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RELIGIOSIDADE E OBSCURIDADE EM STÉPHANE MALLARMÉ: UMA ANÁLISE DO POEMA “SANTA”.
Patrick Thomazine1
RESUMO: Stéphane Mallarmé, conhecido como um dos ditos “poetas malditos”, juntamente com Rimbaud, Paul Verlaine e Baudelaire, é um dos principais representantes do Simbolismo francês, corrente literária que influenciou o surgimento, num primeiro momento, do Modernismo europeu e, posteriormente sua difusão para todo o mundo; influenciando inclusive os poetas modernos brasileiros. Dotado de uma poesia bastante sugestiva e hermética, envolvendo a religiosidade e ao mesmo tempo criticando o sistema capitalista vigente, aspectos da produção literária de Mallarmé serão analisados neste artigo a partir de um de seus poemas intitulado “Santa”, datado de 1884. Partindo do contexto social e histórico francês do final do século XIX e das características do período literário em que se insere o autor e a obra, uma possível interpretação temática do poema anteriormente mencionado será o objetivo deste trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Mallarmé, Simbolismo, França, Santa. ABSTRACT: Stéphane Mallarmé, known as one of the “dammed poets”, with Rimbaud, Paul Verlaine and Baudelaire, he is one of the main representative of French Symbolism, literary period which influenced the emerging, at first, of the European Modernism, and later its diffusion to all the world; influencing, including the modern Brazilian poets. Gifted with a strongly suggestive and hermetic poetry, involving religiosity and simultaneously criticizing the capitalist system valid, some aspects of Mallarmé’s literary production will be analyzed in this article, starting from one of his poems titled “Saint”, dated from 1884. Beginning from the French historical and social context of nineteenth century, and from some characteristics of the literary period that the author and his work are inserted, a possible thematic interpretation of the previously cited poem will be the object of this work. KEY WORDS: Mallarmé, Symbolism, France, Saint.
Stéphane Mallarmé (1840 – 1898), poeta e crítico francês, junto com
Rimbaud e Paul Verlaine se configuram como os principais representantes do
Simbolismo francês. Simultaneamente, são considerados fundadores da
Modernidade, inaugurando, com Charles Baudelaire, a idéia de literatura como
exploração estética e constante pesquisa de linguagem (PLINVAL, 1978).
A estética simbolista oficializou-se em 1886 após a publicação do
manifesto literário escrito por Jean Moréas. O termo Simbolismo, na época, veio
substituir a expressão Decadentismo, utilizada para nomear as tendências poéticas
antipositivistas, antinaturalistas e anticientificistas.
1 Graduando do 4º ano do Curso de Letras Português-Inglês, da Universidade Estadual do Oeste do
Paraná – UNIOESTE.
Com o advento dos simbolistas aspectos do Romantismo francês como a
exploração das dimensões da psique humana - a sensibilidade, a imaginação,
criadora, a intuição, ou seja, a subjetividade - são mais profundamente explorados
através das imagens inconscientes e subconscientes. Imagens que expressam as
próprias camadas não alcançadas pela racionalidade, além do mundo visto numa
perspectiva metafísica, quase mediúnica e que não podem ser descritas
objetivamente e que também não podem ser ditas em linguagem lógica.
Por conseguinte, palavras se tornam símbolos de vivências místicas e
sensoriais, indizíveis, mas passíveis de serem evocadas, sugeridas, por meio de
metáforas, analogias e sinestesias.
Para os poetas simbolistas a poesia é um ritual mágico, uma combinação
alquímica de palavras que podem revelar outras dimensões da existência. Sugerem
não descrevem. Simbolizam não nomeiam. Buscam o misterioso, o oculto, o vago, o
indefinível, o inexprimível.
Na lírica de Mallarmé, além das características do Movimento, também
encontramos uma ausência de sentimento, um extermínio da realidade, da lógica, da
ordem normal, sugestionabilidade, ruptura com a tradição cristã, com predominância
de imagens negativas. Explorador das possibilidades da linguagem poética
buscando significação até no silêncio da página em branco, parece ter uma lírica
nada comparável a nenhum de seus predecessores ou contemporâneos. Sua lírica
obscura é temida.
Sua poesia, como comenta, Hugo Friedrich (1978) é cheia de “camadas
de significação que se sobrepõem uma às outras, a última das quais se perde em
possibilidades de sentido mal compreensíveis” (p. xx).
Para exemplificar essa ruptura com a tradição cristã e mostrar como é
permeada de símbolos de sugestionabilidade hermética e a obscuridade de sua
poesia, trataremos de analisar um de seus poemas intitulado “Santa” de 1884:
Santa
À janela que esconde O velho sândalo de ouro desmaiado Da viola cintilante Outrora com flauta ou mandora, Está a Santa pálida, mostrando O velho livro que se desdobra
Do Magnificat jorrando Outrora segundo vésperas, completas: A esta vidraça de ostensório Que a harpa do Anjo aflora Formada com seu voo vespertino Para a delicada falange Do dedo que, sem o velho sândalo E o velho livro, ela balança Sobre a plumagem do instrumento, Musicista do silêncio
A começar pelo título deste poema, percebemos a presença do religioso.
No entanto, não se trata da exaltação de algum santo ou entidade religiosa. A
presença do religioso presente no poema não trata da religiosidade convencional, da
religiosidade institucionalizada dos burgueses. É uma religião criada pelos próprios
simbolistas, voltada para o místico, sem nome, oculta dentro de cada um.
Diferentemente de qualquer religião oficial estabelecida pela burguesia. Uma
religiosidade particular dos poetas desse período não cristã, não dominadora. A
santa que aparece é pálida, frágil, esquecida, incapaz, muda: À janela que esconde
(v.1) / Está a santa pálida (v.5) / Musicista do silêncio (v.16).
Além disso, o eu-lírico traz vários objetos: uma janela, um instrumento
velho de madeira de sândalo, uma redoma de ostensório, uma harpa e um livro com
o texto do Magnificat2. Elementos que objetivamente não mantém qualquer relação
entre si, a não ser o fato de evocarem música, porém uma música que no final não é
tocada, pois o silêncio impera. Além disso, ao mesmo tempo em que aparecem
estes objetos eles estão escondidos, ocultos. A viola é ocultada pela janela e o velho
livro com o Magnificat só existe “outrora”.
Mallarmé explorou as possibilidades da linguagem na busca pela poesia
pura: uma realidade tecida apenas de palavras. Como dito, buscou significação até
no silêncio da página em branco. Assim, neste poema, os objetos acima
mencionados podem não existir enquanto objetos; estão presentes apenas
linguisticamente.
2 Magnificat (também conhecida como Canção de Maria) é um cântico entoado (ou recitado)
frequentemente na liturgia dos serviços eclesiásticos cristãos. O texto do cântico vem diretamente do Evangelho segundo Lucas capítulo 1 versículos 46-55, onde é recitado por Maria na ocasião da Visitação de sua prima Isabel.
O afastar-se das coisas propaga-se cada vez mais (FRIEDRICH, 1978),
principalmente a partir da terceira estrofe o afastamento dos objetos parece
acentuar-se. A harpa do anjo (v.10) pode ser metáfora da asa do anjo,
posteriormente retomada como a plumagem do instrumento (v. 15). Uma imagem
irreal, uma metáfora bastante incomum. Segundo Hugo Friedrich (1978: 99), não
apenas metáfora, mas identidade. A santa toca sem o velho sândalo, sem o velho
livro, ou seja, na verdade não toca, permanece em silêncio: Musicista do silêncio.
O objetivamente presente é pouco, pois tudo o que linguisticamente é
mencionado, só existe outrora, na lembrança, num passado findo e distante.
Elementos não interpretáveis ou difíceis de serem associados uns aos outros.
Nenhuma ação. Apenas a linguagem que, ao mesmo tempo que dá vida aos objetos
(ao mencioná-los) os aniquila. Sua existência é apenas espiritual (evocação), não
empírica.
O uso das palavras “sândalo” (remetendo a cor do ouro) se esvaindo,
“outrora”, “desdobra”, “vésperas”, “vespertino”, “velho”, evocam uma atmosfera de
crepúsculo, tempo findo, longínquo passado morto. Os objetos concretos já não
existem, ficaram na memória, sobra somente a ausência, o silêncio, o nada.
A relação entre os objetos neste poema está desvinculada de toda ordem
real, nada tem a ver com o mundo empírico. Reage contra o pensamento científico e
filosófico da época. Sua poesia é hermética, extremamente subjetiva, de difícil
compreensão. Evoca símbolos. Sugere em vez de descrever. Imagens que não
podem ser ditas em linguagem conceitual, lógica. Transcende o material, revela
outras dimensões, mostra o vago.
Símbolo, representação, negação da existência fria, técnica acimentada
que a Revolução Industrial trouxe. Por isso, obras como esta, que evocam, que
diluem o real e o tornam imagem, fragmentando o real, e tornando-o sugestivo.
As palavras na poesia de Mallarmé são símbolos de vivências sensoriais
e míticas indizíveis, e intraduzíveis, passíveis apenas de serem evocadas,
sugeridas, aludidas, por meio de metáforas, analogias e sinestesias
Não racional, altamente subjetiva, sugestiva, hermética e com uma
religiosidade nada convencional. Estas são algumas das características da produção
literária dos “poetas malditos” encontradas neste poema de Stéphane Mallarmé de
1884.
REFERÊNCIAS
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2002.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo: SP. Ed. Duas Cidades, 1978.
PLINVAL, Georges de. História da literatura francesa. Lisboa. Ed. Presença, 1978.