religião, a reforma e mudança social - hugh trevor-roper

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6 Religião, a Reforma e Mudança Social – Capítulo I de A Crise do Século XVII de Hugh Trevor- Roper Luiz Fernando de Barros Campos Para Trevor-Roper, Weber não afirmou que Calvino ou os puritanos defenderam o capitalismo. Ou que não havia capitalismo anteriormente ao século XVI – Weber defendeu o surgimento de um tipo particular de capitalismo. A tese central da Ética protestante é a disciplina moral, o ascetismo mundano daqueles que criaram o capitalismo, evitando a riqueza em forma de luxo, reinvestindo o lucro, desprezando a ambição social, desse modo atendendo somente a um “chamado” e criando o “espírito do capitalismo”. Assim, Trevor-Roper vê “um núcleo sólido de verdade, ainda que esquivo, na tese de Weber”. Mas há dificuldades na tese de Weber, Trevor-Roper prossegue. Weber não teria atentado para as exceções históricas, obrigação de qualquer teoria – por exemplo, o atraso econômico da Escócia, possuidora de depósitos de carvão e um rígido calvinismo. Desse modo, Trevor-Roper pretende no capítulo rever a tese de Weber sob um ponto de vista histórico-empirista. Em uma empreitada histórica extremamente detalhista e cheia de “reviravoltas”, segue a seguinte ordem: 1. Cristiano IV da Dinamarca e Gustavo Adolfo da Suécia, ambos luteranos, a fim de intervir na Europa, valeram-se de capitalistas, a calvinista família Marcelis e a calvinista firma De Geer, res pectivamente. O cardeal Richelieu, na França, valia-se dos huguenotes e d o pr otestante Barthélemy d’Herwarth. Mesmo as potências Habsburgas, Espanha e Áustria, inimigas do protestantismo, valiam-se do calvinista Hans de Witte, sediado em Praga, ou de protestantes em Hamburgo, que se revelavam efetivamente calvinistas holandeses. 2. Mas o que unia esses capitalistas empreendedores era o calvinismo? Associa-se diretamente religião com desempenho econômico? Trevor-Roper aplica o teste histórico “de que Weber, o sociólogo, prescindiu”. De Geer era realmente um piedoso calvinista (a exceção). Hans de Witte era o oposto: serviu a católicos e jesuítas e batizou seu filho. Mas, para Weber, não se trata de fé religiosa somente, mas do “ascetismo mundano”. Mesmo De Geer comprou enormes extensões de terra na Suécia. Hans de Witte adquiriu nobreza hereditária e caras propriedades na Boêmia. Barthélemy d’Herwarth comprou um palácio em Pais, demoliu-o e construiu outro mais magnificente no lugar. 3. Sendo assim, qual o denominador comum desses capitalistas? Eram imigrantes dos Países Baixos (talvez por isso calvinistas). Vieram (ou seus pais), das províncias flamengas (que estiveram sob domínio espanhol) ou de Liége (um principado católico). A proveniência desses capitalistas era um dado mais seguro do que sua religião. 4. Analisando-se a classe empresarial das cidades capitalista do século XVII, constata-se que a maioria é imigrante, proveniente da região flamenga calvinista (de onde Weber tirou sua tese), de Lisboa e Sevilha (judeus rivais dos calvinistas, segundo Sombart,

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Religião, a Reforma e Mudança Social – Capítulo I de A Crise do Século XVII de Hugh Trevor-

Roper

Luiz Fernando de Barros Campos

Para Trevor-Roper, Weber não afirmou que Calvino ou os puritanos defenderam o capitalismo.

Ou que não havia capitalismo anteriormente ao século XVI – Weber defendeu o surgimento de

um tipo particular de capitalismo. A tese central da Ética protestante é a disciplina moral, o

ascetismo mundano daqueles que criaram o capitalismo, evitando a riqueza em forma de luxo,

reinvestindo o lucro, desprezando a ambição social, desse modo atendendo somente a um

“chamado” e criando o “espírito do capitalismo”. Assim, Trevor-Roper vê “um núcleo sólido de

verdade, ainda que esquivo, na tese de Weber”.

Mas há dificuldades na tese de Weber, Trevor-Roper prossegue. Weber não teria atentado

para as exceções históricas, obrigação de qualquer teoria – por exemplo, o atraso econômico

da Escócia, possuidora de depósitos de carvão e um rígido calvinismo.

Desse modo, Trevor-Roper pretende no capítulo rever a tese de Weber sob um ponto de vista

histórico-empirista. Em uma empreitada histórica extremamente detalhista e cheia de

“reviravoltas”, segue a seguinte ordem:

1. 

Cristiano IV da Dinamarca e Gustavo Adolfo da Suécia, ambos luteranos, a fim de

intervir na Europa, valeram-se de capitalistas, a calvinista família Marcelis e a calvinista

firma De Geer, respectivamente. O cardeal Richelieu, na França, valia-se dos

huguenotes e do protestante Barthélemy d’Herwarth. Mesmo as potências

Habsburgas, Espanha e Áustria, inimigas do protestantismo, valiam-se do calvinista

Hans de Witte, sediado em Praga, ou de protestantes em Hamburgo, que se revelavam

efetivamente calvinistas holandeses.

2.  Mas o que unia esses capitalistas empreendedores era o calvinismo? Associa-se

diretamente religião com desempenho econômico? Trevor-Roper aplica o teste

histórico “de que Weber, o sociólogo, prescindiu”. De Geer era realmente um piedoso

calvinista (a exceção). Hans de Witte era o oposto: serviu a católicos e jesuítas e

batizou seu filho. Mas, para Weber, não se trata de fé religiosa somente, mas do

“ascetismo mundano”. Mesmo De Geer comprou enormes extensões de terra na

Suécia. Hans de Witte adquiriu nobreza hereditária e caras propriedades na Boêmia.

Barthélemy d’Herwarth comprou um palácio em Pais, demoliu-o e construiu outro

mais magnificente no lugar.

3. 

Sendo assim, qual o denominador comum desses capitalistas? Eram imigrantes dos

Países Baixos (talvez por isso calvinistas). Vieram (ou seus pais), das províncias

flamengas (que estiveram sob domínio espanhol) ou de Liége (um principado católico).

A proveniência desses capitalistas era um dado mais seguro do que sua religião.

4.  Analisando-se a classe empresarial das cidades capitalista do século XVII, constata-se

que a maioria é imigrante, proveniente da região flamenga calvinista (de onde Weber

tirou sua tese), de Lisboa e Sevilha (judeus rivais dos calvinistas, segundo Sombart,

 

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contrapondo-se a Weber), do sul da Alemanha, especialmente de Augsburgo, e das

cidades italianas de Locarno, Milão e Lucca.

5.  Essas regiões eram herdeiras do capitalismo medieval, dependente do comércio a

longa distância e das grandes indústrias de tecido e minério. Para Trevor-Roper, elas

são testemunhas da existência de um capitalismo industrial previamente ao imaginado

pelos alemães Marx, Weber e Sombart (argumento semelhante ao de Collins). Mas o

problema foi apenas transferido: porque tantos capitalistas, mas também

trabalhadores, deixaram suas pátrias, predominantemente católicas, e se deslocaram

para terras protestantes?

6.  De maneira geral, Trevor-Roper responde a essa pergunta afirmando que a imigração

ocorreu devido aos excessos da contrareforma, que correspondia ao fortalecimento da

estrutura “burocrática” da sociedade. Os imigrantes, cristãos ou católicos, antigos

moradores das cidades “livres”, base do capitalismo medieval, rejeitavam o

enrijecimento da igreja, contrapunham à “religião mecânica” um “cristianismo

primitivo”, uma devoção particular, a santificação da vida leiga. Esse “chamado leigo”

foi relacionado por Weber ao protestantismo. Trevor-Roper entende que Weber

acertou ao ver no chamado um componente essencial do capitalismo, mas errou ao

imaginá-lo protestante. Trevor-Roper denomina o ethos desses imigrantes, por causa

de Erasmo, que exaltara a piedade real dos leigos, erasmianismo. Weber, assim, teria

invertido o problema: a novidade não estava nos novos empreendedores capitalistas,

mas nas razões que levaram à sua emigração.

Em suma: Não foi o protestantismo que criou o empreendedorismo capitalista racional, mas

sim a contrareforma que o expulsou da sociedade. Mas, de modo um pouco similar a Collins

(“o ethos protestante sem protestantismo”), havia uma modo de pensar e agir, um ethos, o

erasmianismo, que levou à forte oposição dos primeiros capitalistas à contrareforma e sua

consequente emigração e expansão do capitalismo moderno (Trevor-Roper, em uma nota ao

pé da página 80, expande a argumentação para a ciência).