religião e classe social: uma análise dos especialistas ... · peter berger (2001) nos aponta...
TRANSCRIPT
2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões
XV Simpósio Nacional de História das Religiões
ABHR 2016
Religião e classe social: Uma análise dos especialistas religiosos de diferentes segmentos evangélicos sob a
influência do neopentecostalismo
João Ricardo Boechat Pires de Almeida Sales1
1 Aluno Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Centro de Ciências do
Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, orientado pelo professor doutor
Roberto Dutra Torres Jr.
2
Campos dos Goitacazes
2016
1. Introdução
O século XX evidencia o ressurgimento de uma força silenciosa, escondida, mas
jamais totalmente apagada: o retorno daquele fenômeno que a literatura sociológica
chamou da religiosidade mágica2. A modernidade preanunciava que, uma vez
estabelecida a razão, a magia tenderia ao desaparecimento, e que as concepções de
mundo tornar-se-iam cada vez mais racionalizadas. A relevância da razão se
estabeleceria até mesmo sobre a religião. Entretanto, observando a história das relações
humanas, perceber-se-á que a ausência da magia na relação do indivíduo consigo
próprio, com o outro e com a natureza faz-se exceção, não regra. A história tem nos
mostrado que regra é a tendência humana em se voltar para a magia. Seguindo esta
regra, a religião torna-se em certa medida, naturalmente mágica.
“Seguindo esta lógica, podemos pensar que, por mais que a história do ocidente tenha se
desenrolado sobre a sombra do desenvolvimento da radicalização da religiosidade ética e os
seus respectivos impactos na conduta racional da ação (racionalismo de dominação do mundo),
como assinala Weber; o próprio Weber reconhece seu caráter acidental. Há uma tendência das
massas e do humano em geral a voltar-se para a magia”. (ARENARI, 2015, p.45)3
Mary Douglas afirma que:
We should recognise that the possibility of intervention magic is always present the mind of
believers, that it is human and natural to hope for material benefits from the enactment of
cosmic symbols. (DOUGLAS, 1994, p.61)
2 Tal fenômeno ocupa lugar de destaque na obra de Durkheim, Weber e Mauss. 3 Tradução minha.
3
No entanto, a ideologia moderna, baseada nas crenças iluministas, nos levou à
percepção de que não só a magia, como também a religião em si, estaria fadada ao
passado da humanidade, sendo cada vez mais substituída pela razão4. A religião
desempenhou um papel importante na formação da humanidade e suas relações.
Grandes culturas, tais como a indiana e grandes impérios, tais como o romano, tinham
como ponto unificador e mantenedor das identidades, a religião. A religião não foi uma
esfera ligada à vida privada, pelo contrário, sua importância social foi relevante tanto na
construção de identidades nacionais, quanto na manutenção de memórias coletivas
(ORTIZ, 2001, p. 59). Além da formação da identidade de um grupo, a religião tem
importância considerável na dinâmica social como um todo (ARENARI, 2013, p. 121).
É neste contexto que se insere o debate em torno da teoria da secularização:
“Além da variedade de suas realizações históricas e interpretações, na discussão sociológica
pode-se identificar uma série de características do que tem se denominado modernidade:
trata-se de um processo sócio-histórico complexo e multidimensional – original da Europa
Central –, caracterizado fundamentalmente por uma visão de mundo descentrada, profana e
pluralista, por uma reflexão que ao incorporar-se de forma sistemática e permanente na vida
social, desestabiliza a experiência, as instituições e os conhecimentos, e conseqüentemente
gera uma realidade profundamente dinâmica, contraditória, ambígua e precária. Também
podem-se mencionar, como características típicas da modernidade, a primazia da razão
instrumental, o individualismo, a compreensão otimista da história como progresso, bem como
a diferenciação institucional”. (ZEPEDA, 2010, p. 130)
Vale ressaltar que existem não uma, mas diversas teorias da secularização, que
veiculam diferentes concepções sobre a relação entre religião e sociedade na
modernidade. Torres (2015), baseado na teoria da diferenciação funcional de Niklas
Luhmann, aponta três variantes das teorias da secularização. Na primeira, a religião
passaria por um processo de privatização. Baseado na crença iluminista moderna, a
religião, anteriormente o elemento legitimador e integrador que conferia significado às
4 Casanova (2000) nomeia esse choque do domínio da razão que era esperado, mas que foi anulado pela volta da religião no século XX, como colapso das “crenças iluministas”.
4
demais esferas sociais, seria deslocada para o domínio da vida privada com o processo
de secularização, emancipando as demais esferas, sobretudo a esfera pública e a esfera
política, da influência religiosa. Ainda que não se postule o desaparecimento das crenças
e práticas religiosas, se postula a sua irrelevância para a vida social como um todo. Na
segunda variante, a religião perderia seu caráter institucional, tornando-se algo
puramente individual, sem influência social. Podemos afirmar que essas duas variantes
da teoria da secularização não obtiveram êxito, uma vez a religião nem se asilou no
domínio da vida privada e nem se tornou algo puramente individualizado.
Entretanto, uma terceira variante da teoria da secularização (representada por
autores como Niklas Luhmann e Charles Taylor), levando em conta o fracasso das
variantes que previam o definhamento da religião na era moderna, defende que o
conceito não perdeu a sua validade, apostando em uma mudança de foco na análise: ao
invés de tratar de previsões sobre as trajetórias das religiões na modernidade, seja em
termos de definhamento seja em termos de afirmação, o foco passa a ser a ruptura
radical, na era moderna, com a concepção de mundo pré-secular, onde as esferas e
instituições sociais eram integradas e estruturadas diretamente pela cosmovisão
religiosa. Baseado nesta terceira variante, podemos perceber que, na modernidade, o
mundo fez da esfera religiosa uma esfera a mais na compreensão e na construção social
da realidade, e não a principal via pela qual as relações se estabelecem. Dentro desta
nova realidade, a religião busca novas formas de influenciar um mundo secularizado,
adaptando-se à nova forma de organização social e participando da vida dos indivíduos
na modernidade.
De fato, a história do século XX provou que as duas primeiras variantes da teoria
da secularização estavam equivocadas. Peter Berger (2001) nos aponta dois fenômenos
religiosos que ganharam força no século XX, demonstrando o poder da religiosidade
mágica ante a uma sociedade pregadora de um definhamento inevitável da religião; tais
fenômenos são o crescimento do Islamismo, principalmente no Oriente próximo, e a
ascensão do Pentecostalismo no Ocidente, principalmente na modernidade periférica.
5
Dos diferentes motivos que podemos buscar a fim de explicar o fracasso destas variantes
da teoria da secularização e o consequente retorno do sagrado junto à sociedade
moderna, podemos selecionar um que é decisivo para a pesquisa aqui proposta: a
crença em um “mundo melhor” tutelado pelo racionalismo pecou em atender às
crescentes demandas sociais, especialmente da população dos países periféricos que viu
a promessa de igualdade sendo substituída pela realidade da desigualdade trazida por
um capitalismo selvagem e um desenvolvimento exploratório seja dos países do centro
sobre os periféricos, ou ainda dos indivíduos em diferentes situações de classe nos
países periféricos sobre seus compatriotas.
Diante dessa realidade, a religião encontrou campo fértil para desenvolvimento,
uma vez que as esperanças para a “vida boa” baseadas na razão haviam fracassado.
Ganha força a nova religião que, diferentemente de qualquer outra vertente religiosa,
nasceu e se desenvolveu em meio a uma sociedade capitalista, a saber, o
pentecostalismo. No Brasil, o pentecostalismo obteve sucesso considerável. De acordo
com os dados de 2010 do IBGE, apenas 8% da população brasileira se declara “sem
religião”. Por outro lado, 64,6% se declaram católica e 22,2% evangélica. Contudo, é
importante perceber que nos últimos trinta anos, a membresia Católica diminuiu quase
um terço, enquanto o número de evangélicos pentecostais quadruplicou. Faz-se
impressionante, ainda, que, de acordo com o IBGE, 6 em cada 10 evangélicos brasileiros
declara-se pentecostal. Tal crescimento é impulsionado pelo sucesso neopentecostal
em terras brasileiras. Esses dados nos ajudam a perceber que, realmente, o fenômeno
pentecostal encontrou hospitalidade e possiblidade de crescimento. O que faz com que
o Brasil seja, hoje, “a maior nação pentecostal do mundo” (ARENARI, 2013, p. 66).
Apenas entre 2000 e 2010, os evangélicos cresceram cinco vezes mais do que a
população brasileira, 61,4% contra 12,3%. Dos 42,3 milhões de evangélicos em números
absolutos, 25,4 milhões, ou 13,3% da população brasileira é composta por evangélicos
pentecostais, cifra bem mais considerável do que o segundo maior grupo de
evangélicos, isto é, os evangélicos de missão, que somam 4% da população brasileira. O
6
maior responsável pelo grande crescimento dos evangélicos na última década é o
sucesso pentecostal no país. Não foi apenas o crescimento das igrejas pentecostais, mas,
principalmente, à nova forma de relacionamento com o transcendente que a “terceira
onda5” do pentecostalismo, a saber, o neopentecostalismo gerou na modernidade
periférica. Duas décadas depois da tipologia em “ondas” desenvolvidas por Mariano
(1999), observamos que o neopentecostalismo pode ter seu impacto resumido em uma
classificação a qual denomino “tripé pentecostal”, composto pela teologia da
prosperidade, guerra espiritual e liberação dos usos e costumes. Este “tripé” é o
responsável pela nova forma de relacionamento com o transcendente anteriormente
citado.
O sucesso do neopentecostalismo é tamanho que atinge diversos segmentos do
movimento evangélico. O “tripé neopentecostal” saiu das paredes dos templos
neopentecostais, atingindo igrejas históricas, de missão, pentecostais clássicas e
deuteropentecostais6. Por mais que os cultos de domingo mantenham as tradições,
liturgias e doutrinas, os inúmeros “encontros”, “retiros” e “conferências” destas igrejas
são tomados por práticas neopentecostais, pois o objetivo é “avivar” o povo, e ali “o
fogo desce”, “chega-se mais perto de Deus”. Em outras palavras, nesses “momentos
neopentecostais” é que realmente se experimenta o divino e suas promessas.
Ainda que o pentecostalismo seja a vertente religiosa com maior sucesso entre
as classes populares, o sucesso da mensagem neopentecostal fez com que as
organizações religiosas majoritariamente formadas por membros da classe média
também fossem afetadas pela lógica de relacionamento com o divino baseada no “tripé”
5 Mariano (1999) classifica o pentecostalismo em três ondas: pentecostalismo clássico, deuteropentecostalismo, e neopentecostalismo, este último o mais importante para nossa análise neste trabalho. Para Mariano a transformação que as “ondas” geraram está ligada ao processo de aculturação das teologias importadas, fundamentais para tornarem o pentecostalismo uma religião “brasileira”. 6 Para Mariano (1999) o pentecostalismo clássico caracteriza as primeiras comunidades pentecostais em solo brasileiro, de 1910 a 1950, onde os principais aspectos são o anticatolicismo, dom de línguas como símbolo do batismo com o Espírito Santo, crença na volta de Cristo e rejeição do mundo exterior. Já o deuteropentecostalismo, a partir da década de 50, se caracteriza pela ênfase teológica na cura divina e na forte ênfase evangelística, principalmente pelo rádio.
7
neopentecostal. Em diferentes níveis e com significativas variações, igrejas compostas
majoritariamente – não exclusivamente – de diferentes classes sociais foram afetadas
pelo “tripé”, alterando não só a pregação do especialista e a composição do culto, mas
o consumo material, cultural e social de seus membros.
Neste contexto, uma abordagem que busque pelas “afinidades eletivas” entre
certo tipo de crença e prática religiosa e o estilo de vida típico de diferentes classes e
grupos sociais para ser a mais adequada para a pesquisa aqui proposta. No leque das
alternativas teóricas existentes, isto significa optar por uma abordagem weberiana,
levada a cabo por autores como Pierre Bourdieu. Weber (2013) postula a existência de
uma relação íntima entre religião e estratificação social, demonstrando como a esfera
religiosa produz uma ética, um espírito, que serão adaptados ao modo pelo qual classes,
estamentos, clãs e castas se relacionam com o mundo. Posteriormente, Bourdieu (2003)
também enfatiza a forma como os agentes religiosos respondem às necessidades
próprias de grupos sociais determinados. Neste trabalho, intendo demonstrar como os
líderes de diferentes organizações religiosas representam as necessidades da classe que
majoritariamente compõe o público de fieis tal organização, adaptando as demandas e
promessas religiosas aos anseios que orientam o estilo de vida típico desta classe social.
O clamor das classes que constituem o público real ou potencial de fieis faz com
que a liderança eclesiástica, os especialistas religiosos, adaptem suas mensagens e
exigências às necessidades e desejos de seus membros e daqueles aos quais tais líderes
desejam impactar. Desta forma, este especialista torna-se uma representação corpórea
dos anseios do grupo, condensando em si as demandas eclesiais e de classe. Além de
condensar as demandas, o líder eclesiástico externaliza o entendimento de sucesso de
determinada classe, sendo ele o exemplo das benesses advindas da crença em
determinada profecia.
8
2. Objetivos
2.1 Objetivo Geral
O objetivo geral é analisar a relação entre religião e classe social, investigando
como a construção da mensagem religiosa interage, num processo de influência mútua,
com o contexto social de sua membresia. Quanto a isso vale ressaltar que Weber afirma
que mesmo que a mensagem de determinada religião possua um viés soteriológico,
qualquer religião propõe uma mensagem salvífica que objetiva a salvação no mundo
aqui e agora (1982:320). Mesmo que a mensagem profética ou sacerdotal seja sobre o
porvir, o mundo além, as disposições práticas são para o hoje. Assim como, a salvação é
sempre a salvação de algo (1982:356). Ou seja, o processo salvífico objetiva libertar o
indivíduo de seus dramas e anseios, mostrando uma nova possibilidade de
enfrentamento do mundo. Desta forma, objetiva-se entender como o
neopentecostalismo se adapta às necessidades de diferentes classes sociais.
A definição de classe social é algo de difícil consenso. Sabedor disso, utilizarei o
conceito de classe social desenvolvido por Jessé Souza a respeito das classes sociais na
sociedade brasileira, a saber, a “ralé estrutural”, os “batalhadores” e a “classe média
tradicional”. Onde o apontamento distintivo reside na capacidade de compreender as
instituições sociais, tais como família, controle do tempo, escola, entre outros. Souza
(2009) classifica a “ralé estrutural” como uma classe não só sem capital cultural e
econômico legítimos, como também sem as precondições sociais, morais e culturais que
permitem a apropriação de tais capitais. Os “batalhadores”, por seu turno, seriam a
classe que obteve algum êxito na aquisição dos capitais econômicos e sociais, mas ainda
não detém controle das citadas instituições sociais. Por fim, utilizaremos o conceito de
classe média como caracterizadora do grupo social dotada do que Jessé Souza (2009)
chama de “bilhete premiado”, isto é, as precondições sociais, morais e culturais para
adquirir capital econômico e cultural na sociedade.
9
Um importante método de observação e investigação da relação entre religião e
classe social se dá na análise dos especialistas religiosos, especialmente no que se refere
à sua formação, desenvolvimento e práticas. As necessidades de classe podem ser
observadas, também, através da análise do especialista religioso presente nas
comunidades eclesiásticas que representam diferentes classes sociais. Há a tendência
de líder de comunidade eclesiástica concentrar sobre sua trajetória de vida e sua
mensagem as ansiedades e expectativas daquele grupo que vê nele autoridade divina
para liderar. A fim de atingir o grupo pretendido, o especialista necessita adaptar sua
mensagem e exigências à realidade e às necessidades daquele grupo, pois se o grupo
não enxergar neste especialista um enviado de Deus para falar ao povo, haverá a busca
por um outro especialista que seja visto como detentor da autoridade divina. Por isso,
uma comunidade composta majoritariamente por determinada classe social tem, em
seu líder, não só o enviado de Deus para guiar na relação com a realidade, mas também
um representante das necessidades que tal classe possui. Assim, Weber afirma que:
“Mas, tenha a profecia um caráter mais ético ou mais exemplar, a revelação profética significa
sempre – e isso é o que todas têm em comum – primeiro para o próprio profeta e, em seguida,
para seus acólitos: uma visão homogênea da vida, considerando-se esta conscientemente de
um ponto de vista que lhe atribui um sentido homogêneo. A vida e o mundo, os acontecimentos
sociais e os cósmicos, têm para o profeta determinado sentido, sistematicamente homogêneo,
e o comportamento dos homens, para lhes trazer salvação, tem de se orientar por ele, e sobre
esta base, assumir forma coerente e plena de significado. A estrutura desse sentido pode ser
muito diversa e agregar numa unidade motivos que parecem logicamente heterogêneos, pois
o que domina toda a concepção não é, em primeiro lugar, a consequência lógica, mas
valorações práticas”. (2009, p. 310)
A análise do especialista religioso nos ajuda a identificar as diferenças nas classes
sociais e na relação destas com o mundo, pois, seguindo a afirmação de Weber na
citação acima a respeito da mensagem profética, a eficácia da liderança religiosa
depende de um sentido homogêneo, compartilhado também pelos seguidores e demais
10
integrantes da organização religiosa, sobre os acontecimentos sociais, naturais e
psicológicos.
2.2 Objetivos Específicos
2.2.1 O primeiro objetivo específico é, através da profecia do especialista,
analisar algumas organizações eclesiásticas presentes na sociedade, tendo em vista
como estas revelam os anseios de um grupo social determinado. A organização religiosa
faz-se relevante em diversos âmbitos, pois as relações que ocorrem dentro dela
produzem efeitos decisivos para a atuação prática dos membros, influenciando
diretamente as escolhas de consumo material e cultural dos indivíduos. Os sermões
pastorais, as relações entre “irmãos”, as doutrinas e, principalmente, as “células”
produzem disposições para determinadas escolhas, produzem (novo) significado para
sua relação com o mundo e criam um grupo relacional dentro da própria organização.
É errôneo pensar que uma organização religiosa seja formada por uma classe social
exclusiva. Contudo, o sacerdote, mago ou profeta, isto é, o especialista religioso das
igrejas adapta sua mensagem e suas práticas – como a cura divina e a expulsão de
demônios – às necessidades produzidas pelo contexto social de sua membresia. Caso o
especialista religioso deseje que sua comunidade obtenha êxito religioso, cresça no
número de fiéis, ele precisa observar as necessidades de seu “público alvo” e fazer suas
demandas acessíveis a estes, a fim de que participem da vida comunitária, depositando
sua fé naquilo que creem estar relacionado com seu dia-a-dia. Desta forma, cada grupo
de fiéis é, majoritariamente – ainda que não exclusivamente – composto por indivíduos
de uma mesma classe, ou pelo menos, em uma mesma situação de classe. Indivíduos
em uma mesma situação de classe tendem a ter demandas similares, possuindo, por
outro lado, demandas distintas daqueles em diferentes classes sociais.
2.2.2 O segundo objetivo específico é analisar as mudanças ocorridas nas
estruturas dos cultos das comunidades eclesiásticas com a entrada do “tripé
neopentecostal”, partindo sempre da análise do especialista religioso e sua mensagem.
11
Ao analisar o “culto”, não pretendo analisar somente o ocorrido dentro das paredes do
templo, ainda que ali ocorram mudanças perceptíveis. Minha perspectiva abarca
também as reuniões religiosas fora das paredes do templo tais como as “células” –
grupos entre 5 e 12 indivíduos com características semelhantes, a saber, idade, gênero,
estado civil e ocupação; e “retiros espirituais”. Creio ser importante a análise dos cultos,
porque diz respeito à forma pela qual o especialista religioso está conduzindo a
organização. Por exemplo, o assunto estudado nas células, os “temas” dos retiros
espirituais, as pregações nos cultos semanais, todas essas escolhas passam pelo crivo do
especialista religioso e dizem respeito à adaptação aos “temas” em torno dos quais
giram as necessidades do grupo pertencente à organização.
Baseado nestes objetivos, selecionei três igrejas – as quais explicarei melhor
posteriormente – e construí a hipótese de que representem três classes sociais distintas,
a saber, a Mundial do Poder de Deus como representante da “ralé estrutural”, a Igreja
Semear, como representante da “classe batalhadora” e a Segunda Igreja Batista de
Campos, como representante da “classe média tradicional”.
3. Problemática
A explosão religiosa no Ocidente, principalmente na modernidade periférica, não
está relacionada diretamente à formação de uma identidade nacional, ou à manutenção
de memórias coletivas, mas está ligada principalmente às demandas e anseios dos
grupos característicos da sociedade capitalista, isto é, às classes sociais. Assim, a religião
revela os anseios das classes, atuando, também, como meio para a satisfação dessas
ansiedades.
No Brasil, destaca-se a explosão neopentecostal nas últimas quatro décadas.
Essa vertente religiosa foi, inicialmente, relacionada com as classes populares,
revelando seus anseios e propondo novas formas de lidar com tais anseios. Contudo, o
sucesso entre as classes populares foi tamanho, que igrejas históricas, de missão,
pentecostais e deuteropentecostais adaptaram a mensagem neopentecostal às suas
12
realidades e aos anseios das classes e grupos que formam a sua membresia. Portanto,
há, hoje, uma mensagem neopentecostal que tem se adaptado e influenciado a relação
dos indivíduos consigo próprio e com a sociedade.
Academicamente, já existem trabalhos que mostram as estruturas e histórias das
igrejas neopentecostais e a formação de seus membros. Por outro lado, são escassos os
trabalhos que demonstrem a relação da religião com as classes sociais, ainda mais no
que diz respeito à análise das classes de onde se originam os especialistas religiosos das
organizações pentecostais voltadas aos diferentes públicos de fiéis. Ou seja, a
importância deste trabalho reside na possibilidade de analisar a relação entre religião
pentecostal e estratificação social tomando a formação, as práticas e crenças do
especialista religioso como seu principal foco analítico.
4. Marco Teórico
A sociologia clássica fez uso da religião para buscar entender diversos aspectos
sociais, entre eles, a religião. Não obstante, os sociólogos clássicos, tais como Marx,
Durkheim e Weber trataram da importância da esfera religiosa para outras esferas e
dimensões da sociedade. Dentre eles, Weber (1982; 2000; 2013) será de exímia
importância para o desenvolvimento desse trabalho. Intendo utilizar a sociologia
weberiana para analisar a construção da ética religiosa neopentecostal como
reveladora dos anseios de grupos sociais específicos. A sociologia weberiana da religião
será o fio condutor deste trabalho. Dela pretendo utilizar as considerações a respeito
da proximidade existente entre determinado grupo ou classe social e determinada
religião, ressaltando que esta proximidade não deve ser entendida em termos
deterministas (como se determinada religião fosse necessária e exclusivamente a
representação simbólica de uma classe social), mas sim em termos contingentes, como
demanda o conceito weberiano de “afinidades eletivas”. Weber (2009) observa que a
criação e desenvolvimento de uma religião está ligada aos anseios de um grupo social
específico. Por exemplo, através de sua análise, Weber conclui que até mesmo o
13
desenvolvimento do monoteísmo judaico, principal influência no Cristianismo e
Islamismo modernos, está ligado à necessidade de unificação de uma nação sob a
tutela de um deus. Na mesma linha, ao desenvolver sua tese sobre o espírito do
capitalismo, Weber (2013) observa a aproximação entre grupos sociais e vertentes
religiosas. Por exemplo, a burguesia tenderia mais ao racionalismo e ascetismo
calvinistas em contradição com o apego ao catolicismo mágico dos camponeses.
Além de nos ajudar a entender como a “rejeição religiosa do mundo” foi
abandonada pelo neopentecostalismo em favor de um “racionalismo de adaptação ao
mundo” que recusa avaliar os objetivos de vida mundanos com base em uma ética
religiosa transcendente, a sociologia weberiana será, ainda, importante para
desenvolver a construção do especialista religioso das diferentes classes sociais.
Através da sociologia weberiana, pretendo desenvolver a construção do mago, do
profeta e do sacerdote pentecostais, destacando o tipo de relação da religião com o
“mundo” que estes atores incorporam, realizam e reproduzem. Para fazer um uso
atualizado da Weber, me apoiarei no trabalho de sociólogos contemporâneos
weberianos, tais como Wolfgang Schluchter (1985; 1989) e Hans-Peter Muller (2007;
2014) que serão significantes para o sucesso deste projeto.
Como aprimoramento da sociologia da religião de Weber, utilizarei o trabalho de
Pierre Bourdieu (2003) para colocar em foco o desenvolvimento do habitus do líder
religioso como um habitus religioso condicionado por um habitus de classe específico,
ou seja, pelo habitus que caracteriza a classe social dos liderados. Bourdieu (2003),
desenvolvendo as análises de Weber, percebeu a aproximação entre habitus e
interesse religioso e habitus interesse de classe.
“Tendo em vista que o interesse religioso tem por princípio a necessidade de
legitimação das propriedades vinculadas a um tipo determinado de condições de
existência e de posição na estrutura social, as funções sociais desempenhadas pela
religião em favor de um grupo ou de uma classe, diferenciam-se necessariamente de
14
acordo com a posição que este grupo ou esta classe ocupa a) na estrutura das relações
de classe e b) na divisão do trabalho religioso”. (2003:50)
Ademais, o mesmo Bourdieu percebe como os agentes religiosos respondem às
necessidades próprias de grupos sociais determinados.
“o trabalho religioso realizado pelos agentes e porta-vozes especializados, investidos
do poder, institucionalizados ou não, de responder através de um tipo determinado
de práticas ou de discursos a uma categoria particular de necessidades próprias a
grupos sociais determinados”. (2003:79)
Meu objetivo é, nesta mesma linha, demonstrar como os especialistas religiosos
neopentecostais se adaptam às necessidades de seu grupo e assumem as características
de sucesso deste mesmo grupo, adaptando a mensagem neopentecostal às
necessidades de sua classe, tornando-se representantes desta e exemplo para esta.
Para viabilizar empiricamente esta abordagem teórica, utilizarei o método de
análises biográficas desenvolvido nas Ciências Sociais, nomeado método biográfico
(SAUTU, 1999; ARENARI, 2013). Este método postula a) que a vida de uma pessoa
possui características de seu próprio grupo social e que b) tal biografia possui sentido
na relação com os indivíduos de tal grupo. Por isso, o método biográfico busca analisar
o universo emocional, tais como, sonhos, dramas, ansiedades, medos, e traumas de
um grupo social específico (SAUTU, 1999).
Alguns trabalhos de autores brasileiros contemporâneos serão de singular
importância para lograr êxito neste trabalho. Dentre os quais destaco o livro de Ricardo
Mariano (1999), o qual auxilia no entendimento e formas do neopentecostalismo,
principalmente o desenvolvimento do “tripé neopentecostal” e análises do Censo nas
últimas décadas sobre as mudanças no cenário brasileiro.
É destacável também o trabalho de Antônio Flávio Pierucci e Reginaldo Prandi
(1996), Renato Ortiz (2010) e Ari Pedro Oro (2003) que são importantes na
compreensão das diferentes vertentes religiosas no Brasil. Utilizarei, ainda, os
trabalhos de Jessé Souza (2003; 2006; 2009; 2010), Brand Arenari (2013) e E.P.
15
Thompson (1980), que são fundamentais para analisar as diferentes classes sociais a
partir do entendimento de seus anseios e necessidades, ou seja, para a dimensão do
pertencimento de classe que priorizamos para entender a relação entre religião e
estratificação social.
5. Metodologia
O campo escolhido para o desenvolvimento do trabalho está situado no Estado
do Rio de Janeiro, o maior estado pentecostal do Brasil. Assim, selecionamos três
denominações religiosas que, hipoteticamente, correspondem a três classes sociais
distintas. O conceito de classe social que nos apropriamos para desenvolver este
trabalho, como dito anteriormente, se encontra naquele desenvolvido por Jessé Souza
a respeito das classes sociais na sociedade brasileira, a saber, a ralé estrutural, os
batalhadores e a classe média tradicional. Onde o apontamento distintivo reside na
capacidade de compreender as instituições sociais, tais como família, controle do
tempo, escola, entre outros. Souza (2009) classifica a “ralé estrutural” como uma classe
não só sem capital cultural e econômico legítimos, como também sem as precondições
sociais, morais e culturais que permitem a apropriação de tais capitais. Enquanto os
“batalhadores” seriam a classe que obteve algum êxito na aquisição dos capitais
econômicos e sociais, mas ainda não detém controle das citadas instituições sociais. Por
fim, utilizaremos o conceito de classe média como caracterizadora do grupo social
dotada do que Jessé Souza (2009) chama de “bilhete premiado”, isto é, as precondições
sociais, morais e culturais para adquirir capital econômico e cultural na sociedade.
As organizações religiosas foram selecionadas através de entrevistas com seus
líderes e da observação do seu rol de membros tendo em vista suas ocupações. Assim,
já ralizei entrevistas com os líderes e com os membros a fim de observar as demandas
das classes que, majoritariamente, compõem o público destas organizações, além do
perfil e formação dos líderes como também a análise dos cultos, priorizando sempre
16
dois pontos principais: os anseios revelados e a adaptação do neopentecostalismo a tais
anseios.
Tendo este conceito de classe como guia, selecionamos três igrejas. Como
representante da “ralé estrutural”, selecionei a Igreja Mundial do Poder de Deus em
Campos dos Goytacazes. Das igrejas selecionadas, esta é a maior em quantidade de
templos – 22 na cidade de Campos - ainda que seja a mais difícil de afirmar o número
de membros, dada a grande rotatividade de indivíduos que participam das reuniões. O
bispo responsável pelas 22 comunidades na cidade estima que de 7000 a 8000
indivíduos frequentem as reuniões regularmente. O corpo de líderes religiosos é
composto pelo bispo regional, um pastor responsável por cada comunidade e obreiros
(sem salário) responsáveis por prestar auxílios ao que o pastor necessitar. O número de
obreiros varia em relação ao tamanho das comunidades, que variam entre 100 e 1.200
membros. Além de ser uma comunidade criada sob a ótica neopentecostal, não há
muitos trabalhos que a utilizam como exemplo, havendo preferência pela Igreja
Universal do Reino de Deus e pela Igreja Internacional da Graça. Por isso, a análise desta
igreja poderá trazer informações importantes não só sobre os anseios de sua classe
social majoritária, como também sobre a própria comunidade ainda não conhecida,
além de novos conhecimentos sobre seus líderes religiosos.
Para analisar os anseios dos “batalhadores” (ascendes e reprodutores), estudarei
a Igreja Semear, organização composta de 2.100 membros que tem neste segmento a
maioria de seus membros. A escolha dessa comunidade se deu uma vez que a mesma
se originou da separação junto à igreja de missão, CEIFA. A divisão se deu, justamente,
pela entrada do neopentecostalismo e receio da liderança anterior em permitir sua
“entrada” (Hoje, a CEIFA já adotou práticas neopentecostais). Baseando-se no modelo
celular, esta comunidade está em ampla expansão na região Norte-Fluminense graças à
administração de seu líder e a adaptação do “tripé neopentecostal” às necessidades
batalhadoras e sua influência direta no consumo material, cultural e formação do capital
social dos indivíduos que ali frequentam.
17
A Igreja Semear tem seu corpo eclesiástico formado pelo Apóstolo Luciano,
pastor fundador e presidente da Semear, 13 pastores escolhidos e “consagrados” pelo
Apóstolo Luciano responsáveis por diferentes áreas da igreja, tais como, louvor, jovens,
mulheres, administração dos bens, entre outros; e cerca de 500 líderes responsáveis
pelas quase 500 células existentes, formadas pelos 2000 membros da Igreja Semear.
Finalmente, o estudo da “classe média tradicional” será realizado junto à
Segunda Igreja Batista em Campos, organização religiosa tradicional na cidade. Apesar
de grande em número, 3200 membros, esta comunidade não ficou imune ao impacto
neopentecostal. Ainda que a liturgia dominical pouco tenha sido afetada, os inúmeros
“retiros”, “congressos” e “conferências” nos mostram que esta vertente religiosa tem
sido capaz de dialogar com as necessidades até mesmo de uma classe média
estabelecida. E são as suas necessidades, como o neopentecostalismo se adaptou a elas,
e a formação de sua liderança que desejo estudar. O corpo eclesiástico da Segunda
Batista é formado pelo pastor presidente, Éber Silva, 10 pastores escolhidos pelo pastor
Éber para administrar as diferentes áreas da igreja e por mais de 500 líderes de células,
responsáveis pelos 2300 indivíduos que frequentam estas reuniões semanais.
Cabe aqui a seguinte elucidação: a Segunda Igreja Batista em Campos é uma
igreja histórica, com mais de 100 anos, classificada como uma igreja de Missão, com
uma doutrina embasada em princípios protestantes reformadores, esta não é
semelhante às outras duas selecionadas. Contudo, creio, por sua importância nacional
– por exemplo, o pastor Éber é o pastor presidente da Associação Batista Nacional, o
cantor cristão que mais vende discos nos últimos 10 anos, Fernandinho, é pastor desta
igreja - e número de membros que ela comporta, 3200; esta igreja não ficou imune ao
impacto neopentecostal e incorporou em suas mensagens e práticas, adaptações do
“tripé neopentecostal” que a empurraram para um caminho diferente do qual seguia
até então. Não pretendo me fixar muito ao processo de transformação sofridos pelas
igrejas de Missão com a chegada do neopentecostalismo, mas o assunto merece ser
abordado, uma vez que a estratégia das igrejas históricas a fim de não perder membros
18
para as neopentecostais, encontra-se na abertura destas igrejas históricas para a lógica
de relacionamento com o divino usada nas igrejas neopentecostais.
Assim, buscamos um trabalho de campo que possa revelar anseios das classes
sociais bem como demonstrar como estes anseios são encarnados pela liderança
religiosa. Estarei presente nos cultos, retiros e reuniões a fim de analisar a forma como
cada comunidade – consequentemente, cada classe social – adapta a mensagem
neopentecostal e como a mesma interfere no consumo material, cultural e na formação
do capital social de seus membros.
Além da análise participativa dos cultos e reuniões, entrevistarei os líderes e
religiosos das comunidades eclesiásticas. Por líderes religiosos classificamos todos os
indivíduos que exercem alguma função de autoridade consagrada na comunidade, ou
seja, um indivíduo que recebeu de um superior reconhecido a autorização para
“manipular bens de salvação” e “exercer coação sobre os espíritos” e “clamar a Deus”
em nome dos seus liderados. Podemos exemplificar como líderes religiosos os pastores,
apóstolos, líder de células, diáconos, isto é, o indivíduo que não é um “simples” leigo
participante das reuniões. Os leigos, membros as comunidades, também serão
entrevistados, porque cremos ser a melhor forma de entender o impacto que a
mensagem “sagrada” é transformada em prática no dia-a-dia dos indivíduos. Serão
entrevistados 5 membros de cada comunidade a fim de proporcionar o entendimento
da transformação da mensagem em prática. Quanto aos líderes religiosos, entrevistarei
os líderes principais das igrejas selecionadas, a saber, pastor Éber Silva da Segunda Igreja
Batista em Campos; o apóstolo Luciano, presidente da Igreja Semear e o bispo Douglas
da Mundial do Poder de Deus em Campos; como também dois pastores auxiliares e um
obreiro ou líder de célula de cada igreja a fim de formar uma base de dados suficientes
para o entendimento da relação de determinada igreja/classe social com o mundo que
a cerca.
Para realizar as entrevistas, que serão realizadas em profundidade, utilizarei o
modelo de análise que considera a história de vida do líder e dos membros, bem como
19
suas opiniões sobre assuntos cotidianos, por exemplo, como Deus age no mundo;
opinião sobre aborto, casamento homoafetivo; formação familiar, entre outras. O
questionário e o roteiro utilizados para as entrevistas utilizado será aquele que foi
desenvolvido pelo IPEA para a pesquisa “Radiografias do Brasil Contemporâneo” - da
qual também faço parte, além da utilização de outros bancos de dados existentes tais
como o Censo e a análise de Ricardo Mariano sobre o mesmo.
Assim, através da metodologia descrita, buscamos um trabalho de campo que
possa revelar ansiedades das classes sociais bem como comprovar a importância da
religião na sociedade e a relação direta do líder religioso como condensador das
demandas de determinada classe.
6. Resultados e Discussões
As ansiedades de classe podem ser observadas, também, através da análise do
especialista religioso presentes nas comunidades eclesiásticas que representam
diferentes classes sociais. Existe considerável semelhança no discurso e nas ações
ritualísticas dos sacerdotes que lideram as igrejas pentecostais, e essa semelhança se
transforma em homogeneidade ao observar os sacerdotes das comunidades da “ralé”,
por um lado, e dos “batalhadores”, por outro.
Todo líder de comunidade eclesiástica concentra sobre si as ansiedades e
expectativas daquele grupo que vê nele autoridade divina para liderar. A fim de atingir
o grupo pretendido, o especialista necessita adaptar sua mensagem e exigências à
realidade e às necessidades daquele grupo, pois se o grupo não enxergar neste
especialista um enviado de Deus para falar ao povo, haverá a busca por um outro
especialista que seja visto como detentor da autoridade divina. Por isso, uma
comunidade que é composta majoritariamente por determinada classe social tem, em
seu líder, não só o enviado de Deus para guiar na relação com à realidade, mas também
um representante das ansiedades que assolam tal classe. Assim, Weber afirma que:
20
“Mas, tenha a profecia um caráter mais ético ou mais exemplar, a revelação profética significa
sempre – e isso é o que todas têm em comum – primeiro para o próprio profeta e, em seguida,
para seus acólitos: uma visão homogênea da vida, considerando-se esta conscientemente de
um ponto de vista que lhe atribui um sentido homogêneo. A vida e o mundo, os acontecimentos
sociais e os cósmicos, têm para o profeta determinado sentido, sistematicamente homogêneo,
e o comportamento dos homens, para lhes trazer salvação, tem de se orientar por ele, e sobre
esta base, assumir forma coerente e plena de significado. A estrutura desse sentido pode ser
muito diversa e agregar numa unidade motivos que parecem logicamente heterogêneos, pois
o que domina toda a concepção não é, em primeiro lugar, a consequência lógica, mas
valorações práticas”. (2009, p. 310)
A análise do especialista religioso nos ajuda a identificar as diferenças nas classes
sociais e na relação destas com o mundo.
6.1 O mago da ralé
Das figuras religiosas que se relacionam com as forças espirituais definidas por
Weber – o mago, o profeta e o sacerdote – aquele que mais se aproxima do líder
religioso das igrejas pentecostais típicas da “ralé estrutural” é, justamente, a figura do
mago. Weber define o mago como profissionais que buscam, através da magia, forçar
os demônios e coagir o deus (2009:292). Como pôde ser observado, o serviço religioso
da ralé não é “serviço ao deus, mas sim coação sobre o deus; a invocação não é uma
oração, mas uma fórmula mágica” (2009:293). E as fórmulas mágicas capazes de coagir
o deus à ação não podem ser “inventadas” pelo fiel, cabe ao mago pentecostal entregar
ao crente os produtos magicamente
“santificados” e as orações devidamente preparadas para que o deus seja convencido a
agir em favor do fiel.
O mago pentecostal tem, basicamente, duas funções. A primeira é conjurar os
demônios e “expulsá-los” do corpo dos homens. Semelhantemente à lógica do
farisaísmo no judaísmo pós-exílio, as “mazelas da vida”, tais como as doenças,
alucinações, pesadelos, ou seja, tudo que vai contra o conceito de boa-vida é tido como
21
fruto do pecado, vide o livro de João, capítulo nove, onde os discípulos perguntam a
Jesus sobre o porquê de um homem ser cego de nascença: “Quem pecou para que
nascesse cego, ele ou seus pais”? Também no pentecostalismo, os problemas são frutos
do pecado do homem. O pecado legitima a ação demoníaca sobre a vida dos homens,
causando toda sorte de sofrimento. Assim, cabe ao mago, “homem acima dos demais
homens”, “apontado” por Deus, usar a autoridade divina que tem, dada a ele por um
superior reconhecidamente “poderoso em operar milagres” – como um pastor da Igreja
Mundial do Poder de Deus deve ser designado pelo Apóstolo Valdemiro Santiago – para
expulsar os causadores do sofrimento e possibilitar a ação do deus na vida daquele
servo. Logo, a primeira função do mago é expelir demônios e repreender o mal.
Além desta função, o mago pentecostal tem o dever de transmitir ao povo os
“processos mágicos” ou sacrifícios e os “instrumentos mágicos”, objetos ordinários
“abençoados” pelo líder religioso que carrega sobre si a autoridade divina, que serão
capazes de coagir o deus para trabalhar em função do crente. O mago pentecostal é o
responsável por, durante os cultos, liderar os rituais e distribuir os objetos mágicos, além
de recolher as ofertas.
Como a autoridade do mago pentecostal se baseia no sucesso dos exorcismos e
dos instrumentos mágicos, pouco importa seu exemplo como cristão ou indivíduo cujas
ações devam ser copiadas. Não é do interesse de seu público, que ele seja
“irrepreensível diante dos homens”, como ordena o apóstolo Paulo a todos aqueles que
desejam seguir a carreira pastoral. Portanto, a capacidade de expulsar demônios e
consagrar objetos é prova suficiente da aprovação divina diante dos homens.
6.2 O profeta dos batalhadores
Enquanto nas comunidades religiosas da “ralé”, destaca-se a presença do mago
responsável por conjurar demônios e distribuir “instrumentos mágicos”, nas
comunidades eclesiásticas onde a presença de “batalhadores” é maioria, destaca-se a
presença de um líder religioso de características diferentes, o profeta pentecostal.
22
Weber define um profeta como o
“portador de um carisma puramente pessoal, o qual, em virtude da sua missão anuncia uma
doutrina religiosa ou um mandado divino. Este se distingue do mago pelo fato de que anuncia
revelações substanciais e que a substância de sua missão não consiste em magia, mas em
doutrina ou mandamento” (2009, p. 30)
Há também duas características destacáveis na representação do profeta
pentecostal.
Primeiramente, o líder das igrejas pentecostais “batalhadoras” é um exemplo
ético. Os “batalhadores” das comunidades pentecostais percebem no seu líder o
exemplo de alguém que alcançou sucesso através da obediência às regras de ação que
Deus designa. Assim, o profeta ajunta, sob sua autoridade, discípulos que veem nele um
homem de vida aprovada diante de Deus e, por isso, com “poder” para guiar outros que
buscam sucesso na vida terrena. O profeta pentecostal é quase sempre um indivíduo de
origem batalhadora ou até mesmo da “ralé” que, através de ações éticas e obedientes,
ascendeu econômica e socialmente.
Além disso, existe uma conexão inegável entre a figura do profeta, e a figura do
que Weber chama de um mestre ético. O grande administrador é capaz de transmitir a
profecia exemplar para seus discípulos, guiando-os no “caminho em que se deve andar”.
Diferentemente do mestre no judaísmo pós-exílio e do cristianismo apologeta e
escolástico, onde os mestres eram grandes exegetas, possuindo admirável capacidade
hermenêutica e domínio das Escrituras Sagradas; o mestre pentecostal é o metre ético,
capaz de ensinar com clareza como “tomar posse” dos bens divinos disponíveis aos
homens, e como administrálos. Como pode-se ler no perfil do Apóstolo Luciano, líder da
Igreja Semear em Campos dos Goytacazes, em seu website: “Quem teme a Deus, não
tem medo de crise”.
A vida e os ensinos do profeta pentecostal vão ao encontro das necessidades das
ansiedades da classe batalhadora em aprender a participar de forma efetiva das relações
econômicas e sociais do mundo capitalista contemporâneo.
23
7. Conclusão
A religião no mundo contemporâneo, principalmente na modernidade periférica,
é uma força social que precisa ser considerada quando avaliamos a sociedade e sua
organização. Seu impacto não pode ser ignorado, muito menos entendido como algo
ligado apenas à cultura e ao indivíduo particularmente.
Este trabalho buscou trazer à luz alguns pontos que comprovam o poder da
religião, principalmente nas classes populares. Primeiramente, a religião revela as
ansiedades das diferentes classes. Observando diferentes comunidades eclesiásticas,
que representam diferentes classes sociais é possível ver, na demanda por serviços
religiosos, as demandas das classes. A “ralé estrutural”, por exemplo, apresenta
necessidades urgentes, diretamente ligadas ao dia-a-dia com pouca, ou nenhuma,
disposição para o desenvolvimento de um planejamento futuro. Enquanto, os
“batalhadores” possuem ansiedades ligadas ao bem-estar futuro, principalmente
relacionados ao bom desenvolvimento familiar e administração dos bens adquiridos,
apresentando grande preocupação em não “voltar de onde veio”.
Além disso, a religião cria disposições e novos habitus de classes, que guiarão o
comportamento dos indivíduos, influenciando suas ações e formas de consumo na
sociedade. Para comprovar esta hipótese, busquei realizar uma análise da religião da
“ralé” e dos “batalhadores”, observando o culto das comunidades eclesiásticas destas
classes, analisando como a “profecia” pentecostal foi adaptada pelas comunidades a fim
de atender às diferentes demandas e ser relevante na vida dos crentes.
Por fim, busquei fazer uma curta análise do perfil dos líderes das comunidades
religiosas, pois um especialista religioso tem sobre si as expectativas de seus membros,
podendo ser tanto um exemplo para os indivíduos, como um símbolo de autoridade
divinamente estipulada para transmitir aos homens a vontade de Deus. O especialista
religioso da “ralé” é o mago pentecostal que tem a responsabilidade de conjurar
demônios, coagir o deus e distribuir instrumentos mágicos para a coação divina.
24
Enquanto o especialista dos “batalhadores” é o profeta pentecostal, caracterizador por
ser exemplo ético e grande administrador dos “bens divinos”, e responsável por ensinar
aos fiéis o caminho para as “bem-aventuranças”.
Assim, desejo colaborar para a discussão entre religião e classe social, e como a
primeira pode influenciar a segunda em sua relação de consumo dos bens materiais,
culturais e sociais.
8. Bibliografia
ARENARI, Brand. Uma análise do desenvolvimento cognitivo das religiões na sociologia
de Max Weber: caminhos para a compreensão de aspectos da modernidade brasilieira.
Brasil, 2006. Dissertação de Mestrado.
___________. Religiosidade Popular e Política: o movimento neopentecostal como caso
ilustrativo dos limites do aprendizado político no Brasil”. Revista Temáticas. Campinas,
2006
___________. „Indústria Cultural e religiosidade mágica: o racionalismo adaptativo do
Neopentecostalismo”. ANPOCS, 2007.
___________. Pentecostalism as religion of the perifety: an analysis of the Brazilian case.
Tese de Doutorado
BECK, U. “Teoría de la modernidad reflexiva”, in Josetxo Beriain (org.), Las consecuencias
perversas de la modernidad, Barcelona, Anthropos, pp. 223-265, 1996
BERG ER, P. Para una teoría sociológica de la religión. Barcelona, Kairós, 1981
BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. The new spirit of capitalism. In: CONFERENCE OF
EUROPEANISTS, 1., 2002, Chicago. Proceedings... Chicago: The Council for European
Studies, 2002a. p.1-29.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003.
CASANOVA, José. Public Religions in Modern World. The University of Chicago Press,
Chicago, 1994.
25
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo Brasileiro. São
Paulo, SP: Edições Loyola, 1999.
___________. Análise sociológica do crescimento pentecostal no Brasil. Tese de
Doutorado, São Paulo, FFLCH-USP, 2001.
_________. “A Igreja Universal no Brasil”. In: DOZON, Jean –Pierre, CORTEN, André &
ORO, Ari Pedro (orgs). A Igreja Universal do Reino de Deus: os Novos
Conquistadores da Fé. São Paulo: Paulinas, 2003.
ORTIZ, Renato. Anotações Sobre Religião e Globalização. Revista Brasileira de Ciências
Sociais – Vol. 16 N 47
PIERUCCI, Antônio Flávio & PRANDI, Reginaldo. A Realidade Social das Religiões no
Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996.
SAUTU, Ruth. La recosntrución de la sociedad a partir del testemunios de los actores.
Buenos Aires. Lumere, 1999.
SCHLUCHTER, Wolfgang. The Rise of Western Rationalism: Weber's Developmental
History. Berkley, University of California Press, 1985.
___________. Rationalismus der Weltbererrschung. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp,
1980.
___________. Religion und Lebensführung: Studien zu Max Webers Religions- und
Herrschaftssoziologie. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1988.
SILVEIRA, Marcelo. O discurso da Teologia da Prosperidade em Igrejas Evangélicas
Pentecostais. São Paulo, 2007
SKA, Jean Louis. A Palavra de Deus na narrativa dos homens. São Paulo: Vozes, 2003.
SOUZA, Jessé (Org.) . A Invisibilidade da Desigualdade Brasileira. 1. ed. Belo Horizonte:
UFMG, 2006.
______. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da
modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.
__________ . A Ralé Brasileira: quem é e como vive. Rio de Janeiro: Record, 2009.
__________ . Os Batalhadores Brasileiros. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
26
THOMPSON, E.P. The Making of the English Working Class. London: Penguin, 1980.
TORRES, Roberto. O Neopentecostalismo e o Novo Espírito do Capitalismo na
Modernidade Periférica. Revista Perspectivas: São Paulo, 2007
________________. A Universalidade da Condição Secular. 2015
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Trad: Mário Moraes. São
Paulo: Martin Claret, 2013
____________. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Trad.
De Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa; ver. Téc. de Gabriel Cohn, 4ª ed. – Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2000, 2009 (reimpressão).
____________. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC editora S.A.; 1982.
ZEPEDA, José. Secularização ou Ressacralização? O debate sociológico contemporâneo
sobre a teoria da secularização. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2010