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RELATOS DE AMIZADE, RELATOS DE POLÍTICA: A AMIZADE
POLÍTICA VIVENCIADA PELOS IDOSOS DA UnATI/UERJ
Conceição de Maria Goulart Braga Cuba
(PUC-Rio, doutoranda de Serviço Social;
UERJ/FSS, professora contratada;
UnATI/UERJ, coordenadora de projetos)
(E-mail: [email protected])
Resumo: O presente trabalho é parte da pesquisa de Mestrado em Serviço Social na PUC-Rio, concluído em 2005, junto a idosos do Projeto Idosos Colaboradores da UnATI/UERJ. Seu objetivo é apresentar, a partir dos depoimentos orais dos idosos, sua compreensão sobre a amizade política construída em sua trajetória no Projeto, onde se integram a outras gerações e constroem uma identidade e um lugar de pertencimento, enquanto geração idosa. A pesquisa qualitativa tem como aporte teórico a obra de Hannah Arendt e foi realizada, através de oito entrevistas semi-estruturadas, em que registrei relatos de 06 mulheres e 02 homens com 60 anos e mais. Os idosos mostraram uma dificuldade em perceber a amizade política, talvez por que no imaginário social a amizade é percebida apenas como relacionamento íntimo, mas em todos os seus relatos, eles expressaram a amizade em uma perspectiva política. Em suas narrativas, os idosos revelaram a construção e o exercício da amizade política com todas as gerações e se expressam como atores políticos, em diversas formas de lutas, buscando assim sair do isolamento, atualizar seus conhecimentos e garantir os seus direitos sociais explicitados nas políticas sociais para a sua geração. Palavras-Chave: Idosos; Política; Amizade Política.
Introdução
Teria belas histórias a contar aqui, e muitas. Não posso fazê-lo. Entretanto, a tentação é muito forte para mim, amigo, de contar-lhe uma só [...]. Você ainda não a sabe; o mais das vezes conversamos sobre assuntos filosóficos ou políticos, não chegando aos detalhes pessoais. Cedo a essa tentação (Michelet, 1988).
Apesar de ter diversas histórias para contar sobre amizade política, apresentarei
apenas uma: a história da amizade política dos idosos colaboradores da UnATI/UERJ.
Esta história merece ser contada, por que nela, os idosos resgatam e relatam lembranças
de amizade e de política. Por isso, provocar a recordação dos idosos colaboradores é
importante, pois, como diz Bosi (2006, p. 89): “Hoje, a função da memória é o
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conhecimento do passado que se organiza, ordena o tempo, localiza cronologicamente.”
Mas, relembrar não é uma tarefa fácil, pois traz à luz estigmas, apesar de mostrar, por
outro lado, uma luta política dos idosos colaboradores, e a sua capacidade de agir em
conjunto, como um direito de tentar reverter uma velhice assistida, e de construir
amizades políticas.
O artigo em pauta discute a amizade política entre os idosos que integram o
Projeto “Idosos Colaboradores” da UnATI/UERJ, como ação no espaço público e
alternativa de integração social e realização dos seus direitos e da sua cidadania,
possibilitadas nas reuniões com o Serviço Social do projeto. Tem como referencial
teórico a obra de Hannah Arendt (1906-1975), filósofa alemã pensadora da ruptura com
a tradição, que apresenta ao mundo uma idéia de um constante recomeço e esperança na
dignidade humana.
A amizade sempre foi um tema recorrente entre os idosos do projeto e sujeitos
da pesquisa, uma vez que eles referiam a construção de novas amizades como segunda
motivação para se inserirem na UnATI, estando em primeiro lugar, a aquisição de novas
aprendizagens (NUNES & PEIXOTO, 1995 e GOLDMAN, 2003), entretanto esta
forma de amizade é considerada nessas pesquisas como uma forma de sociabilidade.
A amizade consiste em um processo construído ao longo da história, que se
efetua nas e através das relações sociais, como resultado e resultante e sofreu
transformações na modernidade, sendo mais valorizada no espaço privado.
Modernidade esta, que foi marcadamente um processo onde o espaço público se
decompôs, privatizou e despolitizou as relações (ARENDT, 2002 a) e com isso, as
práticas e a reflexão sobre a amizade enfraqueceram (ORTEGA, 2002).
Talvez seja essa uma das razões em que Bauman (2004) se apóia para esclarecer
que a amizade, um dos elementos importantes “da construção comunitária” de outrora,
tornou-se frágil, inconsistente e muito “rala” em algum lugar da história e na
contemporaneidade se tornou líquida e efêmera, quase irrelevante. A amizade política é
um processo historicamente construído, situado e a sua prática é dinâmica, inacabada,
sendo por isso continuamente renovada e incapaz de ser realizada sem a cidadania,
segundo a concepção de Arendt (2002 a), como o direito a ter direitos. Assim
compreendida, a amizade política caracteriza-se como uma ação relacional, praticada
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nas esferas públicas através do diálogo, onde todos falam e ouvem a opinião dos outros,
no mundo comum a todos os cidadãos.
Assim, a história ora apresentada neste texto está organizada em três eixos
básicos. O primeiro contextualiza o envelhecimento social e os seus rebatimentos na
amizade; o segundo discute a amizade política nas idéias de Hannah Arendt. O terceiro
apresenta brevemente o Projeto em pauta e a percepção dos idosos sobre a amizade
política, através dos seus relatos orais. Finalmente, nas considerações finais, comento a
importância da amizade política para os idosos.
Hannah Arendt não elaborou um estudo sistemático sobre a amizade, nem
mesmo sobre a amizade política e como o leitor verá, a amizade para esta autora, é uma
forma de ação política. Vale ressaltar que este artigo não pretende esgotar o presente
tema, permanecendo a necessidade de estudos para o seu aprofundamento. Espero,
porém, que possa fornecer subsídios para os debates e ações dos assistentes sociais e
demais profissionais no Brasil que trabalham com idosos de quaisquer condições.
1. Envelhecimento social no Brasil
As transformações sociais no Brasil enfraqueceram a cidadania dos idosos, ao
valorizar o novo, a juventude e o individualismo, também gerando e agravando
desigualdades, preconceito e exclusão social dos idosos. Essa situação se acirrou com a
valorização do cidadão-consumidor no capitalismo, o que contribuiu, entre outras
questões, para silenciar a militância política dos idosos e isso tende a diminuir os
avanços democráticos. Desse modo, afeta diretamente a vida e as relações sociais dos
idosos, independente das diferenças de classe, gênero, raça e outras. Essas questões
desafiam especialmente os assistentes sociais que trabalham com idosos, ao tentarem
facilitar o seu acesso às políticas sociais, buscando retirá-los da exclusão e tentando
ampliar os seus direitos sociais e a sua cidadania.
O fenômeno mundial do envelhecimento populacional, complexo e heterogêneo
no Brasil é um processo socialmente construído, desenvolvido pelo alongamento da
vida que representa uma importante conquista da população brasileira na área social e
no campo da saúde, pela redução da mortalidade infantil e diminuição da natalidade,
que asseguraram o aumento da esperança de vida. Entretanto, a redução dos gastos na
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área social, a focalização e privatização das políticas públicas para idosos no Brasil, até
mesmo a escassez ou inconsistência destas rebatem especialmente nos idosos pobres
distanciando-os, cada vez mais, da maioria dos bens e serviços e exige amplos
investimentos públicos (em todas as instâncias) para a realização dos objetivos das
políticas sociais existentes (VERAS, 2004).
Esta constatação é grave, pois a população idosa no nosso país, ou seja, sujeitos
com 60 anos, idade definida pela Organização das Nações Unidas (ONU) para os países
em desenvolvimento como o Brasil, vem crescendo aceleradamente e representa 10,5%
da população, isto é, cerca de 20 milhões de pessoas idosas, segundo a FIBGE
(2007/2008). A projeção da ONU é que em 2020 o Brasil será o sexto país do mundo
em população idosa, com cerca de 32 milhões de idosos, como pontua Veras (2004).
Além disso, há uma feminização da velhice no nosso país, uma vez que as mulheres
constituem a maior parte da população idosa, totalizando 55% da população idosa, um
índice que tem aumentado junto com a expectativa de vida.
Muitos idosos brasileiros vêm sendo principais provedores financeiros em suas
famílias, segundo Simões (2004), e têm se engajado em movimentos associativos,
apesar dos estereótipos e preconceitos que lhes são dirigidos em nossa sociedade
(DEBERT, 1999), que provocam a desmobilização desta geração para se expressar na
esfera pública. Mas, os idosos vêm participando também em programas para a sua
geração, sendo pioneiro o Serviço Social do Comércio (SESC) nos anos sessenta com
os centros de convivência. Além deste, as universidades para a terceira idade vêm se
destacando e dando visibilidade às questões do envelhecimento, atualizando o
conhecimento dos idosos, sendo espaços onde tecem amizades e tentam quebrar
preconceitos, diz Motta (2004), ainda que esta forma de amizade não seja política.
Além disso, não se pode deixar de pontuar o paradoxo do direito social da
aposentadoria, que reduz o poder aquisitivo, “acarreta, para a maior parte [...], perda de
status1 e uma queda de nível de vida” (BEAUVOIR, 1990, p. 299). Desse modo,
facilita o isolamento e a exclusão social, uma vez que, ao marcar “o rompimento com o
mundo do trabalho [...] meio preferencial ou exclusivo” da “sociabilidade pública”
(SIMÕES, 2004, p. 52) dos homens idosos, a aposentadoria incide na perda do espaço
1 Grifo da autora.
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de lutas políticas por direitos (o trabalho), junto às amizades nele construídas. Ocorre
que, junto a essas amizades, os idosos podem lutar pela ampliação da sua cidadania, que
no pensamento arendtiano compreende o direito a ter direitos (ARENDT, 2002 a).
Os idosos brasileiros tiveram seus direitos garantidos na Constituição brasileira
de 1988 em seu artigo 230, que garante o seu amparo como “dever” da família e do
Estado e afirma a “sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-
estar e garantindo-lhes o direito à vida” (BRASIL, 2003, p. 154). Estes direitos já
haviam sido assegurados, desde a primeira Assembléia Mundial sobre o
Envelhecimento em 1982 em Viena, pela Organização das Nações Unidas (ONU) em
seu Plano de Ação. A Política Nacional do Idoso (PNI), seguindo recomendações da
ONU e com a pressão dos movimentos sociais, foi regulamentada em 1994,
prescrevendo amplos direitos e o Estatuto do Idoso (EI), sancionado em 2003, referenda
e amplia esse elenco de direitos. São políticas bem avançadas, mas sem a realização
completa dos seus objetivos.
Nesse contexto, o envelhecimento social consiste em uma das formas de
expressão da “questão social”, pela gama de problemas acarretados e o seu
enfrentamento exige uma ação democrática transformadora para ampliar os direitos e a
cidadania de todos os cidadãos, universalizando, assim, o acesso a todos os direitos
(IAMAMOTO, 2001). Assim, além do trabalho direto com os idosos, estes se fazem
presentes nos espaços de direitos (Fóruns e Conselhos), associações, sindicatos, como
sujeitos históricos e atores políticos, desenvolvendo uma ação reivindicativa de
transformação social (GOLDMAN, 2007) e tentam enfrentar as deficiências das
políticas apontadas e ampliar o acesso aos seus direitos sociais (GOLDMAN, 2007;
PAZ, 2004). Direitos estes, historicamente conquistados nos diversos movimentos
sociais, mas, insistentemente negados pelo Estado moderno que minimizou a sua
responsabilidade frente à questão social, daí a importância de estratégias como a
amizade política arendtiana.
2. Amizade política em Hannah Arendt
Nesta seção apresentaremos brevemente a amizade política, nas idéias de
Hannah Arendt, que fundamenta o projeto citado. Esclarecemos que Arendt (2003)
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alerta que a sociedade se habituou a pensar a amizade, tal como eu também a
compreendia, apenas como uma relação íntima e de troca de confidências, sem abertura
para o mundo, portanto sem dimensão de amizade política.
A amizade política está associada à ação, à política e ao espaço público em
Hannah Arendt. A ação enquanto diálogo democrático leva à construção de um espaço
público e político por definição, onde os cidadãos se organizam para reivindicar os seus
direitos. Nesse espaço é gerado um poder, para a organização e reivindicação de direitos
(ARENDT, 1999) que pode transformar o mundo (ARENDT, 2002 a).
Este mundo só se tornou humano quando passou a ser objeto de discurso e
possibilidade da amizade, fato essencialmente político para a autora. A política
arendtiana consiste na expressão livre e pública de todos, sem distinções de qualquer
natureza, ao contrário da política restrita à administração de um país por alguns
burocratas. Desse modo, a amizade política é um processo histórico e dinâmico e uma
forma de ação pública e política realizada pelo diálogo horizontal e plural que tenta
resgatar o interesse dos excluídos pelos problemas sociais como um constante
recomeço. Assim, propicia a luta por direitos e provoca cidadania arendtiana a todos.
Nas palavras de Arendt,
O elemento político, na amizade, reside no fato de que, no verdadeiro diálogo, cada um dos amigos pode compreender a verdade inerente à opinião do outro. [...] Esse tipo de compreensão - em que se vê o mundo (como se diz hoje um tanto trivialmente) do ponto de vista do outro - é o tipo de insight político por excelência (ARENDT, 2002 b, p. 99).2
Nesse contexto, agir pela amizade política torna o mundo mais palpável e mais
real para os idosos, que passam a se perceber atores e autores de novas ações, no seu
desempenho público em que ocupam e empregam criativamente os seus conhecimentos
acumulados na vida. Daí a importância de estimular o exercício da amizade política na
ação dos assistentes sociais com idosos, para que se fortaleçam e possam melhor exercer
o seu direito a ter direitos ou cidadania arendtianos.
3. Relatos de amizade política dos idosos da UnATI/UERJ
2 Acréscimo em parênteses, do original.
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O presente estudo versa sobre a amizade política dos integrantes do Projeto
“Idosos Colaboradores” da UnATI/UERJ e, para melhor compreender o significado
dessa forma de amizade exercitada pelos idosos, realizei uma pesquisa qualitativa,
apoiada na metodologia de estudo de caso, através da história de vida. Para Queiroz
(1988, p. 20), história de vida compreende “o relato de um narrador sobre sua existência
através do tempo, tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a
experiência que adquiriu”. Capta o que sucede no cruzamento da vida individual e
coletiva e, seguindo essa linha de raciocínio, as narrativas dos idosos foram delineando
os seus relacionamentos com outros membros do grupo, com a equipe do Serviço Social
e outros sujeitos sociais.
A história de vida dos idosos colaboradores é composta de um conjunto de
depoimentos, portanto, obtidos por meio de entrevistas semi-estruturadas e gravadas,
versando sobre situações vivenciadas e saberes acumulados na esfera pública e plural.
Nestes depoimentos, os idosos fazem uma trajetória entre o indizível e o dizível. São
relatos que expressam a memória de experiências vividas bem diversas umas das outras,
assim como as visões de mundo, embora os idosos entrevistados tenham compartilhado
o mesmo momento histórico, sendo este o grande mérito dos depoimentos (BOSI,
2003).
Neste contexto, a recordação foi o ingrediente ativo para os idosos perceberem a
amizade política, quando associaram cidadania, direitos e política e foram recordando
sua trajetória de vida e militância na escola, no trabalho, no sindicato, na associação e
no projeto. Esta memória, em que a amizade política tomou corpo, é propriamente
sócio-política e não uma memória nostálgica do passado, apesar da “conversa
evocativa” dos idosos ser, nas idéias de Bosi (2006, p. 82, “sempre uma experiência
profunda: repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens
caras, pela desaparição de entes amados.”
Na realidade, e, seguindo o pensamento desta mesma autora, na velhice a
capacidade de recordar é fundamental e se torna até mesmo uma necessidade social,
uma vez que lembrar possibilita trazer a público os fatos vivenciados e testemunhados.
Por isso, (BOSI, 2006, p. 82), a vida dos idosos “[...] ganha uma finalidade se encontrar
outros ouvidos atentos, ressonância.” Isto por que, “pela memória dos velhos” pode
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surgir uma sociedade com uma riqueza e uma diversidade ainda desconhecida.” Além
disso, as novas gerações podem melhor compreender o “mundo perdido”, por meio do
relato das recordações de momentos vivenciados pelos idosos e estas lembranças podem
“até humanizar o presente”. A autora pontua ainda que: “Para quem sabe ouvi-la, é
desalienadora, pois contrasta a riqueza e a potencialidade do homem criador de cultura
com a mísera figura do consumidor atual.” (Ibid.).
A pesquisa qualitativa realizada teve como objetivo compreender o significado
da amizade construída pelos idosos do Projeto “Idosos Colaboradores”. Foi concluída
em 2005, sendo parte integrante da dissertação de mestrado intitulada “Ninguém Vive
Sem Amizade! A Importância da Amizade Política dos Idosos Colaboradores”, de
minha autoria, junto ao Departamento de Serviço Social da PUC-Rio.
Ao traçar um breve perfil dos 08 idosos entrevistados observei que, em sua
maioria, eles pertencem à camada média da população do Rio de Janeiro. Entre estes,
havia 02 homens e 06 mulheres com idades entre 64 e 82 anos. Essa feminização entre
os participantes da pesquisa coincide com os dados censitários mundiais e brasileiros e
com o perfil da UnATI/UERJ, mostrando que o envelhecimento é feminino, como
evidenciam os estudos de Goldman (2003), Nunes & Peixoto (1995) e Sant’Anna
(1997). Para esta última, a presença numerosa de mulheres idosas nas atividades da
UnATI/UERJ, deve-se à intensidade com que “as mulheres vivenciam [...] a Terceira
Idade como uma nova etapa da vida”, sendo atraídas para esses programas, porque estes
valorizam e celebram essa etapa da vida, tornando-se por isso “extremamente atrativos
para as mulheres” (Ibid., p. 100) idosas.
Outros aspectos deste perfil também são relevantes pontuar: 02 homens idosos3
são casados e aposentados; 05 mulheres são viúvas e 01 idosa viúva casou em segundas
núpcias, mostrando que a maioria mora só. Esta é uma condição que vem sendo comum
entre as mulheres viúvas e idosas no Brasil. Entre as 06 mulheres idosas, uma foi
readaptada ao trabalho, 04 são aposentadas e pensionistas e uma outra é aposentada.
O Projeto “Idosos Colaboradores”, onde os sujeitos da pesquisa estão inseridos,
foi criado em 1966 e integra o Programa Valorização do Conhecimento do Idoso da
UnATI/UERJ, sendo coordenado por duas assistentes sociais e insere estagiários de
3 Um deles, que eu chamei de Carlos, faleceu em 2006.
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Serviço Social. Seu objetivo é promover a participação social dos idosos por meio de
atividades voluntárias nos espaços internos da UnATI, buscando a valorização do
conhecimento e a capacitação dos idosos para as questões inerentes ao processo de
envelhecimento, tornando-os agentes multiplicadores da cidadania na terceira idade
(NUNES & CUBA, 2001). No projeto, os idosos desenvolvem atividades voluntárias,
em que estabelecem diálogos com os idosos atendidos sobre os direitos sociais e as
políticas sociais dos idosos, repassando o saber apreendido nas reuniões do Serviço
Social.
Para compor a história de vida de cada idoso solicitei que cada um descrevesse
oralmente a sua experiência pessoal, a partir de questões abertas que foram sendo
ampliadas através de perguntas, construídas no decorrer do diálogo entre a pesquisadora
e cada entrevistado. Para preservar o anonimato, atribuí nome de flores às mulheres
idosas e, aos homens, nomes próprios aleatórios. Vejamos, portanto, o que revelam os
próprios idosos e sujeitos da pesquisa sobre a amizade política.
Sobre as amizades construídas na UnATI e no projeto, Carlos, um sindicalizado
aposentado, que, ao se integrar no projeto passou a reunir os seus amigos aposentados
do sindicato e a se engajar nas lutas dos funcionários ativos de uma importante empresa,
diz: “As minhas amizades aqui na UnATI e no Sindicato são coisas muito produtivas e
participativas.” Para ele, ainda, a “[...] juventude que existe também aqui dentro [...],
aquela integração. Eu converso [...] Eu tô sentindo que eu tô fazendo [...] bem pras
pessoas também.”
Ao conversar e participar desse espaço público de pluralidade e das reuniões da
equipe de Serviço Social, os idosos vão construindo e exercitando amizades políticas
arendtianas. Essa forma de amizade é praticada ao debaterem sobre os direitos sociais
assegurados nas políticas sociais dos idosos (PNI e EI).
Na opinião de Carlos: “Essa participação política é uma maneira [...] de
reivindicar determinadas coisas [...]”. A participação política de Orquídea é como
“representante da turma aqui do curso [...] na UnATI”. Ainda sobre isso, Rosa, que é
Presidente da Associação dos Idosos, diz: “[...], tenho uma diretoria em que todos têm a
sua capacidade e todos têm o direito de exercer aquela capacidade dentro da Associação
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e trabalhar sobre isso. Eu dou margem pra isso”. E, reafirmando a importância dessa
participação política, Carlos comenta:
[...] eu tenho participado de tudo, participo de eventos, no Sindicato [...] eleições lá, no Sindicato. [...] A nossa presença dentro do Sindicato tem sido uma coisa [...] excepcional! Uma coisa de política, uma coisa, fora de série. [...] Eu tô botando o pessoal [...] pra eles se movimentarem bem! Eu acho que (no voluntariado) é uma relação muito boa, porque é uma atividade que eu tenho, venho com boa vontade, tenho boas amizades. [...] Me sinto satisfeito.
A ação política de Carlos é exercitada por meio de “conversações muito mais
amplas”, como denominou Rosa. Mas Violeta diz que “[...] a pessoa que não tem um
amigo, uma amizade [...] se sente [...] Excluído, do meio que ele convive.” Daí Luiz
afirmar que “Não se vive sem amizade!”.
Eles percebem, portanto, a amizade como um direito e como cidadania, e como
um vínculo que tira do isolamento e da exclusão social. Trata-se aí de uma amizade
pública, em que os idosos mostram-se militantes (SIMÕES, 2004). Isto por que: “[...] a
gente [...] sai desse convívio assim fechado, vai pra um convívio aberto, cada um tem a
sua opinião [...]” (DÁLIA). Essa amizade é praticada em todos os espaços da cidade
(UnATI, Fórum, sindicatos, associações etc), em que, como disse Carlos, cada um
expõe seu “ponto de vista” sobre “política governamental.”
Esses relatos sugerem que, ao expressarem a sua opinião na esfera pública, os
idosos estabelecem amizades políticas, enquanto ação arendtiana, que é diferente da
“política governamental”. Ao tentarem associar a amizade à política, posicionando-se
sobre a sua concepção sobre esta última, revelaram a sua descrença na política
brasileira, de forma ética, mas bastante crítica. Eles entendem a política como “política
partidária”, que é “suja”, ligada à “desonestidade” (ORQUÍDEA) e à “falsidade em
pessoa” (ROSA e VIOLETA). Para Rosa, há também “aquela política do ser humano
[...], a sua politicazinha, faz seus grupinhos, guetos. E aí não fazem uma comum união,
porque a política [...] não vê a comunidade em geral, não vê o povão.” Por isso afirma:
“Não acredito mais em política. A política do governo.”
A descrença na política parece estar associada à sua prática histórica no Brasil,
onde relacionar-se - ter amigos - representa uma estratégia para obter apoio político e
trocar favores entre os amigos, segundo DaMatta (1987). Entretanto, parecem mostrar
que há uma outra forma de fazer política, que faz uma “comum união”, que “vê a
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comunidade”, diferente da política governamental como fica claro no relato de Rosa.
Além disso, os idosos associam a política à cidadania, mas são críticos.
Para eles, cidadania “[...] é um posicionamento na vida [...] O sujeito se
posiciona na vida, de maneira que ele exerce uma política. [...] É [...] vivenciar
problemas, atitudes e acontecimentos” (LUIZ). Na memória de Dália “[...] a política aí
está ligada à cidadania, porque os políticos, as pessoas têm que recorrer aos políticos
[...] pra formar um projeto, lei, pra uma melhoria [...].” e ainda Orquídea: “Acho que a
política partidária devia ter uma relação com a cidadania, mas não tem, porque os
políticos não pensam em você, mas no voto que ele vai ganhar.”
Sobre cidadania, dizem que: “é o direito de cada um de nós, [...] da pessoa
humana.” (ROSA). É “exercer”, como afirmam Luiz e Orquídea, e “[...] reivindicar os
nossos direitos” que se “tem como cidadão” (LUIZ). Além disso, “Cidadania é expor
idéias e garantir direitos” – diz Flor. É “Você brigar por alguma coisa que não esteja
correto [...] é exercer seu direito de vida” (LUIZ).
Associado aos direitos, o voluntariado passa a constituir uma ação política, que
permite o exercício da cidadania, pois, segundo Arendt (2002 a) agindo politicamente,
cada um emite a sua opinião sobre o que pensa ser a verdade. As idosas associam o
voluntariado à cidadania: “[...] nós estamos assim trabalhando com o público, então é
uma cidadania” (DÁLIA). Além disso, “[...] participando das atividades tô aprendendo
[...] sobre as leis que nos rege, que dá direito à gente tá... conhecendo nossos direitos.
Eu acho que tô praticando a, cidadania, né” (VIOLETA).
Nota-se que nos relatos orais das suas lembranças, os idosos mostraram
dificuldade em perceber a amizade política, apenas conseguindo quando associaram
política, cidadania e direitos. Este fato se deve ao hábito de perceber a amizade apenas
como relacionamento íntimo e não voltada para o mundo, como disse Hannah Arendt e
como eu a compreendia. Apesar dessa constatação, a amizade política pode ser
associada aos relatos de todos os idosos entrevistados. Flor, bastante apropriadamente
esclareceu que “A amizade pode inserir um pouco de política, porque a política está em
tudo. Depende do tipo de política que se insira na amizade”. E Luiz, que melhor definiu
a amizade política, afirmou:
Sim, sem dúvida nenhuma é uma amizade política. [...] É uma amizade de respeito, de atenção, de carinho, no próximo e também de dispensa [...], mas
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não é aprofundada como aquela amizade de estar na casa um do outro, comendo junto, não precisa isso pra exercer essa amizade. Essa amizade vem do prazer em freqüentar os ambientes da mesma verdade, o pensar do mesmo modo.
Os idosos mostram, em seus depoimentos, uma associação com as idéias
arendtianas sobre amizade política, que, em suas palavras, compreende uma amizade
pública praticada no mundo comum a todos e plural do projeto e da UnATI/UERJ. Esta
forma de exercício da política se contrapõe à política do governo, que não se volta para
a comunidade, como analisaram os idosos.
4. Comentários finais
A amizade política mostra garantir aos idosos o direito de se expressar
livremente, constituindo um espaço público e político, assim podendo reverter a severa
exclusão social que os atinge em todos os níveis: econômico, social, cultural e político.
Ao se associarem com outros idosos e outras gerações, nos sindicatos, associações,
fóruns -, os idosos colaboradores se assumem como cidadãos de todos os direitos no
mundo comum a todos os cidadãos brasileiros, reivindicando o seu legítimo espaço na
esfera pública.
Nesse sentido, a amizade política pode ser uma saída para os impasses dos
rebatimentos da questão social, uma vez que tem sido fundamental para incentivar a
expressão pública dos idosos na garantia de seus direitos. Para isso é necessário manter
o estímulo à presença dos idosos na esfera pública e política dos idosos, envolvendo-os
em debates e estimulando a reflexão relativa aos direitos e às políticas sociais para a sua
geração.
A pesquisa mostrou que os idosos vêm se fazendo presentes na UnATI/UERJ e
para além desse espaço. O seu agir conjunto com diferentes gerações no projeto, de
forma crítica e ética, revela a constituição de um espaço público e de amizade política.
Assim, esta forma de amizade revela-se bastante relevante para os idosos, como
alternativa de integração na esfera pública, onde as questões do processo de
envelhecimento se tornam visíveis.
Agir pela amizade política torna o mundo mais palpável e mais real para os
idosos, que passam a se perceber atores e autores de novas ações, no seu desempenho
público nos espaços internos e externos da UnATI/UERJ. Daí a importância de
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estimular o exercício da amizade política na ação dos assistentes sociais com idosos,
para que se fortaleçam e possam melhor exercer o seu direito a ter direitos ou cidadania
arendtianos.
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