repensando os saberes - mudanças nos paradigmas epistemológicos e a formação de professores de...

Upload: carlos-renato-lopes

Post on 08-Oct-2015

17 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

repensando os saberes

TRANSCRIPT

  • 941RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    Repensando os saberes: mudanas nosparadigmas epistemolgicos e aformao de professores de lnguaestrangeira

    Rethinking Knowledges: EpistemologicalParadigm Shifts and Foreign LanguageTeacher Education

    Carlos Renato Lopes*Escola de Filosofia, Letras e Cincias Humanas,Universidade Federal de So PauloSo Paulo So Paulo / Brasil

    RESUMO: Este artigo prope investigar o modo como novas formas de se pensaro conhecimento na contemporaneidade, momento de transio entre paradigmasepistemolgicos, implicam a necessidade de uma problematizao de prticaspedaggicas assentadas em modelos tradicionais de transmisso, reproduo evalidao dos saberes. Em particular, discutimos as possveis implicaes que talproblematizao traria para a prtica dos sujeitos envolvidos na formao deprofessores de lngua estrangeira desenvolvida dentro dos atuais programas delicenciatura do pas.

    PALAVRAS-CHAVE: conhecimento; paradigmas epistemolgicos; formao deprofessores; lngua estrangeira.

    ABSTRACT: The article sets out to investigate the ways in which new approachesto knowledge in contemporary times a moment of transition betweenepistemological paradigms give rise to the need for a discussion of pedagogicalpractices based on traditional models of transmitting, reproducing and validatingknowledge(s). In particular, we discuss the possible implications that suchproblematization might bring for the subjects involved in foreign language teachereducation programs in Brazilian universities.KEYWORDS: knowledge; epistemological paradigms; teacher education; foreignlanguages.

    No o conhecimento, mas o conhecimento doconhecimento o que nos compromete.

    Humberto Maturana e Francisco Varela

    * [email protected]

  • 942 RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    Saberes no plural

    O presente artigo1 trata de epistemologias (no plural) e sua relao coma prtica pedaggica e, mais especificamente, com a formao de professoresde lngua estrangeira. Tomamos como ponto de partida o entendimento deque a concepo de conhecimento passa por sensveis transformaes nassociedades do incio do sculo XXI, evidenciando a posio de confronto emque os saberes cada vez mais se colocam. Atentar para os modos pelos quais acoexistncia de saberes encenada na relao pedaggica que envolveinstituio, professores e alunos torna-se, nesse contexto, um desafio que todosos envolvidos nessa relao somos chamados a confrontar.

    Cilliers (2003), ao discutir a relao entre saberes e complexidade, nosoferece uma boa chave de entrada. Ele chama a ateno para o fato deconhecimento ser uma das palavras que se tornaram mercadoria corrente emnossos tempos. Fala-se hoje amplamente em sociedade do conhecimento,gerenciamento de conhecimentos e novas ferramentas do conhecimento, de talforma a gerar o efeito de que o conhecimento algo que pode ser transacionadoe que existe independentemente do sujeito que sabe. Segundo o autor, oconhecimento, assim reificado, tende a ser visto como objetivo e neutro, nosendo afetado pela ordem da intersubjetividade.

    Quando, entretanto, se pensa em conhecimento como o resultado deum processo de interpretao, mudam-se os parmetros de compreenso.Conhecimento passa a ser visto como informao situada histrica, social eculturalmente por sujeitos igualmente situados. De fato, nem sujeito nemconhecimento podem ser vistos como entidades fixas e pr-determinadas. So,antes, entidades relacionais, tramas de relaes tecidas no contato com outrosconhecimentos, outros conhecedores e esto, portanto, permanentementesujeitos a crtica e reconstruo (THAYER-BACON, 2010).

    Pensar em conhecimento por essa perspectiva implica colocar no centroda reflexo a questo da significao, entendida como construo de sentidos.Se sujeitos e conhecimento so relacionais, assim o so tambm os sentidos quepermeiam as prticas de conhecimentos encenadas pelos diversos sujeitos nosdiferentes contextos. Uma vez que os significados so construdos dentro decontextos especficos, h sempre um limite para aquilo que se pode interpretar.

    1 Trabalho resultante de pesquisa de ps-doutorado realizado na Universidade deSo Paulo sob superviso do Prof. Dr. Lynn Mario T. M. de Souza e com apoiofinanceiro da Fapesp (processo n 2009/53830-5).

  • 943RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    Isto , h sempre envolvidas nesse processo operaes de incluso e excluso,de saber e no saber (ou no saber ainda), e de conhecimento e ignorncia.

    Conforme assinala Cilliers (2003, p. 187), no possvel fazer sentidodo mundo em toda sua complexidade, e isso implica uma necessria reduoda complexidade para que haja compreenso. O contexto limita o nmerode fatores, e deste modo torna o sentido possvel. O contexto pode mudar, claro, e dessa maneira envolve outros fatores. No entanto, o novo contextoenvolver novos limites. Ou seja, ao lidarmos com uma realidade mltiplae complexa, estamos sempre atribuindo sentidos a ela por meios finitos. O queno nos impede, evidentemente, de fazer deslocar tais limites, propondointerpretaes ao mesmo tempo tributrias de nossa trajetria situada eprojetivas de novas maneiras de significar os dados da realidade em que nosinserimos.

    levando em conta essa forma de compreender o que conhecimentoque se pode falar na atualidade e na relevncia do conceito de epistemologia.Conforme apontam Santos e Meneses (2009), ao produzir e reproduzirconhecimento, toda experincia social pressupe uma ou vrias epistemologias.Propondo uma redefinio do termo em relao tradio filosfica deorientao metafsica, afirmam os autores:

    Epistemologia toda a noo ou idia, refletida ou no, sobre ascondies do que conta como conhecimento vlido. por via doconhecimento vlido que uma dada experincia social se tornaintencional e inteligvel. No h, pois, conhecimento sem prticas eatores sociais. E como umas e outros no existem seno no interior derelaes sociais, diferentes tipos de relaes sociais podem dar origema diferentes epistemologias. (SANTOS; MENESES, 2009, p. 9).

    Assim, as diferentes experincias sociais so constitudas por meio deconhecimentos distintos, cada qual com os seus critrios de validade, que estosempre sujeitos a reconfigurao e redefinio. Da a ideia de os conhecimentosserem construdos em uma relao de diferena, ou como preferimos enfatizaraqui, conflito.

    Tal viso vem representar um questionamento da tradio filosfica quev no estabelecimento dos critrios universais e a-histricos que presidem definio da verdade (em oposio ao erro) o fundamento ltimo daepistemologia. Por essa concepo tradicional de epistemologia, o que nospermite distinguir o conhecimento sua equivalncia com a verdade. Somenteo que verdadeiro, ou se acredita ser verdadeiro, pode ser considerado

  • 944 RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    conhecimento. Cabe ao filsofo determinar racionalmente os critrios devalidade e verdade que estabelecem o que ou no conhecimento vlido, oque, de acordo com essa tradio, s possvel por meio de uma operaorepresentacionista correspondente s coisas l fora, tal como so elinguisticamente articulada (ALLEN, 2004).

    O paradigma que se consolidou nos ltimos dois sculos para a definiode tal verdade foi o da cincia moderna, o qual, por seu prprio trabalho dedepurao do contexto cultural e poltico da produo e reproduo doconhecimento (includos a os sujeitos que fazem cincia e que por ela soafetados), eliminou a possibilidade de se pensar em epistemologias no plural.No cerne dessa operao, o conhecimento corre o risco de se tornar puroracionalismo, pura tcnica, prescindindo da ao de sujeitos cognoscentes e suasrespectivas heranas scio-histrico-culturais.

    O paradigma que ganha cada vez mais fora nos dias atuais, no entanto,ir justamente acenar para a diversidade epistemolgica de nossas sociedades,a qual, longe de ser negativa, representa uma grande riqueza e um grandedesafio para a capacidade dos sujeitos de conferir sentido sua experincia. Nosdizeres de Santos e Meneses (2009, p. 12), [a] pluralidade epistemolgica domundo e, com ela, o reconhecimento de conhecimentos rivais dotados decritrios diferentes de validade tornam visveis e credveis espectros muito maisamplos de aes e de agentes sociais.

    Tal pluralidade, antes de sugerir um suposto relativismo epistemolgicoou cultural, clama por anlises mais complexas dos diferentes tipos deinterpretao e interveno que as vrias formas de conhecimento podemengendrar. O reconhecimento dessa pluralidade, alis, poder ser percebido noprprio interior da cincia pensemos aqui, particularmente, na forma comoa cincia lida com teorias conflitantes sobre um mesmo objeto , bem comona relao entre a cincia e outros conhecimentos o que se verifica, porexemplo, nos esforos empreendidos em tornar a cincia acessvel acomunidades de no especialistas, traduzindo-a sob a forma de conhecimentodo senso comum.

    Uma epistemologia que contemple a complexidade da experincia socialno incio do sculo XXI passa pelo reconhecimento da existncia de umapluralidade de conhecimentos to vlidos e legtimos quanto o conhecimentocientfico. Isso significa renunciar, conforme defende Santos (2007, p. 85-86), ideia de uma epistemologia geral, ou postular, em vez disso, umaepistemologia geral da impossibilidade de uma epistemologia geral.

  • 945RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    Conforme ressalta o socilogo portugus (2007, p. 86), [e]xistem em todoo mundo no s diversas formas de conhecimento da matria, da sociedade,da vida e do esprito, mas tambm muitos e diversos conceitos e critrios sobreo que conta como conhecimento (SANTOS, 2007, p. 86). Tratar-se-ia dereconhecer o que o autor chama de ecologia dos saberes.

    Numa ecologia dos saberes, no s os saberes se entrecruzam, mastambm as ignorncias, cujas formas so to heterogneas e interdependentesquanto as do conhecimento. Em funo dessa interdependncia, apossibilidade de se aprender certos saberes pode significar o desaprender deoutros. A ignorncia no necessariamente um estado original ou ponto departida para o saber. Ele pode bem ser o ponto de chegada resultante doesquecimento ou desaprendizagem envolvidos num processo dialtico deaprendizagem. Como bem conclui Santos (2007, p. 87), a utopia dointerconhecimento aprender outros conhecimentos sem esquecer osprprios.

    Compreender os conhecimentos como sendo elementos de umaecologia dos saberes envolve, em ltima instncia, consider-los sob o signoda incompletude. Dado que nenhuma forma particular de conhecimento podedar conta de todas as intervenes possveis no mundo, todas elas (mesmo asdo fazer cientfico) revelam-se, de alguma forma, parciais e incompletas,tornando-se antes construtos narrativos ou testemunhos, por parte dos sujeitosque os articulam, sobre a experincia socialmente compartilhada. Em outraspalavras, no h conhecimento sem que algum nele invista ou com ele seidentifique. Ou, ainda, no possvel abordar questes epistemolgicasindependentemente de questes ontolgicas; epistemologia e ontologia,tradicionalmente separadas, passam a ser reconsideradas como instnciasmutuamente constitutivas.2

    2 Numa linha de pensamento semelhante, o filsofo poltico Michael Oakeshott, aoproblematizar a dicotomia entre conhecimento tcnico e conhecimento prtico,mostra como nem mesmo o conhecimento tido como mais tcnico pode partir deuma total ignorncia para redundar em uma forma acabada de saber. Segundo oautor, aprender uma tcnica e, de resto, adquirir qualquer outra forma deconhecimento, no implica livrar uma mente vazia de uma condio de puraignorncia, mas antes reformar o conhecimento que de alguma forma j est l(OAKESHOTT, 1991 apud RAJAGOPALAN, 2003, p. 108-109).

  • 946 RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    Conhecimento como conflito e pluralidade

    Com base em tais reflexes, o que propomos neste artigo que acoexistncia de mltiplos saberes, engendrada numa rede complexa de inter-relaes, aponta inevitavelmente para aquilo que poderamos chamar deconflitos epistemolgicos. Dentro dessa perspectiva, a ideia de conflito, maisdo que barreira para uma comunicao idealmente no distorcida oucondio que meramente atesta a diversidade , tomada como ponto departida para uma proposta que leve de fato em conta a questo da diferena.Superar o mero reconhecimento da diversidade implica levar profundamentea srio a ideia de pluralidade, compreendendo-a como sendo a condioontolgica do mundo: parte de um comprometimento tico e poltico cujameta final no necessariamente o consenso (TODD, 2009, p. 100).

    Assim entendidos, conflito e pluralidade devem ser explorados em todoo seu potencial na relao pedaggica, o que implica uma reavaliao daspropostas curriculares e dos programas e contedos propostos pelas instituiesde ensino. Abordar o conhecimento em termos de conflitos epistemolgicosenvolveria uma mudana dos termos da discusso sobre o conhecimento: docontedo do conhecimento (o que se sabe) para a inseparabilidade entreconhecedor (quem sabe) e conhecido e para os contextos de produo e recepodesse saber. No se trata mais de determinar a verdade ou falsidade doconhecimento, mas antes o que constitui verdade para quem, em quemomento, e em que lugar.

    Tal mudana de foco no nos leva concluso, como se poderia aprincpio pensar, de que no existe mais verdade. Simplesmente a verdade setorna fraca, no sentido de que no mais tida como substncia eterna einvarivel, mas algo dinmico e mutvel. Ela est sempre presente, e semprenecessria, mas tambm algo em constante processo, sujeito a mudana algo que vlido dentro de um tempo e de um espao particulares, e que mobilizado e legitimado por comunidades interpretativas particulares. Nosdizeres de Souza (2009, p. 88, traduo nossa), as estruturas que produzemos fundamentos nos quais as verdades das comunidades esto baseadas (e emtermos dos quais as leituras e interpretaes so consideradas vlidas) precisamser vistos como contingentes (historicamente variveis e contextualmentedependentes).

    Com efeito, se o foco recai apenas no que se sabe, perde-se de vista ossujeitos que sabem e os lugares a partir dos quais eles sabem. J quando nosvoltamos para outras formas de conhecimento outras do ponto de vista de

  • 947RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    quem enuncia de um locus sempre situado possvel perceber como o queparece ser o mesmo fenmeno pode ser visto de perspectivas e locais bastantedistintos. Se no h uma verdade nica, ento h de se confrontar com asdiferenas percebidas nessas outras verdades e relacion-las aos diferentescontextos que as produziram. O resultado desse processo aponta para oreconhecimento do conflito dos diferentes saberes.

    Nesse sentido, mudanas contextuais implicam a necessidade de umapermanente reavaliao da validade das verdades construdas localmente.Conhecimentos h tempos tidos como vlidos e, portanto, verdadeiros,podem j no mais o ser. E isso s pode de fato se atestar nas prticas concretasque envolvem sujeitos que sabem e coisas que se sabem, que j se sabiam, ouque esto por saber.

    Quando falamos em coexistncia de saberes no contexto de prticaseducacionais (institucionalizadas ou no), podemos abord-la em suas diversasdimenses. Podemos pensar, por exemplo, como a coexistncia entreparadigmas que subjazem ao modo como o conhecimento cientfico foiconstitudo se reflete na constituio de um currculo escolar por disciplinas.

    Antes, porm, de nos voltarmos para a discusso sobre o carterrelacional da prtica pedaggica em termos mais gerais, e sobre o ensino delngua inglesa no contexto do ensino superior no Brasil propriamente dito,passemos, luz da mudana de paradigmas epistemolgicos esboada acima,a uma considerao mais detida sobre o estatuto dos saberes a que os sujeitosde tais prticas tm tido que se confrontar nos tempos atuais.

    Novos paradigmas epistemolgicos

    Um primeiro aspecto relativo configurao especfica que os saberesvm assumindo nas sociedades contemporneas o que chamaremos deprocessos de globalizao. Particularmente nas ltimas duas dcadas, omundo tem experienciado um deslocamento das fronteiras e limites entre asdiversas culturas, tornando mais visvel o carter hbrido e instvel de estruturastidas como homogneas. A incerteza quanto ao que conta como conhecimentovlido acentua-se na medida em que as culturas se colocam em maior contato,tornando-se mutuamente afetadas e at mesmo interdependentes.

    Epistemologias das do tipo que concebem o tempo e o espao comoconceitos progressivos, lineares, persistem em paralelo a epistemologias queenfatizam, em grau crescente, a variabilidade, a complexidade, a conectividadee a intercomunicao globais (FEATHERSTONE; VENN, 2006). O

  • 948 RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    racionalismo moderno, como estrutura epistemolgica que sustenta boa parteda lgica globalizante, torna-se mais autorreflexivo e sensvel aos diversoscontextos locais em que ele mobilizado (SCHOLTE, 2005). Para alm daconsiderao dos processos que enfatizam o fluxo planetrio de capital eformas associadas de governabilidade, ganham papel de destaque leituras queclamam por uma reviso do papel do conhecimento e das identidades nummomento histrico pautado pelas noes de diversidade e multiplicidade.

    O que poderia nos levar crena de que compartilhamos cada vez maisuma experincia universal um conjunto de prticas e relaes homogeneamenteglobalizadas revela um estado de coisas um tanto mais complexo: diferenteshistrias globais e formas alternativas de modernidades convivem compressupostos que insistem na ideia do universal (FEATHERSTONE; VENN,2006). Saberes assentados sobre um trabalho histrico operado pela racionalidadetcnico-cientfica se veem confrontados por saberes contra-hegemnicos. Sabereslocais tornam-se visveis e colocam-se em contraposio a saberes universalizantes,numa relao aparentemente dicotmica, mas que, acreditamos, acaba por noresistir a uma desconstruo desse mesmo dualismo: todo saber universal umsaber local que se legitima por meio de prticas hegemnicas e, portanto, desiguaisde poder (SANTOS, 2006, p. 396).

    O modo como, tradicionalmente, o conhecimento tem sidodesconectado do conhecedor e do lugar essas instncias sendo tratadas comoindependentes impede a compreenso de que o global sempre o local dealgum; ou seja, o global ele prprio produzido por algum em um dadocontexto (CANAGARAJAH, 2005). No discurso ps-colonial, por exemplo,sempre se soube qual era o lugar de onde se falava: o colonizador sabia o lugarde onde o dominado falava, de dentro de um determinado lugar deconhecimento, e assim inversamente. Mas esses lugares sempre coexistiramcom outros conhecimentos, os quais eram ignorados. A lgica, enunciadasempre a partir de uma epistemologia dominante, era: algumas pessoassimplesmente sabem; outras, no.

    O discurso homogeneizante sobre a globalizao ainda pressupe umcentro a partir do qual o conhecimento emana, gerando certezas bem segurassobre os diagnsticos a respeito do que o mundo precisa. Na globalizao, olocal apenas um acento, um adicional, ou um desvio do padro. Noentanto, tudo o que se pode saber o que o contexto local torna visvel: aquiloque nasce sempre situado, aquilo que os loci de enunciao permitem discernirna forma de uma traduo.

  • 949RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    De fato, conforme sinaliza Canagarajah (2005), uma viso celebratriado fenmeno da globalizao frequentemente perde de vista as contradiese paradoxos a implicados. Certos discursos sobre a globalizao nos fazem crernum modelo pluralista de mundo em que as diversas comunidades sesustentam na relativa autonomia de suas identidades e de seus valores e sabereslocais. Entretanto, o modo como esses saberes circulam contradiz tal noo,revelando uma imposio unilateral de discursos homogneos e tradiesintelectuais por parte de algumas poucas comunidades dominantes(CANAGARAJAH, 2005, p. xiv, traduo nossa). Imperativa, de acordo como autor, a necessidade de uma maior negociao entre processos globais econdies locais, levando a uma compreenso mais crtica e contextualizadado funcionamento complexo dos processos de globalizao.

    Um segundo aspecto relativo atual configurao dos saberes, e que estintimamente ligado aos processos de globalizao, o modo como os avanosdas tecnologias digitais de informao tm impactado as formas de produoe recepo de conhecimento, bem como as prticas sociais a implicadas.Conforme ressalta Castells (1996), o conhecimento e a informao soelementos centrais em qualquer modo de desenvolvimento, uma vez que osmodos de produo so sempre baseados em algum nvel de conhecimento noprocessamento de informaes. No entanto, o que h de especfico nofuncionamento da chamada sociedade do conhecimento o fato de oconhecimento agir sobre si prprio como a principal fonte de produtividade.A aparentemente ilimitada capacidade dos sistemas de informao dearmazenar e processar grandes quantidades de dados e a possibilidade de acessaras representaes culturais do mundo todo textos, imagens, artefatos,produtos miditicos com extrema facilidade e rapidez apontam para umaredefinio do prprio trabalho de classificao e validao do conhecimento.

    Lankshear, Peters e Knobel (2000) nos lembram como, atrecentemente, o livro e a palavra impressa constituam o paradigma demediao para a produo e transmisso do conhecimento conhecimento queera valorizado, prioritariamente, em seu contedo proposicional e denotativo,ou seja, o conhecimento estabelecido nas diversas disciplinas e submetido aoscritrios cientficos de validade. Ora, sob o impacto das mudanas rpidas ede largo alcance propiciadas pelos avanos tecnolgicos, sobretudo no queconcerne s tecnologias digitais de informao e comunicao, tais pressupostossofrem um profundo abalo. No apenas as cincias, elas prprias, passam acontar com esses avanos como parte essencial de seu fazer, mas tambm as

  • 950 RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    relaes e prticas sociais em seu espectro mais amplo a includas,obviamente, as prticas pedaggicas so afetadas por uma nova forma de seproduzir conhecimento, de se construir sentido. Tal fenmeno s se acentuacom a universalizao potencial do acesso quelas tecnologias, das quais ainternet certamente a ferramenta emblemtica.

    Compreender os modos pelos quais os saberes se configuram na era dodigital implica, segundo Lankshear, Peters e Knobel (2000), repensar aepistemologia tal como tradicionalmente tem sido concebida. Trata-se de olharpara os saberes como prticas que refletem uma srie de estratgias que seapropriam das informaes para transform-las em conhecimento prticasque envolvem coletar, processar, editar, enviar e receber um universo dereferncias que nos chegam das mais diversas fontes e com as quais temos quelidar medida que agimos em nossos contextos. Trata-se de perceber como oconhecimento, para alm de seu contedo proposicional, pode ser construdoperformativamente, isto , em uma epistemologia da performance conceitoinspirado em Wittgenstein, para quem saber envolve fazer, agir, descobrir asregras do jogo enquanto se joga. Prticas cada vez mais comuns, tais comoa bricolagem (aqui entendida como coleo de elementos), a colagem (prticade transferir materiais e recursos de um contexto para outro) e a montagem(prtica de disseminao de formas emprestadas em um novo contexto), so,ainda segundo os autores, formas de conhecer pela ao, tipicamentemobilizadas pelos indivduos na falta de padres claros de como procederdiante de novas formas de saber.

    Na era digital, torna-se mais evidente o fato de que o conhecimento construdo de forma coletiva; ele torna-se distribudo (no sentido de que construdo colaborativamente) e disperso (no sentido de se encontrar maisamplamente disponvel). A cognio se d em rede: ainda que os caminhospercorridos pelos conhecedores sejam trilhados individualmente, a cognioenvolve o trabalho coletivo de mentes e mquinas que convergem para uma formaparticular e transitria de montagem (assemblage) de conhecimento. Ganha foranessa configurao de saberes um novo ethos marcado por formas proprietrias,projetivas e participatrias de construir sentido (LANKSHEAR; KNOBEL, 2011,p. 81-83) formas que desestabilizam vises convencionais de autenticidade,autoria e propriedade intelectual, entre outros aspectos do fazer criativo.

    Pensa-se aqui no conhecimento como possibilidade de uma produoa posteriori, sem o compromisso de que ele reflita uma verdade preexistente ouum estado original das coisas. Ns montamos [assemble] um ponto de vista,uma perspectiva, um ngulo sobre uma questo ou histria. Isso toma a forma

  • 951RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    de mais produo, no a captura ou espelhamento de algum estado de coisasoriginal (LANKSHEAR; PETERS; KNOBEL, 2000, p. 38, traduo nossa,grifo dos autores). Em ltima instncia, constitui-se um autntico desafiodesconstruir os investimentos epistemolgicos que insistimos em preservar(dadas as novas configuraes do conhecimento) e, nesse processo, o prprioconceito de verdade.

    Ainda sobre o carter coletivo e social da construo do conhecimento,vale mobilizar um conceito que nos parece operante nessa discusso. Referimo-nos aos espaos de afinidade de Gee. Um espao de afinidade

    um local (fsico, virtual, ou um misto dos dois) no qual pessoasinteragem umas com as outras, frequentemente distncia (isto , nonecessariamente presenciais, embora tais interaes tambm possam estarenvolvidas), primordialmente por meio de prticas compartilhadas ouum esforo comum (que implique prticas compartilhadas), e apenassecundariamente por meio de cultura, gnero, etnia compartilhados, ourelacionamentos presenciais. (GEE, 2004, p. 98, traduo nossa).

    Diferentemente do que ocorre em uma comunidade, em seu sentidomais tradicional, o que rene as pessoas em um espao de afinidade umobjetivo, interesse ou causa comuns, e no o fato de estarem ligadas entre sipelo espao geogrfico ou pelos laos que as unem pessoalmente. Isso significaque o conhecimento em um espao de afinidade tende a ser distribudo entreas pessoas, as ferramentas e as tecnologias (no estando, portanto, concentradona mo de um ou poucos indivduos), ao mesmo tempo em que disperso,com seus participantes podendo buscar conhecimento em fontes outras, nocircunscritas ao espao constitudo.

    Mas o que mais propriamente aproxima o espao de afinidade dascaractersticas de um novo paradigma epistemolgico, conforme vimosdiscutindo at aqui, o fato de que boa parte do conhecimento gerado entreseus participantes se constri de forma tcita, por meio de prticas rotineirasque vo se sedimentando ao mesmo tempo em que podem se submeter aconstante renegociao. Tal conhecimento se d mais pela prtica guiada poroutros participantes (e pelos prprios recursos utilizados no espao) do quepropriamente pela instruo dirigida, prvia e externa a essa prtica.

    O modo como os saberes so produzidos e circulam em um espao deafinidade, ainda que marcado pelos conflitos e as inevitveis relaes de poderinerentes a qualquer afiliao social, aponta para uma possvel reconfigurao doespao da sala de aula como local tradicionalmente consagrado transmisso do

  • 952 RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    saber estruturado, como ele , nas formas epistemologicamente j saturadas deaprender e ensinar. Pensar a sala de aula como um espao de afinidades constitui,desde j, um pensamento promissor no contexto de uma educao que precisaresponder s mudanas por que hoje passamos na prpria forma de se relacionarcom os dados da realidade mudanas essas de natureza epistemolgica eontolgica, conforme j sugerimos.

    Prtica pedaggica e confronto de saberes

    As tenses inerentes transio de um paradigma ainda prevalente (omoderno) para um outro que se delineia em nossos dias (chamemo-no,provisoriamente, de ps-moderno, sem adentrarmos na discusso complexasobre as diversas concepes pelas quais o termo tem sido entendido) clamampara uma ampliao da compreenso do que seja o trabalho do educador,levando-nos a consider-lo em sua natureza tica e poltica. A competncia tcnicapressuposta na relao pedaggica elemento necessrio, mas no suficiente, paraa realizao do potencial emancipatrio dos processos educativos.

    Freitas (2009, p. 69) pontua que a atuao docente, enquanto atividaderelacional, implica a complementaridade da ao discente, cuja condio depossibilidade no se encontra exclusivamente atrelada qualidade da atuaopedaggica, mas refere-se multidimensionalidade dos aspectos queconfiguram a condio de educadores e educandos como sujeitos deconhecimento.

    Ora, tal multidimensionalidade aponta diretamente para o cartersituado e conflitante dos conhecimentos que so mobilizados em cadainterao pedaggica. Mas, parece-nos ser preciso antes perguntar: queconhecimentos so (ainda) legitimados? Como tm se relacionado educadorese educandos no que se refere aos saberes que circulam no ambiente escolar?Como poderia ser diferente tal relao em face do novo cenrio epistemolgicocom o qual nos confrontamos?

    Tradicionalmente, o conhecimento tratado na escola como odomnio dos fatos objetivos. Normalmente externos e descontextualizados emrelao s experincias sociais e intersubjetivas dos sujeitos aprendentes, oscorpos de conhecimento estabelecidos pelas diversas disciplinas tendem a serimpostos aos educandos, tornando-se imunes a possveis questionamentos ounegociao. O conhecimento, dentro dessa estrutura epistemolgica, deve sertransmitido, adquirido e acumulado, e o espao para uma construoverdadeiramente contextualizada dos diversos saberes praticamente inexiste.

  • 953RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    Observa-se a a persistente lgica iluminista segundo a qual oconhecimento um corpo de saberes racionalmente constitudo numaoperao em que o sujeito conhecedor e o objeto conhecido so separveis e,portanto, independentes. Questes como por que esse conhecimento? ou a queinteresses serve esse conhecimento? tm muito pouca importncia diante danfase em questes como qual a melhor maneira de ensinar tal contedo?(GIROUX, 1997, p. 45-46).

    Ora, nesse modelo educacional tende-se a negar o conhecimento comouma prtica assentada na experincia scio-histrica, e que se d de formadistribuda, em redes. O conhecimento tcito que os aprendizes trazemconsigo para o ambiente escolar obscurecido ou simplesmente anulado namedida em que se impem, desde as primeiras sries do ensino fundamental,os rituais de transmisso e avaliao os jogos de linguagem dos saberes ditoacadmicos (GEE, 2004).

    No caso da lngua inglesa, especificamente, todo um conhecimento tcitoque os alunos de ensino fundamental e mdio podem trazer para a sala de aulaa partir de suas vivncias por exemplo, com prticas de letramento digitalenvolvendo direta ou indiretamente o uso dessa lngua tende a ser poucomobilizado, ou simplesmente desconsiderado, em funo de uma estruturacurricular que favorece um sequenciamento linear e descontextualizado deaprendizagem, pautado basicamente em contedos gramaticais.

    Em contraposio a esse cenrio, acreditamos que a experincia do ensino-aprendizagem envolve uma rede complexa de relaes cognitivas, socioculturaise identitrias, para a qual cada indivduo traz uma contribuio indispensvel,embora sempre parcial e incompleta. Os saberes que os aprendizes carregamconsigo para o ambiente escolar so evidncia de que algo foi aprendido.Contudo, qualquer forma de aprendizagem um processo que se experienciacontinuamente, nas diversas vivncias, e, portanto, est sujeito a mudana, nonecessariamente sob a forma de transferncia do saber existente (a qual a escolase arroga o direito de realizar), mas fundamentalmente sob a forma de um abrir-se para o outro, para o outro diferente, para outro(s) novo(s) saber(es),diferente(s). Trata-se de conhecimento sempre a se construir e a se reconstruir.

    Conforme enfatiza Freire (2005, p. 152), preciso respeitar oconhecimento feito de experincia, o conhecimento do senso comum que oaluno traz para a sala de aula, mas ir, aos poucos, rigorizando os saberes. Pode-se pensar, por essa perspectiva, que em um processo educativo preocupado comos desafios epistemolgicos que nosso tempo apresenta, importante semprelevar em conta o conhecimento cultural dos educandos: conhecimento tcito

  • 954 RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    ou saber ingnuo, na concepo no derrogatria atribuda por Freire , o qualse toma por natural, irrefletidamente, nas prticas cotidianas. Mas, justamente,a partir da reflexo sobre esse conhecimento cultural, busca-se fomentar oconhecimento crtico: conhecimento que se sabe conhecimento, conhecimentoque se entende como no sendo Verdade, mas sim construo, nunca acabada.Do reconhecimento do carter ontolgico dos saberes ingnuos saberes quesimplesmente so , contemplamos a possibilidade de uma reflexo sobre ossaberes enquanto construtos saberes que podem ter servido a nossos propsitos,mas que no necessariamente foram sempre os mesmos; saberes que, no contatocom outros saberes, podem tambm se modificar.

    Um fazer pedaggico que leve a srio tais questes deve estar aberto autocrtica, s formas distintas e sempre contextualizadas de fazer sentido. Nose trata de uma abertura benevolente ou tolerante ao diferente, umaabertura infinita a novas possibilidades. Sendo a compreenso semprecontextual e finita, somente uma escuta atenta aos limites da interpretao o que implica, fundamente, reconhecer-se na prpria escuta como vindo jde algum lugar pode efetivamente provocar deslocamentos e mudana emum contexto educacional.

    Analisando o modo como os currculos escolares tm tradicionalmentesido concebidos e mobilizados em sala de aula, Den Heyer (2009) aponta paraaspectos bastante relevantes nesta nossa discusso. Segundo o autor, quandovisto como objeto, o currculo enseja formas particulares de relao nas quaisos alunos podem assumir uma atitude de distanciamento como resultado doprprio processo de aquisio do conhecimento. Ao longo do processoinstitucional de frequentar a escola por anos, os alunos vo adquirindo aexpectativa de encontrar metodologias e respostas para as questes que nodependem de contexto. De fato, muitos desses alunos tm sido bem sucedidos,ou planejam ser bem sucedidos, exatamente porque eles so pouco instados ase comprometer com o que esto aprendendo. Ainda de acordo com DenHeyer, os professores tendem a posicionar seus alunos a assumir uma relaode leitores (readerly relationship) dos textos do currculo e de sua prpriaaprendizagem. O currculo entendido, assim, como um conjunto dedisposies, habilidades ou formas de saber a serem transmitidas e adquiridas,e frente s quais no se assume qualquer implicao.3

    3 Evocando Freire (2005) mais uma vez, tal forma de tratamento dos saberes seassemelha ao que o educador brasileiro chamava de concepo bancria de educao.

  • 955RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    Como contrapartida, o autor defende que se deve repensar a organizaodos currculos no sentido de se promoverem encontros de escrita-enquanto-investigao (writerly encounter-as-inquiry) com o conhecimento que j sepossui, e que no pertence a ningum individualmente. A possibilidade de taisencontros reflete uma viso de saber como algo que desestrutura, que removeo sujeito de sua zona de conforto, exigindo dele um engajamento, ou seja, umcompromisso com o que j (se) sabia e o que ainda no sabia e est a aprender.

    Em outras palavras, mais do que adquirir habilidades (skills) ou contedosdescontextualizados em relao sua experincia, os alunos deveriam se sentirativamente implicados naquilo que esto aprendendo. Isso significaria umaproblematizao do conceito de currculo, bem como uma reviso das prticaspedaggicas associadas, no sentido de promover uma aproximao orgnica comos saberes tcitos, conforme definidos anteriormente aproximao que refleteuma busca de se aprender com, mais do que propriamente aprender sobre. Tratar-se-ia de chamar a ateno dos alunos para os modos pelos quais nossas prticasde fazer sentido se constituem como um conjunto de eventos scio-histricoscompartilhados, que requerem constante reavaliao em resposta a questesprementes de nossa experincia social.

    Como resultado desse processo, colocar-se-ia em evidncia o modocomo aquilo que sabemos no pertence somente a ns, mas foi antesconstrudo coletivamente e, portanto, nos implica a todos, numa operao que ao mesmo tempo tica e autorreflexiva. Nos dizeres do autor: O objetivoaqui ajudar os alunos a se imburem de contemplao tica e a participaremmais conscientemente de questes da vida social interpretando os modos comoestamos todos implicados nas condies materiais que do forma ao que ecomo sabemos (DEN HEYER, 2009, p. 34, traduo nossa).

    A questo da implicao ativa de alunos e professores com os saberes queeles mobilizam no ambiente educacional nos remete ainda ao pensamento deAppadurai (2006) sobre o direito pesquisa. De acordo com o autor, emqualquer carreira, negcio ou emprego, mesmo os mais modestos, os jovensso confrontados com questes que transcendem suas prprias experinciaslocais e que esto permeadas por foras e fatores de ordem global. Mtodosespecializados de produo, novas tecnologias de comunicao, call centers,formas de consumo e investimento financeiro cada vez mais diversificadas soalguns dos exemplos de saberes com os quais se tem de lidar em nossassociedades e cuja compreenso se torna cada vez mais necessria.

    A demanda de expandir os horizontes de conhecimento, no sentido deque as pessoas possam saber onde encontrar as informaes, como interpret-

  • 956 RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    las, e como torn-las teis s diversas realidades, implica escolhas nas quais aprtica da pesquisa pode auxiliar diretamente. Pesquisa aqui, segundoAppadurai (2006), deve ser entendida no no sentido convencional (emboraigualmente importante) de produzir conhecimento novo e original por meiode investigao conduzida na academia ou em outras instituies baseadas noconhecimento, mas antes, em um sentido desparoquializado, como algo quefaz parte integrante do cotidiano das pessoas. Da poder se falar em pesquisacomo um direito.

    A possibilidade de oferecer aos indivduos oportunidades sistemticas deampliarem o horizonte atual de seus conhecimentos, a fim de que possam obterconhecimentos de que precisam e de que ainda no dispem, requer, de fato, umesforo constante de professores e alunos dentro de qualquer estrutura educacional,do ensino bsico at o ensino superior. No contexto especfico dos programas deformao de professores, o direito pesquisa, no sentido proposto por Appadurai,se apresenta como um desafio em dois nveis interligados. Ele se d na prticacotidiana da sala de aula, onde o conhecimento ainda bastante centralizado e noto facilmente multiplicado (quanto mais, contestado) e, em um nvel talvez maisfundamental, ele se manifesta nos prprios princpios que norteiam as instituies.No caso de boa parte das universidades privadas (mas no somente elas), observa-se a tendncia de abraar de forma no problemtica noes comoempreendedorismo e empregabilidade, e vend-las como palavras de ordem nacompetio cada vez mais acirrada por alunos, ao invs de se incentivar umcomprometimento integral e sustentado com a pesquisa, seja ela no sentidoacadmico propriamente dito ou em suas formas mais desparoquializadas. Talcomprometimento com o direito pesquisa implicaria um esforo coletivo detodos os sujeitos envolvidos com a instituio diretores, coordenadorespedaggicos, professores, alunos e funcionrios no caso de o objetivo ser mesmoo de preparar indivduos para os desafios sempre mutantes dos tempos globais.

    Pesquisar, nessa viso, torna-se chave para a quebra do ciclo deapropriao e reproduo do conhecimento pelas estruturas desiguais de poderque regem nossas prticas sociais. Mas o conhecimento que ns queremos quea pesquisa produza no somente aquele tipo de conhecimento que ainda fortemente restrito academia ou instituies de grande influncia, e que produzido, instrumentalizado e distribudo conforme os protocolos racionaisda cincia e da eficincia neoliberal, mas fundamentalmente aqueleconhecimento que pode ser gerado por modos mais horizontais deintercmbio, por meio dos quais cada indivduo envolvido no processo possa

  • 957RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    contribuir com sua parcela de conhecimentos e, o que mais importante,exercitar sua capacidade tornada possvel somente por meio da pesquisa detransformar, adaptar, aperfeioar e, em ltima instncia, revisar seus prpriossaberes.

    Como educadores, somos instados a trabalhar para que essa forma depedagogia local-global seja de fato exercida, o que, segundo Appadurai (2006),criaria novas formas de dilogo tanto na esfera bem circunscrita de nossasprticas pedaggicas (o que, obviamente incluiria nossos alunos/pesquisadores)quanto na sociedade como um todo, contribuindo, dessa forma, para umadescentralizao dos saberes e para a construo de uma estrutura mais justa edemocrtica de produo e circulao de conhecimento.

    possvel que encontremos em propostas como essa uma compreensoalternativa a um modelo globalizante prevalente em nossos dias, segundo o qualos indivduos devem estar prontos para as demandas cada vez mais exigentesdo mercado de trabalho internacional boa parte das quais se conciliamperfeitamente com um iderio neoliberal de funcionamento da sociedade(COPE; KALANTZIS, 2000; SPRING, 2008). Talvez o que se estejapropondo aqui , antes, a preparao de aprendentes para o imprevisvel e oimpondervel. Como diria Bruner (1973), em um visionrio insightproduzido h quarenta anos, uma das funes da educao do e para o futuroseria a de treinar indivduos para a realizao de servios imprevisveis atosque so contingentes a uma resposta feita por algum ou algo a um atoanterior. Que atos precisamente sero esses, e a que demandas de pesquisa (nosentido amplo, de Appadurai) eles respondero, s ser possvel saber por meiode seu exerccio nas vivncias, pela sua co-construo em prticas sociais nasquais o contingente se estabiliza por um momento para logo se transformarem uma nova (ainda no prevista) exigncia.

    Formao de professores e o fazer pedaggico como pesquisa

    Conduzindo nosso foco para a formao de professores de lnguaestrangeira no contexto dos programas de licenciatura, parece-nos bastantedesafiadora a proposta de que esses futuros professores desenvolvam, o maiscedo possvel, um olhar para o fazer pedaggico como processo de pesquisa.Seria interessante que nas disciplinas de licenciatura mas tambm nas delngua e literaturas estrangeiras fossem oferecidas oportunidades sustentadasde reflexo sobre como os alunos podem se tornar investigadores de seusprprios contextos, tanto em seu estgio atual (como professores em

  • 958 RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    formao) como em suas prticas pedaggicas propriamente ditas (futuras,como profissionais contratados; ou atuais, como estagirios).

    A proposta teria um longo e largo alcance: envolveria educadores eeducandos, em todas as etapas do processo educativo, na busca de respostaspara as questes que lhes afetam enquanto sujeitos situados e quecompartilham conhecimento bem nos moldes do que, como vimos,Appadurai prope. Esse olhar crtico-investigativo, que se iniciaria de formamais consistente durante a formao de futuros docentes na licenciatura, seestenderia para a atuao profissional desses indivduos nos diversos contextosem que se encontrassem, inclusive de forma a que tambm os alunos dessesfuturos professores se sentissem co-construtores dos saberes a que estivessemexpostos e responsveis pelas aes da decorrentes.

    Quando nos cursos de licenciatura em lngua estrangeira abre-se espao,por exemplo, para a apresentao e discusso das diversas abordagens emetodologias de ensino incluindo a a anlise dos documentos oficiais queestabelecem parmetros curriculares para o ensino da lngua , instaura-se umaoportunidade nica para uma problematizao do prprio conceito demtodo, ou da prpria concepo sobre o que significa ensinar, o que significaaprender uma lngua estrangeira. Porm, conquanto se priorize, nas disciplinasde formao, o conhecimento tcnico-metodolgico da atividade profissionaldocente a abordagem da didtica, dos procedimentos disciplinares, do comoaplicar tal ou tal metodologia) , corre-se o risco de repetir o mesmo erroobservado no trabalho tradicionalmente conduzido nas disciplinas tidas comomais propriamente conteudsticas, relegando-se, assim, ou simplesmente seignorando a questo epistemolgica da coexistncia de diferentes estatutos doconhecimento na prtica educativa, tal como vimos discutindo at aqui.

    A questo torna-se particularmente visvel no que se refere autorreflexidade que examina criticamente o carter situado do conhecimentoe a implicao inextricvel dos sujeitos conhecedores como suas formas de saber.As resistncias e obstculos em relao aprendizagem de uma lnguaestrangeira, o relativo desprestgio da disciplina dentro dos currculos, ou oincontornvel desafio de lidar com a multiplicidade de variantes, contextos eformas de uso da lngua mais ou menos normatizadas, mais ou menosprximas de padres tidos como ideais (associados usualmente figura dofalante nativo) so alguns dos aspectos que constituem a relao que ofuturo professor de lngua tem com sua formao docente e que emergem comfrequncia em seus discursos (GRIGOLETTO, 2003; 2007). Tais aspectos

  • 959RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    entram em jogo, de forma mais ou menos consciente, mas sempre constitutiva,na rotina das experincias em sala de aula na licenciatura e nos estgiossupervisionados, e seguem confrontando os sujeitos dessas prticas ao longode toda uma carreira profissional.

    A pesquisa sobre aquisio e ensino-aprendizagem de lnguas estrangeirasainda segue pautada, em alguma medida, pela busca de se identificar padres decomo bem ensinar de se detectar aquilo que os professores fazem, ou poderiamfazer, com eficincia e que leva ao sucesso dos alunos; neste caso, aquilo que osalunos so capazes de reproduzir sobre o saber transmitido, o que pode serverificado por meio de sua performance em testes ou formas similares de avaliaode sua competncia lingustica (no raro baseadas em modelos associados a umanica variedade da lngua estrangeira, supostamente mais prestigiada). Johnson(2009) nos lembra como, historicamente, a formao de professores tem seassentado sobre a noo de que o conhecimento sobre ensino e aprendizagem transmitido por especialistas, normalmente sob a forma de leituras tericas, emapresentaes em eventos acadmicos ou em oficinas de capacitao profissional situaes que, em muitos casos, se afastam consideravelmente de determinadoscontextos de sala de aula. Presume-se, por essa perspectiva, que ideias e conceitosaprendidos podem ser transportados de um local e de um tempo para outro, deforma abstrata e homogeneizante, tornando-as generalizveis e, portanto,transferveis para situaes de uso no mundo real.

    Para que se pudesse levar em conta o que a autora chama de posturaepistemolgica interpretativa (JOHNSON, 2009), foi preciso que houvesseuma mudana de foco da mera observao do que os professores fazem parauma pesquisa de cunho etnogrfico baseada na associao entre observao,descrio e entrevistas com professores sobre por que fazem o que fazem. Nolugar de tentar antecipar o que estes fazem ou deveriam fazer, a pesquisa decunho interpretativo se interessa em revelar o que os sujeitos j sabem e socapazes de fazer, e que sentido do a seu trabalho nos contextos particulares emque atuam.

    No entanto, essa base de conhecimento que sustenta as prticas e norteiaas decises desses profissionais em seus contextos de prtica no pode serentendida como uma entidade esttica ou neutra. Ela est, antes, alicerada emcertos valores, pressupostos e interpretaes que so compartilhadas por umacomunidade interpretativa particular, os quais, por sua vez, se assentam sobreperspectivas epistemolgicas particulares perspectivas sobre o que conta comoconhecimento, o que conta como saber, e como esse saber produzido

  • 960 RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    (CANAGARAJAH, 2005). O modelo epistemolgico que prevaleceu,historicamente, na base de conhecimento que norteia a formao de professores o modelo positivista, por meio do qual se compartimentalizam as disciplinas,os mtodos e contedos, numa operao que insiste em separar os saberes deseus contextos de prtica, assumindo que as teorias gerais so aplicveis aqualquer situao e que os professores podem ser equipados com tudo o queprecisaro saber e ser capazes de colocar isso em prtica ao longo de suas vidasprofissionais (JOHNSON, 2009). Formar-se professor, nessa lgica, passarpor um treinamento cujos princpios, mtodos e procedimentos podero sercolocados em prtica no mundo real da sala de aula, esteja ela onde estiver.O desafio que se coloca hoje, porm, talvez como nunca antes, o de promoverum dilogo possvel entre o local e o global dos saberes, de modo a que no seanule um nem se absolutize o outro.

    Consideraes finais

    Interromper o ciclo de reificao e universalizao dos saberes implicaum olhar bastante mais complexo para a formao de professores. No caso doscursos de licenciatura em lngua estrangeira, especialmente, acreditamos queesse movimento se faz necessrio a partir da investigao da prpria relao queos futuros docentes tm com a lngua (materna e estrangeira), em seus diversosdomnios e espectros de uso. A investigao sobre o que j se sabe, tanto emtermos de lngua quanto sobre a lngua e sobre como se aprende ou se ensinano deve se resumir a uma avaliao sobre o grau de ingenuidade dos saberes(para retomar o conceito freiriano) e a decorrente necessidade de que estes setornem mais rigorosos. Tampouco se trata de corrigir a trajetria de umafalsa conscincia (nos termos de uma teoria clssica de ideologia).

    A autorreflexidade, por parte dos sujeitos da prxis pedaggica, quantoao estatuto de seus prprios saberes e de saberes (dos) outros deve visar maisalm: deve se orientar no sentido de favorecer a percepo crtica desses sujeitosa respeito da contingncia de seus saberes e da condio de radical localidadede quem sabe. Deve, enfim, levar em conta o fato de que lidamos com umaherana epistemolgica que nos foi legada de algum lugar herana que noschega ancorada em uma tradio, historicamente sedimentada e coletivamenteconstruda, cuja consequncia mais danosa de nos enredarmos em nossasconvices e nos tornarmos refratrios a escutar as convices dos Outros.

  • 961RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    Referncias

    ALLEN, B. Knowledge and Civilization. Boulder; Oxford: Westview, 2004.

    APPADURAI, A. The Right to Research. Globalisation, Societies and Education,v. 4, n. 2, p. 167-177, Jul. 2006.

    BRUNER, J. The Relevance of Education. New York: Norton, 1973.

    CANAGARAJAH, S. Introduction. In: ______ (Org.). Reclaiming the Local inLanguage Policy and Practice. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates, 2005.p. xiii-xxx.

    CANAGARAJAH, S. Reconstructing Local Knowledge, ReconfiguringLanguage Studies. In: ______ (Org.). Reclaiming the Local in Language Policyand Practice. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates, 2005. p. 3-24.

    CASTELLS, M. The Rise of the Network Society The Information Age: Economy,Society and Culture. Oxford: Blackwell, 1996. v. 1.

    CILLIERS, P. Por que no podemos conhecer as coisas complexas completamente?In: GARCIA, R. L. (Org.). Mtodo mtodos contramtodo. So Paulo: Cortez,2003. p. 181-191.

    COPE, B.; KALANTZIS, M. (Ed.). Multiliteracies: Literacy Learning and theDesign of Social Futures. London: Routledge, 2000.

    DEN HEYER, K. Implicated and Called Upon: Challenging an EducatedPosition of Self, Others, Knowledge and Knowing as Things to Acquire. CriticalLiteracy: Theories and Practices, v. 3, n. 1, p. 26-35, 2009.

    FEATHERSTONE, M.; VENN, C. Problematizing Global Knowledge and theNew Encyclopaedia Project: An Introduction. Theory, Culture & Society, v. 23,n. 2-3, p. 1-20, 2006.

    FREIRE, P. Pedagogia da tolerncia. So Paulo: Editora da Unesp, 2005.

    FREITAS, A. L. S. Um ensaio sobre a cegueira e o conhecimento. In: ______;MORAES, S. C. (Org.). Contra o desperdcio da experincia: a Pedagogia doConflito revisitada. Porto Alegre: Redes, 2009. p. 41-75.

    GEE, J. P. Situated Language and Learning: A Critique of Traditional Schooling.New York; London: Routledge, 2004.

    GIROUX, H. Os professores como intelectuais. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1997.

    GRIGOLETTO, M. Representao, identidade e aprendizagem de lnguaestrangeira. In: CORACINI, M. J. (Org.). Identidade e discurso: (des)construindosubjetividades. Campinas: Editora da Unicamp / Chapec: Argos, 2003. p. 223-235.

    GRIGOLETTO, M. Um saber sobre os sujeitos: prticas de subjetivao no discursopoltico-educacional sobre lnguas estrangeiras. Claritas, n. 9, p. 45-55, 2007.

  • 962 RBLA, Belo Horizonte, v. 13, n. 3, p. 941-962, 2013

    JOHNSON, K. E. Second Language Teacher Education: A SocioculturalPerspective. New York; London: Routledge, 2009.

    LANKSHEAR, C.; KNOBEL, M. New Literacies: Everyday Practices and SocialLearning. 3. ed. New York: McGraw Hill / Open University Press, 2011.

    LANKSHEAR, C.; PETERS, M.; KNOBEL, M. Information, Knowledge andLearning: Some Issues Facing Epistemology and Education. Journal of Philosophyof Education, v. 34, n. 1, p. 17-39, 2000.

    MATURANA, H.; VARELA, F. A rvore do conhecimento: as bases biolgicas doentendimento humano. Campinas: PSY II, 1995.

    OAKESHOTT, M. Rationalism in Politics and Other Essays. , 2. rev. ed.Indianapolis: Liberty, 1991 apud RAJAGOPALAN, K. Por uma lingstica crtica:linguagem, identidade e a questo tica. So Paulo: Parbola, 2003.

    RAJAGOPALAN, K. Por uma lingstica crtica: linguagem, identidade e aquesto tica. So Paulo: Parbola, 2003.

    SANTOS, B. S. Globalizations. Theory, Culture & Society, v. 23, n. 2-3, p. 393-399, 2006.

    SANTOS, B. S. Para alm do pensamento abissal: das linhas globais a umaecologia de saberes. Novos Estudos CEBRAP, n. 79, p. 71-94, 2007.

    SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Introduo. In: ______ (Org.). Epistemologiasdo Sul. Coimbra: Almedina, 2009. p. 9-19.

    SCHOLTE, J. A. Globalization: A Critical Introduction. 2. ed. New York:Palgrave MacMillan, 2005.

    SOUZA, L. M. T. M. Gaza 2009: Notes on Critically Reading Conflict. CriticalLiteracy: Theories and Practices, v. 3, n. 1, p. 86-89, 2009.

    SPRING, J. Research on Globalization and Education. Review of EducationalResearch, v. 78, n. 2, p. 330-363, 2008.

    THAYER-BACON, B. A Pragmatist and Feminist Relational (E)pistemology.European Journal of Pragmatism and American Philosophy, v. II, n. 1, p. 1-22, 2010.

    TODD, S. Toward an Imperfect Education: Facing Humanity, RethinkingCosmopolitanism. Boulder: Paradigm, 2009.

    Recebido em 22/10/2012. Aprovado em 19/02/2013.