renata minami

18
Universidade Presbiteriana Mackenzie 1 A MEMÓRIA E A IDENTIDADE: UMA ANÁLISE DO FOCO NARRATIVO EM MAUS Renata Minami do Nascimento (IC) e Aurora Gedra Ruiz Alvarez (Orientadora) Apoio: PIVIC Mackenzie Resumo Este trabalho insere-se no campo da investigação literária, tendo como objeto de estudo o romance gráfico Maus, escrito e ilustrado pelo quadrinista norte-americano Art Spiegelman, que conta a história da violência nazista contra o povo judeu na II Guerra Mundial. A narrativa privilegia o ponto de vista do pai do autor, Vladek Spiegelman, que sobreviveu parcialmente ao campo de concentração de Auschwitz. Neste artigo, propomos uma leitura da obra pelo viés do foco narrativo, com o intuito de desvelar a identidade dos narradores, construída a partir das memórias narradas por Vladek e filtradas por Art, no desencadeamento do processo catártico de ambos, que se dá em um emocionante relato (auto)biográfico por meio de dois códigos – a imagem e a palavra. A complexidade da narrativa, portanto, também dos personagens, revela-se no trato da representação linguística e psicológica de Vladek, das crises existenciais de Art, na construção das narrativas pictóricas e textuais de encaixe, no uso estratégico da antropomorfização para construir um universo capaz de representar o horror do que foi o Holocausto. Os recursos de expressão alocados para a construção da narrativa gráfica e o virtuosismo de Spiegelman no manejo dessa linguagem legitimaram Maus como arte, depois do longo ostracismo a que as histórias em quadrinhos foram condenadas pelo meio acadêmico. Palavras-chave: Maus; foco narrativo; dialogismo. Abstract This work falls into the category of literary investigation, with the objective of studying the graphic novel Maus, written and illustrated by the North American graphic novelist Art Spiegelman. It tells the story of Nazi violence against the Jewish people during the Second World War. The narrative favors the point of view of the author's father, Vladek Spiegelman, a survivor of the Auschwitz concentration camp. In this article, we propose a reading of the novel influenced by the narrative focus, with the intention of disclosing the identity of the story-tellers. This identity is constructed from the memories related by Vladek and filtered by Art, triggering the cathartic process of both characters, which stems from an emotional (auto) biographical account through the medium of two codes - image and word. The complexity of the narrative, however, and also of the characters, is revealed in the following ways: the linguistic and psychological representation of Vladek; the existential crises of Art; the construction of embedded pictorial and textual narratives; and the strategic use of anthropomorphized characters to create a universe capable of representing the horror of the Holocaust. The expressive methods employed in the construction of the graphic narrative and the virtuosity of Spiegelman's use of this language legitimizes Maus as a work of art, despite the lengthy ostracism that sequential art has received from academia. Key-words: Maus; narrative focus; dialogism.

Upload: carlos-elson-cunha

Post on 12-Jul-2015

763 views

Category:

Documents


5 download

TRANSCRIPT

Page 1: Renata minami

Universidade Presbiteriana Mackenzie

1

A MEMÓRIA E A IDENTIDADE: UMA ANÁLISE DO FOCO NARRATIVO EM MAUS

Renata Minami do Nascimento (IC) e Aurora Gedra Ruiz Alvarez (Orientadora)

Apoio: PIVIC Mackenzie

Resumo

Este trabalho insere-se no campo da investigação literária, tendo como objeto de estudo o romance gráfico Maus, escrito e ilustrado pelo quadrinista norte-americano Art Spiegelman, que conta a história da violência nazista contra o povo judeu na II Guerra Mundial. A narrativa privilegia o ponto de vista do pai do autor, Vladek Spiegelman, que sobreviveu parcialmente ao campo de concentração de Auschwitz. Neste artigo, propomos uma leitura da obra pelo viés do foco narrativo, com o intuito de desvelar a identidade dos narradores, construída a partir das memórias narradas por Vladek e filtradas por Art, no desencadeamento do processo catártico de ambos, que se dá em um emocionante relato (auto)biográfico por meio de dois códigos – a imagem e a palavra. A complexidade da narrativa, portanto, também dos personagens, revela-se no trato da representação linguística e psicológica de Vladek, das crises existenciais de Art, na construção das narrativas pictóricas e textuais de encaixe, no uso estratégico da antropomorfização para construir um universo capaz de representar o horror do que foi o Holocausto. Os recursos de expressão alocados para a construção da narrativa gráfica e o virtuosismo de Spiegelman no manejo dessa linguagem legitimaram Maus como arte, depois do longo ostracismo a que as histórias em quadrinhos foram condenadas pelo meio acadêmico.

Palavras-chave: Maus; foco narrativo; dialogismo.

Abstract

This work falls into the category of literary investigation, with the objective of studying the graphic novel Maus, written and illustrated by the North American graphic novelist Art Spiegelman. It tells the story of Nazi violence against the Jewish people during the Second World War. The narrative favors the point of view of the author's father, Vladek Spiegelman, a survivor of the Auschwitz concentration camp. In this article, we propose a reading of the novel influenced by the narrative focus, with the intention of disclosing the identity of the story-tellers. This identity is constructed from the memories related by Vladek and filtered by Art, triggering the cathartic process of both characters, which stems from an emotional (auto) biographical account through the medium of two codes - image and word. The complexity of the narrative, however, and also of the characters, is revealed in the following ways: the linguistic and psychological representation of Vladek; the existential crises of Art; the construction of embedded pictorial and textual narratives; and the strategic use of anthropomorphized characters to create a universe capable of representing the horror of the Holocaust. The expressive methods employed in the construction of the graphic narrative and the virtuosity of Spiegelman's use of this language legitimizes Maus as a work of art, despite the lengthy ostracism that sequential art has received from academia.

Key-words: Maus; narrative focus; dialogism.

Page 2: Renata minami

VII Jornada de Iniciação Científica - 2011

2

1. INTRODUÇÃO

As histórias em quadrinhos, doravante também referidas como HQs, foram desconsideradas

pelo meio acadêmico por um longo período, mas com o surgimento do romance gráfico, no

século XX, vimos nascer um novo gênero literário voltado para adultos, com temas e

personagens complexos, enredos bem trabalhados e uma narrativa visual e textual muito

elaborada.

O corpus desse trabalho é o romance gráfico Maus, de Art Spiegelman, biografia que conta

como Vladek, pai do autor, sobreviveu ao Holocausto.

Nossos objetivos são analisar o foco narrativo construído no supracitado romance gráfico,

identificar e caracterizar os narradores e suas vozes, buscando resolver a questão de como

a memória (portanto, os traumas) colabora(m) no processo de reconstrução da identidade

evidenciado a partir da voz de dois narradores (Art e Vladek).

Para a realização dessa pesquisa, serão utilizadas as formulações a respeito das estruturas

narrativas, de Tzvetan Todorov, como pilares teóricos para a análise das interações e

sobreposições narrativas que compõem o romance gráfico Maus, dado que ela se constrói

por meio de uma macroestrutura – constituída pela relação entre o presente e o passado

(por meio do flashback e das narrativas de encaixe) – e de uma microestrutura – constituída

pelas diversas vozes que perpassam tais estruturas narrativas.

Prestando suporte ao conteúdo da semiótica levantado para a realização desse trabalho, os

estudos e teorias acerca da linguagem e da criação das histórias em quadrinhos serão

vastamente utilizados, por se tratar de um texto verbo-pictórico. Além disso, serão

analisadas as relações entre a imagem e a palavra na composição da narrativa. Para tanto,

a escolha de um quadrinista completo e de excelência como o Will Eisner se fez óbvia, pois

ele é tido como o responsável pela criação do gênero literário em que Maus se enquadra –

graphic novel.

O trabalho se constrói através da análise qualitativa das vozes dos narradores, tanto no

tocante às propriedades narrativas textuais, quanto gráficas. Para corroborar os aspectos

analisados, foram selecionadas imagens do livro que estão inseridas ao longo do texto.

Neste artigo, analisamos o foco narrativo de Maus, dividindo-o entre a narrativa

autobiográfica construída por Art Spiegelman e o relato biográfico de seu pai, tendo como fio

condutor de tais análises a questão da constituição da identidade desses narradores.

Page 3: Renata minami

Universidade Presbiteriana Mackenzie

3

2. REFERENCIAL TEÓRICO

As histórias em quadrinhos, antes marginalizadas pelo meio acadêmico, ganham uma nova

visibilidade com o surgimento da graphic novel ou romance gráfico.

A classificação de Maus como um romance gráfico é o primeiro passo para a

problematização desse quadrinho, pois apesar de tal termo ter sido empregado pela

primeira vez em uma publicação há 31 anos, é recente a boa acolhida no mercado, com

relação à sua distribuição e sua circulação.

Ao Will Eisner, célebre ilustrador e quadrinista falecido em 2005, é conferida a criação do

termo graphic novel por ele ter sido o primeiro a utilizá-lo em seu livro “Contrato com Deus”

(A Contract with God) e a tratar do assunto com um rigor, pode-se dizer, acadêmico. Sobre

tal gênero dos quadrinhos, Spiegelman utiliza uma metáfora visual que resume de forma

eficiente o supracitado conceito – ele afirma “que faz [quadrinhos] para ler com marcador de

páginas, e não em banheiro1”.

Vindo de encontro com esse mundo reduzido das HQs, que predominou até a primeira

metade dos anos 70 nos Estados Unidos, as novelas gráficas passaram a se ocupar em

fazer uma história com uma narrativa mais complexa, polifônica, com episódios longos, com

um rebuscamento intelectual dos temas, personagens, enredo e diálogos e, por fim, um

trabalho com textos e ilustrações “na direção de uma expressividade mais assumidamente

pessoal” (PATATI, Carlos; BRAGA, Flávio, 2006, p. 89).

Will Eisner, em seu livro Narrativas Gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos,

considera as graphic novels como a evolução das HQs, uma vez que elas têm “uma

necessidade de sofisticação literária por parte do escritor e do artista maior do que nunca”

(2008, p. 7). O renomado quadrinista norte-americano ainda salienta que “os quadrinhos

procuraram tratar de assuntos que até então haviam sido considerados como território

exclusivo da literatura, do teatro ou do cinema. Autobiografias, protestos sociais,

relacionamentos humanos e fatos históricos” (EISNER, 2008, p. 8), esses são alguns dos

temas que passaram a fazer parte do universo das HQs.

É desse contexto que emerge a obra Maus: A história de um sobrevivente, romance gráfico

autobiográfico que foi escrito e ilustrado pelo quadrinista Art Spiegelman, que, antes de

1 LUNA, Pedro de. Art Spiegelman abre seu baú. JB Online, Rio de Janeiro, 28 mar 2008. Disponível em: <

http://www.jblog.com.br/quadrinhos.php?itemid=7844>. Acesso em: 10 out 2009.

Page 4: Renata minami

VII Jornada de Iniciação Científica - 2011

4

iniciar seu projeto (auto)biográfico sobre o Holocausto, era um quadrinista conhecido por

seus trabalhos no meio underground2.

A graphic novel conta a vida e os percalços de Vladek Spiegelman, pai do autor da obra, um

judeu polonês sobrevivente do Holocausto e ex-prisioneiro do famoso campo de

concentração de Auschwitz. Não obstante a triste história de seu pai, Spiegelman vai além e

acaba por retratar em seu livro sua conturbada relação com Vladek e o peso de carregar a

história do povo judeu mesmo sem tê-la vivido.

Art Spiegelman é tido, nos Estados Unidos, como um dos maiores quadrinistas da história

da arte sequencial norte-americana, justamente pela criação de Maus que é considerado um

divisor de águas no processo de legitimação dos quadrinhos ao patamar de arte, além de

ser visto como um dos melhores trabalhos da literatura sobre o Holocausto. Seus

quadrinhos sempre tiveram um cunho político-pessoal com um humor, quando existente,

ácido e uma constante representação da sordidez do mundo.

Spiegelman é um artista com uma capacidade ilustrativa completamente variada que se

molda à necessidade de expressão do quadrinho. Sobre o estilo escolhido em Maus, Will

Eisner pontua que: “O visual, acima de tudo, transmitia de maneira bastante apropriada a

impressão de que a arte havia sido criada num campo de concentração. Isso é narrativa

gráfica.” (2008, p. 160).

Segundo Stephen Tabachnick (1993, p. 121), esse aspecto estilístico de Maus se dá,

primeiramente, porque a ilustração é em preto-e-branco, o que nos leva a retomar o

uniforme utilizado pelos prisioneiros dos campos de concentração, os jornais e os filmes em

preto-e-branco sobre a Segunda Guerra Mundial (e produzidos durante esse período

histórico) e sobre o episódio do Holocausto, além de não permitir que o leitor se evada da

aspereza amarga do que foi esse Genocídio3 – as cores facilitariam a evasão.

2 “Os quadrinhos adultos americanos, conhecidos como ‘underground comix’, começaram [...] a se popularizar

nos anos 60. Eram HQs com conteúdo altamente subversivo, que lidavam com política, sexo, rock, drogas e [...]

que faziam parte da contracultura e contestação hippie típica da década de 60. Afinal, eram tempos de ’amor

livre’ e guerra do Vietnã. [...] Porém, o Underground Comix não era necessariamente um sucesso de vendas

capaz de se igualar aos quadrinhos mais comerciais. Não havia apoio financeiro das editoras [...]” (REAME;

YANAZE; REGIS, 2005, p. 2-3. Disponível em: <

http://www.fanboy.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=666>. Acesso em: 10 out 2009.)

3 Tal palavra foi cunhada por Raphael Lemkin, advogado polonês de origem judia, pioneiro no campo do direito

internacional. Utilizou o termo ao se referir ao assassinato em massa de armênios pelos turcos em 1915. Esse

crime e o Holocausto nunca foram considerados judicialmente genocídio, apesar de se enquadrarem em seu

Page 5: Renata minami

Universidade Presbiteriana Mackenzie

5

Spiegelman, no entanto, não se atém somente às ilustrações em seu livro, ele faz uso de

diagramas, mapas e fotos (reais) para tornar seu relato ainda mais pessoal, verossímil e

histórico.

No tocante a Maus, ele levou 13 anos para ser finalizado, mas o trabalho diferenciado

rendeu muito méritos a Spiegelman, pois, Tabachnick (1993, p. 154-162) ressalta em seu

artigo que Maus ganhou nove prêmios, dentre eles os que mais se destacam são o The Will

Eisner Comic Industry Award4 e o Prêmio Pulitzer de Literatura, em 1992, – Maus foi o único

romance gráfico até hoje a receber essa láurea – com o acréscimo ‘especial’, pois o comitê

do prêmio decidiu que a categoria existente, “quadrinho de jornal” (newspaper cartoon), não

era apropriada para o livro, que foi considerado Literatura.

Aliás, o enquadramento de Maus em uma categoria é algo problemático desde o início, pois,

apesar de ser uma graphic novel, é a autobiografia de Art Spiegelman e a biografia de seu

pai. O Jornal norte-americano The New York Times o colocou na categoria de livros de

ficção mais vendidos, o que levou Art Spiegelman a redigir uma carta ao jornal solicitando

que seu livro passasse para a categoria de não-ficção, uma vez que se trata da narração de

fatos pessoais e não de uma história qualquer, fruto de sua imaginação.

Maus se apresenta os conflitos da relação entre pai e filho, o questionamento sobre o

próprio fazer artístico (metacomic), o receio de uma estereotipação do pai como judeu, a

insegurança de Art quanto à possibilidade de não conseguir fazer um livro que relatasse

com autenticidade o que foi o Holocausto para seu pai, por ele não ter vivido tal horror e não

poder sequer imaginar em seus piores pesadelos como teria sido.

Pensando nas questões relacionadas ao “eu” em Maus, é imprescindível tratar do foco

narrativo; afinal, é desta instância que o “eu” se constrói na história.

Como dito anteriormente, em Maus, há dois narradores, Art e Vladek Spiegelman, que

podem ser reconhecidos, segundo a classificação de Friedman retomada por Ligia Leite em

seu livro O foco narrativo, como “narrador-protagonista”. Leite (2002, p. 43) define essa

categoria afirmando que “o NARRADOR, personagem central, não tem acesso ao estado

mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase que

exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos”. Tanto Art, quanto Vladek

conceito. (SCHWEIGHÖFER, Kerstin. Conferência na Holanda debateu o que é genocídio. Deutsch Welle,

Alemanha, 09 dez. 2008. Disponível em: < http://www.dw-world.de/dw/article/0,,3860170,00.html>. Acesso em:

18 nov. 2010.

4 Também conhecido apenas como Eisner Award e é tida como a premiação máxima dos quadrinhos

americanos. Foi criada em resposta à descontinuidade do Kirby Awards em 1987.

Page 6: Renata minami

VII Jornada de Iniciação Científica - 2011

6

narram os fatos ocorridos ao longo da narrativa a partir de suas percepções de mundo,

sendo que cada um protagoniza as histórias por eles narradas.

Os dois narradores revezam suas vozes ao longo do livro, fazendo com que o romance

gráfico se construa sobre a estrutura da narrativa de encaixe, pois há uma narrativa do

passado (história de Vladek) inserida em outra narrativa do presente (história de Artie).

Tzvetan Todorov, filósofo e linguista búlgaro, pontua sobre esse tipo de narrativa que

[...] o encaixe é uma explicitação da propriedade mais profunda de toda narrativa. Pois a narrativa encaixante é a narrativa de uma narrativa. Contando a história de uma outra narrativa, a primeira atinge seu tema essencial e, ao mesmo tempo, se reflete nessa imagem de si mesma; a narrativa encaixada é ao mesmo tempo a imagem dessa grande narrativa abstrata da qual todas as outras são apenas partes ínfimas, e também da narrativa encaixante, que a precede diretamente. Ser a narrativa de uma narrativa é o destino de toda narrativa que se realiza através do encaixe. (2006, p. 126)

A narrativa principal5 se inicia com a fala de Art Spiegelman traçando um sumário: “Fui

visitar meu pai em Rego Park. Não o via fazia tempo. Não éramos muito próximos” (2005, p.

13). A narrativa secundária se inicia com o interesse de Art pela vida do pai, dizendo: “Eu

quero [ouvir sua história]. Comece pela mamãe... Como a conheceu?” (2005, p. 14).

Por se tratar de uma autobiografia, Art narra a história de parte de sua vida de um lugar no

presente, o que leva a uma predominância dos tempos verbais do pretérito perfeito (falei,

tentei), do imperfeito (fazia, davam) e do mais-que-perfeito do indicativo (envelhecera,

casara). Sua narrativa é intercalada pela narrativa em flashback de Vladek, ora para Art

5 A narrativa de Art Spiegelman será referida, nesse trabalho, como a principal apenas porque é ela quem inicia o

romance gráfico, englobando a narrativa de Vladek, que é, portanto, considerada secundária.

Figura 1: Exemplo gráfico da inserção da narrativa de

encaixe. (SPIEGELMAN, 2007, p. 101)

Page 7: Renata minami

Universidade Presbiteriana Mackenzie

7

sanar alguma dúvida proveniente do relato de seu pai, ora para trazer o leitor de volta ao

presente da narrativa de Vladek (mas passado da narrativa de Art). Essa intercalação da

narrativa de encaixe dinamiza o relato dos dois narradores e torna-o mais verossímil, pois o

autor rompe com o fluxo cronológico da história narrada para, em geral, trazer uma situação

de metacomic6, como é exemplificado no quadrinho abaixo:

Enquanto na narrativa de Art teremos questões relacionadas ao fazer artístico dos

quadrinhos e à dificuldade de ele se relacionar com o pai e com o peso do Holocausto, na

de Vladek teremos uma narrativa em flashback, repleta de fotos, diagramas, mapas e

ilustrações esquemáticas de como se constituíam os bunkers ou de como consertar um

coturno, por exemplo. Foram analisadas as visões de cada narrador, levando em conta suas

particularidades.

Por se tratar de uma autobiografia, o narrador-protagonista desta narrativa é também o autor

da obra, fato revelado e assumido a partir do uso constante da metacomic.

O que o narrador-protagonista dessa história traz são os conflitos de um judeu sueco

naturalizado norte-americano, filho de judeus poloneses parcialmente sobreviventes ao

Holocausto. Dizemos parcialmente, pois Artie, em uma conversa com sua esposa Françoise,

quando esta diz “não. Tudo por que ele [Vladek] passou. É um milagre ter sobrevivido.”,

responde “Arrã. Mas de certo modo não sobreviveu” (2007, p. 250), ou seja, o próprio

narrador admite a morte parcial em vida de seu pai.

6 No concernente à metalinguagem em histórias em quadrinhos, optamos por chamá-las metacomic ao invés de

metaquadrinho, pois este é definido, segundo Eisner em Quadrinhos e arte seqüencial (2010, p. 65), como

aquele quadrinho que ocupa uma página inteira, também chamado de superquadrinho. Por metacomic pode-se

entender aquele quadrinho que expõe uma situação do fazer quadrinhos.

Figura 2: Vladek interrompe sua narrativa para

Page 8: Renata minami

VII Jornada de Iniciação Científica - 2011

8

Além disso, nos é relatado que a mãe de Artie, Anja, cometeu suicídio muitos anos depois

de sua passagem por Auschwitz. Este caso é contado em uma narrativa encaixada na

narrativa principal (ver figura 1), que se trata de um quadrinho escrito e ilustrado por Art,

publicado em uma revista underground. Em Prisioneiro do planeta inferno: história de um

caso, temos Artie como um narrador-protagonista que relata em detalhes o suicídio de sua

mãe utilizando-se, para tanto, de ilustrações marcadamente pertencentes ao

expressionismo alemão7, como pode ser observado nas figuras 3 e 4. Há a predominância

dos tempos verbais do pretérito perfeito e do imperfeito do indicativo, pois relata um fato já

ocorrido e acabado.

Nessa história, Artie se sente culpado pela morte materna, considerando-se um assassino,

apesar de ponderar quem (ou quais) poderia(m) ser o(s) verdadeiro(s) culpado(s): Hitler?

Depressão da menopausa? Ela mesma? Tais questionamentos vêm à luz em um único

quadrinho que concentra todas essas indagações se entrecruzando, o que sugere a

avalanche de pensamentos e sentimentos que afligiam Spiegelman naquele momento.

7 Influenciada pela filosofia de Nietzsche e pela teoria de Freud, esta estética caracteriza-se pela manifestação

da subjetividade psicológica e emocional, expressa por meio de contraste de cores fortes, traços marcantes e

imagens distorcidas – produtos do inconsciente.

Figura 3: Ernst-Ludwig

Kirchner, autorretrato,

Figura 4: Art Spiegelman trabalha

com a estética do expressionismo

alemão em Prisioneiro do planeta

Page 9: Renata minami

Universidade Presbiteriana Mackenzie

9

O quadrinho termina com Artie afirmando que a culpada era a própria mãe que o deixou

louco [“deu curto nos meus circuitos... Cortou minhas terminações nervosas... E cruzou

meus fios!...” (2007, p. 105)], matando sua sanidade ao cometer um crime pelo qual ele iria

se sentir responsável, o que a tornaria, portanto, a verdadeira assassina.

Porém, Spiegelman não acusa somente sua mãe, ele também acusa o pai de assassinato,

mas por motivos distintos. Enquanto Anja é uma homicida por ter cometido suicídio, Vladek

o é por ter aniquilado os diários em que Anja relatava o que foi o Holocausto para ela. Nos

dois casos, é a morte da mãe (física em um, memorial em outro) que funciona como

elemento desencadeador da tensão de Art.

No caso de Vladek, ele se diferencia de Artie, porque, enquanto este se preocupa com suas

crises existenciais, aquele se ocupa de sua condição de sobrevivente, vivendo à sombra do

Holocausto e representando, como já dito anteriormente, o estigma do judeu. Vladek quer

Figura 5: Art fica submerso

em seus pensamentos.

Figura 6: Art acusa a

mãe de ser assassina

Figura 7: Art acusa o pai de

matar as memórias da mãe

Page 10: Renata minami

VII Jornada de Iniciação Científica - 2011

10

economizar em todos os aspectos possíveis, é racista (há uma seqüência de quadros que

ilustram Vladek achando que iria ser roubado por um negro, apenas por ele ser negro) e

desconfia de todos com quem convive, achando que querem roubar seu dinheiro ou lhe

causar algum dano. Apesar de Vladek ter se casado, após a morte de Anja, com Mala,

conhecida da família na Polônia e também sobrevivente do Holocausto, ele reclama para

Artie que ela só pensa em dinheiro e que apenas aguarda sua morte para poder ter acesso

à herança.

Esse comportamento desconfiado e materialista – estigma da judeidade8 – é justificado por

Vladek como culpa de Hitler que, durante a II Guerra Mundial, o privou de comida, bebida,

roupas, calçados, itens de primeira necessidade: “[...] Desde Hitler, não gosto de jogar nada

fora” (SPIEGELMAN, 2007, p. 238). Art, porém, põe em dúvida se Auschwitz foi realmente o

responsável por esse jeito de Vladek, dizendo que “[...] muita gente aqui é sobrevivente. Os

tais Karp, por exemplo, talvez sejam pirados, mas é de um jeito diferente do Vladek.”

(SPIEGELMAN, 2007, p. 182).

No tocante à narrativa de Vladek, em flashback, há um fato lingüístico que diferencia seu

modo de narrar do de Artie: aquele, por ser um judeu polonês radicado nos Estados Unidos,

tem sua fala transcrita por meio de um português precário, ou seja, os verbos normalmente

estão no infinitivo (apesar de haver várias ocorrências de conjugação no pretérito perfeito e

no imperfeito do indicativo), há uma confusão entre artigos definidos femininos e

masculinos, além de haver uma recorrente elipse dos artigos indefinidos. Dessa forma,

Vladek, no presente, portanto, na narrativa de Art, tem sua fala sempre transcrita com um

português de estrangeiro. Quando entramos na narrativa em flashback, porém, Vladek

passa a ter suas falas de diálogos transcritas num português adequado às normas

gramaticais, não obstante, as intromissões do narrador, que fala de um tempo no presente,

continuam a se dar por meio de um português notadamente de estrangeiro, como pode ser

observado na figura abaixo.

8 Segundo a postulação da historiadora e psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco (2010, p. 18): “ser judeu,

portanto, não é como ser cristão, porque, mesmo que um judeu abandone sua religião, ele continua a fazer parte

do povo judeu e, portanto da história desse povo: é a sua judeidade, sua identidade de judeu sem deus, por

oposição à judaidade dos que permanecem religiosos”.

Page 11: Renata minami

Universidade Presbiteriana Mackenzie

11

Isso se dá porque no flashback, Vladek está na Polônia, falando polonês, por isso não há

uma motivação para haver o falar de estrangeiro. Por meio dessa diferenciação lingüística,

percebemos os diferentes tempos de onde o narrador-protagonista fala.

A narrativa de Vladek apresenta, portanto, um relato extremamente objetivo, porém muito

descritivo com um caráter documental. Os capítulos do segundo volume de Maus

descrevem os meses vividos em Auschwitz, período de busca por comida, camas, abrigo,

roupas, etc. Nessa perspectiva, impressiona, além do supracitado caráter documental da

obra, o distanciamento que Vladek mantém das mortes e horrores vivenciados.

Enclausurado em sua própria experiência, essa desconexão emocional dos perigos e dos

assassinatos lá testemunhados, aprofundam o relato recriado por Spiegelman.

MÉTODO

A pesquisa teórica deu sustentação ao exame do romance gráfico Maus, mediante a análise

das narrativas visual e textual, com predominância da última, devido ao objetivo de

investigar o foco narrativo da obra.

A seleção das imagens utilizadas no trabalho seguiu o critério da necessidade de

demonstrar como alguns aspectos da narrativa textual se construíam na narrativa visual.

Além disso, foram consultados referenciais teóricos que permitiram que a investigação fosse

realizada, corroborando ou fornecendo embasamento teórico para a pesquisa.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Spiegelman parece vivenciar um processo catártico enquanto está escrevendo e ilustrando

seu livro, pois com as entrevistas com seu pai, Art descobre a história de sua família,

Figura 10: A diferença lingüística na

representação da fala de Vladek no

passado e no presente. (SPIEGELMAN,

Page 12: Renata minami

VII Jornada de Iniciação Científica - 2011

12

portanto sua gênese, e aproxima-se de Vladek de quem ele sempre foi distante (fato

relatado no início da HQ), ou seja, essa autobiografia passa a ser, mais do que uma ponte

entre pai e filho, um espelho da vida de Art que o leva a questionar o seu ser e o fazer

artístico, conduzindo-o a uma jornada rumo ao autoconhecimento.

A auto-análise do ser em Art Spiegelman é o fio condutor do fazer, porque é por ter uma

identidade sabidamente fragmentada que Art quer criar sua autobiografia, como uma

espécie de acerto de contas com sua história e com a de seus pais. O autor sente-se inferior

a seu irmão Richieu, porque enquanto aquele nasceu no pós-guerra, este não sobreviveu ao

Holocausto, o que o levou a ser o filho ideal para seus pais, pois se tornou apenas uma

lembrança e uma “grande foto meio apagada”, na parede do quarto de seus pais – “Dá

medo ter ciúmes de um irmão que é só uma foto” (2007, p. 175).

O fazer se dá pelo desejo inicial de Art de construir um livro que contasse a história de

sobrevivência de seu pai. Para transformar esse relato em quadrinhos Art Spiegelman opta

pela antropomorfização parcial, ou seja, retrata todas as personagens com a cabeça de um

animal, mas com corpos humanos. Para isso decidiu que cada povo, cada etnia, deveria ser

um espécie diferente. A metáfora mais óbvia foi também a mais adequada – os judeus são

ratos e os alemães são gatos.

O autor de Maus não lançou mão da tão conhecida metáfora apenas porque é senso

comum que os gatos perseguem os ratos. Segundo Paulo Pato (2007, p. 126), Spiegelman

opta por essa metáfora porque os nazistas se referiam aos judeus como ratos e também

porque ela representa a eterna luta do mais fraco contra o mais forte, o que demonstra que,

nessa HQ, as personagens afastam-se da iconicidade, pois desempenham uma função

simbólica. Maus possui um evidente recorte semiótico, pois cada personagem assume um

papel determinado no universo da trama, em que a imagem representada é vista como

reflexo ou expressão de um contexto histórico e social, representando os conflitos ocorridos

na II Guerra Mundial e, particularmente, no Holocausto, que demonstram, na perspectiva

bakhtiniana, “um vasto espaço de luta entre as vozes sociais”.

[...] toda imagem artístico-simbólica ocasionada por um objeto físico particular já é um produto ideológico. Converte-se, assim, em signo o objeto físico, o qual, sem deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e a refratar, numa certa medida, uma outra realidade (BAKHTIN, 2004, p. 31).

Justificando a escolha pela antropomorfização, Tabachnick (1993, p. 158) explica que

Spiegelman achou que um estilo realista, ilustrando pessoas ao invés de animais, seria

injusto, pois ele não viveu a história contada, o que faria com que ele não a retratasse com

autenticidade; além disso, Spiegelman receou que, retratando todos como humanos,

passaria a impressão de um panfletário “lembre-se dos seis milhões de judeus mortos no

Page 13: Renata minami

Universidade Presbiteriana Mackenzie

13

Holocausto”. Então, optou pela antropomorfização. O quadrinista declarou também que a

antropomorfização passava a idéia de que os humanos foram rebaixados à condição dos

animais, além de o Holocausto ter sido um episódio terrível demais para ser reproduzido

sem máscaras.

A metáfora proposta por meio da antropomorfização transcende a ilustração das

personagens como animais e alcança o ato da nominação. Spiegelman escolheu como título

da obra o nome Maus9, que, traduzido do alemão, quer dizer rato. Ao entrarmos no livro,

percebemos que o autor manteve a metáfora inclusive nos títulos de alguns capítulos, como,

por exemplo, o quinto capítulo da primeira parte que se chama “Buraco de ratos”; o capítulo

seguinte, “A ratoeira” e, por fim, o primeiro capítulo da segunda parte, “Mauschwitz”.

Ainda sobre o fazer de Spiegelman, há um quadrinho em que a antropomorfização e a

metacomic se encontram, levando ao máximo as duas categorias, pois o narrador-

protagonista se questiona sobre como representar sua esposa, Françoise, que é uma

francesa convertida ao judaísmo. O questionamento se dá tanto na esfera textual, quanto na

pictórica. Segundo Pato (2007, p. 128-129), as escolhas de animais para simbolizar as

diferentes nacionalidades

[...] deixam transparecer uma dinâmica de referências e contrastes em relação aos vários discursos ideológicos historicamente construídos pelas nacionalidades, demonstrando que as imagens precisam ser vistas a partir de um contexto de um processo discursivo e não mimético – neutro e transparente.

Na figura 8 (abaixo), Françoise já aparece retratada como rata, mas vemos Art

experimentando outros animais para ela, pois, Spiegelman não deseja criar um retrato de

sua esposa, e sim instituir um símbolo que representasse mais do que sua esposa, os

franceses, considerando, para tanto, os longos anos de anti-semitismo que existiram na

França. Ao contrário, Françoise deseja ser retratada de forma que mantenha sua

individualidade, repudiando ser enquadrada em um estereótipo, porque deseja manter sua

história, independentemente da história da França.

Nessa perspectiva, podemos considerar que, em se tratando de dialogismo,

[...] a posição da qual se narra e se constrói a representação ou se comunica algo deve nortear-se em face de um universo de sujeitos isônomos, investidos de plenos

9 Uma curiosidade sobre o título da obra é que, apesar de ela ter sido traduzida para cerca de 30 línguas, o título

continua sendo Maus em todas, não tendo sido nunca traduzido. (COZER, Raquel. “Desenhar é sempre uma

luta”, diz Art Spiegelman. Folha Online. São Paulo, 01 dez. 2009. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u659470.shtml>. Acesso em: 20 ago. 2010).

Page 14: Renata minami

VII Jornada de Iniciação Científica - 2011

14

direitos, um mundo de consciências individuais caracterizado por forte grau de autonomia e vida própria, pois a consciência do autor não transforma a consciência dos outros – das personagens – em objetos de sua própria consciência e de seu discurso [...]. (BEZERRA, 2005, p. 195).

Para retratar o disfarce de um judeu em um polonês e reforçar a relação simbólica entre as

representações das nacionalidades e as faces de animais, Spiegelman brinca com sua

própria metáfora e, para isso, coloca uma máscara de porco no rato.

Dessa forma, ele torna a diferença evidente e, para Vladek se disfarçar de polonês com

sucesso, faz uso desse artifício externo, a máscara, o que acaba por ser mais uma bem

sucedida ironia do quadrinista judeu naturalizado americano.

Figura 8: Antropomorfização e metacomic se confluem em um quadro para

sanar a dúvida “Como desenhar Françoise?” (2007, p. 171)

Page 15: Renata minami

Universidade Presbiteriana Mackenzie

15

A antropomorfização de Spiegelman ao visar o rebaixamento do homem à condição de

animal irracional objetiva elucidar a sordidez do que foi o Holocausto para Vladek

Spiegelman, destruindo a idéia de que a representação da personificação dos animais

constitui uma fábula. Spiegelman produz, dessa forma, um texto sincronizado com as

imagens relatando a maior barbárie do século XX, porém em quadrinhos, o que o leva a

questionar a validade de sua criação, expondo mais uma vez sua identidade ainda

fragmentada.

No segundo capítulo do segundo livro de Maus, Spiegelman prossegue com a fragmentação

do eu, iniciando uma concatenação de idéias que funde a morte do pai, com sua estadia em

Auschwitz, com a realização do livro, com a vida pessoal de Artie, com o Holocausto e o

sucesso da graphic novel. Como Spiegelman faz ao longo de todo o livro, as narrativas

visual e textual caminham juntas. Sendo assim, temos nessa cena um Art Spiegelman

humano, vestindo uma máscara de rato, cercado por moscas, debruçado em sua mesa de

desenho. O último quadrinho da página nos mostra o porquê das moscas: Art está em cima

de um monte de corpos de judeus mortos. O sucesso do livro em torno da temática do

Holocausto deprime o autor-narrador que já não sabe mais o motivo de ter feito seu livro e

se sente mais um a tratar do genocídio dos judeus e ganhar notoriedade com isso, o

responsável por tornar a tragédia de sua família em um sucesso de público e crítica –

Spiegelman demonstra que o seu eu é, na verdade, um constante conflito entre o ser e o

fazer, constituindo uma identidade fragmentada porque incapaz de lidar, no presente, com o

passado seu, de seu povo e de sua família.

Já, no caso de Vladek, ele expõe, ao longo da narrativa, sua fragilidade com relação às suas

memórias por meio da tentativa de esquecê-las. Por isso queima os diários de Anja num

momento de muita tristeza: “Depois que Anja morre tive que fazer ordem em tudo... Esses

papéis tinha memória demais. Queimei.” (SPIEGELMAN, 2007, p. 161). Ele também conta,

ao ser indagado por Artie se ele ainda guardava alguma carta trocada com um francês com

Figura 9: Art se vale de uma máscara de

porco para disfarçar as diferenças fenotípicas

dos judeus e dos demais, no caso, dos

Page 16: Renata minami

VII Jornada de Iniciação Científica - 2011

16

o qual ele ficou preso, que as queimou junto com os cadernos de Anja e explica tristemente

que “tudo coisas do guerra tentei tirar do cabeça para sempre... Até você reconstruir isso

tudo com suas perguntas” (SPIEGELMAN, 2007, p. 258).

Aqui, o emprego do verbo “reconstruir” é revelador na fala de Vladek, pois este acredita ter

destruído todas as memórias de suas vivências do Holocausto quando, em um ato único,

queima os cadernos e as cartas com as memórias dos fatos e pessoas desse período;

também acredita que é Artie através de suas perguntas quem reconstrói as lembranças da

guerra, como se essas fossem dissociáveis dele. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que,

para Vladek, o testemunho, ainda que fragmentado, limitado, paradoxal, é uma forma de

reviver o passado, mesmo que de forma fragmentária e imperfeita.

É por meio do relato de Vladek que temos uma narrativa que constrói a figura do herói

épico. Spiegelman alcança essa construção ao ilustrar a história de sobrevivência de seu

pai, mas não de uma sobrevivência ordinária, e sim de uma sobrevivência ao maior

genocídio da história.

Vladek representa a síntese entre a subjetividade da história individual e o sentido épico da

história coletiva. A passagem do plano exclusivamente individual para a esfera do coletivo

dá-se por meio de uma peripécia que é a instauração do regime nazista. A partir daí, a

personagem se revela um novo homem, pois passa a lutar pelo bem comum – apesar de

aparentemente se tratar de uma luta pela sobrevivência do indivíduo Vladek, este se apóia e

ajuda outros judeus nessa luta de um povo contra um regime autoritário – com as armas de

um herói extraordinário, ou seja, pela sapiência, pela inteligência, pela capacidade de

argumentar (e no caso específico de Vladek, pelo seu conhecimento básico de língua

inglesa).

Este, ao sobreviver ao Holocausto, não representa um indivíduo sobrevivente, mas a vitória

do povo judeu, no aspecto tocante à judeidade, ao nazismo, representando, portanto, não

mais um herói qualquer, mas um herói coletivo, porque portador dos anseios e valores de

um povo, de uma cultura.

Esse herói épico, que enfrentou Auschwitz e superou Hitler, encerra seu relato biográfico da

guerra de forma ingênua e frágil, dizendo, após seu reencontro com Anja, “Mais, não precisa

contar. Nós foi muito feliz, e vive feliz, feliz para sempre” (SPIEGELMAN, 2007, p. 296),

Spiegelman demonstra que seu pai edita e altera suas memórias, na medida em que molda

certos relatos e lembrança de forma equivocada. Dizemos ingênua porque Spiegelman nos

deixa saber que Anja nunca superou o que testemunhou nos campos de concentração,

tanto que cometeu suicídio em 1968.

Page 17: Renata minami

Universidade Presbiteriana Mackenzie

17

Após uma pausa, Vladek pede para que a gravação seja encerrada e diz: “Estou cansado

de falar, Richieu. Chega de histórias por hoje...” (SPIEGELMAN, 2007, p. 296). Com essa

frase dita por Vladek, Spiegelman corrobora a idéia de imperfeição da memória diante da

convalescença do pai, da passagem do tempo e do trauma do que foi vivenciado nos

campos nazistas. Parece que os narradores, Vladek e Art, não mais conseguiriam buscar

uma lógica de discurso capaz de narrar os horrores que nem as palavras nem a memória

conseguiriam reviver de forma coerente.

Vladek não se constitui um eu fragmentado, como Art, mas constitui um eu destruído pelo

horror da guerra que, mesmo depois de ter acabado, tirou as vidas daqueles que não

puderam suportar as memórias.

CONCLUSÃO

Após a realização da pesquisa, concluímos que o metacomic e a antropomorfização foram

os aspectos mais estudados, porque eles revelam a subjetividade do processo de criação

elaborado por Spiegelman, demonstrando uma riqueza antropológica tanto na esfera textual,

quanto na gráfica, característica das graphic novels.

Por meio da análise do foco narrativo de Maus, objetivou-se construir a compreensão da

identidade que emerge nessa narrativa dialógica e polifônica, chegando a um entendimento

do sujeito que mediante a forma atinge a esfera da representação social do drama vivido

pelo povo judeu no Holocausto e dos reflexos dessa tragédia nos sobreviventes e em seus

descendentes.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Problemas da poética de Dostoiévski. 4. ed. Tradução

Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

_________ (VOLOCHINOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas

fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Michel Lahud e

Yara Frateschi Vieira. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.

BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo:

Contexto, 2005.

COZER, Raquel. “Desenhar é sempre uma luta”, diz Art Spiegelman. Folha Online. São

Paulo, 01 dez. 2009. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u659470.shtml>. Acesso em: 20 ago. 2010

Page 18: Renata minami

VII Jornada de Iniciação Científica - 2011

18

DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução Fábio Landa. São Paulo: Editora

UNESP, 2002.

EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. Tradução Luís Carlos Borges. 4. ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2010.

___________. Narrativas gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos. Tradução

de Leandro Luigi Del Manto. 2. ed. São Paulo: Devir, 2008.

KIRSCHNER, Ernst-Ludwig. Auto-retrato. Disponível em: <

http://artemodernafavufg.blogspot.com >. Acesso em: 20 nov. 2010.

LEITE, Ligia Chiappini M. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). São Paulo:

Ática, 2002.

LUNA, Pedro de. Art Spiegelman abre seu baú. JB Online, Rio de Janeiro, 28 mar. 2008.

Disponível em: < http://www.jblog.com.br/quadrinhos.php?itemid=7844>. Acesso em: 10 out

2009.

PATATI, Carlos; BRAGA, Flávio. Almanaque dos quadrinhos: 100 anos de uma mídia

popular. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

PATO, Paulo Roberto G. Histórias em quadrinhos: uma abordagem bakhtiniana. 2007.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de Brasília, Brasília, 2007.

REAME; YANAZE; REGIS, 2005, p. 2-3. Disponível em: <

http://www.fanboy.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=666>. Acesso em: 10

out 2009.

ROUDINESCO, Elizabeth. Retorno à questão judaica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

SCHWEIGHÖFER, Kerstin. Conferência na Holanda debateu o que é genocídio. Deutsch

Welle, Alemanha, 09 dez. 2008. Disponível em: < http://www.dw-

world.de/dw/article/0,,3860170,00.html>. Acesso em: 18 nov. 2010.

SPIEGELMAN, Art. Maus: A história de um sobrevivente. Tradução Antonio de Macedo

Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

TABACHNICK, Stephen E. Of Maus and memory: the structure of Art Spiegelman’s graphic

novel of the Holocaust. Word & Image. s/l, v. 9, n. 2, p. 154-162, 1993.

TODOROV, Tzevetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006. (Debates,

14).

Contatos: [email protected] e [email protected]