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Renascimento nos ManguezaisVozes das mulheres mudam a perspectiva do cultivo de ostras no Brasil

Marisqueira coletando ostras do manguezal da Baía de Iguape. Crédito: Enrico Marone

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Elizabete Soares, tal como muitas das marisqueiras de Maragogipe, Brasil, aprendeu com sua mãe a coletar ostras no manguezal. Aos 35 anos,

ela ainda realiza a mesma atividade: toda manhã, de segunda a sexta-feira, Bete vai para o manguezal sozinha ou com um pequeno grupo de outras quatro marisqueiras. Ela envolve seus pés em botas feitas de pernas de calças jeans usadas e atravessa a lama na escuridão, buscando as ostras através de uma barra de ferro de 10 cm presa a uma pedra. Embora Bete e os métodos tradicionais de coleta não tenham mudado, a saúde e a prevalência dos manguezais brancos, pretos e vermelhos de Maragogipe diminuíram substancialmente desde que Bete era criança, e com eles também diminuíram a quantidade de ostras.

Bete lembra como era ver sua mãe coletar ostras. “Ela coletava cerca de três quilos”, diz ela. “Hoje, há marés onde eu nem consigo coletar um quilo de ostras, e as ostras são muito menores do que no tempo dela”. As marisqueiras, mulheres catadoras de mariscos responsáveis pela maior parte da coleta de ostras nativas em Maragogipe, vinculam a queda das unidades populacionais de ostra nativa ao desenvolvimento de atividades impactantes e à extração excessiva de recursos na área. Mas seus problemas não param por aí: durante anos, as mulheres também enfrentaram condições de trabalho intensas e restrição de acesso aos mercados locais. No final de 2014, Daniel Andrade, um Maragogipano que trabalhou para defender os manguezais da região desde os 17 anos, estabeleceu uma parceria com a Rare para ajudar as marisqueiras a mudar seu status quo.

Daniel implementou a Campanha por Orgulho com a Rare nas comunidades de Capanema e Baixão do Guaí, Maragogipe, para promover o manejo sustentável das ostras e lambretas, além da conservação dos manguezais que as abrigam. Olhando para as marisqueiras como atores-chave para liderar a adoção da gestão sustentável local, Daniel as encorajou a se apropriar de suas múltiplas identidades como catadoras de mariscos, mulheres e quilombolas (descendentes de escravos) - e canalizar essas identidades de forma unificada. Três anos depois, elas emergiram como líderes locais, com um forte sentimento de orgulho em relação a sua profissão e conseguiram equilibrar a produção de ostras com a conservação dos manguezais.

Maragogipe é um dos três municípios que compõe a Resex Baía de Iguape, localizada na costa do estado da Bahia, Brasil, onde os estuários dos rios Guaí e Paraguaçu se cruzam. São 19 comunidades maragogipanas que obtêm seu sustento através do manguezal, possuindo a pesca como seu modo de vida e fonte de alimento, e tendo a ostra como o fruto do mar mais valioso da região. A coleta dos mariscos de Capanema e Baixão do Guaí é realizada principalmente por um grupo de cerca de 30 marisqueiras, que trabalham arduamente para atender a alta demanda de ostras devido ao consumo crescente do mercado baiano.

Grandes empresas localizadas no entorno da RESEX Baía do Iguape, também comprometeram os manguezais e outros ecossistemas marinhos que os maragogipanos dependem. Os moradores locais citaram exemplos dessas empresas, incluindo o Estaleiro da Indústria de Construção Naval e a Usina Hidrelétrica Pedra do Cavalo. O estaleiro destruiu 15 hectares de manguezais, alterou processos de maré e a qualidade da água, destruiu a biota marinha, afetou os crustáceos locais com a dragagem e acelerou a erosão das margens dos rios. A usina hidrelétrica modificou a hidrodinâmica do rio Paraguaçu, aumentando a salinidade da água. Como resultado, diversas espécies de peixes e mariscos desapareceram e a empresa continua a operar sem permissão das agências ambientais brasileiras. Bete Soares tem certeza de que existe uma conexão entre as atividades das empresas e a deterioração dos ecossistemas locais. “Eles apenas dizem que o número de pescadores cresceu, mas depois que as empresas se estabeleceram aqui, os peixes e os mariscos desapareceram”, diz ela. “Estou na maré todos os dias, eu vejo o que está acontecendo.”

A presença do estaleiro, da usina hidrelétrica, da pesca destrutiva e outras atividades na baía, tornaram irreconhecíveis algumas áreas do manguezal. Mesmo que essas forças antagônicas desapareçam, as marisqueiras ainda enfrentarão uma série de riscos ocupacionais. A tarefa de coletar ostras selvagens traz problemas para a saúde das marisqueiras.

Eu posso escolher o tamanho e a quantidade de mariscos que eu quero ou preciso para sobreviver, e deixar o restante na natureza para que outras pessoas também possam coletá-los.”– Vânia Pereira, marisqueira local

Vânia Pereira, 28 anos, vem de uma família de pescadores e catadores de mariscos de Capanema. Ela coleta mariscos com sua mãe e irmãs, as quais aprenderam através das gerações passadas a realizar o extrativismo sem prejudicar o meio ambiente marinho, escolhendo as ostras que amadureceram o suficiente sem coletar excessivamente. “Eu posso escolher o tamanho e a quantidade de mariscos que eu quero ou preciso para sobreviver, e deixar o restante na natureza para que outras pessoas também possam coletá-los”, diz Vânia. Nem todos na área compartilham desta filosofia, particularmente pessoas de fora da comunidade que vêm para pescar ou coletar mariscos e deixam um rastro de destruição no ambiente. Vânia viu pescadores entrarem com dinamite, destruindo partes do ecossistema por uma rápida captura. “Eles entram, colocam a bomba, pegam os peixes que morrem no local e vão embora”, diz ela.

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Expostas aos raios UV, elas atravessam a água poluída pelo saneamento básico impróprio, água de lastro dos navios e pesticidas utilizados em fazendas de eucalipto próximas (o que pode causar lesões na pele). Várias partes do corpo ficam cheios de cortes das conchas que coletam e do lixo deixado ao redor dos manguezais, e elas vivem com dores diárias nas pernas, costas, cabeça e joelhos por agachar nos manguezais e atravessar as raízes, a lama e a água. Uma vez que as marisqueiras coletam suas ostras e mariscos, elas geralmente têm que repassá-los para os atravessadores, recebendo pouco por suas capturas. “O atravessador chega na nossa porta para pegar as ostras”, lembrou Bete em uma conversa com Daniel Andrade logo antes de sua campanha ter começado. “É muito trabalho, o negociante compra na minha mão por 15 reais, mas certamente vende por 20 a 25 reais”.

Daniel Andrade, maragogipano nascido e criado, cresceu testemunhando as mudanças na pesca local e a transformação dos manguezais. Daniel vem de uma família de pescadores. Seus tios pescavam caranguejos,

camarões e outros peixes pequenos através de uma única canoa e perto da comunidade, então falar sobre comércio e declínio das unidades populacionais de peixes, sempre foi comum. Aos 16 anos, quando Daniel amadureceu seu amor pela música e desgosto pela autoridade, ele criou uma banda com seus amigos denominada Vovó do Mangue. “Eu e o meu grupo de amigos éramos jovens rebeldes segundo os padrões da época, fazíamos música rock, andávamos de skate e escrevíamos fanzines”, diz Daniel. “Considerando o desrespeito das autoridades pela cultura e educação, inicialmente criamos a Produtora Vovó do Mangue, uma organização sem fins lucrativos para cuidar de projetos culturais da banda Vovó do Mangue. Começamos a realizar projetos sociais, como o ‘Natal sem fome’, uma campanha de coleta de alimentos para as comunidades mais necessitadas. Com essas visitas às comunidades, vimos a degradação que estava ocorrendo nos manguezais, porque a maioria das comunidades mais pobres de Maragogipe localizam-se à beira deles. Vimos como as pessoas destruíram os manguezais com muito lixo, esgoto e tudo o que degrada o ecossistema “.

O dano que eles viram inspirou-os a criar a Fundação Vovó do Mangue em 1997, para trabalhar com a recuperação dos manguezais. “Naquela época, eu tinha 17 anos e foi o meu primeiro esforço de conservação, mesmo antes da Resex ter sido criada [na Baía do Iguape]”. O trabalho de Daniel, como diretor da fundação, finalmente o conectou a Rare. Ele se tornou um coordenador de campanha em dezembro de 2014 e lançou a Campanha por Orgulho, aproveitando a metodologia de marketing social da Rare para promover a missão da Vovó do Mangue em proteger os manguezais. Ele pretendia despertar nas marisqueiras um grupo de líderes comunitários que poderiam inspirar Capanema e Baixão do Guaí a adotar o manejo sustentável das ostras e promover

mudanças sociais e profissionais positivas em suas próprias vidas.

As marisqueiras já coletavam as ostras nativas há muito tempo e a campanha buscou ajudá-las a melhorar a prática através de medidas como o cumprimento do Contrato de Gestão da Resex, que estipula que os coletores de marisco devem evitar coletar e vender ostras menores que cinco centímetros para proteger o ciclo de reprodução da espécie. Ao mesmo tempo, Daniel olhou para além do escopo usual da produção de ostra em Capanema e Baixão do Guaí e partiu para ajudar a implementar o cultivo de ostra nas duas comunidades. Se as comunidades conseguissem adotar o cultivo de forma sustentável isso poderia ajudá-las a evitar a sobre exploração de ostras nativas.

Marisqueiras de ostras da Baía de Iguape.

Ao longo da implementação da campanha, Daniel se concentrou em fornecer autonomia para as marisqueiras, criando uma campanha “com elas” e não apenas “para elas”, diz ele. Ele tinha que estar ciente de todas as facetas da identidade marisqueira, incluindo sua ancestralidade quilombola. Os catadores de marisco de Maragogipe são descendentes de escravos afro-brasileiros que escaparam das fazendas escravas que existiam no Brasil até a abolição em 1888. “É uma característica das comunidades quilombolas serem muito fechadas e desconfiadas de quem vem de fora, porque é muito comum ver pessoas e projetos que prometem mil coisas, usam as comunidades e depois vão embora”, diz Daniel. “Então, a campanha começou literalmente batendo nas portas dos líderes comunitários, realizando reuniões e comparecendo às reuniões do Conselho da Resex e Quilombola. Havia

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todo um processo de construção de confiança e, gradualmente, eles perceberam que era uma proposta diferente.” O slogan da campanha trouxe a tona as raízes das marisqueiras quilombolas: “Marisqueira com orgulho, quilombola para sempre”.

As marisqueiras desenvolveram toda a campanha do início ao fim com Daniel e “nada foi escrito ou colocado em prática sem suas opiniões e decisões”, diz ele. A campanha realizou reuniões e atividades mensais, incluindo um curso de nove meses ministrado pela Secretaria de Políticas da Mulher (SPM), no qual todas as mulheres de ambas as comunidades participaram. As mulheres aprenderam sobre o cultivo de ostra em viagens às comunidades de Kaonge e Dendê, onde o cultivo ocorre há mais de 15 anos. A campanha também acolheu pesquisadores e estudantes universitários em visitas mensais, que acompanharam as marisqueiras aos manguezais para saber mais sobre suas condições. Daniel e sua equipe trouxeram pessoas do Bahia Pesca (agência baiana de pesca) para visitas técnicas. “Tivemos a sorte de encontrar pessoas e parceiros que acreditassem no projeto”, diz Daniel. “Mas, mais importante do que as atividades da campanha, foram as conversas informais, visitas de fim de semana voluntárias e reuniões com as famílias das marisqueiras, participando de alguma forma de suas vidas e deixando-as participar da minha também. Hoje eu posso dizer que me tornei membro das comunidades“.

comunidade, uma em Capanema e outra no Baixão do Guaí. As 30 famílias de marisqueiras - escolhidas por critérios definidos por elas mesmo - gerenciam as fazendas de ostra. Eles montaram a fazenda utilizando estruturas feitas de bambu, coletores de sementes produzidos com garrafas PET (garrafas de plástico, principalmente refrigerantes ou garrafas de água, geralmente jogadas no lixo) e usam um gerenciamento compartilhado. Em seus métodos, a empresa promove a autonomia dos produtores de mariscos enquanto assegura a sustentabilidade: o método pode ser utilizado por todos os pescadores e o uso de garrafas no cultivo reduz o impacto dos resíduos plásticos na comunidade. Este ano, a fazenda de ostra ganhou o Prêmio do Consulado da Mulher da empresa Cônsul e com ele recursos adicionais de R$10.000,00 a ser utilizado na compra do terreno em que será construída a sede da associação Mariquilombo. As marisqueiras ainda esperam encontrar outros recursos para construir uma cozinha semi-industrial na sede, onde possam fazer pães, biscoitos e outros produtos de mandioca.

À medida que as ostras cultivadas crescem, as marisqueiras usam seus anos de experiência para coletá-las. “Elas me chamam e enviam vídeos felizes de cada nova conquista, como quando juntaram mais de mil sementes de ostras”, diz Daniel. “Elas já sabem como lidar com o cultivo, já sabem quando e como limpar as ostras, trocar os travesseiros e remover as sementes. Elas já dominam todas as etapas e fazem tudo por si mesmas”. Combinados, os cultivos de Capanema e Baixão do Guaí produziram cerca de 1.400 conjuntos de ostras em dúzia prontas para o mercado, e as marisqueiras estão se preparando para realizar sua primeira comercialização de ostras cultivadas.

Hoje, quando as marisqueiras se dirigem aos bancos de manguezais, elas usam bonés, botas de neoprene e camisas de proteção UV, adquiridos através de recursos oriundos da campanha. Elas mudaram a forma como vendem suas ostras, vendendo-as pela dúzia ao invés de individualmente e negociando com clientes finais ao invés de atravessadores. E quando elas falam perante a comunidade, elas falam como líderes. “Elas se sentem mais confiantes e orgulhosas do que fazem”, diz Daniel. “Muitas não têm mais medo ou vergonha de falar em público ou expor suas opiniões”. Daniel pretende garantir que permaneçam dessa maneira. “Pretendo continuar a aconselhá-las, mesmo após a conclusão do projeto em parceria entre a Rare e a Fundação Vovó do Mangue, até que possam caminhar sozinhas”, diz ele. “Esta é a minha responsabilidade”.

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Elas se sentem mais confiantes e orgulhosas do que fazem. Muitas não têm mais medo ou vergonha de falar em público ou expor suas opiniões.”– Daniel Andrade, Coordenador de Campanha da Resex Baía de Iguape

Seguindo uma comunicação constante e de construção de confiança ao longo da campanha, as marisqueiras decidiram construir uma associação local para impulsionar ainda mais a gestão sustentável em Maragogipe. “Estamos criando a Associação de Marisqueiras e Quilombolas - Mariquilombo - para que a gestão do cultivo e novos projetos possam ser monitorados e gerenciados por elas, pois ocupam 100% do quadro”, diz Daniel. Seu trabalho incluirá a execução da Fazenda de Ostra implementada durante a campanha, que desde então tem gerado frutos além das expectativas do Daniel ou das marisqueiras.

A campanha encontrou parceiros para agregar outros recursos financeiros necessários para que fossem adquiridos o equipamento de aquicultura de ostra e instaladas duas unidades de cultivo de ostra na