suspensivas e interruptivas do prazo prescricional. No common law, essa teoria é aplicada como uma exceção às regras gerais de prescrição, sob o fundamento de que os ideais de justiça e equidade exigem que o prazo de prescrição seja suspenso porque o titular da pretensão não pode fazer valer seus direitos por razões externas à sua própria vontade (Wimberly v. Gatch). Segundo Alexandre Agra Belmonte, adepto dessa tese, AVC, amnésia e coma são exemplos de fatores que podem interromper ou suspender o cômputo do prazo prescricional. Apesar do sistema jurídico brasileiro também sugerir que as causas de suspensão e interrupção da prescrição são taxativas, especialmente por questões de segurança jurídica; entendo ser possível o uso da teoria contra non valentem em casos especiais, com fundamento em algum fortuito, não imaginado pelo legislador (que não é onisciente), desde que tenha retirado, por completo, do titular da pretensão a possibilidade de agir. É uma situação casuística e episódica, excepcional, que tem como referencial a boa-fé objetiva. Seria o caso do relativamente incapaz que não pode exprimir vontade, mas que, diante das novas regras de incapacidade emanadas do Estatuto da Pessoa com Deficiência, por ser relativamente incapaz e não se enquadrar na hipótese do art. 198, I, CC/02, sofre os efeitos corrosivos da prescrição. Repita-se à exaustão: trata-se de uma exceção e que não pode ser aplicada exageradamente, ou estaríamos repetindo os erros do passado. Apesar disso, talvez essa seja a solução ao preocupante descuido do legislador que alterou a teoria das incapacidades, porém não modificou o art. 198, I, CC/02.10. (Destacou-se)

À sua vez, Bruno Henrique Silva Santos defende a declaração de incons-

titucionalidade parcial, sem redução do texto, do EPD:

A supressão da garantia do impedimento ou da suspensão da prescrição em favor daqueles que não possuem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil é incompatível com a Constituição (art. 5º, §3º da Constituição c/c art. 4.4 da Convenção de que se trata). É importante deixar claro que a inconstitucionalidade não reside na regra que atribuiu capacidade civil plena a todas as pessoas com deficiência, ainda que, em razão dela, não tenham discernimento para a prática de atos da vida civil. O que é acometida de inconstitucionalidade, por desrespeito ao art. 4.4 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, é a supressão da norma que assegurava que contra essas

10 FARIAS, Cristiano Chaves de, 04/2016, Facebook.com. Disponível em: <https://www.facebook.com/cristianochavesfarias/posts/a-teoria-contra-non-valentem-agere-non-currit-praescriptio-tradu%C3%A7%C3%A3o-contra-aquel/840451629392363/> Acesso em: 17/09/2018.

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pessoas desprovidas de capacidade cognitiva não correria prazo prescricional. Não se pode, desta maneira, taxar de plenamente inconstitucional o art. 114 da Lei nº 13.146/2015, que alterou os arts. 3º e 4º do Código Civil, mas deve-se reconhecer uma inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, da norma que, em decorrência dele, suprime a garantia das pessoas com deficiência contra o fluxo do prazo prescricional. Consequência de tudo isso é que, mesmo após a alteração do art. 3º do Código Civil, não corre prazo prescricional contra as pessoas com deficiência que, por essa razão, não tenham o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil.11 (Destacou-se)

Marlon Tomazette e Rogério Cavalcanti Araújo acreditam que muitos ma-

gistrados optarão pela aplicação analógica da suspensão da prescrição e decadên-

cia, mesmo não sendo essa a solução tecnicamente mais adequada, a seu sentir:

O artigo 198 do CC afirma que não corre prescrição contra os incapazes de que trata o artigo 3o do Código Civil (absolutamente incapazes). Assim, pela nova sistemática, a suspensão da prescrição deixaria de contemplar os deficientes, continuando a correr normalmente prescrição contra eles. Estamos certos de que muitos magistrados, consternados pela injustiça da alteração, aplicarão analogicamente a suspensão da prescrição e da decadência (artigo 198) aos deficientes. Ocorre que as hipóteses de suspensão e interrupção de prescrição são taxativas, como se depreende das lições do maior especialista no tema que o Direito Brasileiro já conheceu – Antônio Luís da Câmara Leal. Assevera o festejado jurista[20]: “Os intérpretes são unânimes em reconhecer que a enumeração das causas suspensivas da prescrição pelo Código é taxativa, e não exemplificativa. Quer isso dizer que, sendo de direito estrito, não admitem ampliação por analogia.” O seu raciocínio é dotado de irretorquível lógica. Ora, se violado o direito, nasce a pretensão, que, não exercida no prazo previsto, será encoberta pela prescrição (art. 189), é porque a fluência do mencionado lapso prescricional, por força de lei, é ininterrupta. Qualquer exceção a tal comando deve estar prevista em lei, pois, do contrário, a hipótese se subsumirá à regra geral (da fluência ininterrupta do prazo). O que buscamos dizer é que não há lacuna aqui a ser colmatada, porquanto, ou a fluência do prazo é ininterrupta, por força do artigo 189, ou pode ser obstada, suspensa ou interrompida, por força apenas de um dos dispositivos constantes do artigos 197 e seguintes. Não há limbo, não há lacunas... logo, não haverá analogia.

11SANTOS, Bruno Henrique Silva, 06/2016, Jus.com. Disponível em: <https://jus.com.br/arti-gos/50234/prescricao-e-decadencia-contra-as-pessoas-com-deficiencia-apos-a-promulgacao-da-lei-n-13-146-15-uma-analise-constitucional>. Acesso em: 17/09/2018.

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Mas e se o magistrado, tocado pela infelicidade da mutação legislativa, resolver analogicamente aplicar a regra suspensiva do artigo 198, I aos deficientes? Bem... ele estará a agir como legislador, inovando onde não há lacuna. O mais surreal, porém, é que o fim da suspensão da prescrição, derivada da deficiência mental ou intelectual, embora prejudicialíssimo a este, iguala-o aos não deficientes, contemplando da pior forma possível o pressuposto igualitário do Estatuto. O irônico é que talvez desigualar os atores jurídicos com deficiência, em algumas hipóteses, atendesse mais ao princípio da isonomia, no sentido material, do que dispensar regramento jurídico idêntico ao das pessoas sem deficiência, mormente quando a diferenciação está justificada pelo caráter protetivo. Conhecendo, porém, a forma pouco científica, quase emotiva, como se trata o direito no Brasil, cremos, abismados, que, no futuro, os tribunais aplicarão analogicamente o artigo 198, I aos hoje (plenamente capazes) deficientes simplesmente por parecer-lhes o mais justo, seja isso técnico ou não.12 (Destacou-se)

Observa-se que a doutrina especializada é majoritária na linha de que a interpretação gramatical do EPD e das mudanças por ele provocadas no CC pode acarretar prejuízo às pessoas maiores e consideradas incapazes de exprimir a sua vontade. De variadas formas, cada doutrinador expõe uma solução para o caso.

iv) Entendimento do CAOP CFTS iv.i) Métodos clássicos de interpretação da norma

Roberto Barroso, em seu livro “Aplicação e Interpretação da Constitui-

ção” apresenta brevemente os métodos clássicos de interpretação13 e seus alcan-

ces na aplicação normativa14.

12TOMAZETTE, Marlon; ARAÚJO, Rogério Andrade Cavalcanti. Estatuto da Pessoa com Deficiência: Crítica à Incapacidade de Fato. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4449, 06.09.2015. Disponível em: [https://jus.com.br/artigos/42271]. Acesso em: 17/09/2018. 13 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Saraiva, 2004, p. 124-138. 14Op. cit., p. 121-124.

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Conforme o autor, os métodos ou meios interpretativos clássicos são:

gramatical, sistemático, teleológico e a histórico. No entanto, Barroso ressalta que

a interpretação é una e que nenhum dos diferentes métodos devem ser entendido

como absoluto, ou seja, cada método complementa o outro, combinando-se reci-

procamente:

A interpretação se faz a partir do texto da norma (interpretação gramatical), de sua conexão (interpretação sistemática), de sua finalidade (interpretação teleológica) e de seu processo de criação (interpretação histórica)15.

Ademais, quanto ao alcance ou resultado, as interpretações podem ser:

declarativas, restritivas ou extensivas. Por interpretação declarativa16, entende-se aquela que resulta em con-

gruência plena entre o texto da norma e seu sentido, ou seja, quando coincidem o

elemento gramatical e o elemento lógico17 da norma. Por outro lado, quando há incongruência entre esses elementos caberá

ao intérprete realizar uma retificação do sentido verbal, em conformidade ao seu

sentido lógico18. Para Ferrara, essa incongruência pode se manifestar de duas

formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer (interpretação restritiva), ou

disse menos, quando queria dizer mais (interpretação extensiva)19.

15Op. cit., p. 125. 16Op. cit., p. 121. 17Conforme Ferrara, o elemento lógico da norma “remonta ao espírito da disposição, inferindo-o dos fatores racionais que inspiraram, à gênese histórica que a prende a leis anteriores e à conexão que a enlaça às outras normas e de todo o sistema (FERRARA, Francisco. Interpretação e aplicação das leis. Coimbra, Arménio Amado Ed., 1963, p. 140 e 141.) Nesse sentido, pode-se depreender que, para Ferrara, o elemento lógico da norma é a soma do método teleológico (chamado por ele de racional), do método sistemático e do método histórico da hermenêutica clássica. 18Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, cit. p. 121. 19FERRARA, Francisco. Interpretação e aplicação das leis... p.149.

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Estabelecidas essas premissas, percebe-se que os julgados mais con-servadores sobre a questão optam pelo método gramatical de interpretação, com um alcance meramente declarativo, enquanto os acórdãos da Quinta Turma do TRF-4 e a doutrina de Cristiano Chaves empregam uma hermenêu-tica teleológica do EPD e sistemática do ordenamento jurídico, para um al-cance extensivo do art. 198, inc. I, do CC.

Entende-se que essa última corrente deve ser defendida. iv.ii) Interpretação teleológica do EPD O método teleológico de interpretação busca apreender a finalidade do

texto normativo, por meio de análise dos objetivos a que se destinam a norma20.

Tal método está previsto na primeira parte do art. 5º da Lei de Introdução às nor-

mas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n° 4.657/42): Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. (Destacou-se)

Sobre esse dispositivo, Maria Helena Diniz assinala duas consequências

relevantes para a hermenêutica: i) condena a interpretação puramente gramatical,

afirmando a primazia de outros métodos hermenêuticos; e ii) consagra o método

teleológico como sendo prioritário, dentre os métodos de interpretação21.

20 SANTOS, Alberto Marques dos. Regras científicas da hermenêutica. Disponível em: <goo.gl/Cl3SU9>. Acesso em: 17/09/2018, p. 4-6. 21DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro interpretada. 18. ed., rev. e atual. - São Paulo; Saraiva, 2013, p. 185-188.

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Diante de tamanha relevância para a hermenêutica, a verificação das finalidades do EPD é vital para a resolução do problema.

Consoante anteriormente citado, com destaque aos acórdãos do TRF-

422, o EPD é norma essencialmente inclusiva e protetiva, cujo intento foi enaltecer a autonomia da vontade e a dignidade da pessoa com deficiência e estabelecer mecanismos jurídicos voltados a sua proteção e apoio, quando for necessário.

Essa finalidade fica ainda mais evidente quando se nota que o EPD tem

por base a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, documento com

força de emenda constitucional, em conformidade com o procedimento previsto no

§3º do art. 5º da CF. Nesse sentido, assim prevê o artigo 1º, parágrafo único, do

EPD:

Art. 1° É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. Parágrafo único. Esta Lei tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo no 186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o procedimento previsto no § 3° do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008, e promulgados pelo Decreto no6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de sua vigência no plano interno. (Destacou-se)

Por sua vez, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,

em seu art. 4.4, estabelece:

4.4 Nenhum dispositivo da presente Convenção afetará quaisquer

22AC n° 5000910-53.2017.4.04.7127 e AC n° 5001195-60.2014.4.04.7124

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disposições mais propícias à realização dos direitos das pessoas com deficiência, as quais possam estar contidas na legislação do Estado Parte ou no direito internacional em vigor para esse Estado. Não haverá nenhuma restrição ou derrogação de qualquer dos direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte da presente Convenção, em conformidade com leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob a alegação de que a presente Convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou que os reconhece em menor grau. (Destacou-se)

Nota-se nesse dispositivo um impedimento de haver qualquer alteração

menos benéfica aos direitos das pessoas com deficiência, acarretada pela

Convenção.

Ora, se a base de fundamentação do EPD é a Convenção sobre Direitos

das Pessoas com Deficiência, depreende-se que o obstáculo de alteração menos

propícia está implícito à finalidade do Estatuto. Ou seja, o EPD só poderia, em tese, trazer alterações no sistema jurídico para beneficiar, e nunca prejudicar, à realização dos direitos das pessoas com deficiência.

Nessa ordem de ideias, acredita-se que é defeso utilizar uma

interpretação que prejudique as pessoas com deficiência; sendo exatamente essa

a consequência negativa da hermenêutica gramatical/declarativa proposta pela

corrente jurisprudencial majoritária, uma vez que o instituto da suspensão da prescrição constitui ferramenta de salvaguarda de direitos, a ser aplicado quando, excepcionalmente, o indivíduo não puder exprimir sua vontade por força de condição limitante provocada pela deficiência mental.

Como muito bem fundamentado pelo Desembargador Federal Altair An-

tonio Gregório, o EPD “não pode ser interpretado de forma a colocar estas pessoas

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em situação de maior vulnerabilidade, o que contraria a própria lógica de proteção

aos direitos humanos constitucionalmente protegida”23.

Ante o exposto, entende-se que a mais adequada hermenêutica teleo-lógica do EPD indica que nunca foi a sua pretensão prejudicar os direitos das pessoas com deficiência. Apreender que a publicação do Estatuto promoveu o decurso do prazo prescricional e decadencial em qualquer situação que en-volve pessoa com deficiência, até mesmo aquelas que sofrem de incapacidade para se expressar, é ir de encontro às finalidades protetivas do texto norma-tivo.

iv.iii) Interpretação sistemática do ordenamento jurídico Sobre o método sistemático de interpretação, Barroso expõe que:

O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente. A interpretação sistemática é fruto da ideia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas24. (Destacou-se)

Pautando-se nessa doutrina, considera-se que a interpretação sistemática deve levar em conta o núcleo axiológico do art. 198, inc. I, do CC e o contexto normativo vigente, o qual envolve princípios constitucionais e as modificações estabelecidas pelo EPD.

A finalidade do art. 198, inc. I, do CC, em sua redação original, foi a

23 TRF4, AC n° 5000910-53.2017.4.04.7127, QUINTA TURMA, Relator ALTAIR ANTONIO GREGÓRIO, juntado aos autos em 11/05/2018. 24Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, cit. p. 131.

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de suspender o prazo prescricional contra aqueles que, por incapacidade ou por ausência, não podem agir contra os seus efeitos.

Referido dispositivo apresenta estrita ligação com o princípio25contra non

valentem agere non currit praescriptio26 (contra aqueles que não podem agir não

fluem os prazos de prescrição), citado por Cristiano Chaves.

Dessa forma, ao estabelecer tratamento jurídico diverso, a regra visou à

igualdade material, ao tratar desiguais desigualmente.27 Ou seja, a função dessa norma foi a aplicação do princípio da isonomia28 para aqueles que não podem agir contra os efeitos do prazo prescricional.

Com a mudança do art. 3° do CC provocada pelo EPD, que também gerou

a alteração do art. 198, inc. I, em razão de conexão interna que enlaça hipótese de

suspensão do prazo prescricional com os incapazes elencados no primeiro

dispositivo, aqueles que não podem exprimir sua vontade foram gramaticalmente

excluídos da proteção contra os efeitos da prescrição e decadência.

25No magistério de Dworkin “qualquer norma se fundamenta em um princípio” (DWORKIN, Ronald. Los Derechos em Serio. Barcelona: Ariel, 1977, p.4). Por esse ângulo, entende-se que o princípio que fundamenta a regra do art. 198 é justamente o contra non valentem, que por sua vez é exemplo do princípio da isonomia. 26Mesmo advindo do Direito Romano esse princípio já foi mencionado em julgados nacionais como, por exemplo, o REsp 805.151-SP de relatoria do Min. Raul Araújo. 27Celso Antônio Bandeira de Mello indica três critérios para identificação do desrespeito à isonomia: a) o elemento tomado como fator de desigualação; b) a correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos na sistema constitucional e destarte juridicizados (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.ed. p. 20) 28Como fator de desigualação, o artigo 198 traz aqueles grupos de pessoas que, por incapacidade ou ausência, não podem agir contra o prazo prescricional. A correlação lógica é evidente, pois aqueles que não podem agir contra o prazo prescricional não podem sofrer seus efeitos corrosivos. Dessa forma, a justificação de tratamento desigual do dispositivo está perfeitamente condizente com o princípio da isonomia.

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Uma leitura gramatical e declarativa dessas regras conduziria a

percepção de que corre a prescrição contra aqueles que não podem exprimir sua

vontade.

Esse raciocínio, no entanto, é absurdo 29 e viola tanto o princípio

constitucional da isonomia imbuído na regra do art. 198, inc. I, do CC, quanto a

sistemática do próprio CC.

Por interpretação que conduz ao incongruente, Alberto Marques Santos

traz dois exemplos que se encaixam perfeitamente na situação: aquela que conduz

a um resultado irrazoável, impossível, ou contrário à lógica; e aquela que conduz

à iniquidade30.

Ora, se há pessoas que possuem limitações cognitivas ao extremo de não poderem exprimir sua vontade, seria contrário à lógica concluir que elas têm condições de interromper os prazos prescricionais. Estabelecer os efeitos da prescrição àqueles que não podem interrompê-la é uma interpretação absurda que deve ser afastada.

Ainda, a interpretação gramatical das alterações legislativas também

conduz a iniquidade, pois possibilita que, com a publicação do EPD, o prazo

prescricional flua contra um adulto em coma profundo ou em estado vegetativo

permanente, mas não contra um adolescente saudável de 15 (quinze) anos, por

exemplo. É evidente que o primeiro grupo de pessoas está em vulnerabilidade

29Em seu artigo “Regras Científicas da Hermenêutica”, Alberto Marques dos Santos indica sua 1ª regra da hermenêutica: “é incorreta a interpretação que conduz ao vago, inexplicável, contraditório ou absurdo”. Citando Barros Monteiro, o autor expõe que “deve ser afastada a exegese que conduz ao vago, ao inexplicável, ao contraditório e ao absurdo”. (SANTOS, Alberto Marques dos. Regras científicas da hermenêutica. p. 9.) 30Idem.

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muito superior ao segundo; sendo assim, a interpretação gramatical das regras em

tela conduz à iniquidade, que nada mais é do que a lesão ao princípio da isonomia.

Compreende-se, pois, que a hermenêutica sistemática revela que o EPD não projetou retirar do conteúdo do art. 198, inc. I, do CC a tutela daqueles que não podem exprimir sua vontade – dentre eles pessoas com deficiência mental que possuem severo comprometimento cognitivo -, sob pena de se desestabilizar a harmonia do CC com a CF e gerar resultado absurdo ao ordenamento jurídico nacional.

iv.iv) O alcance extensivo do art. 198, inc. I, do CC

Ante o exposto, o estudo conclui que há incongruência entre o texto

do art. 198, inc. I, do CC e seu núcleo axiológico. E, por conseguinte, defende-se uma retificação do sentido verbal da norma para que ela atinja o seu sentido lógico (teleológico e sistemático).

A retificação aqui proposta é a da interpretação extensiva31 do dispositivo do art. 198, inc. I, do CC, pois o alcance ampliativo da norma parece ser o mais condizente com a finalidade do EPD e com o sistema do CC.

Dessa maneira, sugere-se a seguinte leitura do dispositivo em questão:

Art. 198. Também não corre a prescrição: I - Contra os incapazes de que trata o art. 3º e contra aqueles que não possam, por causa transitória ou permanente, exprimir sua vontade.

Tal visão coincide com o texto da reforma legislativa proposta pela VIII

31Como dito anteriormente, Ferrara entende por interpretação extensiva aquela em que o legislador disse menos do que queria dizer. (FERRARA, Francisco. Interpretação e aplicação das leis... p.149.)

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Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal32. No entanto, a Jornada

sugere uma reforma legislativa do dispositivo, enquanto o presente estudo propõe

a interpretação extensiva da norma como solução, enquanto não revisto o texto

legal.

O art. 198 do CC é norma excepcional, pois configura uma exceção à

regra geral do curso do prazo prescricional contida no art. 189 do CC33. Por esse

motivo, cabe pontuar que parte da doutrina e da jurisprudência afasta a

possibilidade de interpretação extensiva de norma excepcional, sob a justificativa

de que essa articulação criaria uma hipótese não prevista em lei, configurando

lesão ao princípio da separação dos poderes.

Porém, esse entendimento não é unânime e há importantes

doutrinadores que defendem a interpretação extensiva de normas excepcionais.

Entre eles se pode citar Francesco Ferrara e Flávio Tartuce.

Ferrara entende que não há limitação para a interpretação extensiva,

mas apenas para a analogia.34 Já Tartuce ensina que as normas excepcionais não

admitem interpretação extensiva, salvo para proteger vulnerável ou valor

fundamental35.

32 Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/viii-enunciados-publicacao-site-com-justificativa.pdf>. Acesso em 28.09.18. 33Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206. 34 “E como a interpretação extensiva não é mais do que reintegração do pensamento legislativo, aplica-se a todas as normas sejam embora de carácter excepcional ou penal. (…) Portanto não é verdade que as excepções tenham de interpretar-se estrictamente, mas pelo contrário que as excepções não se podem ampliar por analogia.” (FERRARA, Francisco. Interpretação e aplicação das leis. Coimbra, Arménio Amado Ed., 1963, p. 150 e 151.) 35“Regra importante que deve ser captada é que as normas de exceção ou normas excepcionais não admitem analogia ou interpretação extensiva. Entre essas podem ser citadas as normas que restringem a autonomia privada que, do mesmo modo não admitem socorro a tais artifícios, salvo para proteger vulnerável ou um valor fundamental”. (TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil:

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Nessa linha de pensamento, é evidente que o objetivo da extensão da

norma é proteger grupo vulnerável, mais especificamente, aqueles que não podem

exprimir sua vontade. Portanto, plenamente possível defender a interpretação

ampliativa do artigo 198, inc. I, do CC.

III. Considerações finais

Enxerga-se que a reflexão proposta está afinada à atuação do Ministério

Público Estadual, haja vista a militância da Instituição na área das políticas

públicas de defesa das pessoas com deficiência e, com especial repercussão na

seara de atribuição deste CAOP CFTS, o trabalho desenvolvido pelos órgãos de

execução como fiscal da ordem de jurídica em processos judiciais com a presença

de pessoal maior e incapaz, nos quais os colegas poderão deparar-se com

discussão afeta ao escoamento de prazo prescricional ou decadencial.

Essa pertinência afigura-se, em nosso olhar, ainda mais destacada, pelo

fato de a jurisprudência dos tribunais estaduais apontar em sentido desfavorável

à proteção dessas pessoas, por meio do afastamento do instituto da suspensão do

prazos prescricionais e decadências. Com isso, a atividade acurada e embasada do

MP torna-se primordial.

Terezinha de Jesus Souza Signorini Procuradora de Justiça – Coordenadora

Samantha K. Muniz Assessora Jurídica

Eduardo Maurente Oliveira Estagiário de Pós-Graduação

volume único. 7. ed., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017, p. 30.

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Referências Bibliográficas:

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos

de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. rev., atual. e ampl. - São

Paulo: Saraiva, 2004.

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

interpretada. 18. ed., rev. e atual. - São Paulo; Saraiva, 2013.

FARIAS, Cristiano Chaves de, 04/2016, Facebook.com. Disponível em:

<https://www.facebook.com/cristianochavesfarias/posts/a-teoria-contra-non-

valentem-agere-non-currit-praescriptio-tradu%C3%A7%C3%A3o-contra-

aquel/840451629392363/> Acesso em: 17/09/2018.

FERRARA, Francisco. Interpretação e aplicação das leis. Coimbra, Arménio Amado

Ed., 1963.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade.

3.ed.

SANTOS, Alberto Marques dos. Regras científicas da hermenêutica. Disponível em:

<goo.gl/Cl3SU9>. Acesso em: 17/09/2018.

SANTOS, Bruno Henrique Silva, 06/2016, Jus.com. Disponível em:

<https://jus.com.br/artigos/50234/prescricao-e-decadencia-contra-as-pessoas-

com-deficiencia-apos-a-promulgacao-da-lei-n-13-146-15-uma-analise-constituci-

onal>. Acesso em: 17/09/2018.

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TOMAZETTE, Marlon; ARAÚJO, Rogério Andrade Cavalcanti. Estatuto da Pessoa

com Deficiência: Crítica à Incapacidade de Fato. Revista Jus Navigandi, Teresina,

ano 20, n. 4449, 06.09.2015. Disponível em: [https://jus.com.br/artigos/42271].

Acesso em: 17/09/2018.