reparo mitral percutâneo pelo mitraclip em paciente ... · artigo recebido em 03/06/2015, aceito...

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338 DOI: 10.5935/2359-4802.20150049 Introdução Habitualmente, a insuficiência mitral (IM) aguda é causada por alterações estruturais agudas do aparelho valvar mitral, seja por infecção causando destruição da cordoalha tendinosa ou folheto valvar seja por ruptura espontânea da cordoalha tendinosa ou ruptura de músculo papilar por infarto agudo do miocárdio 1 . A sobrecarga aguda de volume sobre o ventrículo esquerdo causa congestão pulmonar e baixo débito cardíaco. Se essa sobrecarga de volume não é tolerada, apesar do tratamento medicamentoso pleno, intervenção cirúrgica de urgência deve ser realizada 1 . Esses pacientes, no entanto, enfrentam risco cirúrgico elevado inerente ao procedimento, que pode se tornar proibitivo na presença de idade avançada e de comorbidades 2 . Nessas circunstâncias, opções terapêuticas não cirúrgicas, como o reparo mitral transcateter, surgem como alternativa de tratamento menos invasivo e de menor risco 2 . Neste relato, descreve-se o caso de paciente nonagenária com IM aguda e risco cirúrgico elevado que se submeteu, com sucesso, ao implante transcateter de MitraClip. Internacional Journal of Cardiovascular Sciences. 2015;28(4):338-341 Correspondência: Denise Castro de Souza Côrtes Centro Médico Pró-Cardíaco Rua Mena Barreto, 29 sala 203 – Botafogo – 22271-100 – Rio de Janeiro, RJ – Brasil E-mail: [email protected] Reparo Mitral Percutâneo pelo MitraClip em Paciente Nonagenária com Insuficiência Mitral Aguda Transcatheter Mitral Valve Repair, MitraClip, in a Nonagenarian Patient with Acute Regurgitation Denise Castro de Souza Côrtes 1,2 , Paulo Roberto Dutra da Silva 1,3 , Antonio Sérgio Cordeiro da Rocha 1,3 , Alexandre Siciliano Colafrancheschi 1,3 , Carolina Garbin Comandulli 1 , Eduarda Barcellos 1 1 Hospital Pró-Cardíaco – Rio de Janeiro, RJ – Brasil 2 Fundação de Assistência e Previdência Social do BNDES – Rio de Janeiro, RJ – Brasil 3 Instituto Nacional de Cardiologia – Rio de Janeiro, RJ – Brasil O implante transcateter de MitraClip é uma opção promissora de tratamento da insuficiência mitral (IM) em pacientes com risco cirúrgico elevado. Neste relato, descreve-se o caso de paciente nonagenária com IM aguda por ruptura de cordoalha que, devido a risco cirúrgico proibitivo, foi submetida a implante transcateter de MitraClip com sucesso. Palavras-chave: Insuficiência da valva mitral; Prolapso da valva mitral; Dispositivos de acesso vascular Resumo MitraClip transcatheter implant is a promising option for treating mitral regurgitation (MR) in patients with high surgical risk. This report describes the case of a nonagenarian patient with acute MR for chordae rupture that, due to prohibitive surgical risk, underwent a successful MitraClip transcatheter implant. Keywords: Mitral valve insufficiency; Mitral valve prolapse; Vascular access devices Abstract (Full texts in English - www.onlineijcs.org) Artigo recebido em 03/06/2015, aceito em 14/07/2015, revisado em 14/07/2015. RELATO DE CASO

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Page 1: Reparo Mitral Percutâneo pelo MitraClip em Paciente ... · Artigo recebido em 03/06/2015, aceito em 14/07/2015, revisado em 14/07/2015. RELATO DE CASO. 339 Relato do Caso ... evoluiu

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DOI: 10.5935/2359-4802.20150049

Introdução

Habitualmente, a insuficiência mitral (IM) aguda é causada por alterações estruturais agudas do aparelho valvar mitral, seja por infecção causando destruição da cordoalha tendinosa ou folheto valvar seja por ruptura espontânea da cordoalha tendinosa ou ruptura de músculo papilar por infarto agudo do miocárdio1.

A sobrecarga aguda de volume sobre o ventrículo esquerdo causa congestão pulmonar e baixo débito cardíaco. Se essa sobrecarga de volume não é tolerada,

apesar do tratamento medicamentoso pleno, intervenção cirúrgica de urgência deve ser realizada1. Esses pacientes, no entanto, enfrentam risco cirúrgico elevado inerente ao procedimento, que pode se tornar proibitivo na presença de idade avançada e de comorbidades2. Nessas circunstâncias, opções terapêuticas não cirúrgicas, como o reparo mitral transcateter, surgem como alternativa de tratamento menos invasivo e de menor risco2.

Neste relato, descreve-se o caso de paciente nonagenária com IM aguda e risco cirúrgico elevado que se submeteu, com sucesso, ao implante transcateter de MitraClip.

Internacional Journal of Cardiovascular Sciences. 2015;28(4):338-341

Correspondência: Denise Castro de Souza CôrtesCentro Médico Pró-CardíacoRua Mena Barreto, 29 sala 203 – Botafogo – 22271-100 – Rio de Janeiro, RJ – BrasilE-mail: [email protected]

Reparo Mitral Percutâneo pelo MitraClip em Paciente Nonagenária com Insuficiência Mitral AgudaTranscatheter Mitral Valve Repair, MitraClip, in a Nonagenarian Patient with Acute Regurgitation

Denise Castro de Souza Côrtes1,2, Paulo Roberto Dutra da Silva1,3, Antonio Sérgio Cordeiro da Rocha1,3, Alexandre Siciliano Colafrancheschi1,3, Carolina Garbin Comandulli1, Eduarda Barcellos1

1Hospital Pró-Cardíaco – Rio de Janeiro, RJ – Brasil2Fundação de Assistência e Previdência Social do BNDES – Rio de Janeiro, RJ – Brasil3Instituto Nacional de Cardiologia – Rio de Janeiro, RJ – Brasil

O implante transcateter de MitraClip é uma opção promissora de tratamento da insuficiência mitral (IM) em pacientes com risco cirúrgico elevado. Neste relato, descreve-se o caso de paciente nonagenária com IM aguda por ruptura de cordoalha que, devido a risco cirúrgico proibitivo, foi submetida a implante transcateter de MitraClip com sucesso.

Palavras-chave: Insuficiência da valva mitral; Prolapso da valva mitral; Dispositivos de acesso vascular

Resumo

MitraClip transcatheter implant is a promising option for treating mitral regurgitation (MR) in patients with high surgical risk. This report describes the case of a nonagenarian patient with acute MR for chordae rupture that, due to prohibitive surgical risk, underwent a successful MitraClip transcatheter implant.

Keywords: Mitral valve insufficiency; Mitral valve prolapse; Vascular access devices

Abstract (Full texts in English - www.onlineijcs.org)

Artigo recebido em 03/06/2015, aceito em 14/07/2015, revisado em 14/07/2015.

RELATO DE CASO

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Relato do Caso

Trata-se de paciente do sexo feminino, 94 anos, que deu entrada no hospital com dispneia rapidamente progressiva para ortopneia (classe funcional IV da New York Heart Association – NYHA) nos últimos 45 dias; portadora de hipertensão arterial sistêmica, diabetes tipo II, obesidade, hipotireoidismo, insuficiência venosa crônica e prolapso valvar mitral.

Na internação, a paciente foi diagnosticada com IM grave por ruptura de cordoalha tendinosa (Figura 1A e B). Apesar das medidas terapêuticas empregadas, a paciente evoluiu com anasarca, hiponatremia grave e alcalose metabólica hipocalêmica, sendo indicada ultrafiltração contínua e ventilação não invasiva. Em razão do risco de mortalidade operatória de 24,13% pelo EuroSCORE II e de 48,38% pelo escore do STS, em reunião do heart team, optou-se pelo implante transcateter do MitraClip.

O procedimento, guiado por ecocardiograma tridimensional transesofágico (Figura 2A e B), transcorreu

sem complicações, sendo necessário apenas implante de um dispositivo. Após o procedimento, houve recuperação progressiva da diurese espontânea e estabilização das escórias nitrogenadas. A paciente obteve alta hospitalar, em classe funcional II da NYHA no décimo quinto dia pós-procedimento.

Figura 1ARegurgitação mitral grave

Figura 1BRedução significativa da regurgitação mitral após implante do MitraClip

Figura 2AProlapso do folheto anterior da mitral

Figura 2BPosicionamento correto do MitraClip no centro do orifício da válvula

Discussão

O reparo ou a cirurgia da válvula mitral são considerados como tratamento padrão-ouro na abordagem da IM grave associado a sintomas ou à disfunção ventricular esquerda3. O bom resultado do procedimento cirúrgico nesse grupo de pacientes tem relação direta com a melhora dos sintomas e da expectativa de vida. No entanto, há um número significante de pacientes com IM

Cortês et al. MitraClip e Correção de Insuficiência Mitral Aguda

Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(4):338-341Relato de Caso

ABREVIATURAS E ACRÔNIMOS

• IM – insuficiência mitral

• NYHA – New York Heart Association

• VE – ventrículo esquerdo

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sintomática e comorbidades graves que os colocam em alto risco de morbidade e mortalidade cirúrgicas2. Se o risco cirúrgico é considerado proibitivo, o paciente é relegado ao tratamento clínico.

Estima-se que cerca da metade dos pacientes sintomáticos com IM grave não recebam cirurgia. Para esses pacientes sem uma boa opção terapêutica, o reparo transcateter valvar mitral torna-se uma alternativa terapêutica viável, especialmente com o implante do MitraClip, que é análogo ao procedimento cirúrgico de criação de um orifício duplo.

O implante transcateter do MitraClip, que possibilita uma abordagem menos invasiva da IM grave, está respaldado pelo estudo EVEREST II4. Nesse ensaio clínico, 279 pacientes com IM grave, com má-coaptação da parte média do folheto anterior ou posterior, foram randomizados para o implante transcateter com MitraClip ou para cirurgia valvar mitral (reparo ou troca valvar). Ao final de 48 meses de seguimento, a mortalidade foi semelhante nos dois grupos de pacientes: 17,4% no MitraClip e 17,8% na cirurgia (p=0,91). Também não houve diferença significativa entre os grupos com relação ao percentual de regurgitação mitral grave residual: 21,0% no MitraClip e 20,2% na cirurgia (p=0,74). Todavia a necessidade de intervenção cirúrgica ou reoperação, precoce ou tardia, foi significantemente maior no grupo de MitraClip (25,0% vs. 5,0%; p<0,001)4.

Em subestudo do EVEREST II4, que envolveu pacientes de alto risco, com mortalidade operatória estimada acima de 12,0%, dos quais 56,0% tinham IM funcional e 44,0% degenerativa, houve redução da gravidade da IM, melhora dos sintomas, reversão do remodelamento, redução das hospitalizações, melhora na qualidade de vida e sobrevivência em 12 meses nos pacientes tratados com MitraClip em comparação ao grupo-controle5.

Em estudo envolvendo 127 pacientes com IM degenerativa grave e risco cirúrgico proibitivo, o implante teve sucesso em 95,0% dos casos, a sobrevivência em um ano foi 74,0%, houve melhora na classe funcional, qualidade de vida, índice de remodelamento do ventrículo esquerdo (VE) e redução da recorrência de hospitalizações por insuficiência cardíaca6.

No estudo ACCESS-EU (A two phase observational study of the MitraClip system in Europe)7 que analisou

567 pacientes, observou-se uma taxa de sucesso do implante de 99,6%. A mortalidade em 30 dias foi 3,4% e, em 12 meses, 19,0%. Em um ano, cirurgia mitral aberta foi necessária em 6,3% dos pacientes, 3,4% necessitaram de outro MitraClip para tratar IM residual e a incidência de IM 3 ou 4+ foi 21,0%. Entre os sobreviventes, 71,0% estavam em CF I ou II da NYHA, com melhor desempenho no teste de caminhada de 6 minutos e nos escores de qualidade de vida7.

O reparo cirúrgico após o implante de MitraClip é factível, embora maior grau de fibrose valvar após o implante do clipe possa implicar troca valvar8. No estudo EVEREST II4, 37 pacientes entre 178 que implantaram o MitraClip necessitaram de cirurgia em 12 meses. Reparo mitral foi possível em 20 e troca valvar em 17 pacientes. A remoção do clipe torna-se mais difícil após 30 dias do implante devido à fibrose e cicatrização dos folhetos. Acometimento do folheto anterior é preditivo de necessidade de troca valvar9.

Portanto, o implante transcateter do MitraClip é uma alternativa que deve ser considerada para pacientes com risco cirúrgico elevado ou proibitivo e com anatomia favorável ao procedimento, como no caso aqui relatado.

Na última diretriz para doenças orovalvares da American Heart Association e American College of Cardiology3, o reparo transcateter da valva mitral é considerado como classe de recomendação IIB, nível de evidência B3.

Para maximizar o sucesso clínico desse procedimento é essencial a participação de uma equipe multidisciplinar (heart team). Uma criteriosa avaliação pré-procedimento da anatomia e função valvar mitral, dimensões cavitárias, funções biventriculares, pressões de artéria pulmonar e qualquer doença valvar aórtica ou tricúspide concomitantes, além do conhecimento da anatomia coronariana e de comorbidades são componentes fundamentais no processo.

Potencial Conflito de InteressesDeclaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Fontes de FinanciamentoO presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação AcadêmicaO presente estudo não está vinculado a qualquer programa de pós-graduação.

Côrtes et al. MitraClip e Correção de Insuficiência Mitral Aguda

Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(4):338-341Relato de Caso

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surgery. In: Otto CM, Bonow RO, eds. Valvular heart disease:

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2. Taramasso M, Gaemperli O, Maisano F. Treatment of

degenerative mitral regurgitation in elderly patients. Nat Rev

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3. Nishimura RA, Otto CM, Bonow RO, Carabello BA, Erwin JP

3rd, Guyton RA, et al; American College of Cardiology/

American Heart Association Task Force on Practice Guidelines.

2014 AHA/ACC guideline for the management of patients

with valvular heart disease: executive summary: a report of

the American College of Cardiology/American Heart

Association Task Force on Practice Guidelines. J Am Coll

Cardiol. 2014;63(22):2438-88. Erratum in: J Am Coll Cardiol.

2014;63(22):2489.

4. Mauri L, Foster E, Glower DD, Apruzzese P, Massaro JM,

Herrmann HC, et al; EVEREST II Investigators. 4-year results

of a randomized controlled trial of percutaneous repair versus

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Cortês et al. MitraClip e Correção de Insuficiência Mitral Aguda

Int J Cardiovasc Sci. 2015;28(4):338-341Relato de Caso