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Reminiscências de memórias e sentimentos: um estudo de caso de três
comentários contidos nos Cadernos de Críticas e Sugestões do MAE UFPR.
Ana Luisa de Mello Nascimento
PPHGIS UFPR
O presente trabalho tem como proposta analisar três comentários que se referem à lembranças da infância retirados dos “Cadernos Críticas e Sugestões do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Paraná”, datados dos anos de 1989 e 2001. A partir dos registros deixados pelo publico, pretende-se analisar de que forma o museu, entendido aqui como um lugar de memória, pode trazer à tona reminiscências, lembranças, memórias e sentimentos, suscitados pelo contato dos visitantes com as peças expostas. Os “Cadernos de Críticas e Sugestões” são meios de comunicação direta e espontânea dos visitantes com o MAE UFPR, uma vez que estão à disposição das pessoas na recepção do museu e não possuem campo de preenchimento obrigatório. Ao realizar esta pesquisa levou-se em consideração alguns conceitos pertinentes ao campo de estudo e que são fundamentais para o desenvolvimento da análise dos comentários, tais como os conceitos de memória, história e esquecimento, amplamente desenvolvidas por autores como Paul Ricouer e David Lowenthal; de museus como locais de memória, categoria trabalhada por Pierre Nora; e a questão dos sentimentos, trabalhada por Claudine Haroche. Será por meio da articulação destes conceitos que este trabalho será desenvolvido.
Palavras-Chave: Museu; Memória; Sentimento
Introdução
O Museu de Arquologia e Etnologia da Universidade Federal do Paraná,
fundado em 29 de julho de 1963 pelo Professor José Loureiro Fernandes, tem sua
sede expositiva localizada em Paranaguá no prédio onde se situava o Antigo Colégio
dos Jesuitas. A formação das coleções e da primeira exposição tinham relação direta
com os estudos e interesses de seu fundador, em especial no campo do folclore e
das artes populares.
O conceito da primeira exposição permanente de Cultura Popular refletia os
ideais folcloristas vigentes nas décadas de 1950-60, de forma a ressaltar o modo de
vida das populações tradicionais ameaçadas pela urbanização, segundo seus ideais.
Desta forma, o circuito expográfico utilizava a cenografia como forma de auto-
explicar os processos evidenciados como a pesca, a produção e o processamento
da cana-de-açúcar, a produção da farinha, a tecelagem, dentre outros. Por meio da
formação das coleções de Cultura Popular e da abertura da exposição, o recém-
criado museu se inseriu nos programas políticos nacionais do período indo de
encontro, desta forma, aos objetivos traçados pela Campanha Nacional do Folclore1
e na busca da criação, por parte do Estado, de uma identidade nacional2.
Este artigo tem como proposta analisar três comentários deixados pelos
visitantes do MAE UFPR nos Cadernos de Críticas e Sugestões do MAE UFPR3 a
respeito da antiga exposição permanente. Mais especificamente, foram selecionados
comentários nos quais as pessoas se referem à lembranças da infância a partir do
contato que elas tiveram com algumas peças de Cultura Popular que estavam em
exibição. Estes registros contém aspectos memorialísticos como também afetivos,
na medida em que revelam alguns sentimentos dessas pessoas. Desta forma este
trabalho está dividido em três partes: na primeira, são apresentados os cometários e
uma breve reflexão sobre os escritos deixados pelos visitantes; na segunda, discute-
se a questão dos museus como lugares de memória articulando conceitos de
memória e sentimentos; por fim, são apresentadas as considerações finais deste
artigo.
Recordar o Passado: Objetos, Memórias e Sentimentos
Ao realizar a pesquisa com os comentários contidos nos Cadernos do período
em que a exposição ainda estava montada no museu, percebi certos elementos que
1 “A Campanha era um organismo federal destinado a 'defender o patrimônio folclórico do Brasil e a
proteger as artes populares'. Ela trazia uma proposta de atuação urgente: no folclore, acreditavam os folcloristas de então, se encontravam os elementos culturais autênticos da nação, porém o avanço da industrialização e a modernização da sociedade representavam uma séria ameaça. Por essa razão, a cultura folclórica devia ser intensamente divulgada e preservada. A Campanha fomentou pesquisas em diferentes regiões, bem como sua documentação e difusão através da constituição de acervos sonoros, museológicos e bibliográficos. Agregou também intelectuais que participaram ativamente de debates conceituais, em diálogo com as ciências sociais que prosseguiam sua institucionalização no mesmo período. ” (CAVALCANTI, 2002: p.04) 2 O cenário cultural da política brasileira no início da primeira metade do século XX até as décadas de 50 e 60,
foi marcado pelas discussões sobre a formação de um modelo de nação, passando pelo questionamento do que seria a cultura nacional. Neste sentido intelectuais como Mário de Andrade, Gustavo Capanema, entre outros, participavam diretamente da política cultural daquela época. Desta época datam a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, SPHAN (futuramente chamado de IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e as primeira iniciativas de entendimento do que seria o patrimônio nacional. Do mesmo período também ocorre a criação da Comissão Nacional do Folclore.
3 Até o presente momento, nas pesquisas realizadas nos na Unidade de Arquivo do MAE UFPR, foi possível
localizar cinco Cadernos datados da época em que a exposição ainda estava montada: 1984-1986; 1988-1991; 1996-2000; 2000-2003; 2004.
propiciam uma reflexão a cerca de alguns aspectos, tais como a memória individual,
ligada a aspectos pessoais vivenciados pelo público em sua infância; a maneira
como esta memória se articula com a presença dos objetos expostos; e também o
próprio ato do registro escrito sobre esta experiência.
Recordar o passado é trazer à tona sentimentos antes esquecidos, é
tencionar as diversas memórias que habitam os indivíduos, sejam elas pessoais,
familiares ou de grupos, e que estão em constante reconstrução no interior dos
sujeitos. A memória é seletiva e as lacunas são necessárias para que os indivíduos
sigam em frente com suas vidas, mas é por meio de ritos ou traços deixados que é
possível relembrar o que antes se julgava perdido nas teias do esquecimento
(CATROGA, 2015: 24). A partir da premissa de que nada é exatamente apagado e
que, de alguma forma, permanece latente, bastando o confronto com elementos que
revivam determinados momentos para que as lembranças venham à tona (CANDAU,
2012: 127), é que destaco três comentários deixados por visitantes do MAE UFPR,
os quais deixaram registrados um pouco destes instantes de recordação da infância
e referências familiares, ao se defrontarem com alguns objetos em exposição.
A seleção dos comentários analisados neste ensaio levou em consideração
alguns aspectos particulares, em especial no que se refere ao conteúdo, mas
também a questão das informações sobre os próprios autores da escrita. Como os
cadernos não possuem campos de preenchimento obrigatório, o visitante fica livre
para escrever sobre o que ele quiser, logo, alguns optam por deixar mais
informações, como nome, idade, local de origem, data e até endereço, no entanto,
outros apenas registram suas opiniões, sem deixarem muitas informações sobre si.
Logo, a escolha dos comentários transcritos abaixo ocorreu por conta, também, de
trazerem informações sobre os autores, o que permite uma perspectiva mais ampla
sobre o que a escrita dessas pessoas referenciam:
1. “Bacana e completo igual a este eu nunca vi.
Recordei de muitas peças que convive [sic] em
criança. Exemplo a fiação e tear, gamelas etc.
Parabéns. Maria do Carmo G. Pedrozo 07-03-89”4
4 Caderno de Críticas e Sugestões 1988 a 1991, p.28
2. “Gostei das canoas e artigos de pesca. Gostei
porque minha avó, tinha uma e meus pais moravam
na Ilha dos Valadares e eu também fui criado um
pouco lá. Muitas vezes vim aqui e não tinha notado
este caderno, é a primeira vez que eu estou
assinando-o, tenho 16 anos. Obrigado! Luciano
Ferreira dos Santos 01-09-89”5
3. “Estive aqui, sou de Foz do Iguaçu senti saudade
da casa da minha vózinha vendo o monjolo que ela
tinha na casa dela em uma chácara há muitos anos,
eu era criança. Tchau! Até breve se Deus quiser
gostaria que deixasse tirar fotos para recordação.
Obrigada 16/6/01 Rita [sobrenome ilegível]”6
Ao observarmos os comentários acima, percebemos alguns aspectos em
comum, outros destoantes, e alguns ausentes na escrita deles. Dentre as
características em comum dos comentários podemos destacar os seguintes:
primeiramente a comunicação com o museu por meio de um elogio, “bacana e
completo”; de um comentário, “muitas vezes vim aqui e não tinha notado este
caderno”; ou de uma sugestão “gostaria que deixasse tirar fotos para recordação”;
em segundo lugar, a questão da assinatura e da datação do dia exato em que
deixaram este registro; terceiro lugar, a referência ao passado por meio de palavras
que se remetem a um tempo anterior ao presente como “recordei”, “em criança”,
“tinha”, “fui criado” e “há muitos anos”; em quarto, a citação de objetos como: tear,
gamelas, artigos de pesca e monjolo; em quinto, a referência direta a infância pela
presença das expressões “criança” e “fui criado”, e por último, revelam um pouco
sobre os sentimentos de quem escreveu como “bacana”, “parabéns”, “gostei” e
“saudade”.
Entretanto, existem alguns aspectos que diferenciam estes comentários entre
si e que devem ser levados em consideração: o primeiro ponto é a não possibilidade
5 Idem, p.54 6 Caderno de Críticas e Sugestões 2000 a 2003, p.48
de se saber de onde vem (cidade ou estado) Maria do Carmo, dona do comentário
1, enquanto que os donos dos demais comentário citam diretamente um local – Ilha
dos Valadares e Foz do Iguaçu; o segundo ponto é a questão da idade, apenas
Luciano, dono do segundo comentário, deixa claro este dado “tenho 16 anos”, não
sendo possível saber qual a idade das demais pessoas; por último há a citação de
aspectos ligados à família presentes nos comentários de Luciano e Rita, “minha
avó”, “meus pais”, “minha avozinha”, mas que não são presentes, diretamente, no
comentário de Maria do Carmo.
A partir desses aspectos levantados por estes três comentários é possível
pensarmos diversas categorias, tais como memória, história, esquecimento e
sentimentos e, para tanto, nos reportamos a David Lowenthal. Ao analisar a
memória Lowenthal (1981: 78) afirma: "recordamos apenas nossas próprias
experiências em primeira mão, e o passado que relembramos é intrinsecamente o
nosso próprio passado.". Se observarmos com atenção os comentários percebemos
que um dos aspectos principais revelados por eles diz respeito diretamente aos
fragmentos de lembranças individuais dessas pessoas, memórias da infância por
eles antes esquecidas.
Lowenthal, ao pensar a forma como tomamos consciência do passado,
escreve que estamos cercados por relíquias de épocas anteriores, o passado nos
cerca e nos preenche, mas que só é possível tomarmos consciência desse passado
como um período distinto do presente na medida em que o reconhecemos como tal
(1981: 64). Ou seja, estes comentários, mesmo que breves, revelam aspectos
memorialísticos da infância e trazem um pouco da subjetividade própria de cada
indivíduo mediante o contato com os objetos expostos, de forma que a distensão
temporal necessária para o reconhecimento de um âmbito temporal diferente do
presente fora realizado pelo próprio ato de encontrar aqueles objetos, antes perdidos
nos esquecimentos da memória, expostos no museu.
Neste aspecto, se pensarmos o ato de relembrar, ele está associado
diretamente ao ato de esquecer, silenciar e excluir (CATROGA, 2015: 25). A
memória, assim como a história, é residual. Lembramos aquilo preservamos, seja
por meio de ritos de rememoração, seja por meio de vestígios inscritos no presente.
Lowenthal nos aponta que “a erosão do tempo afeta tristemente o que resta das
lembranças” (1981:74). Entretanto, como escreve Candau, a memória é “uma
paisagem incerta”(2012: 127), ou seja, ela é como um canteiro de obras, campo fértil
sempre em construção e reconstrução.
“A memória esquecida, por consequência, não é
sempre um campo de ruínas, pois ela pode ser um
canteiro de obras. O esquecimento não é sempre
uma fragilidade da memória, um fracasso da
restituição do passado. Ele pode ser o êxito de uma
censura indispensável à estabilidade e à coerência da
representação que um indivíduo ou membros de um
grupo fazem de si próprios.” (CANDAU, 2012: 127)
Se pensarmos na memória sempre em processos de construção e
reconstrução, como nos aponta o autor, este aspecto maleável, plástico, permite que
pequenos momentos possam ser relembrados a partir de experiências atuais, como
é o caso dos visitantes que foram ao MAE UFPR e se deparam com peças
presentes em sua infância. Foi a partir do contato inesperado com objetos que as
reminiscências de lembranças puderam ser trazidas à tona e o fio da memória pode
ser puxado, como comenta Catroga:
“Mesmo no campo estritamente subjetivo, cada
indivíduo, ao recordar a sua própria vida (ou melhor,
certos aspectos ou acontecimentos dela), une os
instantes numa espécie de linguagem contínua e
finalística. Para que esta convicção funcione, é
necessário, contudo, que haja esquecimento. E só as
inesperadas irrupções do esquecido e recalcado
põem em causa o fio que a retrospectiva desdobra.”
(CATROGA, 2015: 28)
Entretanto, cabe destacar que o objetivo da exposição permanente do MAE
UFPR não era, explicitamente, tocar o subjetivo das pessoas. O plano expográfico
possuía um objetivo claramente definido, o de destacar as diferentes técnicas
utilizadas pelo o que compreendiam como “o Homem” brasileiro ao longo da história,
conforme o texto abaixo:
“A programação adotada pelo Museu de Arqueologia,
estabelecendo que coleções arqueológicas e
etnográficas deveriam ressaltar as técnicas utilizadas
pelo homem brasileiro, nos diferentes períodos
prehistóricos e históricos veio, desde logo, determinar
o objetivo básico do plano de exposição: a
necessidade de se documentar a dinâmica das
técnicas nos vários aspectos da cultura material do
homem brasileiro. Foi, portanto, nossa intenção
transmitir, em cada vitrine, dois conteúdos, duas
mensagens culturais ao público: uma de caráter
tecnológico, fixando os meios de ação do homem
sôbre a matéria prima; outra de natureza funcional,
documentando o uso dêsse instrumental criado, face
às necessidades do homem de atuar no meio
ambiente.” (NUNES: 1966, pp.01-02)
Neste aspecto, apesar do plano da instituição, os objetos expostos criaram
uma relação mais ampla do que somente a de transmitir um conhecimento técnico
ao público. Essas peças se conectaram intimamente, a partir de alguns objetos, com
o subjetivo e o afetivo daquelas pessoas a ponto delas não apenas terem vivido a
experiência da rememoração, mas terem, também, deixado isto registrado no museu
como uma forma de perpetuar e compartilhar sua experiência. Desta forma,
precisamos pensar os museus dentro da categoria de Lugares de Memória,
trabalhada por Pierre Nora, e refletir que memórias são estas que esta instituição se
propõe a preservar e como isto se relaciona com o público.
Uma reflexão a cerca dos museus como lugares de memória
Pensar os comentários e a forma como os visitantes se relacionam com o
museu, é refletir sobre o papel da própria instituição dentro de uma perspectiva que
leve em consideração suas funções e relações, historicamente, com o público. Da
mesma maneira, é também se questionar a respeito de como estas relações
estavam pensadas dentro do museu, de forma que isto se reflete em sua relação
com as pessoas e com os comentários registrados.
Por outro lado, todo este debate perpassa uma ideia central: o de Lugares de
Memória, trabalhado por Pierre Nora e desenvolvido por outros estudiosos da área
de memória, que caberia aqui trazer para se pensar as possíveis relações entre
memória e museu. Segundo Nora, este conceito remete a um período em que há o
embate entre o crescimento industrial sobre as comunidades tradicionais, o que
marcaria o fim do que ele chama de “sociedades-memória” e da transmissão de
valores intrínsecos a estes grupos, os quais possuem forte bagagem de memória
mas fraca bagagem histórica. A mudança na forma de lidar com a transmissão
memorial marca, também, uma transformação na “(…) percepção histórica que, com
a ajuda da mídia, dilatou-se prodigiosamente, substituindo uma memória voltada
para a herança de sua própria intimidade pela película efêmera da atualidade.”
(NORA, 1993: 8). Para o autor, o “arrancar da memória sob o impulso conquistador e
erradicador da história tem como que um efeito de revelação: a ruptura de um elo de
identidade muito antigo, no fim daquilo que vivíamos como uma evidência: a
adequação da história e da memória.” (NORA, 1993: 8).
Neste sentido, os lugares de memória seriam aqueles onde a memória se
cristalizaria em oposição a uma sociedade acelerada, em permanente mutação, a
qual perdeu a capacidade de rememorar por si só suas memórias. “Os lugares de
memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é
preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações,
pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são
naturais.” (NORA, 1993: 13). Desta forma, podemos dizer que os museus se
encaixam nesta categoria de lugares de memória, na medida que possuem como
uma de suas principais funções a coleta e a preservação de objetos do passado com
fins de comunicação às futuras gerações7.
7 Segundo o ICOM (International Council of Museums), a mais recente definição de museu é: “O museu
é uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite. ” (http://icom-portugal.org/documentos_def,129,161,lista.aspx Acessado em 18/05/2016 às 16h15min)
Pensar o museu como local de memória na sociedade atual é também nos
questionarmos: como hoje nos relacionamos “… com o saber, com o esquecimento,
o passado, a transmissão, a identidade?” (CANDAU, 2012: 111). Tanto a iconorreia
(profusão de imagens) quanto a proliferação de traços, tão comum às nossas
sociedades modernas, trazem uma crise de identidade, à qual está diretamente
vinculada “obsessão pelo patrimônio” e as “retromanias ou museomanias”, oriundas
de uma busca incessante pelo tempo real e pela angústia da perda (CANDAU, 2012:
111). Candeau, neste sentido, vai de encontro as ideias e Nora de Lugares de
Memória ao afirmar que:
“(...) nenhuma época ‘foi assim tão voluntariosamente
produtora de arquivos como a nossa, não apenas
pelo volume que secrete espontaneamente a
sociedade moderna, não apenas pelos meios técnicos
de reprodução e conservação de que ela dispõe, mas
pela crença e respeito aos traços deixados.”
(CANDAU, 2012: 112)
Candeau, ao refletir sobre a representação memorial em sociedades onde a
escrita tomou o lugar da transmissão e da representação do passado, traz para o
campo de debates a questão da socialização da memória. O autor afirma que há
uma responsabilidade pelo que será registrado por parte daquele que detêm o
domínio da escrita, mas que, “ao dispensar os homens de exercer suas memórias,
produzirá o esquecimento na alma daqueles que terão o conhecimento uma vez
que, confiantes na escritura, buscarão fora de si os meios de se lembrar.” (CANDAU,
2012: 109). Desta forma, a escrita como expressão da memória deixa uma lacuna
quando se trata da representação identitária.
Nesse mesmo sentido, Luis Fernando Dias Duarte, nos aponta que a escrita,
com seu caráter de permanência, afeta simbolicamente os recursos de memória com
o aparecimento de instituições consideradas lugares sagrados que, assim como os
monumentos, estão voltados à “reflexividade” sobre o passado: arquivos, bibliotecas,
universidades (DUARTE, 2009: 308) e, podemos acrescentar, os museus. O autor
ressalta ainda que:
“Em alguns contextos culturais específicos, esses
efeitos de racionalização e reflexivização permitiram a
emergência de um novo lugar social de memória: a
experiência pessoal, individual. Isso é, para nós, a
evidência mais direta, o sentimento de senhorio de
uma vida própria, insubstituível e significativa, algo
inconcebível para a maior parte das culturas. As
pessoas são, aí, fragmentos de conexões sociais mais
amplas; seu sentimento de identidade não se afasta do
adscrito papel previsível senão numa margem de ação
e variação, também previsível.” (DUARTE, 2009: 308)
Podemos perceber aqui a ideia da singularidade da experiência pessoal
dentro de contextos de memórias mais amplos, como é caso daquelas ligadas a
coletivos, pertencentes a grupos sociais, ou mesmo àquelas ligadas a legitimação da
ideia de nação. Neste contexto é que surgiriam novos aparatos levando à ideia de
preservação de bens materiais. “A ideia moderna dos museus nasce totalmente aí,
dessa conjugação muito singular da ‘memória coletiva’, social, pelas novas vias da
personalização, da personalidade de um 'colecionador' (...)” (DUARTE, 2009: 310).
Será no contexto do século XIX que surgirão os primeiros estudos ligados à filologia,
folclore e arqueologia, os quais são oriundo de uma preocupação sistemática com a
preservação de bens ligados a um passado perdido (DUARTE, 2009: 310).
O conceito da primeira exposição permanente de Cultura Popular do MAE
refletia os ideais folcloristas vigentes das décadas de 1950-60, de forma a ressaltar
o modo de vida das populações tradicionais ameaçadas pela urbanização. Desta
forma, o circuito expográfico utilizava cenografia como uma forma de aproximação
dos objetos com o público e também como forma de auto-explicar os processos
evidenciados: pesca, produção e processamento da cana-deaçúcar, produção da
farinha, tecelagem, dentre outros.
Por meio da formação das coleções de Cultura Popular da abertura da
exposição, Loureiro Fernandes e o recém-criado museu se inseriam nos programas
políticos nacionais do período indo de encontro, desta forma, aos objetivos traçados
pela Campanha Nacional do Folclore8 e busca na criação por parte do Estado de
uma identidade nacional9.
Tendo em consideração os aspectos relacionados à memória, aos museus e
aos objetivos da exposição do MAE UFPR, cabe uma aproximação também, com os
estudos voltados para a questão dos sentimentos, trabalhados pelo campo da
literatura e da filosofia e, atualmente, revistos pela história como uma forma de se
questionar como as maneiras de sentir estão relacionadas historicamente às
sociedades e suas transformações. Neste sentido Claudine Haroche coloca:
“As maneiras de sentir refletem um determinado estado das
condições, dos funcionamentos da sensorialidade: elas refletem o
sistema social e político nos quais se desenvolvem. As maneiras de
sentir não são as mesmas no feudalismo, no início da sociedade
industrial ou no capitalismo contemporâneo. Ambas participam nos
tipos de personalidade, dos moldes e dos processos de subjetivação:
elas induzem, as vezes, à transformações profundas que revelam,
então, formas de sensorialidade inéditas.” (Haroche, 2013: pp.16-
17)10
Desta maneira, como a autora coloca, a sensorialidade muda de um período
histórico para outro e, até mesmo, poderíamos dizer, entre sociedade do mesmo
8 “A Campanha era um organismo federal destinado a 'defender o patrimônio folclórico do Brasil e a
proteger as artes populares'. Ela trazia uma proposta de atuação urgente: no folclore, acreditavam os folcloristas de então, se encontravam os elementos culturais autênticos da nação, porém o avanço da industrialização e a modernização da sociedade representavam uma séria ameaça. Por essa razão, a cultura folclórica devia ser intensamente divulgada e preservada. A Campanha fomentou pesquisas em diferentes regiões, bem como sua documentação e difusão através da constituição de acervos sonoros, museológicos e bibliográficos. Agregou também intelectuais que participaram ativamente de debates conceituais, em diálogo com as ciências sociais que prosseguiam sua institucionalização no mesmo período. ” (CAVALCANTI, 2002: 4) 9 O cenário cultural da política brasileira no início da primeira metade do século XX até as décadas de 50
e 60, foi marcado pelas discussões sobre a formação de um modelo de nação, passando pelo questionamento do que seria a cultura nacional. Neste sentido intelectuais como Mário de Andrade, Gustavo Capanema, entre outros, participavam diretamente da política cultural daquela época. Desta época data a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, SPHAN (futuramente chamado de IPHAN –Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e as primeira iniciativas de entendimento do que seria o patrimônio nacional. Do mesmo período data a criação da Comissão Nacional do Folclore. 10 “Les manières de sentir reflètent un état donné des conditions, des fonctionnements de la sensorialité: elles
reflètent le système social, politique dans lequel elles se développent. Les manières de sentir ne sont pas les mêmes dans la féodalité, les débuts de la société industrielle ou le capitalisme contemporain. Les unes et les autres participent des types de personnalité, des modes et des processus de subjectivation: elles induisent parfois des transformations profondes révèlant alors des formes de sensorialité inédites.”
tempo, mas espacialmente separadas. Ou seja, os sentimentos estariam ligados a
forma como a própria sociedade se estrutura politicamente ou culturalmente. Esta
reflexão nos leva a pensar: de que forma a sociedade daquele período e também
indivíduo, especificamente, aquele que visitou a primeira exposição do MAE, se
relacionava sentimentalmente com os objetos expostos.
Ao trabalhar a questão do sensível, Haroche continua, ainda, dizendo que: “
(…) o sensível é a ter a capacidade de sofrer ou sentir prazer, se alegrar; é também
ter a capacidade de imaginar, de perceber o prazer como também o sofrimento do
outro.” (HAROCHE, 2014: p.25)11. Ao pensarmos desta forma, podemos perceber
que os comentários deixados pelo público trazem traços deste sensível, em relação
às peças expostas de forma que podemos, inclusive, identificar palavras diretamente
ligadas a sentimentos.
Ao retomarmos os três comentários destacados na primeira parte deste
trabalho, percebe-se que a conexão feita pelo público foi além daquela esperada,
ligada a uma memória coletiva e nacional. Os objetos “tear”, “gamelas”, “canoas”,
“artigos de pesca” e “monjolo”, evidenciaram para eles muito mais do que técnicas.
Essas peças, ao tocarem o subjetivo e a memória pessoal dos autores daqueles três
comentários, permitiu que seja repensada a relação que o público estabelece com
os objetos em exposição.
Considerações Finais
Ao trabalhar com os comentários contidos nos Cadernos de Críticas e
Sugestões do MAE UFPR referentes ao período em que a antiga exposição estava
presente no museu, foi possível ampliar o olhar sobre aquilo que está registrado nas
próprias fontes.
No começo da pesquisa minha proposta era apenas trabalhar com os
comentários contidos nos cadernos mais recentes (2010 - 2014), os quais falam
sobre a ausência da exposição. Entretando, ao revisar os conteúdos dos cadernos
11 “le sensible c’est avoir la capacité de souffrir ou d’éprouver du plaisir, de la joie; c’est aussi la capacité
d’imaginer, de percevoir le plaisir comme la souffrance de l’autre.”
mais antigos, foi possível perceber novas categorais de análise que viream a se
somar ao trabalho. Parte desta revisão são as reflexões apresentadas aqui neste
artigo a respeito da experiência dos visitantes diante das peças.
Os escritos, deixados por Maria do Carmo, Luciano Ferreira e Rita a respeito de suas
experiências frente aos objetos expostos registram como os visitantes articulam suas
memórias pessoais com os objetos expostos, os quais só foram preservados devido a um
programa institucional seguido pelo MAE UFPR, parte de um determinado contexto histórico
e dentro de um programa político maior promovido pelo Estado. Os museus, enquanto lugares
oficiais de guarda da memória, preservam o passado com objetivos específicos, institucionais
e governamentais, mas que permitem, muitas vezes, que o público faça conexões da memória
coletiva (neste caso a nacional) com suas próprias experiências de vida, trazendo à tona e
gerando registros dos sentimentos e lembranças latentes.
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