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REPENSANDO O ENSINO DA HISTÓRIA, PRODUZINDO CONHECIMENTO. 1 Sonia Wanderley (CAP-UERJ) 1- Justificativa Desde que foi incluída nos currículos escolares, ou seja, desde que se tornou uma disciplina ministrada na escola, a História ensinada tem mantido uma relação de proximidade com o conhecimento histórico acadêmico. Em alguns contextos, é bem verdade, as políticas públicas brasileiras para a educação buscaram diferenciar ao extremo o saber escolar do saber acadêmico; contudo, sempre houve vozes que contestaram essa separação. Nas últimas décadas, percebe-se o crescente aumento da preocupação de professores e outros especialistas em educação no sentido de questionar e analisar mais criticamente a relação existente entre o saber histórico acadêmico e - como se tornou comum denominar - o saber histórico escolar. Isto acontece num momento em que a discussão sobre educação passa a contestar o estabelecimento de técnicas e metodologias gerais para o ensino em todas as áreas de conhecimento, negando suas especificidades, juntamente com uma preocupação mais explícita no desenvolvimento de habilidades cognitivas que permitam aos alunos dos ensinos fundamental e médio experimentar uma autonomia intelectual, retirando dos instrumentos didáticos e do professor a unanimidade de donos do conhecimento. 2 - O SABER HISTÓRICO ESCOLAR Tradicionalmente, a produção do conhecimento histórico é vista como prerrogativa dos centros acadêmicos. Mesmo hoje em dia, apesar da discussão que apontada acima, e que envolve muitos de nossos currículos e programas, encontramos professores acreditando que sua função no ensino básico resume-se à reprodução de forma coerente, seja através de uma perspectiva linear, seja problematizadora, de um conteúdo cuja elaboração independe de sua ação, pelo menos na função de professor dos ensinos fundamental e médio, quer dizer, mesmo quando desenvolve atividades ligadas à pesquisa histórica e/ou ensino superior, o professor estabelece diferenças qualitativas entre estas funções e aquela desempenhada no ensino básico. Contudo, apesar de uma tradição empírica de ensino, fundamentada no prestígio de individualidades da historiografia nacional e da estrangeira, vem consolidando-se entre professores a perspectiva de que o processo de ensino-aprendizagem de história no ensino básico é também produtor de conhecimento: o conhecimento histórico escolar. A descoberta e o domínio da lógica interna de um determinado conhecimento dependem, em última instância, de uma postura ativa diante do objeto/fenômeno que se deseja conhecer. Esta postura ativa desencadeia um processo de “desmonte” e “remontagem” do objeto/fenômeno por parte do sujeito, não levando este processo, necessariamente, ao mesmo produto inicial. 1 Artigo publicado no Caderno de Graduação Ensino e formação de professores na perspectiva das licenciaturas em Ciências Humanas. Rio de Janeiro: UERJ, Departamento de Ensino de Graduação, 2002, v.4, p.36-43

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Page 1: REPENSANDO O ENSINO DA HISTÓRIA, … O ENSINO DA HISTÓRIA, PRODUZINDO CONHECIMENTO.1 ... O que se pretende com a postura apresentada é que se encare o ensino ... abordar o passado…

REPENSANDO O ENSINO DA HISTÓRIA, PRODUZINDO CONHECIMENTO.1

Sonia Wanderley (CAP-UERJ)

1- Justificativa

Desde que foi incluída nos currículos escolares, ou seja, desde que se tornou uma disciplina

ministrada na escola, a História ensinada tem mantido uma relação de proximidade com o conhecimento

histórico acadêmico.

Em alguns contextos, é bem verdade, as políticas públicas brasileiras para a educação buscaram

diferenciar ao extremo o saber escolar do saber acadêmico; contudo, sempre houve vozes que

contestaram essa separação.

Nas últimas décadas, percebe-se o crescente aumento da preocupação de professores e outros

especialistas em educação no sentido de questionar e analisar mais criticamente a relação existente

entre o saber histórico acadêmico e - como se tornou comum denominar - o saber histórico escolar. Isto

acontece num momento em que a discussão sobre educação passa a contestar o estabelecimento de

técnicas e metodologias gerais para o ensino em todas as áreas de conhecimento, negando suas

especificidades, juntamente com uma preocupação mais explícita no desenvolvimento de habilidades

cognitivas que permitam aos alunos dos ensinos fundamental e médio experimentar uma autonomia

intelectual, retirando dos instrumentos didáticos e do professor a unanimidade de donos do

conhecimento.

2 - O SABER HISTÓRICO ESCOLAR

Tradicionalmente, a produção do conhecimento histórico é vista como prerrogativa dos centros

acadêmicos. Mesmo hoje em dia, apesar da discussão que apontada acima, e que envolve muitos de

nossos currículos e programas, encontramos professores acreditando que sua função no ensino básico

resume-se à reprodução de forma coerente, seja através de uma perspectiva linear, seja

problematizadora, de um conteúdo cuja elaboração independe de sua ação, pelo menos na função de

professor dos ensinos fundamental e médio, quer dizer, mesmo quando desenvolve atividades ligadas à

pesquisa histórica e/ou ensino superior, o professor estabelece diferenças qualitativas entre estas

funções e aquela desempenhada no ensino básico.

Contudo, apesar de uma tradição empírica de ensino, fundamentada no prestígio de

individualidades da historiografia nacional e da estrangeira, vem consolidando-se entre professores a

perspectiva de que o processo de ensino-aprendizagem de história no ensino básico é também produtor

de conhecimento: o conhecimento histórico escolar.

A descoberta e o domínio da lógica interna de um determinado conhecimento dependem, em

última instância, de uma postura ativa diante do objeto/fenômeno que se deseja conhecer. Esta postura

ativa desencadeia um processo de “desmonte” e “remontagem” do objeto/fenômeno por parte do

sujeito, não levando este processo, necessariamente, ao mesmo produto inicial.

1 Artigo publicado no Caderno de Graduação Ensino e formação de professores na perspectiva das licenciaturas em Ciências Humanas. Rio de Janeiro: UERJ, Departamento de Ensino de Graduação, 2002, v.4, p.36-43

Page 2: REPENSANDO O ENSINO DA HISTÓRIA, … O ENSINO DA HISTÓRIA, PRODUZINDO CONHECIMENTO.1 ... O que se pretende com a postura apresentada é que se encare o ensino ... abordar o passado…

O que se pretende com a postura apresentada é que se encare o ensino-aprendizagem de

História na Escola Básica sob as mesmas perspectivas. Assim sendo, que ele seja produtor de um tipo de

aprendizado que “não fique apenas na superfície, mas que crie condições para que o aluno adquira os

instrumentos conceituais que lhe permitam decodificar idéias já existentes e produzir novas”.2

Busca-se pensar o processo de ensino-aprendizagem a partir das especificidades do campo de

conhecimento histórico, ou melhor, a partir da epistemologia da História. Acredita-se, pois, ser possível

que

da epistemologia da História, como forma característica de pensar a organização do conhecimento histórico e a realidade humana, se retirem normas, critérios, elementos balizadores da atividade docente, na tarefa de procurar com os alunos, abordar o passado, provocando neles compreensão e auto-conhecimento humano.3

Dessa forma, a preocupação de educadores e profissionais antecipa uma metodologia de ensino-

aprendizagem em História consolidada na necessidade do desenvolvimento de instrumentos que

possibilitem o incremento da autonomia intelectual dos alunos a partir de um refinamento do

pensamento.

Este refinamento relaciona-se à preocupação com o desenvolvimento de habilidades cognitivas

facilitadas pelas especificidades da produção do conhecimento histórico. Classificar, descobrir critérios

contidos em classificações, comparar, relacionar, levantar hipóteses, etc. são algumas das atividades

mentais que podem caminhar juntas com o ensino de História.

A preocupação com o desenvolvimento de competências/habilidades como prerrogativa do

ensino básico tem sido a tônica de pesquisas e documentos sobre educação no Brasil, inclusive os

oficiais, tais como os Parâmetros Curriculares do MEC (PCN). A principal questão levantada é a de que o

conhecimento não se situa fora do indivíduo e nem se produz como algo que ele constrói fora da

realidade exterior. É, antes de qualquer coisa, uma construção histórica e social na qual interagem

fatores de diversas origens: antropológica, psicológica, cultural, entre outros.4

A necessidade de maior integração entre a prática docente e a pesquisa acadêmica em História

remete, portanto, a uma questão de relevância nas atuais pesquisas sobre o seu ensino: a transposição

de conteúdos e a transposição didática do fazer histórico.

Uma das maiores dificuldades dos licenciandos em História, em suas primeiras experiências como

estagiários ou mesmo como profissionais, é a transposição de conteúdos históricos acadêmicos na

elaboração de seus planos de aula ou de curso. Os docentes universitários que trabalham com as

disciplinas integradoras entre teoria e prática do ensino de História certamente já sentiram a angústia

de seus alunos quando não conseguem organizar uma simples lista de conteúdos na qual se perceba

outro critério de seleção que não o cronológico. Tal dificuldade na prática docente está certamente

relacionada a problemas na construção de uma concepção de História e, conseqüentemente, de seu

ensino; problema (re) produzido nos bancos acadêmicos.

O elemento fundamental na elaboração de qualquer seleção de conteúdos consiste em identificar

critérios que a fundamentem e justifiquem. Sem dúvida tais critérios estão relacionados à concepção de

2ROCHA, Ubiratan. Reconstruindo a História a partir do imaginário do aluno. In: NIKITIUK, Sônia (org.). Repensando o ensino de História. São Paulo: Cortez, 2001, p.58. 3 FELGUEIRAS, Maria Louro. Pensar a História, repensar o seu ensino. Porto: Porto Editora, 1994, p. 20.

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História na qual se assenta a prática do professor. Contudo, se o docente não teve a oportunidade de

constituí-la e de refletir sobre sua construção, ele utilizará o modelo que certamente viu se repetir,

desde cedo, em sua formação escolar, e este é, tradicionalmente, o narrativo cronológico.

Se aceitarmos o princípio de que, no processo de aprendizagem, não se retém apenas o conteúdo, mas se fixam simultaneamente imagens, modelos e valores que se tendem a manifestar posteriormente, os futuros professores adquiriram, ao longo da escolaridade a que estiveram submetidos, métodos e modelos de ensino que não se coadunavam com as novas concepções (históricas e pedagógicas) difundidas.5

O que a autora quis dizer com o texto acima é que estes professores não aprenderam a perceber

a História como uma construção dinâmica. Como discentes, em sua prática cotidiana, eles não tiveram

oportunidade de estudar os textos e documentos históricos como produtos de “mecanismos que

vinculam a dinâmica das estruturas à sucessão dos acontecimentos, nos quais intervêm os indivíduos e o

acaso”.6 Como docentes, portanto, eles assumirão, por ignorância, um posicionamento simplista de falsa

neutralidade, que desemboca, quando muito, na seleção cronológica linear como a única possível.

De forma alguma, um docente com essas deficiências terá condições de pensar sua prática

profissional na escola básica como de produção de conhecimento; muito menos, acreditar que sua

interação com os alunos, mediada por métodos e estratégias variadas - levando em consideração a

utilização de procedimentos da pesquisa histórica - resulte na produção de algum tipo de conhecimento.

Este profissional foi preparado para, quando muito, destacar-se por ser um bom repetidor das mais

atuais teorias e discussões da historiografia moderna. Faltar-lhe-á a capacidade básica do profissional da

história, a habilidade na utilização dos procedimentos do fazer histórico, dedique-se à pesquisa ou ao

ensino. Embora os textos que destacam a necessidade de reflexão sobre este assunto afirmem que o que

se procura não é produzir pequenos historiadores na escola básica, busca-se, seja como for,

a realização na sala de aula da própria atividade do historiador, a articulação entre elementos constitutivos do fazer histórico e do fazer pedagógico. (...) Fazer com que o conhecimento histórico seja ensinado de tal forma que dê ao aluno condições de participar do processo do fazer, do construir a História. Que o aluno possa entender que a apropriação do conhecimento é uma atividade em que se retorna ao próprio processo de elaboração do conhecimento.7

Vê-se que o caminho que se construiu nas últimas décadas não modificou essencialmente a

prática docente cotidiana. Muitas variáveis explicam esse descompasso, mas, sem dúvida, uma das mais

citadas tem sido o papel do material didático utilizado como sustentação do processo de aprendizagem.

Dentre todos, sobressai o livro didático, pela situação de verdadeira muleta que assume para a prática

docente na maioria das salas de aulas.

Não cabe aqui aprofundar a discussão, de outra forma já bastante batida, sobre a validade ou

não da utilização do livro didático na prática docente. Cabe, sim, questionar de que forma este produto,

vinculado a imposições de diversas ordens, principalmente aquelas ligadas às regras do mercado

editorial, pode adaptar-se às prerrogativas que se apresentam para o ensino básico e que serviram de

apoio para este artigo. Por mais complicado que possa parecer, as mudanças que vêm ocorrendo nos

exames vestibulares no Brasil têm sido fatores deflagradores de transformações significativas, tanto no

4 Vide Parâmetros Curriculares Nacionais – Introdução – 5ª a 8ª séries. Secretaria de Educação Fundamental – Brasília: MEC/SEF, 1998, p. 71. 5 FELGUEIRAS, Maria Louro. op.cit. p. 18. 6 VILLAR, Pierre. Iniciación al vocabulário del análisis histórico. Barcelona, 1980, p. 12 7 SCHMIDT, Maria Auxiliadora. A formação do professor de história e o cotidiano da sala de aula. In: BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1998, pp. 54-66.

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conteúdo programático das escolas, como nos textos didáticos produzidos para a Escola Básica,

principalmente no ensino médio.

3 - O livro didático

Os exames seletivos de acesso às universidades – com destaque para as públicas – têm

apresentado modificações profundas em sua organização e objetivos. Tais mudanças resultam, em

parte, da maior interação entre especialistas nas diversas áreas de conhecimentos e profissionais do

ensino básico, o que vem originando um maior número de pesquisas sobre o assunto e provocando

análises mais expressivas sobre os modelos anteriores e sobre as práticas pedagógicas que acabam por

resultar deles.

Entre as práticas mais criticadas está a utilização do livro didático, tal qual existe hoje no

mercado, como fonte essencial para o processo de ensino-aprendizagem.

Sem dúvida, as prerrogativas do mercado editorial formulam um roteiro específico para o

conteúdo dos livros didáticos. Por sua vez, essas prerrogativas são, de certa forma, originadas de

interferências das esferas oficiais que estabelecem currículos mínimos e formas de pressão sobre

estratégias que devem ser valorizadas.

Se historicamente no Brasil tais condições produziram textos didáticos que deixam a desejar

quanto a sua capacidade de serem instrumentos produtores de reflexão e de conhecimento - servindo

essencialmente como receptáculos de informações - vemos hoje a possibilidade de modificar esta

situação, utilizando-se da mesma lógica do processo produtivo que caracteriza a edição do livro didático

no país.

A pressão político-social dos exames de acesso às universidades públicas deu a estas instituições

– mesmo que de forma enviesada – a oportunidade de se transformarem em pólo de mudanças no ensino

médio. As discussões teórico-metodológicas com profissionais que têm o ensino como seu objeto de

pesquisa e/ou sua prática cotidiana permitem propor novas formas de pensar o material didático

utilizado no processo de ensino-aprendizagem das diversas áreas de conhecimento.

Afirma-se como um dos eixos fundamentais dos debates a verificação de competências e

habilidades para o acesso ao ensino superior, o que permite contestar a tradicional preocupação

conteudística que caracteriza os antigos modelos de concursos vestibulares, exigindo que professores e

escolas modifiquem sua prática docente e repensem seus instrumentos didáticos.

No caso das Ciências Humanas, em especial a História, o processo deve valorizar o diálogo

interdisciplinar, a construção de um pensamento articulador de fatos, conceitos e processos e a

contextualização dos processos históricos8. Espera-se com isso que o processo de ensino-aprendizagem

desenvolvido na Escola Básica prepare o aluno para a desnaturalização da produção do conhecimento,

de forma que ele se coloque como sujeito de sua prática. Em outras palavras, dê-lhe instrumentos que o

coloquem no caminho de sua autonomia intelectual, fundamental, tanto para ingressar na vida

acadêmica, quanto para a participação social como cidadão.

8 Vide Manual do Candidato Vestibular Estadual 2002 – 1ª fase do Exame de Qualificação – UERJ/UENF/APM D. João VI, p. 21.

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Ora, sabe-se que a principal característica do livro didático tradicional é ser generalista e,

preso às premissas do mercado editorial, ainda essencialmente atento à tradição empirista que

caracteriza nossos programas e currículos. Como então transformá-lo em instrumento dos objetivos

propostos acima?

Responder a esta questão é problema analisado muitos pesquisadores/professores. Não se tem

a ousadia de propor aqui a solução final para esse eterno enigma. Contudo, a linha argumentativa deste

trabalho propõe uma modificação no eixo norteador da discussão.

Qualquer instrumento didático utilizado no processo de ensino-aprendizagem deve ser visto

como um meio e não como uma finalidade. No caso específico do ensino de História, o livro didático

adquiriu a característica de ser receptáculo dos fatos importantes, coleção de imagens e

acontecimentos que foram considerados significativos pelos responsáveis pela vulgarização de uma

perspectiva simplista de História, cuja leitura a conceitua como ciência do passado. Embora essa

caracterização já encontre detratores importantes no meio acadêmico e editorial, ainda é forte no

senso comum e produz um amálgama difícil de ser desfeito entre alunos e muitos docentes da Escola

Básica.

Entender a manutenção desse tipo de prática que acaba por solapar tentativas de

transformações mais significativas no ensino de História não é difícil. Além dos conhecidos fatores,

muitas vezes explorados de forma tal que acabam por imobilizar docentes e escolas, tais como a

proletarização de professores e a falta de continuidade das políticas públicas de educação9, outras

questões merecem uma maior discussão. Uma delas refere-se certamente à formação acadêmica, que,

como apontado anteriormente, é culpada muitas vezes pelo desajuste visível entre as concepções de

História conhecidas ou “abraçadas” por grande parte dos professores, inclusive os recém-formados, e a

sua prática docente.

Os “métodos e valores” adquiridos por docentes no processo de seu próprio aprendizado são

responsáveis, em grande parte, pela forma imobilizadora como eles encaram a sala de aula e a

utilização dos materiais didáticos. Sente-se a falta de orientação e a necessidade de princípios que

ancorem a sua prática. Os responsáveis pela formação acadêmica dos professores devem encarar como

um de seus objetivos primordiais a investigação de metodologias para o ensino de História, no sentido

de buscar integrar as novas práticas pedagógicas às especificidades desse campo de conhecimento que

tem maneiras próprias de trabalhar os seus objetos de investigação.

A relação entre o campo pedagógico e o histórico é de constituição delicada, porém fundamental

na formação docente. A preocupação metodológica nos cursos de graduação é comumente confundida

com o ensino de técnicas diversificadas e a utilização de variados recursos didáticos. Mesmo na

formação dita teórica, dentro dos institutos básicos, a metodologia da História acaba sendo vista como

uma disciplina sem qualquer relação com as demais. Ao contrário, a preocupação metodológica não

deveria ser específica de uma disciplina isolada, mas o resultado da prática cotidiana de docentes e

alunos do ensino superior em sala de aula, visando à reflexão crítica sobre a produção do conhecimento

e a instrumentalização, para que todos se vejam como sujeitos dessa produção.

9 Esta discussão tornou-se clássica. Ver crítica interessante sobre este tipo de posicionamento em dois artigos específicos de Repensando a história, organizado por Marcos A. da Silva e a ANPUH/SP, no início da década de 80. São eles: SILVA, Marcos A. A vida e o cemitério dos vivos e MUNHOZ, Sidnei José. Para que serve a História ensinada nas escolas?.

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A referida prática é pressuposto fundamental para que os futuros professores de História possam

se perceber como produtores de conhecimento e não apenas como reprodutores, utilizando para isso

todo e qualquer material didático, inclusive o livro-texto, como instrumento auxiliar nessa produção e

não como fonte da verdade histórica ou apoio irrestrito para sua falta de tempo e salário.

Tal comportamento capacita os docentes a transpor os procedimentos da pesquisa histórica para

seu cotidiano profissional, tanto no planejamento curricular, quanto na rotina do convívio com seus

alunos e na seleção e utilização de recursos e estratégias didáticas. Por exemplo, a generalização tão

criticada nos livros didáticos pode deixar de ser um empecilho para o aprendizado e transformar-se em

estratégia do professor. A visão geral pode valorizar os detalhes particulares de cada processo ou

evento. Sem ela, esses detalhes – diferenças e semelhanças – podem perder seu significado. Cabe ao

professor o trabalho com essas especificidades, caminhar com seus alunos da atomização à globalização,

preocupando-se não apenas em constatar as diferenças e semelhanças presentes nos livros e outros

documentos, mas (re)construir com eles os mecanismos que as explicam, utilizando-se de recursos do

fazer histórico: a associação, a preocupação com as seqüências temporais, a contextualização, o

trabalho com a multicausalidade histórica, a formulação de hipóteses, o debate sobre opiniões

divergentes, a construção de argumentos lógicos, dentre outros. Estabelecendo essa diretriz, o conteúdo

de história dos livros e outros textos/documentos deixa de ser um fim em si mesmo, transforma-se em

ferramenta para a autonomia intelectual e para a produção de conhecimento: estes, sim, objetivos

fundamentais da Educação Básica.

Através dessa reflexão, busca-se deslocar o eixo problematizador do livro didático para a

formação docente. Se as universidades - principalmente os cursos responsáveis pela formação de

professores - ampliarem os núcleos de pesquisa nos quais o ensino e as especificidades de sua prática

sejam o objeto de investigação, os professores estarão mais bem preparados para a reflexão sobre a

utilização do livro didático e, com certeza, surgirá um maior número de propostas não deslocadas da

prática docente e que poderá resultar em transformações mais duradouras. Não é este o único caminho,

mas, certamente, é uma dívida das universidades, principalmente as públicas, para com a sociedade de

uma forma geral.

BIBLIOGRAFIA

ANHORN, Carmem. O saber histórico escolar: entre o universal e o particular. Rio de Janeiro: PUC. Dissertação de mestrado em Educação (digitada). s/d.

BLOCH, Marc. Introdução à história. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d. BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1998. DAVIES, Nicholas (org.). Para além dos conteúdos no ensino de história. Niterói/RJ: EDUFF, 2000. FELGUEIRAS, Maria Louro. Pensar a História, repensar o seu ensino. Porto: Porto Editora, 1994.

MEC/SEF. Parâmetros Curriculares Nacionais – Introdução – 5ª a 8ª séries. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, 1998.

NIKITIUK, Sônia (org.). Repensando o ensino de História. São Paulo: Cortez, 2001. SILVA, Marcos A. da. Repensando a história. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, s/d. VILLAR, Pierre. Iniciación al vocabulário del análisis histórico. Barcelona, 1980.