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SECRETARIA DA JUSTIÇA E DA DEFESA DA CIDADANIA FUNDAÇÃO INSTITUTO DE TERRAS DO ESTADO DE SÃO PAULO JOSÉ GOMES DA SILVA RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO SOBRE A COMUNIDADE DE QUILOMBO DO NHUNGUARA, LOCALIZADA NOS MUNICÍPIOS DE ELDORADO E IPORANGA / SÃO PAULO. São Paulo, outubro de 2000.

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Page 1: RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO SOBRE A COMUNIDADE … · questão, as formas de ocupação da terra, as relações de trabalho antigas e atuais, seu modo de vida 3 , os conflitos

SECRETARIA DA JUSTIÇA E DA DEFESA DA CIDADANIAFUNDAÇÃO INSTITUTO DE TERRAS

DO ESTADO DE SÃO PAULO “JOSÉ GOMES DA SILVA”

RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO SOBRE A

COMUNIDADE DE QUILOMBO DO NHUNGUARA,

LOCALIZADA NOS MUNICÍPIOS DE

ELDORADO E IPORANGA / SÃO PAULO.

São Paulo, outubro de 2000.

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Sumário

1. INTRODUÇÃO .........................................................................................................................................3

2. A ATUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE QUILOMBO .............................................6

3. O TERRITÓRIO QUILOMBOLA ...........................................................................................14

4. VALE DO RIBEIRA E FORMAÇÃO DAS COMUNIDADES NEGRAS...21

5. TERRITÓRIO DO NHUNGUARA E HISTÓRICO DE SUA OCUPAÇÃO.....................................................................................................................................................26

6. CONFLITO: QUILOMBOS E DESENVOLVIMENTO REGIONAL .......35

7. O NHUNGUARA HOJE...................................................................................................................44

8. CONCLUSÕES........................................................................................................................................51

9. BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................................56

1. Iconografia

2. Levantamento planimétrico – Área da Comunidade Nhunguara

3. Memorial Descritivo

4. Croqui da ocupação atual

5. Diagrama de Parentesco

6. Cópia de Certidão

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1. INTRODUÇÃO

Este relatório técnico-científico é resultado de um trabalho de pesquisa

antropológica que objetivou verificar se o grupo populacional denominado Comunidade

do Nhunguara, cujo território está dividido entre os municípios de Eldorado e Iporanga,

Estado de São Paulo, se constitui como remanescente de comunidade de quilombo a

fim de adjudicar-lhe o direito previsto no Artigo nº. 68 do ADTCF - Ato das Disposições

Transitórias da Constituição Federal de 1988 -, sob o enunciado: “Aos remanescentes

das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a

propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”1. Esta

verificação segue os requisitos e critérios estabelecidos pelo Grupo de Trabalho e pelo

Grupo Gestor, em obediência ao referido Artigo 68, bem como aos artigos 215 e 216 da

Constituição Federal e, ainda, à legislação estadual: lei número 9757/97 e os decretos

41.774/97 e 42.839/98.

A comunidade quilombola do Nhunguara integra um conjunto de diversos

bairros rurais vizinhos, cujos territórios formam uma grande área quase contígua entre

os municípios de Eldorado e Iporanga de ocupação eminentemente afro-descendente

cuja formação teve início no século XVII, no contexto do ciclo minerador, como

detalhamos no capítulo 4. Estas comunidades foram protagonistas de grande

mobilização contra a construção de barragens ao longo do Rio Ribeira de Iguape, as

quais inundariam grande parte de seus territórios, deixando bairros inteiros submersos.

1 A criação desta categoria de investigação denominada Relatório Técnico Científico, bem como os parâmetros que o norteiam, são resultantes dos esforços do Grupo de Trabalho criado pelo Governo do Estado de São Paulo por meio do Decreto nº 40.723, de 21 de março de 1996, que tinha por objetivo fazer proposições visando a plena aplicabilidade dos dispositivos constitucionais conferentes do direito de propriedade aos remanescentes das comunidades de quilombos em território paulista. O Grupo foi composto por representantes da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”, Secretaria do Meio Ambiente, Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de Governo e Gestão Estratégica, Secretaria de Cultura, Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Estado de São Paulo, Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção São Paulo e Fórum Estadual de Entidades Negras. Os trabalhos deste Grupo levaram à criação: a) do Programa de Cooperação Técnica e de Ação Conjunta para identificação, discriminação e legitimação de terras devolutas do Estado ocupadas por remanescentes de comunidades de quilombos e de sua regularização fundiária, implantando medidas socio-econômicas, ambientais e culturais e b) de um Grupo Gestor para implementação do Programa. O Programa e o Grupo Gestor foram criados por meio do decreto nº 41.774 de 13 de maio de 1997.

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Uma destas barragens forneceria energia elétrica para uma empresa do grupo

Votorantim, e outras três seriam construídas pela Companhia Energética de São Paulo

que, segundo dados do Instituto Socioambiental, inundariam cerca de 60% do território

de inúmeras comunidades da região.

Foi neste contexto de mobilização que estes grupos passaram a exigir do

Estado de São Paulo a regulamentação e o cumprimento do Artigo 68 do ADT da CF.

Este relatório é parte integrante do processo de reconhecimento, por parte do Estado,

da condição quilombola e da delimitação do território da comunidade do Nhunguara.

À semelhança do que ocorre com quase todas as comunidades remanescentes

de quilombo no Estado de São Paulo, parte das terras do Nhunguara passou para o

domínio de terceiros a partir de 1986. No capítulo 7 detalhamos este processo de

perda/transferência de domínio, evidenciando o contexto sócio-econômico do mesmo,

bem como a situação de subordinação da população quilombola em relação à

sociedade regional e aos fazendeiros que lá se instalaram, configurando-se uma

situação de injustiça que busca-se agora reparar.

No Nhunguara, bem como em diversas áreas de comunidades negras rurais,

acresce-se o fato de que não foram apenas camponeses pobres e analfabetos a serem

expropriados, mas sobretudo negros, marcados pelo preconceito, pela discriminação

ainda hoje vigentes e, num passado não muito distante, considerados párias pela

sociedade branca dominante2.

Frente a este quadro, há que se considerar o Artigo 68 do ADTCF – e suas

posteriores regulamentações – como legislação imperativa, posto o seu caráter

premente de mecanismo capaz de saldar, ainda que parcialmente, a dívida social e

moral de toda uma nação com um segmento étnico que, escravizado, foi responsável

por grande parte das riquezas acumuladas pelo país e permanece alijado das

benesses deste empreendimento.

Como parte integrante do processo de reconhecimento e titulação territorial da

Comunidade do Nhunguara, este Relatório Técnico-Científico apresenta uma discussão

teórica sobre o conceito de quilombo, sintetizando a acepção moderna e atualizada do

mesmo, tal como vem sendo usado por antropólogos e legisladores. Segue-se um

histórico da região, a fim de localizar o leitor. Em sua porção central - à luz de 2 Mesmo em âmbito acadêmico, pretensamente tolerante e democrático, estudiosos do “problema negro" como Sílvio Romero e Nina Rodrigues não se furtavam, nas primeiras décadas deste século, a expor uma visão preconceituosa, atribuindo aos negros e à miscigenação a dificuldade para o desenvolvimento

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pesquisas de campo, bibliográfica e de documentos históricos e jurídicos - o presente

trabalho discorre, na forma de uma etnografia, sobre a origem da comunidade em

questão, as formas de ocupação da terra, as relações de trabalho antigas e atuais,

seu modo de vida3, os conflitos pela posse da terra e a sua situação atual.

do Brasil e pregando, como solução lógica de suas teorias racistas, o embranquecimento da população.3 Karl Marx (1984) utilizou o conceito de modo de vida para explicar que a forma como os homens produzem seus meios de vida não se limita à “reprodução da existência física dos indivíduos”, mas trata-se de um “modo de manifestar a vida”. É sobretudo, conforme entendemos, um modo de organização que reflete o que produzem e como produzem, o que depende, por sua vez, das condições materiais da produção.

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2. A ATUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE QUILOMBO

O reconhecimento, por parte do Estado, da existência de comunidades negras

rurais como uma categoria social carente de demarcação e regularização das terras

que ocupam longevamente, e às quais se convencionou denominar comunidades

remanescentes de quilombos, traz à tona a necessidade de redimensionar o próprio

conceito de quilombo, a fim de abarcar a gama variada de situações de ocupação de

terras por grupos negros e ultrapassar o binômio fuga-resistência, instaurado no

pensamento corrente quando se trata de caracterizar os quilombos.

Em 1740, reportando-se ao rei de Portugal, o Conselho Ultramarino valeu-se

da seguinte definição de quilombo: “toda habitação de negros fugidos, que passem de

cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se

achem pilões nele”4. Esta caracterização descritiva perpetuou-se como definição

clássica do conceito em questão e influenciou uma geração de estudiosos da temática

quilombola até meados dos anos 70, dentre os quais Artur Ramos5 e Edson Carneiro6.

O traço marcadamente comum entre esses autores é atribuir aos quilombos um tempo

histórico passado, cristalizando sua existência no período em que vigorou a escravidão

no Brasil. Eles os caracterizam exclusivamente como expressão da negação do

sistema escravista e como espaços de resistência e de isolamento da população negra.

Embora o trabalho destes autores seja importante e legítimo, ele não

contempla a diversidade das relações entre os escravizados e a sociedade

escravocrata e nem as diferentes formas pelas quais os grupos negros apropriaram-se

da terra. Flávio dos Santos Gomes tenta abarcar tal diversidade com o conceito de

“campo negro”: “uma complexa rede social permeada por aspectos multifacetados que

envolveu, em determinadas regiões do Brasil, inúmeros movimentos sociais e práticas

econômicas com interesses diversos”7.

A visão reduzida que se tinha das comunidades rurais negras refletia, na

verdade, a “invisibilidade” produzida pela história oficial, cuja ideologia,

4 Wagner, 1999: 12.5 Ramos, 1953.6 Carneiro, 1957.7 Gomes, 1995:36.

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propositadamente, ignora os efeitos da escravidão na sociedade brasileira8 e,

especialmente, os efeitos da inexistência de uma política governamental que

regularizasse as posses de terras de grupos e/ou famílias negras após a abolição,

extremamente comuns à época, conforme comprovam os estudos de Ciro Flamarion

Cardoso9.

No entanto, foi a produção científica ainda atada a conceitos restritivos e pouco

plásticos que subsidiou a luta política em torno das reivindicações da população rural

negra que, sofrendo expropriações incessantes, se colocava como um segmento

específico no palco dos movimentos sociais. Desta forma, a denominação quilombo se

impôs no contexto da elaboração da constituição de 198810.

Ao fazer a crítica do conceito de quilombo estabelecido pelo Conselho

Ultramarino, Alfredo Wagner de Almeida mostra que aquela definição constitui-se

basicamente de cinco elementos: 1) a fuga; 2) uma quantidade mínima de fugidos; 3) o

isolamento geográfico, em locais de difícil acesso e mais próximos de uma “natureza

selvagem” que da chamada civilização; 4) moradia habitual, referida no termo “rancho”;

5) autoconsumo e capacidade de reprodução, simbolizados na imagem do pilão de

arroz11. Para ele, com os instrumentos da observação etnográfica

se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar que a situação de quilombo existe onde há autonomia, existe onde há uma produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de escravos como mediador efetivo, embora simbolicamente tal mediação possa ser estrategicamente mantida numa reapropriação do mito do ‘bom senhor’, tal como se detecta hoje em algumas situações de aforamento 12.

O autor exemplifica situações que contrariam esses cinco elementos da

definição, como o caso do quilombo Frechal, no Maranhão, localizado a cem metros da

casa grande, ou casos onde o quilombo esteve na própria senzala, representado por

formas de produção autônoma dos escravos que poderiam ocorrer – e de fato

ocorriam –, sobretudo em épocas de decadência de ciclos econômicos, fossem

agrícolas ou de mineração. Diversos trabalhos mais recentes a respeito de

comunidades negras com origem mais diretamente relacionada à escravidão têm

8 Gusmão, 1995.9 Cardoso, 1987.10 Sobre o fortalecimento da organização política dos grupos negros e a incorporação da questão quilombola ao seu rol de reivindicações, v. Flávio dos Santos Gomes (1996:105).11 Almeida, 1999:14-15.12 Almeida, 1999: 15.

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demonstrado que a economia interna desses grupos está longe de representar um

aspecto isolado em relação às economias regionais da Colônia, do Império e da

República. Em geral existiu, paralelamente à formação do aparato de perseguição aos

fugitivos, uma rede de informações que ia desde as senzalas até muitos comerciantes

locais. Estes últimos tinham grande interesse na manutenção desses grupos porque

lucravam com as trocas de produtos agrícolas por produtos que não eram produzidos

no interior do quilombo.

Flavio dos Santos Gomes13 mostra que os quilombolas da região de Iguaçu, no

Rio de Janeiro, forneciam lenha de mangue para o abastecimento dos fornos da corte,

além de disputarem ou negociarem com os barqueiros locais o controle das vias fluviais

da área, por onde escoavam os produtos fornecidos para a corte. No Maranhão,

Matthias Assunção estuda casos de quilombos que perduraram durante décadas

favorecidos não apenas pelas condições ecológicas, mas principalmente devido às

relações com a sociedade envolvente, comercializando ouro e produtos de suas

roças14.

Veremos adiante que também no Vale do Ribeira, mesmo protegidas pelas

condições geográficas da região, com serras e rios de difícil navegação, pontuados por

cachoeiras, as populações negras estiveram inseridas tanto na economia regional

quanto no mercado mais amplo, com produção agrícola destinada a outras províncias.

Não obstante esta integração das formas mais ou menos autônomas de

atividades produtivas empreendidas pelos escravos à economia geral, é preciso

ressaltar que mesmo quando ocorria esta forma de trabalho livre sobre a terra não foi

garantido o acesso dos ex-cativos a ela no momento posterior à abolição. Ao contrário,

a exclusão do segmento populacional afro-descendente em relação à propriedade da

terra foi peremptoriamente estabelecida por meio de uma série de atos do poder

legislativo ao longo do tempo. Ainda durante a escravidão, a Lei de Terras de 1850 veio

substituir o direito à terra calcado na posse pelo direito auferido via registros

cartoriais15. No entanto, o direito legítimo adquirido exclusivamente através da posse

13 Gomes, 1996.14 Assunção 1996: 459.15 Ver Lígia Osório Silva (1996).

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efetiva é uma noção do “direito costumeiro”16 que até hoje rege a relação do

campesinato tradicional com a terra, o que inclui os grupos camponeses negros.

Como já foi assinalado por outros autores17, os grupos que hoje são

considerados remanescentes de comunidades de quilombos se constituíram a partir de

uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com ocupação de terras

livres e geralmente isoladas, mas também as heranças, doações, recebimento de

terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, simples permanência nas

terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades, bem como a

compra de terras, tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto após a sua

extinção.

Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e histórias

destes grupos, uma denominação também possível para estes territórios de quilombo

seria a de “terras de preto”, ou “território negro”, tal como é utilizada por vários

autores18, que enfatizam a sua condição de coletividades camponesas, definida pelo

compartilhamento de um território e de uma identidade. O tipo de organização social,

econômica e espacial destas comunidades também nos permite identificá-las como

bairros rurais19, categoria recorrente no estado de São Paulo para designar esta

sociabilidade de grupos de vizinhança que forma estruturas intermediárias entre a

família e o povoado, caracterizadas por um “sentimento de localidade, pela

convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas”20.

Em tese de mestrado de 1978, Renato Queiroz diz a respeito do bairro de

Ivaporunduva:

(...) concluí que, a não ser pela cor de sua população, nada o diferenciava dos tradicionais bairros rurais paulistas. A simplicidade de sua base material, a obtenção da subsistência que os moradores retiravam do cultivo do solo, da criação e das atividades de caça, coleta e pesca, dependendo muito pouco de produtos procedentes de centros mais densos e distantes, a ampla margem de lazer e a intermitência das atividades produtivas são traços comuns aos bairrosdos sitiantes tradicionais de São Paulo 21.

16 Conceito explicitado por Margarida Maria Moura (1988).17 Ver especialmente Alfredo Wagner Almeida (1987/1988) e Neusa Gusmão (1996). 18 Ver Almeida (op.cit.), Gusmão (op.cit.), Andrade, (1988) e Acevedo Marin (1995).19 Maria Isaura Pereira Queiroz (1973) é autora de estudos clássicos sobre bairros rurais em São Paulo.20 Cândido:1987:.62.21 Queiroz, 1983: 141.

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A promulgação da constituição e a necessidade de regulamentação do Artigo

68 provocaram discussões de cunho técnico e acadêmico22 que levaram à revisão dos

conceitos clássicos que dominavam a historiografia sobre a escravidão, instaurando a

relativização e adequação dos critérios para se conceituar quilombo. Deste modo, a

maioria dos grupos rurais afro-descendentes que hoje reivindicam a titulação de suas

terras pode ser contemplada por esta categoria, uma vez demonstrada, por meio de

estudos científicos, a existência de uma identidade social e étnica por eles

compartilhada, a antigüidade da ocupação de suas terras e, ainda, suas “práticas de

resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num

determinado lugar”23.

A condição de remanescente de quilombo é definida de forma ampla e

enfatiza os elementos identidade e território. Com efeito, o termo em questão indica: “a

situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos e é

utilizado para designar um legado, uma herança cultural e material que lhe confere uma

referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar específico”24.

Este sentimento de pertencer a um grupo e a uma terra é uma forma de

expressão da identidade étnica e da territorialidade, construídas sempre em relação

aos outros grupos com os quais se confrontam e se relacionam.

A identidade étnica é um processo de identificação de grupos em situações de

oposição a outros grupos. Frente a esta constatação, Roberto Cardoso de Oliveira

elaborou a noção de identidade contrastiva para embasar as análises que têm como

centro interpretativo a identidade étnica de um grupo social. As situações de oposição

entre os grupos faz com que eles elaborem seus critérios de pertencimento e de

exclusão. Quando o confronto se estabelece entre um grupo minoritário, como o caso

das comunidades negras rurais, e a sociedade abrangente, normalmente identificada

22 Especialmente no III Encontro Nacional sobre Sítios Históricos e Monumentos Negros (Goiânia: 1992); na Reunião do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, da Associação Brasileira de Antropologia (Rio de Janeiro, outubro de 1994), e na reunião técnica “Reconhecimento de Terras Quilombolas Incidentes em Domínios Particulares e Áreas de Proteção Ambiental” (São Paulo, abril de 1997).23 Cfe. Definição de comunidade remanescente de quilombo elaborada no seio da Associação Brasileira de Antropologia e sistematizada por João Pacheco de Oliveira e Eliane Cantarino O’Dwyer, ABA, 1994.24 Garcia, José Milton (PPI/SP), publicado em Quilombos em São Paulo: tradições, direitos e lutas, org. Tânia Andrade (1997:47).

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pelos próprios grupos como “os brancos”, temos uma situação de submissão e

dominação, de hierarquia de status, a qual o autor denominou “fricção interétnica”25.

Ademais, esta submissão é sustentada por representações sociais que

justificam a inferioridade estrutural do grupo minoritário, as quais podemos identificar

como sendo racistas. É um racismo recalcado, escondido atrás de “um sistema de

valores que [...] tanto inibe manifestações negativas na avaliação ‘do outro’ racial como

estimula a apologia da igualdade e da harmonia racial entre nós” 26. A ocultação do

racismo na sociedade brasileira foi estimulada pelo discurso da democracia racial, do

qual Gilberto Freyre tornou-se grande expoente na década de 1930, e que só começou

a ser contestado na década de 1950 por Florestan Fernandes e Oracy Nogueira.

Em tal situação de desigualdade, os grupos minoritários reforçam suas

particularidades culturais e suas relações coletivas como forma de ajustar-se às

pressões sofridas, e é neste contexto social que moldam sua relação com a terra,

compreendida como território permeado por representações relacionadas à resistência

cultural. Não é qualquer terra, mas a terra na qual mantiveram alguma autonomia

cultural, social e, conseqüentemente, a auto-estima. Síglia Zambrotti Dória também

salienta que a identidade de grupos rurais negros se constrói sempre numa correlação

profunda com o seu território e é precisamente esta relação que cria e informa o seu

direito à terra27.

A maior parte destes grupos que hoje reivindicam seu direito constitucional o

faz como um último recurso na longa batalha para manterem-se em suas terras, as

quais são alvo de interesse de membros da sociedade envolvente, em geral grandes

proprietários, grileiros e especuladores imobiliários, cuja característica essencial é

tratar a terra apenas como mercadoria. Em conseqüência da cobiça que esta lógica de

mercado despertou, os camponeses foram pressionados com expedientes espúrios,

tais como constantes ameaças de violência, a violência física direta e o auxílio do

aparato judicial, que agiram no sentido de negar-lhes o direito de obter o registro legal

de suas posses, invariavelmente muito mais antigas do que o tempo mínimo requerido

pela legislação para a sua transformação em propriedades.

É importante notarmos que o auto-reconhecimento dessas populações negras

enquanto quilombolas, onde existe, é bastante recente. Embora tratem-se de 25 Oliveira, 1976.26 Borges Pereira, 1996:76.

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quilombos28 e tenham consciência de sua história, o conceito de quilombo não fazia

parte das representações culturais desses grupos.

Débora Stucchi refere-se à auto-caracterização enquanto comunidade negra, a

qual, segundo sua percepção, surgiu em grande medida como uma “reação à ‘pressão

classificatória’ da sociedade englobante” na medida em que estas comunidades se

engajaram nos movimentos sociais que protestavam contra as várias ameaças aos

seus territórios (construção de barragens no rio Ribeira do Iguape, contra a

implantação de unidades de conservação) e pela regularização fundiária dos mesmos”

(1998:174).

Simultaneamente a esta mobilização as comunidades “descobrem” o Artigo 68 e

acionam o Estado para reivindicar seu direito ao reconhecimento e titulação de suas

terras. Nas comunidades do Vale, onde existe a atuação da Pastoral da Igreja Católica

e do Movimento Negro, a identidade quilombola foi assimilada pela população,

aparecendo como fator positivo na elaboração de lutas políticas.

Identidade e território são conceitos profundamente inter-relacionados no caso

das comunidades negras rurais, pois “a presença e o interesse de brancos e negros

sobre um mesmo espaço físico e social revela, no dizer de Bandeira, aspectos

encobertos das relações raciais” 29. Estes aspectos encobertos aos quais a autora se

refere são a submissão e a dependência dos grupos negros em relação à sociedade

inclusiva, na qual foram um dia escravos.

Portanto, não se deve imaginar que estes grupos camponeses negros tenham

resistido em suas terras até os dias de hoje porque ficaram isolados, à margem da

sociedade. Pelo contrário, sempre se relacionaram intensa e assimetricamente com a

sociedade brasileira, resistindo a várias formas de violência para permanecer em seus

territórios ou, ao menos, em parte deles30, nos quais, através de relações solidárias

entre si, mantiveram sua dignidade, alguma liberdade e, em última instância, sua

humanidade.

27 Dória, 1985.28 Considerando aqui as observações de Alfredo Wagner, das quais podemos concluir que o conceito de quilombo deve abarcar os processos históricos pelos quais vêm passando essas populações.29 Gusmão, 1995:14.30 Muitas das comunidades rurais negras já pré-identificadas no Estado de São Paulo mantém o domínio sobre uma pequena parcela de seus territórios originais, estando o restante ocupado por fazendeiros, empresas imobiliárias ou posseiros, alguns destes últimos com o consentimento dos próprios grupos quilombolas; os primeiros, entretanto, invariavelmente se apropriaram de grandes áreas valendo-se da ingenuidade das comunidades ou mesmo da coerção física para apoderar-se dos territórios negros.

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Finalmente, devemos salientar que é devido às considerações teóricas e às

constatações históricas aqui apresentadas que estudiosos das comunidades negras

rurais - e, particularmente, da legislação pertinente à questão quilombola – têm

buscado rediscutir e re-caracterizar o conceito de quilombo. Tal intento, ainda em

curso, tende a aprimorar-se quanto mais os organismos responsáveis pela

identificação, reconhecimento e auxílio às comunidades quilombolas ampliem e

otimizem suas atividades, gerando mais dados que contribuam para o desvendar

científico das lacunas referentes aos grupos quilombolas que marcam a historiografia

nacional.

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3. O TERRITÓRIO QUILOMBOLA

Para melhor entendermos o modo de apropriação do meio ambiente pelas

populações quilombolas no Vale do Ribeira, e o significado que tem o território para as

mesmas, faz-se necessário, primeiramente, tecer algumas breves considerações a

respeito de representações de espaço e de tempo.

Ambas as categorias espaço e tempo manifestam-se a partir de representações

simbólicas que variam segundo as diferentes culturas humanas. Embora as

populações com um modo de vida apoiado em concepções não-capitalistas tenham

representações de tempo e espaço tão diferentes umas das outras quanto distintas

daquelas presentes nas sociedades capitalistas31, podemos estabelecer parâmetros

de comparação entre as primeiras considerando as práticas materiais.

Há uma estreita relação entre as categorias espaço e tempo e as práticas

materiais, conforme considera David Harvey:

(...) nem o tempo nem o espaço podem ter atribuídos significados objetivos sem se levar em conta os processos materiais e que somente pela investigação destes podemos fundamentar de maneira adequada os nossos conceitos daqueles32.

Considerando práticas materiais inerentes ao trabalho cotidiano, Thompson

propõe o conceito de orientação temporal pelos afazeres domésticos para a análise de

representações de tempo em sociedades não capitalistas:

É sabido que entre povos primitivos a medida do tempo está geralmente relacionada com os processos habituais do ciclo de trabalho ou tarefas domésticas33.

Referindo-se aos relatos de Synge sobre as ilhas Aram, o autor fala de uma

comunidade de pequenos agricultores e pescadores que é indiferente às horas do

relógio34, e onde as tarefas cotidianas, que vão desde lavrar a terra ou pescar até a

31 Harvey, 1998: 189.32 Idem: 242. 33 Thompson, 1983: 243 e 244. 34 Diversos trabalhos mencionam representações não-capitalistas de tempo/espaço, entre os quais podemos citar Os Nuer, de Evans Pritchard (1993) e Os Iorubá, de Ronilda Iyakemi Ribeiro sobre populações africanas; Ilhas e Mares: Simbolismo e Imaginário (1997) de Carlos Diegues e Buzios Island de Emilio Willems e Gioconda Mussolini, sobre populações caiçaras insulares; assim como Fabian

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produção de artefatos, parecem revelar-se ante os olhos do lavrador pela lógica da

necessidade35. Ele considera que nas sociedades onde é normal a orientação pelos

afazeres, parece haver uma demarcação menor entre trabalho e vida36.

Desse modo, o conceito de orientação pelos afazeres domésticos também pode

ser aplicado no estudo de diversas populações tradicionais, sejam caiçaras, pequenos

produtores rurais ou populações rurais negras, considerando que nessas sociedades

há uma continuidade entre o trabalho, a vida e o meio ambiente, expressa em suas

práticas materiais.

Nas sociedades capitalistas há uma grande distância entre trabalho e vida, na

medida em que o prazer e a diversão costumam apresentar-se apartados do trabalho.

No entanto, nas sociedades tradicionais, o lazer mostra-se como uma decorrência do

trabalho, o que pode muito bem ser exemplificado nos mutirões realizados no trabalho

agrícola. Não apenas nas comunidades negras aqui estudadas, mas nas comunidades

de pequenos produtores de excedentes37 em geral, é comum o relato de mutirões com

a participação de até mais de cem pessoas, que ocorriam até poucas décadas atrás. O

dono da roça não pagava os participantes do trabalho com dinheiro, mas com refeições

e baile no final do dia. Esse modo de trabalho, além de ser uma expressão de um

sistema mais amplo de trocas simbólicas38, significa a indissociabilidade entre trabalho,

lazer e vida. A festa é uma decorrência do trabalho comunitário. A lógica da diversão é

a mesma do trabalho, e aquela ocorre em função deste último. Assim, o tempo

transcorre marcado pelos afazeres que a vida exige a cada dia, sem dividir-se em

Johannes (Time and the other; 1983) e David Harvey (A Condição Pós-moderna; 1998), entre outros, falam da diversidade dos sentidos de tempo/espaço presentes nas diferentes culturas humanas. 35 Thompson, 1983: 24436 idem: 245.37 Sobre excedente, diz Martins: Não se trata de que o agricultor assegure para si e para sua casa a subsistência e só depois venda o que sobrou. Trata-se de uma economia de excedentes porque o raciocínio que preside a organização da produção, isto é, o que plantar e sobretudo quanto plantar e até onde plantar está organizado a partir da idéia de que do que se planta uma parte deveria ser produzido para troca ou comércio (1997: 190; grifos do autor).38 Refiro-me aqui à noção de trocas simbólicas elaborada por Marcel Mauss. São trocas que não passam por relações capitalistas, mas por relações de vizinhança e de parentesco, e implicam na obrigação de dar, receber, retribuir (Mauss, 1988). Como bem define Claude Lévi-Strauss, Mauss propôs-se mostrar primeiramente que a troca se apresenta nas sociedades primitivas menos em forma de transações que de dons recíprocos, e em seguida que estes dons recíprocos ocupam um lugar muito mais importante nessas sociedades que na nossa. Finalmente, que esta forma primitiva das trocas não tem somente, nem essencialmente, caráter econômico, mas coloca-nos em face do que chama, numa expressão feliz, “um fato social total”, isto é, dotado de significação simultaneamente social e religiosa, mágica e econômica, utilitária e sentimental, jurídica e moral (Lévi-Strauss, 1982: 92).

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“tempo de férias” e “tempo de trabalho”, não havendo, portanto, a mercantilização do

trabalho e do lazer.

Polanyi nos diz que considerar terra e trabalho como mercadorias, embora isso

realmente aconteça, é apenas uma ficção:

O trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos quais constituem todas as sociedades, e o ambiente natural no qual elas existem39.

Embora as populações aqui consideradas obviamente não teorizem dessa

forma, podemos perceber, em diversos relatos de moradores locais, as

representações de um tempo em que a terra e o trabalho não podiam ser objetos de

especulação, apresentando-se a eles como inseparáveis de seu modo de existir. A

compra e venda de posses tem sido uma constante na região do Vale. Contudo, para

essas populações esse tipo de negociação não estava relacionado à especulação,

mas ao trabalho; comprar terra significava morar e/ou trabalhar nela, e os preços eram

sempre módicos40, conforme pude também verificar em trabalho anterior com

populações caiçaras da região41.

Analisando as relações entre representações de tempo/espaço e modo de vida,

vemos que o modo de ocupação resultava, como ainda segue sendo, das formas do

trabalho, sobretudo da agricultura itinerante, conforme podemos inferir a partir de

depoimentos como os dessas moradoras do bairro Galvão:

A gente que cismasse de fazer uma roça, em qualquer lugar fazia (Benedita).

Nesse tempo, ninguém ligava, numa capoeira boa, que a gente via que dava para fazer uma roça boa ali, qualquer um chegava, roçava, ninguém ligava. Ia trabalhar para lá toda a vida, que chama-se capova (Catarina).

O costume das pessoas que tinha naquela época, eles não tinham paradeiro. Era um ano para lá, um ano cá. Eles resolviam, voltavam atrás, mudavam

39 Polanyi, 1980.40 Embora a fixação das populações quilombolas do Vale tenha se dado pelo apossamento e pela transmissão das posses aos descendentes, há relatos de compra e venda de posses. Porém os valores negociados eram sempre irrisórios e freqüentemente havia a troca da terra por produtos da agricultura ou por outros produtos. No Galvão, pude constatar casos de trocas de posses por algumas caixas de aguardente; Rosana Mirales menciona o caso do sítio Pai Romão, localizado na comunidade de Pedro Cubas (Vale do Ribeira), que foi comprado por Silvério José Maria em troca de uma carga de milho. Contudo, a canoa que transportava o milho virou e molhou parte da carga, a qual, ao ser armazenada com o restante dos grãos, estragou toda a mercadoria que serviria de pagamento para as terras negociadas. Porém, o vendedor não desfez o negócio. Ao contrário, doou as terras para a filha de Silvério José, que era sua afilhada (Mirales, 1998: 27-28).41 Carvalho, 1999.

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para a outra banda [do rio Pilões]. Ali ficava dois, três anos, depois mudava mais para frente. Aqui era desse tipo. (...) quanto a esses lugares passageiros, era moradia de poucos tempos, dois, três anos, quatro ou cinco (Jovita).

E aqui poderíamos incluir inúmeros relatos semelhantes de moradores de

outras comunidades de quilombo da região. Em tese de doutorado realizada na área

de Antropologia Jurídica, Renata Paolielo nos explica que o direito possessório, para

as populações quilombolas do Vale do Ribeira,

é localmente concebido não apenas como relativo ao terreno de moradia e de cultura efetiva. Ele tradicionalmente se estende, ou melhor, é móvel, em face de sua precariedade, dentro de um certo limite territorial consensual, em primeiro lugar por meio da itinerância dos roçados, e da “agricultura de coivara” (...), próprias de um universo social e cultural caipira (...) no qual certamente se inserem os contextos em aqui foco (...). Esse limite territorial é representado como uma reserva, como área disponível à extensão da dinâmica do apossamento, à expansão das lavouras e das moradias, bem como ao uso, para caça e extração, principalmente de madeira para a construção de casas e canoas42.

Portanto, através das falas das moradoras e do trabalho de Paolielo, vemos que

o modo de vida das populações quilombolas aqui em questão está apoiado num modo

de apropriação do espaço extremamente plástico, considerando a itinerância das

roças, a necessidade de se realizar as culturas adequadas a cada tipo de solo e fato de

que o território necessário à continuidade física e cultural abrange uma área que vai

além dos espaços onde estão as casas e as roças. Esse modo de apropriação, por um

lado, comporta a idéia de um direito individualizado sobre a terra e, por outro, esse

direito só torna-se possível a partir da existência de um território que contenha “áreas

de reserva”, dada a plasticidade da apropriação decorrente da mobilidade das casas e

das roças. Trata-se de um contexto rural de apropriação precária, uma vez que está

apoiada na posse43. São posses individuais que fazem parte de um território maior e

“comunal” referenciado a um ancestral fundador, o que, de certa forma, aproxima-se do

constatado por Leonarda Musumeci em região de fronteira da Amazônia maranhense:

A terra de trabalho – dada a intermitência de seu uso – não seria passível de constituir propriedade privada e permanente das famílias, havendo constante rodízio das parcelas já cultivadas, enquanto o espaço de habitação – em virtude da continuidade do uso e da permanência das benfeitorias – seria recortado por direitos de posse individuais, exclusivos e

42 Paolielo, 1999: 33-34.43 Idem.

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duráveis, correspondentes à “unidade casa-quintal” de cada grupo doméstico44.

Também devemos considerar que a agricultura de coivara, tal como tem sido

praticada desde a formação dessas comunidades até os dias de hoje, constitui-se em

fator de interação com o meio ambiente, tendo níveis pouco significativos de impacto

ambiental, conforme têm reconhecido técnicos e engenheiros agrônomos:

...inclusive essas comunidades todas usavam o sistema de capuava que chama, você morava numa vila, roçava, derrubava, queimava, plantava e extraía com o extrativismo, deixava descansando e isso deu um equilíbrio. E isso é o que mantém o verde da região. P- O senhor, como agrônomo, reconhece que esse sistema era bom?R- Reconheço porque mantém o equilíbrio.(Antonio Carlos, agrônomo da Casa da Lavoura de Eldorado; entrevista em Brandão, 1998: 185)

O Roberto45 veio aqui para fazer a guia (de autorização de desmatamento para a abertura de roças), vistoriou a área e até ficou surpreso. Porque ele percebeu que o sistema estava dentro da lei. Nós não estávamos fazendo coisas fora da lei. Tinha as questões que nós estávamos cientes. Não se pode roçar perto de água. Nós sabemos que precisamos da água. Topo de serra, não se podia roçar topo de serra [pela lei ambiental]. Mas também o topo de serra da nossa área aqui é só mata virgem. Desde quatrocentos anos atrás, no tempo dos nossos antepassados, não se roçava topo de serra. Uma outra questão também é a cabeceira d’água. A água é uma coisa que nós, acabei de falar e torno a falar, nós precisamos da água. Então, por quê que nós vamos desmatar a cabeceira da água se ela via secar? Então não foi difícil fazer a guia. (Ditão, morador de Ivaporunduva; entrevista em Brandão, 1998: 26).

Esse sistema agrícola, que funde conhecimentos indígenas e instrumentos

trazidos pelos colonizadores portugueses, só realiza-se em função da existência das

áreas de reserva territorial às quais refere-se Paolielo. Ou, como diz Pasquale Petrone

a respeito das “roças dos capuavas”:

Dispondo de um lado de técnicas rudimentares, e de outro lado, de áreas relativamente extensas para aproveitar, [o capuava] praticou desde logo uma agricultura itinerante. O fogo foi seu principal auxiliar técnico e as grandes superfícies em matas constituíram extensas reservas de solos à sua disposição (Petrone, 1961: 55).

44 Musumeci, 1988: 74; grifos no original.45 Roberto Rezende, engenheiro agrônomo, supervisor técnico do Departamento Estadual de Proteção

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Antonio Cândido observa que

Saint Hilaire pinta o quadro desolador da agricultura extensiva do caboclo brasileiro, com base na queimada: aproveitamento do terreno de mata, degradação desta a capoeira, destruição de novas matas (Cândido, 1971: 44).

Devemos considerar que estas observações de Antonio Cândido, válidas para

extensas áreas desmatadas para agricultura e pastagem, não constituem regra geral.

Existem estudos segundo os quais a ação humana sobre a mata, em escala limitada e

em áreas de baixa densidade populacional, tende a ser benéfica para o

desenvolvimento da biodiversidade. Em relação aos seringueiros da Amazônia, diz

Mauro Almeida:

(...) gerações de cultivadores foram cruciais para descobrir o valor das espécies. Por isso a FAO, órgão da ONU, reconheceu os direitos dos agricultores (leia-se: populações tradicionais) em virtude de sua contribuição à conservação, melhoria e disponibilidade de recursos fitogenéticos e estabeleceu um Fundo Internacional para os Recursos Fitogenéticos que deveriam remunerar essa contribuição (Almeida, 1994: 262).

Também sobre os seringueiros da Amazônia, diz Brown:

Em geral, muitas perturbações humanas na região têm os mesmos efeitos diversificadores das [perturbações] naturais (Brown apud Almeida, 1996: 138 e 139; tradução minha).

Em trabalho publicado pela Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo, são

mencionadas as populações tradicionais que habitam a Mata Atlântica e seus saberes

locais:

Da necessidade de sobreviver apenas de recursos disponíveis na mata e no mar e do contato direto com as plantas e animais, esses grupos foram acumulando um conhecimento empírico e profundo dos ecossistemas da região. Suas atividades foram desenvolvidas de forma a conciliar as necessidades da própria sobrevivência e da dos recursos naturais dos quais elas dependem. E é essa sabedoria que nos interessa conhecer agora, registrar e aplicar (São Paulo (Estado): 1994).

Contudo, nas últimas décadas, processos de grilagem de terras têm provocado

a perda de parte dos territórios quilombolas do Vale para pessoas de fora, que muitas

vezes constituem fazendas. Tal perda inviabiliza esse sistema de agricultura itinerante,

como tem acontecido, por exemplo, no Galvão, cuja maior parte das terras

agricultáveis disponíveis hoje para os moradores estão restritas a estreitas áreas nas

aos Recursos Naturais (DEPRN) da cidade de Registro.

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margens do rio Pilões e a algumas capovas localizadas em área limítrofe com a

vizinha comunidade de quilombo do São Pedro.

É importante observar que, além dos problemas com fazendeiros e grileiros, os

territórios reivindicados pelas comunidades negras do Vale apresentam, em sua

maioria, uma complexa malha fundiária, composta não apenas por terras devolutas,

mas também por terras particulares tituladas, por permissões de uso concedidas pela

SUDELPA na década de 1980, e por diversas categorias de Unidades de

Conservação46.

46 Segundo definição do IBAMA, “Unidade de Conservação é o espaço territorial delimitado e seus componentes, incluindo as águas juridicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo poder público para a proteção da natureza, com objetivos e limites definidos, sob regime de administração ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção. Podem ser criadas pelos governos federal, estadual e municipal”. (Brasil, 1995 apud São Paulo (Secretaria do Meio Ambiente) 1996: 60).

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4. VALE DO RIBEIRA E FORMAÇÃO DAS COMUNIDADES NEGRAS

Até pouco tempo considerada como sendo a região mais pobre do estado de

São Paulo, o Vale do Ribeira possui, contudo, grandes riquezas em recursos naturais.

Aí encontra-se a maior parte do que resta de Mata Atlântica no estado, e habitam

inúmeras espécies animais, algumas em risco de extinção. A região é repleta de

belezas paisagísticas que abrigam consideráveis recursos hídricos e minerais.

Localiza-se entre Paraná e São Paulo, numa faixa que abrange desde municípios

próximos à capital paulista até quase as cercanias de Curitiba, e no litoral desde

proximidades de Peruíbe, no ponto mais ao norte, até quase chegar em Paranaguá, no

ponto mais ao sul.

A região começou a ser colonizada já nas primeiras décadas do século XVI,

tendo sido alvo de disputas entre portugueses e espanhóis. Young nos relata que em

1502 a esquadra de Américo Vespúcio deixou nas praias da Ilha do Cardoso um

bacharel degredado47. E em 1508, a expedição de João Solis e Vicente Yanez Pinzon

deixou mais sete castelhanos na mesma ilha, próximo à barra de Cananéia. O bacharel

e os sete castelhanos foram encontrados por Martim Afonso em 1531, quando este

deixou no lugar uma expedição que tinha a missão de procurar ouro e prata no

interior48. No século XVI constituíam-se os povoados que viriam a formar Iguape e

Cananéia.

O povoamento do interior iniciou um pouco mais tarde. É Albertino Moreira quem

nos esclarece que a entrada para o planalto, durante anos e anos, por mais de século,

era aventura proibida. Tomé de Souza, quando veio para o Brasil, trazia o regulamento

sobre isso. Terra firme adentro só poderia ir quem portasse uma licença especial do

governador ou do provedor-mor da fazenda real49.

No século XVII, foi encontrado ouro no interior, às margens do rio Ribeira de

Iguape, tendo originado-se o povoamento que deu origem à primeira cidade do interior

do Vale, Xiririca (atualmente Eldorado).

47 Young apud Almeida, 1946: 31.48 Almeida, 1946: 31,32.49 Moreira, 1943: 65.

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A descoberta do ouro em Xiririca deu início ao primeiro ciclo econômico da

região. Embora a mineração aurífera tenha perdurado até o início do século XIX, a

atividade entrou em declínio no final do século XVII, dando lugar, no final do século

seguinte, ao ciclo do arroz. Ambas as atividades, sobretudo a mineração, estiveram

apoiadas na mão-de-obra do escravo negro.

Lurdes Carril nos mostra que já no século XVI não era incomum a existência

concomitante de escravos negros e indígenas nas expedições que partiam para o

interior de São Paulo50. Criticando autores que afirmam que o trabalho escravo em São

Paulo foi praticamente insignificante até a implantação da monocultura cafeeira no

século XIX, a autora demonstra que os trabalhos sobre a sociedade escravista em São

Paulo carecem de estudos a respeito da área do Vale do Ribeira, a qual raramente tem

sido considerada.

Felizmente, para compensar essa carência de estudos sobre o sistema

escravocrata no Vale do Ribeira, temos o laudo antropológico realizado pelo Ministério

Público Federal, sob a coordenação da antropóloga Deborah Stucchi, abrangendo as

comunidades negras de Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Sapatu, Nhunguara,

André Lopes, Maria Rosa e Pilões, concluído em 1998. Esse laudo foi o resultado de

demandas de comunidades negras do Vale do Ribeira relativas ao disposto no artigo no

68 do ADCT da Constituição Federal de 1988. Os autores relatam que:

Tendo proposto, em 1992, na Justiça Federal de São Paulo Ação Ordinária pleiteando o reconhecimento e a titulação de suas terras, representantes da comunidade negra de Ivaporunduva, em 1995, compareciam à Procuradoria Geral da República em busca de apoio institucional para a ação. Na mesma ocasião, noticiavam a existência de várias outras comunidades negras localizadas no Vale do Ribeira que iniciavam a formulação de demanda para o reconhecimento do Estado sobre sua condição de remanescente de quilombo51.

Visando a compreensão da história da ocupação negra no Vale, apresento um

resumo parcial do que foi apontado no referido laudo:

1. O vale do rio Ribeira de Iguape já era habitado por populações indígenas no período pré-colombiano, constituindo-se em área de passagem para aqueles que, no inverno, desciam do planalto em direção ao litoral em busca da pesca.

50 Carril, 1995: 72.51 Stucchi, 1998: 1.

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2. As populações indígenas tiveram grande importância na dinâmica da formação dos contingentes populacionais do Vale e aparecem como importante referência nas narrativas sobre a origem das comunidades negras da região.

3. Após o início da colonização portuguesa, a região ao longo do rio Pardo, com uma formação geográfica que torna o acesso extremamente difícil, constituiu-se em importante área de refúgio para as populações originais e também para os indígenas fugitivos que chegavam de Cananéia e da Ilha do Cardoso.

4. A constituição geográfica do Vale do Ribeira, com áreas protegidas pelas serras e inúmeros rios de navegação perigosa, atraiu para a região populações indígenas perseguidas pelo bandeirantismo escravagista.

5. O processo de expulsão dos índios no litoral do Vale do Ribeira começou logo nas primeiras décadas do século XVI, considerando que a disputa por novas terras, iniciada por Portugal e Espanha, motivou o apossamento precoce de áreas contíguas ao litoral. A ilha de Cananéia, palco dessas primeiras disputas, fundada por um espanhol refugiado e povoada por portugueses, foi o primeiro porto da capitania de São Vicente, fundada após a chegada da esquadra de Martim Afonso de Souza em 1531.

6. Desde o século XVI, Cananéia e Iguape funcionaram como “cabeças de ponte” para a penetração de mineradores em direção ao interior do Vale do Ribeira, sendo que os primeiros núcleos de povoamento rio acima foram Ivaporunduva, Xiririca (atual Eldorado), Iporanga, Apiaí e Paranapanema.

7. A mineração nessa região esteve apoiada na mão-de-obra do escravo negro, que começou a ser introduzida ainda no século XVI com as bandeiras de mineração que partiam do litoral sul de São Paulo em direção ao interior do Vale. Contudo, foi a partir de meados do século XVII que as incursões para o interior da região, via rio Ribeira de Iguape, tornaram-se mais freqüentes.

8. Embora tenha perdurado até meados do século XIX, quando se esgotaram os últimos depósitos de ouro de aluvião conhecidos, a atividade mineradora na região entrou em descenso no século XVIII, época da descoberta das jazidas de Minas Gerais, para onde afluíram grandes contigentes de mineradores com seus plantéis de escravos.

9. Na primeira década do século XIX, especialmente após a chegada ao Brasil da corte do D. João VI, o ciclo da mineração no Vale, já decadente, dá lugar a um ciclo econômico agrícola, voltado principalmente para a produção de arroz, o qual, através do porto de Iguape, era vendido principalmente para o Rio de Janeiro e secundariamente para outras províncias.

Em dissertação de mestrado, Lurdes Carril nos mostra que os diversos bairros

rurais negros existentes hoje na região do Vale do Ribeira formaram-se pela libertação

ou simples abandono de cativos após a decadência da atividade mineradora, ou pela

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fixação de escravos em situação de fuga52. O laudo do Ministério Público Federal

demonstra que:

10. A comunidade de Ivaporunduva, a mais antiga de região, juntamente com a de São Pedro, proveram mulheres e, assim, facilitaram a fixação de escravos fugidos na região, cujos descendentes contribuíram decisivamente para a formação de uma extensa rede de parentesco que liga diversos bairros rurais negros existentes hoje na região.

11.Da busca de terras disponíveis para o plantio resultou uma ocupação simultânea tanto por fazendas quanto por grupos familiares negros não submetidos às relações escravistas.

12.Embora os proprietários mais ricos continuassem utilizando a mão-de-obra escrava na produção do arroz, que substituiu o ciclo minerador no Vale, o número de escravos por proprietário diminuiu consideravelmente em relação à quantidade que era empregada na mineração.

13.Os pequenos produtores negros, que cultivavam gêneros variados para a subsistência e para o mercado regional, também estiveram inseridos no ciclo rizicultor, cuja produção estava destinada ao mercado mais amplo. Entre esses pequenos produtores, estavam grupos familiares negros fixados em terras apossadas mato adentro, os quais, conforme pode-se perceber nos registros de terras realizados na década de 1850, eram reconhecidos e respeitados por seus vizinhos brancos devido à sua posição na estrutura social que os definia como pequenos produtores, fornecedores de produtos para consumo nas fazendas, participantes de um circuito que enriquecia comerciantes locais, reserva de mão-de-obra em períodos de safra e também como detentores de um saber sobre as técnicas de navegação dos perigosos rios, principal via de comunicação regional53.

O laudo do Ministério Público Federal, parcialmente resumido acima, revela que

o Vale do Ribeira, favorecido por uma formação geográfica com serras e inúmeros rios

de difícil navegação, representou, primeiramente para a população indígena e depois

para os negros que fugiam da escravidão, importante refúgio. Mesmo assim, como foi

visto acima, nem só de escravos fugidos foram compostos os grupos que deram

origem às atuais comunidades de quilombos do Vale do Ribeira. Aliás, a História vem

demonstrando que os grupos quilombolas no Brasil, em sua maioria, reuniram pessoas

de origens étnica e cultural bastante diversidades. Não apenas pelas diversas

proveniências na África, mas também pela incorporação dos elementos indígena,

branco e mestiço. No Vale, o referido laudo mostra que no caso de Ivaporunduva, à

52 Carril, 1995.53 Stucchi, 1998: 49.

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medida que a decadência da mineração afastava a população branca do lugar, o

mesmo atraía um considerável contigente de negros livres, libertos, fugidos ou não,

que se instalaram tanto nas terras da santa, ao redor da capela54, quanto no interior do

bairro.

Também vimos que, ao contrário da idéia de comunidade fechada, auto

suficiente e isolada, as comunidades negras do Vale estiveram historicamente

engajadas com a economia da Colônia, do Império e do Estado Nacional. Fica,

portanto, evidente a importância das comunidades negras na economia do Vale, seja

em relação ao mercado regional, seja na produção de alimentos para outras

localidades do país, como foi o caso do arroz, que no auge de seu ciclo econômico

tornou-se o internacionalmente conhecido “arroz de Iguape”, famoso por sua alta

qualidade. Como observa Stucchi:

A constituição de unidades familiares camponesas processou-se aparentemente em articulação orgânica com a economia da Colônia, do Império e do Estado Nacional ao longo dos séculos, com as comunidades negras tendo-se constituído como produtoras de excedentes – principalmente arroz – comercializados via rio Ribeira de Iguape a partir de entrepostos comerciais instalados em suas margens, que captavam essa oferta pulverizada, revendiam aos vapores que transitavam pelo rio, sendo essa produção comercializada, através do porto de Iguape, com outras províncias55.

54 Referência às terras de uma mineradora chamada Joana Maria, que, ao ficar velha, as doou à igreja e libertou seus escravos.55 Stucchi, 1998: 116 e 117.

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5. TERRITÓRIO DO NHUNGUARA E HISTÓRICO DE SUA OCUPAÇÃO

O Nhunguara está localizado no Perímetro 55º de Apiaí e 27º de Eldorado

Paulista, portanto compreendido em ambos municípios. O território da comunidade

mede 8.093,981 hectares e é constituído integralmente por terras devolutas, sendo

que 6.438,6447 hectares, ou 80% (oitenta por cento), encontram-se no interior do

Parque Estadual de Jacupiranga (vide mapa anexo). Está localizado na margem direita

do rio Ribeira de Iguape, sendo cortado pelo rio Nhunguara, que nasce dentro do

bairro. Chega-se lá pela SP 165, a 40 km do centro de Eldorado a 30 km do centro de

Iporanga. Ou, como nos explica Renata Paolielo,

O bairro do Nhunguara se localiza geograficamente mais para o interior, relativamente à micro-região da baixada, já em direção ao alto Ribeira, entre os municípios de Eldorado Paulista e Iporanga. Esta localização corresponde ao que, tanto na região como fora dela, é definido como uma área de “bairros de pretos” (...) (grifos nossos) (1999).

A história de Nhunguara confunde-se com a de outro bairro vizinho, André

Lopes. Os mais velhos costumam dizer que “era tudo uma coisa só”. Os antropólogos

do Ministério Público Federal verificaram que:

Os levantamentos das histórias locais que relatam a formação dos bairros de Nhunguara e André Lopes mostraram, além das estreitas relações sociais e de parentesco mantidas entre os dois núcleos, uma origem historicamente entrelaçada (Stucchi, 1998: 62).

Vejamos o que quer dizer Nhunguara:

Nhunguara, Anhanguara ou Nhanguara, segundo Paulino de Almeida (1955: 11), denomina um dos afluentes mais importantes do Ribeira e significa “buraco de barro”. Ainda, segundo o autor, talvez o nome do ribeirão tivesse sido atribuído a fim de “significar o pavor que concebiam dos estrondos frequentes das exhalações dos montes e dos lugares próximos, que se ouvem do Nhanguara”. O ribeirão de Nhunguara é atual divisa de município entre Eldorado e Iporanga, que vai até o divisor seco a partir da barra do Córrego do Morcego56.

56 Stucchi, 1998:63.

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Vimos que a formação dos bairros rurais negros do Vale deu-se através de um

processo de acamponesamento de grupos de negros, fossem livres, libertos, fugidos

ou abandonados por seus donos com a decadência da atividade mineradora na região.

Tais grupos, marginalizados pela sociedade branca dominante, constituíram seu

próprio lugar dentro dessa mesma sociedade. A história de Nhunguara e André Lopes

certamente faz parte desse movimento.

O fato de que, assim como o Nhunguara, vários outros bairros têm o nome do rio

principal do seu território é mais uma evidência da importância e da centralidade dos

cursos d’água na ocupação do espaço. Do já referido laudo antropológico retiramos a

seguinte citação que alude este aspecto:

Região de antiga atividade mineradora, Nhunguara foi sendo ocupada, segundo relato de João Paula França, a partir dos tributários do Ribeira:

“Quando o pessoal veio para Ivaporunduva fazer o trabalho da igreja, esses trabalhadores, os mais espertos, eles entravam; eles fugiam e começavam a formar família. Aqui no Nhunguara, entrou gente pelo Bocó, entrou por São pedro, pela Barra do Nhunguara, que é uma entrada; por São Pedro. Cada história sempre começa no afluente do rio. Ivaporunduva, Nhunguara, André Lopes, eles entram na beira do rio e afundam pelo sertão. Depois fica no sertão e vai descendo para a beira da ribeira. Se pegar o Pilões lá em cima, é a mesma história, Rio Grande que é embaixo, lá em cima tem o pessoal que hoje está se identificando ele com a questão do quilombo.”57

O Nhunguara integra uma região na qual sempre houve intensa circulação de

pessoas. Esta movimentação, relativamente orientada pelas regras de herança, estava

também relacionada ao modo de vida itinerante motivado pela tecnologia agrícola de

coivara, associada à grande disponibilidade de terras devolutas. Contudo, os relatos e

os documentos informam que o território de Nhunguara foi constituído tanto a partir de

aberturas de posses em terras devolutas quanto de compras de terras.

Sob esse ponto de vista, a formação do bairro de Nhunguara deve ser

compreendida e analisada a partir da perspectiva da expansão territorial de grupos

negros estabelecidos no entorno, como Ivaporunduva e São Pedro (antiga Lavrinha);

Vejamos alguns trechos do laudo do MPF que apontam para esta perspectiva:

Segundo o relato de Maria Adelaide Pedrosa, aqueles que “abriram o lugar” em Nhunguara e André Lopes, seriam os antepassados de seu pai Tomé Pedroso de Moraes que era filho de Berberino e Mariana Dias, da Barra do Nhunguara. A primeira mulher de Tomé teria sido Joana Dias, de Ivaporunduva, e a segunda, Donária Arcângela Furquim, de São Pedro.

57 Stucchi, 1998:63.

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Donária seria neta de Bernardo Furquim, filha de Ana Maria Furquim com João Vieira. João Vieira teve um rol de irmãos, todos fixados em Nhunguara: Máximo, Sebastião, Domingos, Vicente, entre outros. A informante afirma que João Vieira teria se fixado no Continente: “no tempo dessas guerras que havia; depois que a guerra acabou, ele saiu e foi para a Lavrinha (São Pedro), do outro lado do rio. Ficou lá mesmo, casou com gente que morava na Lavrinha, ele foi buscar moças de lá prá cá”. Este João Vieira, avô da informante, seria filho de João Faustino Vieira e Joana Pedrosa, cujo sítio estava localizado, segundo assento nº 478 do Livro de Terras de Xiririca, “no Ribeirão de Nhunguara do lado de Paranaguá, dividindo rio abaixo com terras de Ignácio Pupo em um córrego de nome Labrinha, aberto desde 1830”. Faustino Vieira reaparece, ainda,no livro de assentos de batismos três vezes, residindo em Nhunguara: em 05/04/1847 batizava o filho Vicente, unido à mesma Joana Pedrosa e em 01/07/1850, unido a Ana Pedrosa, batizava o filho Antonio. Alguns anos mais tarde, em 1862, Faustino Vieira e Joana Vieira batizavam o filho Pedro e declaram residir em Ivaporunduva. Além desses, outro registro de batismo, de 05/10/1850, informa a presença de outro Vieira, Lourenço, “preto livre” em Nhunguara.

O tronco Vieira é relacionado pelos informantes, também, à formação do bairro André Lopes. A partir de 1830, quando teria entrado pelos sertões de Nhunguara, a descendência dos primeiros Vieira, lembrados pelos informantes e identificados nos registros eclesiais, ter-se-ia espalhado pelas áreas de André Lopes também. Maria Adelaide Pedrosa relata: “André Lopes de cima é do João Vieira e André Lopes de baixo é dos Maia, avô desse João que tem aí. O de cima é dos Vieira e o de baixo é dos Maia. Aqui é André Lopes de cima, é dos Vieira, dos Dias.” Um certo José Ortiz, que dia 13/12/1856, declarou a posse de um sítio “na paragem denominada André Lopes” no assento nº 479 do Livro de Terras de Xiririca, descrevia a confrontação de suas terras com “Domingos Vieira em um pé de guararema.” Outros registros indicam a presença desse tronco em Nhunguara: o de nº 475, refere-se ao sítio de Salvador Morato da Costa, que confrontava com terras de Antonio Vieira. Ignácio Pupo de Gouvea declarava, nos assentos nº 482 e 489, possuir terras no Ribeirão de Nhunguara, próximas ao córrego Moçambique: avizinhava-se, de um lado, por Lourenço Vieira e, de outro lado, por Rufino da Costa, reconhecido pela informante Rita Ursolina Machada como ascendente dos primeiros moradores do Moçambique, onde ela própria nascera, há 70 anos. Por sua vez, Domingos Vieira da Costa e sua mulher Isidora da Costa, registravam, em 16/05/1856, sob nº 173, o sítio comprado à irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Ivaporunduva, localizado na Barra do Nhunguara medindo “150 braças de frente”.

De outro lado, o tronco Dias aparece, também, nos documentos eclesiais, relacionado a Nhunguara: se, em 1847, Manoel Dias e Cecília Pupo declaravam residir em Pedro Cubas, em 1849 e 1850, quando batizaram os filhos José e Sabino, já residiam em Nhunguara.

Alguns dos reconhecidos pelo grupo como fundadores teriam também chegado de outras localidades, principalmente, situadas rio acima, provavelmente em períodos mais próximos do final do século. É o caso dos primeiros representantes do tronco Morato de Almeida, em Nhunguara:

“Essas terras aqui meu avô comprou de um homem chamado Miguel Antônio Jorge, no tempo da monarquia ainda. Meu avô, Américo Morato de Almeida, comprou duas curitibadas para fazer roça, em 1882. As terras de meu avô fizeram divisa

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onde encontrava os olhos. Prá lá de Pedro, descia um lugar onde tiravam ouro chamado Cata de Ouro, no Jerivá. Do Jerivá atravessa direto lá no Tenente, do Tenente pega essa serra de cá, bem lá em cima e cai aqui. Tudo isso era do meu avô, são 351 alqueires. Meu avô comprou esses 351 alqueires por 200 mil réis.le pagou com milhos essas terras, ele vendia milho daqui em iguape a 60 centavos o saco; daqui a Iguape eram 15 dias de viagem de canoa, ele passava direto na Caiacanga para ir no porto”.

Entre as formas possíveis encontradas pela população negra de garantir o acesso à terra, ainda antes da abolição, os informantes relatam a prática de cessão de áreas, como afirma Laurentino Morato de Almeida:

“Na época em que meu avô entrou, 1882, o Romãozinho é nosso, aquele tempo o pessoal fazia isso: alguém dizia que precisava de um pedaço de terra e o outro dava. Meu avô deu para a tia Luzia, mulher de Caetano. A família foi criando, agora a lei chegou e eles herdaram, mas lá adiante onde tem um homem por nome Vicencio, já ganhou lá na frente. Lá adiante, bem adiante onde não tinha dono, lá tem José Catá, no córrego do Padre, foi entrando. Esse João Catá não tinha nenhum parentesco com meu avô, mas entrou também58.

Os parágrafos transcritos acima apresentam um conjunto de nomes de

pessoas e lugares bastante significativos para a compreensão da história da formação

das comunidades rurais negras do Vale do Ribeira. Ivaporunduva, considerada a mais

antiga, surgiu ainda no século XVII como área de mineração aurífera. A portuguesa

Joana Maria, proprietária de minas e de escravos, no final da vida doou as terras à

igreja, quando teria alforriado os escravos e voltado para sua terra natal. Bernardo

Furquim, segundo relatos de sua bisneta Jovita Furquim de França, moradora da

comunidade de Galvão, fugiu do cativeiro aos dezoito anos de idade, quando

encontrava-se com feridas nos ombros de tanto carregar pedras. Ainda segundo Jovita,

Bernardo fugiu com um pequeno grupo de mais dois homens e duas mulheres. Após

vários dias de fuga pela mata, eles teriam encontrado outro grupo de escravos (ou

melhor, ex-escravos) fugidos já estabelecido em Pedro Cubas, o qual lhes indicou o

local onde hoje situa-se São Pedro como muito propício para a formação de um novo

“acampamento”, além de oferecer-lhes mudas e sementes para o cultivo de roças. O

laudo do MPF e a dissertação de Rosana Mirales59 mostram que os moradores de

58 Stucchi, 1998: 64-68.59 Mirales, 1998.

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Pedro Cubas reconhecem como ancestral fundador do bairro, Gregório Marinho,

escravo fugido de uma das maiores fazendas da região, a Caiacanga.

Bernardo Furquim formou as comunidades de Barra do São Pedro e Lavrinha,

atuais Galvão e São Pedro, respectivamente, tendo-se incorporado à malha de

relações sociais e de parentesco que já existia entre grupos de famílias negras

estabelecidas na área. Bernardo Furquim teve 22 filhos com mulheres de vários desses

grupos. Seus descendentes contribuíram de modo importante para a extensão dessa

malha. Vemos que uma de suas filhas, Ana Maria Furquim, casou-se com João Vieira,

procedente do Nhunguara e que teria ficado escondido na Caverna do Diabo durante a

Guerra do Paraguai. Maria Adelaide Pedrosa, uma das moradoras mais velhas de

André Lopes, é bisneta de Bernardo; sua mãe, Donária Arcângela Furquim, era filha de

Ana Maria Furquim e João Vieira. Domingos Dias Vieira, irmão de João Vieira, teria

sido o descobridor da “gruta”, hoje chamada de Caverna do Diabo60.

Evidências documentais e relatos de moradores apontam a existência de

outras famílias à época de chegada daqueles que são hoje reconhecidos como

ancestrais fundadores. No entanto, estes são assim reconhecidos por seus

descendentes devido à nova dinâmica que impuseram à economia política doméstica

do lugar, às relações instituídas com grupos brancos dominantes do entorno, como

comerciantes, e ao significativo reforço que deram às redes de parentesco existentes

entre as populações negras da área, bem como à expansão de seus territórios.

Os registros de batismos apresentam alguns desses nomes. Como vimos

acima, Faustino Vieira aparece registrando filhos com Joana Pedroso em 1847 e em

1872; e com Anna Pedroso em 1850. Devemos observar que ele aparece nas

condições de mulato e de preto liberto e as duas mulheres, na de pretas libertas. As

irmãs Donária e Helmaporge, filhas de Ana Maria Furquim e João Vieira, aparecem

sendo batizadas em 5/10/1889, sendo que não consta a data de nascimento da

primeira e a segunda nasceu em 3/3/1888. Domingos Dias Vieira (que às vezes

também aparece como Domingos Vieira Parapunga), aparece, juntamente com

Escolástica Pedroso, registrando os filhos Anna, nascida 5/11/1873 e Lourenço,

nascido em 27/07/1874; e juntamente com Umbelina Maria da Costa, registra os filhos

José, nascido em 11/05/1873, Zeferino, nascido em 07/12/1874, Antonio, nascido em

01/06/1889, e Evaristo, nascido em 05/07/1892. Máximo Vieira aparece, juntamente 60 O quadro de parentesco em anexo mostra as alianças estabelecidas entre famílias do mesmo grupo e

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com Lourença Maximiana da Costa, registrando a filha Antonia, nascida em

03/02/1888, e com Justiniana da Costa61, registra o filho Sérvio, nascido em

29/08/1890.

É importante observarmos que “ancestrais fundadores” de comunidades como

São Pedro/Galvão (Bernardo Furquim), Nhunguara/André Lopes (Faustino Vieira) e

Pedro Cubas (Gregório Marinho) foram contemporâneos, como mostra a farta

documentação existente sobre batismos e registros de terras. Eles tiveram importante

papel na constituição dessa área reconhecida no entorno como sendo bairros de

pretos, e também na configuração da economia política desses bairros, uma vez que

eram “fortes” (como dizem os moradores a respeito de Bernardo Furquim e de João

Vieira), ou seja, lideravam a produção e o comércio de consideráveis quantias de

produtos da roça e outros, como farinhas de milho e mandioca e aguardente de cana.

AS FAMÍLIAS E OS SÍTIOS EM NHUNGUARA

Com os dados de nossa pesquisa de campo e das citações contidas no laudo

do MPF, é possível descrever, esquematicamente, a ocupação de cada sítio pelos

ancestrais da Comunidade do Nhunguara. A trajetórias das famílias são conhecidas de

muitos, mas os depoimentos de Daniel Ribeiro dos Santos, neto de João Vieira, hoje

com 90 anos, e Laurentino Morato de Almeida, neto de Américo Morato de Almeida,

com 76 anos, que guardam na memória os detalhes dos acontecimentos.

João Faustino Vieira comprou terras para abrir o sítio na localidade do Salto, no

baixo Nhunguara, em 1830. Sabe-se que seus filhos, identificados como “irmãos

Vieira”, refugiaram-se na Caverna do Diabo para não serem forçados a combater na

Guerra do Paraguai e que ficaram trabalhando naquela localidade durante alguns

anos62. Finda a guerra do Paraguai, Domingos Vieira permaneceu na região da

entre grupos vizinhos, as quais significam estratégias de manutenção e de expansão de territórios.61 Pela semelhança dos nomes, é possível que se trate da mesma Lourença Maximiana da Costa.62 O laudo do MPF discorre detalhadamente sobre os recrutamentos nos bairros negros do Vale do Ribeira, os trechos seguintes são rico em informações: “Outras notícias sobre recrutamento na região dão conta, ao longo de século XIX, que as ações para a obtenção de braços para o exército eram exercidas com violência, atingindo inclusive menores de idade entre 10 e 17 anos” ; “A truculência dos procedimentos de recrutamento aumenta sensivelmente na segunda metade do século XIX quando o Brasil integra as forças que, juntamente com o Uruguai e a Argentina, iriam destruir o Paraguai numa guerra que duraria de 1865 a 1870. O exército brasileiro que combateu no Paraguai era formado por “voluntários da pátria” e recrutados à força em todas as regiões, ocupando posições distintas na escala social; a ele somava-se a existência de um grande número de combatentes ex-escravos, libertos para as

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Caverna, hoje André Lopes, e João, Máximo, Vicente e Sebastião retornaram para o

Nhunguara, todos na localidade do Salto63, onde tanto compraram terras quanto

abriram novas posses, com exceção de João Vieira, que morou primeiramente no

Continente e apenas mais tarde veio também para o Salto. No Continente ficaram

morando as famílias de Mereciana e Enerzino, filhos de João.

Daniel ainda relata que os irmãos Vieira, quando acharam que as terras

adquiridas eram suficientes, resolveram registrá-las. Como apenas um deles,

Sebastião Vieira, era alfabetizado, a totalidade das terras foi registrada em nome dele.

Após a morte de Sebastião, que morreu solteiro e sem filhos, foi aberto inventário e

realizada a partilha entre os irmãos e seus descendentes. Atualmente a localidade do

Salto é identificada predominantemente com a descendência dos irmãos Vieira, ou,

como nos disseram algumas pessoas: “no Salto é tudo gente dos Vieira”.

A Barra do Nhunguara, localidade mais próxima à estrada SP 165, é associada

às famílias descendentes dos casais Berberino e Mariana Dias e Manoel Dias e

Cecília Pupo.

As localidades identificadas como Os Quati e Tenente foram povoadas pela

“nação de gente dos Ferro”, nos informou Sr. Daniel. A história desta família no

Nhunguara remonta a Sebastião Ferro - oriundo da Comunidade Pilões. Seus

descendentes, que se dividiram entre os sobrenomes Ferro e Catá, aos quais também

se agregou Joaquim Rodrigues da Silva, conhecido como Joaquim Tenente64. Mesmo

estando estas localidades tomadas por fazendas de gado, permanece morando n’Os

Quati a família de José Rodrigues de Almeida e Aparecida Ursolina da Mota, ele

descendente de Joaquim Tenente.

Américo Morato de Almeida, casado com Délfica – ele sobrinho de Sebastião

Ferro e ela filha de Faustino Vieira – em 1882 compraram terras na localidade

denominada Romão, dentro da qual encontra-se hoje o sítio da Pedra (vide documento

anexo). Àquela localidade hoje está ligado hoje o sobrenome Almeida. Laurentino

Morato de Almeida enfatizou o fato de seu avô Ter pago as terras indo vender milho

em Iguape durante dez anos. Ele transportava os sacos nas costas do Romão até o

agruras da luta” (Stucchi, 1998:74-75).63 O nome Salto refere-se a uma queda d’água no rio Nhunguara.64 Catá, Ferro e Tenente são apelidos incorporados aos nomes das pessoas e que são às vezes transmitidos informalmente aos filhos. É comum no Nhunguara a existência de apelidos que fazem as vezes de sobrenome e acompanham a família há várias gerações, mas não são incorporados aos registros de nascimento.

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Rio Ribeira de Iguape, onde alugava canoa e remeiro (remador) para a viagem que

demorava vários dias. Esta história lhe foi contada por sua mãe, e em todas as vezes

que ela é repetida, enfatiza-se o grande sacrifício vivido por aquele avô.

Outras cinco famílias continuam morando na localidade do Continente, e três no

Corriguinho, localizadas a uma distância da estrada que se percorre em uma hora de

caminhada pela trilha. Parte destas famílias descende de Lourenço Catá, filho de

Sebastião Ferro, primeiro ocupante d’Os Quati.

Daniel Ribeiro conta que havia pessoas de fora, que ele chama de “caboclos”

(dá a entender que eram mestiços de índios e brancos), que haviam sido “mandadas

pelo governo para povoar a área e para misturar com os negros”. Um deles teria sido

Antônio Sá, que casou-se com uma das filhas de João Vieira, Maria (Vieira) Sá. Muitas

pessoas afirmaram que era comum, no tempo em que havia terras abundantes, que

casais ou pessoas chegassem de outros lugares, pedissem permissão para ocupar

terras e a recebiam, vindo mais tarde a integrar a família/comunidade, através de

laços de casamento e de compadrio.

Com os casamentos entre as diversas famílias do bairro e destas com famílias

de outros quilombos, devido, também, à grande mobilidade característica do modo de

ocupação do território e do fato de que ambos os cônjuges podem ativar seus direitos

de herança, tornou-se um tanto complexa a compreensão da trama do parentesco e

da ocupação da terra. Contudo, a referência a uma ocupação ancestral de

determinado sítio, a negociação com os parentes, o trabalho e a morada continuam

sendo os critérios de uso e ocupação da terra.

DIAGRAMA DE PARENTESCO

Muitos dos dados para a construção do diagrama de parentesco que

apresentamos a seguir foram por nós coletados durante pesquisa de campo nas

comunidades de Nhunguara e André Lopes. Mas nossa fonte principal foi uma série de

diagramas desenhados a mão pela antropóloga Deborah Stucchi, trabalho primoroso e

detalhado sem o qual não teria sido possível a elaboração deste nosso trabalho. Outra

fonte importante foram os disquetes com registros de batismos gentilmente cedidos

pela irmã Sueli Berlanga, da pastoral de igreja católica de Eldorado.

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Foi elaborado um único diagrama para as famílias de André Lopes e Nhunguara,

considerando que os dois grupos têm origem nas mesmas famílias, constituindo

estreitas relações de parentesco em territórios contíguos.

Não se trata de um diagrama completo, preciso e nem definitivo, o que nos

parece impossível de realizar. As primeiras famílias, presentes tanto na memória dos

descendentes quanto na documentação pesquisada, existiram ainda nas primeiras

décadas do século XIX, e nem todos os descendentes estão presentes. É bem possível

que um ou outro personagem esteja deslocado de sua posição, considerando a

possibilidade de os que informantes, ou então nós mesmos, tenhamos nos equivocado

diante do grande número de pessoas que estão aqui registradas.

Contudo, os possíveis deslocamentos de personagens não impossibilitam a

identificação de estratégias de constituição de parentesco e de território. O trabalho

possibilita uma visão esquemática de várias constatações presentes neste relatório,

como:

· os moradores atuais de Nhunguara e André Lopes são descendentes de

pessoas cuja história está relacionada à escravização de homens e mulheres

ocorrida na região do Vale do Ribeira, como Bernardo Furquim e Faustino

Vieira, entre tantos outros, que aparecem nos registros de batismos como

pretos (e, às vezes, como pardos) livres ou libertos;

· a realização de casamentos entre primos paralelos e cruzados, e entre tios e

sobrinhas classificatórios (o que pode ser percebido pelo grande número de

linhas pontilhadas que indicam esses casamentos);

· a formação de uma extensa malha de parentesco que une famílias de

diversas comunidades negras existentes nos municípios de Iporanga e

Eldorado.

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6. CONFLITO: QUILOMBOS E DESENVOLVIMENTO REGIONAL

O modo de vida no Nhunguara sempre foi semelhante àquele das outras

Comunidade de Quilombo no Vale do Ribeira, tanto no passado quanto no presente,

passando todas pelas mesmas transformações decorrentes da conjuntura social mais

abrangente. Este depoimento de um morador apresenta alguns detalhes:

Criavam porco e cabrito, para consumir a carne. Moravam longe um do outro e o trabalho era longe também. Faziam as capovas a um dia de viagem, levavam as coisas e ficavam por lá. A família inteira se mudava para a capova. Ainda tem gente hoje que faz isso, tem a turma do Continente, você gasta uma hora pra ir lá, mas o lugar que eles trabalham é mais longe ainda, gasta mais de uma hora pra ir no serviço deles. Hoje se tornou mais difícil pra criar porco, porque as pessoas quiseram vir morar mais perto da estrada, as casas se tornaram mais juntas e isso impossibilitou que a pessoa tenha o porco, e o porco preso pra pessoa que não tem condição...(Aparício de Almeida)

Já vimos que estes grupos quilombolas nunca viveram isolados, tendo sido

fornecedores de gêneros alimentícios para o mercado local, regional e mesmo mundial

e, como qualquer grupo camponês, viviam relações de subordinação com este

mercado. Esta subordinação, no caso destes descendentes de africanos escravizados,

sempre foi muito pronunciada, tendo vivido um cotidiano de trabalho agrícola muito

intenso.

Até o início do século XX transitavam pelo Ribeira de Iguape barcos a vapor

comprando a produção agrícola diretamente dos moradores. Posteriormente, o modo

de comercialização mais comum passou a ser a venda para os armazéns localizados

nas margens do Rio Ribeira. Como aí também compravam sal, querosene, tecido,

ferramentas, aguardente65 e, posteriormente, outros itens, principalmente os alimentos

já beneficiados, resultando que raramente conseguiam obter algum dinheiro com a

venda de sua produção após pagarem sua conta.

A partir de 1950 passou a ser comum que os agricultores ficassem endividados,

ou seja, mantinham-se com os produtos do armazém enquanto faziam sua roça e na

colheita entregavam toda ou quase toda a produção para saldar a dívida que haviam

65 Existia também no Nhunguara uma fábrica de aguardente, além de uma olaria onde eram fabricadas telhas, ambas dos irmãos Vieira, no Salto.

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acumulado. Ao longo dos anos a população incorporou novos hábitos e foram criadas

novas necessidades de consumo, crescendo a lista de itens adquiridos. Os valores

obtidos com a venda do produto in natura também tornaram-se insuficientes para

adquirir aquilo que não era produzido no sítio. Referindo-se a esta situação, L. Carril

afirmou que “O armazém era o patrão” (1995:31).

Dependendo das quantidades e do acordo feito, o comerciante buscava o

produto nas roças, em lombo de mulas. Grande parte do transporte, contudo, era feito

pelas famílias produtoras, “nas costas”, até a beira do rio, de onde seguia de canoa até

Eldorado ou mesmo até o Porto em Iguape. Apenas um número pequeno de

agricultores dispunha de tropa de mulas, permitindo-lhes autonomia no transporte de

sua produção e, assim, vender e comprar a preços bem mais vantajosos.

A agricultura nos quilombos dos dias de hoje, embora com muito menor

abrangência, realiza-se do mesmo modo como o faziam os antepassados, apoiado em

um saber-fazer que exige profundos conhecimentos da natureza e seus ritmos, o que

inclui, além dos tipos de solos apropriados para as diversas culturas, a época do ano e

a fase da lua mais apropriadas para o plantio e para a colheita.

Nos meses de janeiro e fevereiro, é tempo de preparar a terra: limpar a roça e

queimar o mato derrubado três meses antes. Entre fevereiro e março, planta-se o

feijão combinadamente com a cana-de-açúcar. Mas tem que ser na lua minguante

para não carunchar o feijão. A cana, a princípio, pode ser plantada em qualquer mês,

mas os moradores explicam que quando plantada nos meses de fevereiro, março ou

setembro, ela fica “especial”, muito mais doce e suculenta. Em abril, começa a colheita

do arroz, que vai até maio. Antigamente, quando as roças eram maiores, com até doze

alqueires, a colheita ia até junho. Em julho, limpa-se uma nova roça ou prepara-se a

mesma onde foi colhido o arroz, para o segundo plantio anual do feijão, que vai até

setembro. Julho também é mês de plantio de milho e rama (mandioca). O milho, assim

como o feijão, tem duas épocas anuais propícias para o plantio: julho, que os

moradores chamam de “milho do cedo”, e novembro, que chamam de “milho do tarde”.

A batata doce, quando plantada entre os meses de janeiro e maio, pode ser colhida

dentro de três meses, mas se plantada em julho, demora seis meses. O cará de

espinho pode ser plantado em qualquer mês, mas setembro é a melhor época porque

permite a colheita em nove meses; quando plantado em outro mês, demora dois anos

para ser colhido. Banana nanica, se plantada em fevereiro, dá em nove meses; se

plantada em outro mês, demora um ano. O taiá e o inhame são plantados de julho a

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dezembro e podem ser colhidos no prazo de aproximadamente um ano; quando

plantados no primeiro semestre, demoram mais tempo para ser colhidos.

Essas tecnologia agrícola é praticada até os dias de hoje por quase todas as

famílias do Nhunguara, o que garante grande parte da alimentação diária, apesar das

restrições e multas impostas pela legislação ambiental66. Quando, por algum motivo,

falta o produto da roça, os moradores são obrigados a aumentarem suas dívidas com

o comerciante das proximidades. E estariam em situação muito mais difícil caso este

se recusasse a vender para os moradores que estão em débito.

Por volta das décadas de 1950/60, quando a indústria do palmito volta-se para a

região, as populações rurais negras do Vale começam a ter alterado o quadro socio-

econômico apoiado na pequena produção de excedentes. Renato Queiroz nos mostra

que, em Ivaporunduva, essa atividade extrativa levou a uma desestruturação produtiva

da comunidade na medida em que os moradores abandonavam as atividades

agrícolas de auto-sustentação e ficavam sob a dependência desse único produto:

Na década de 1950, os moradores de Ivaporunduva praticamente abandonaram as roças de subsistência que cultivavam e passaram a extrair palmito das matas vizinhas, atividade que perdurou até o final da década de 1960. É bom lembrar que a progressiva devastação florestal do estado de São Paulo fez com que das vastas porções de mata restantes no Vale do Ribeira fossem cortadas expressivas quantidades de palmito por via da super-exploração da força de trabalho camponesa local67.

Portanto, quando no início da década de 1970 esgotou o boom palmiteiro, as

famílias tiveram que voltar parte de seus esforços novamente para as roças, atividade

com a qual não era mais possível obter recursos financeiros nos níveis das últimas

duas décadas, durante as quais tanto caiu o valor de troca dos produtos in natura

quanto a população continuava a incorporar hábitos, itens, valores e necessidades de

consumo até então inexistentes. Assim, o extrativismo, mesmo estando mais escasso,

continuou sendo uma opção de trabalho, à qual agora se somava o trabalho nas

fazendas que estavam se instalando na região.

66 Os moradores reivindicam que as licenças para roças, que começaram a ser expedidas pelo DEPRN (ver à sejam mais flexíveis quanto à localização das mesmas, já que cada produto deve ser plantado no tipo de solo que seja mais apropriado e, portanto, podem ficar bastante dispersos. Da mesma forma, a autorização para o uso do fogo após a roçada é indispensável para a realização das atividades agrícolas.67 Queiroz, 1983: 112.

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Isso indica que o essencial no sistema produtivo que predominava anteriormente

não era o fato de que existiam "excedentes", e sim o fato de que a economia local era

diversificada e incluía a produção dos bens de consumo necessários e valorizados;

quando essas economias são substituídas pela atividade extrativa especializada –

palmito, borracha, pau rosa, etc – a economia passa a ser sensível a flutuações no

mercado, sofrendo também as conseqüências do esgotamento do recurso explorado.

O IMPACTO DA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL

Os importantes resquícios de Mata Atlântica primária e em formação secundária

presentes na região estudada – estima-se que dos 13.000 Km2 restantes desta

vegetação no Estado de São Paulo, 8.350 Km2 estejam no Vale do Ribeira – fizeram

com que o governo interviesse nessa área desde o final da década de 1950, com o

propósito preservacionista. Com efeito, as legislações ambientais que incidem sobre o

Vale surtiram interditos legais que impedem o uso de 75% das terras que o

compõem68.

Segundo dados de 1996, há 12 Unidades de Conservação no Vale do Ribeira,

compreendendo em torno de 979.949,48 ha. de terra69. Estas Unidades de

Conservação, consubstanciadas em parques ou APA’s (Áreas de Proteção Ambiental),

agem no sentido de preservar a flora e a fauna do Vale do Ribeira, mas empreendem,

por outro lado, um efeito nocivo sobre as comunidades camponesas.

No anos de 1963 foi criado o Parque Estadual de Jacupiranga, que recaiu sobre

o território de várias comunidades quilombolas, onde passou a ser proibida a

agricultura. A atuação do policiamento e a imposição de multas aos agricultores, no

68 Estes dados são retirados de CARRIL (op.cit.:116). No caso do Nhunguara, como vimos na página 26 deste, o impedimento incide sobre 80% do território. 69 Dados extraídos de ”Atlas das Unidades de Conservação Ambiental do Estado de São Paulo (Parte I, Litoral), Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, 1996. Vale ressaltar que as doze Unidades de Conservação aqui consideradas são os parques da Ilha do Cardoso, o Intervales, o Jacupiranga, o Pariquera Abaixo e o Petar, as APA’s de Cananéia, Iguape e Peruíbe, Ilha Comprida e Serra do Mar, além da Área sob Proteção Especial (ASPE) da Juréia e a Zona de Vida Silvestre (ZVS) de Ilha Comprida. O total de terras em hectares que elas ocupavam até o final de 1999 era de 986.902; nesta época, entretanto, o governador do Estado de São Paulo, Mário Covas, modificou por decreto os limites do Parque Intervales, a fim de retirar de seu interior porções dos territórios pertencentes a comunidades quilombolas já reconhecidas como tal (Maria Rosa, Pilões, São Pedro, Pedro Cubas e Ivaporunduva). Por conta disso, o Intervales teve em torno de 6.961, 52 ha. subtraídos de sua área original.

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entanto, se intensificou no início da década de 1980 e, apenas em 1997, através da

atuação do Ministério Público Federal e do ITESP, as famílias conseguiram

autorizações junto ao DEPRN - Departamento Estadual de Proteção aos Recursos

Naturais, para derrubar certas áreas de mato/capoeira e fazer roças.

A proibição das roças no sistema de coivara, durante mais de três décadas,

sujeitou os quilombolas e outros camponeses do Vale a sequer poder reproduzir sua

dieta alimentar como antigamente. Frente à impossibilidade de abrir novas roças, as

capovas são novamente reaproveitadas com maior rapidez, não se respeitando o

tempo tradicional de pousio, o que enfraquece o solo. Como a fiscalização incide

diretamente sobre o território das comunidades rurais, estas vêem-se obrigadas a abrir

suas roças cada vez mais no interior da mata, na tentativa de fugir das pesadas multas

e, ao mesmo tempo, conseguir produzir gêneros agrícolas essenciais para a sua

alimentação e para o trato das pequenas criações. Também a extração do palmito,

ilegal, passa a ser feita na clandestinidade, inclusive como forma de garantir o sustento

dos membros das comunidades, impedidos de realizar o trabalho agrícola70.

Vejamos uma interpretação local sobre a questão:

Tem que ter um licenciamento do IBAMA para depois dar continuidade, ou então vem a multa. Inclusive nós fazemos alguns recursos (quando se é multado). Mas fazemos os recursos e depende deles. Geralmente eles demoram um pouco com o recurso e fica na mesma. E esse pessoal, quando são pessoas que tem condições, tudo bem. Mas a maioria do pessoal é da agricultura, que, como disse, como é de regime familiar, eles precisam da agricultura para sobreviver. Então, o que acontece é que eles acabam, muitos, vendendo a terra. Vende a terra e vai para a cidade. Fazer o quê na cidade?(...)Já pensou uma família sem uma renda, não tem emprego, não tem renda, tem um sítio e não pode cultivar. Quer dizer, pode cultivar, mas se não pode desmatar, como pode cultivar?(...)... são multados e eles têm que procurar pagar. Ou faz recurso ou pagam, e geralmente no recurso que fazem, vem a notificação confirmando. Às vezes eles cancelam, que é muito difícil. E geralmente, quando eles indeferem o recurso, então eles reduzem a multa em 90%. Ou seja, a pessoa paga uma taxa de 10% sobre a multa. Tá bom, mas se é uma multa pequena, a pessoa paga. Se fosse uma multa,

70 Todavia, a legislação ambiental, severamente aplicada às comunidades rurais, parece ter sido usada com maior plasticidade quando se refere a empreendimentos econômicos de maior vulto. Como salienta CARRIL (op.cit.:120): “(...) as várias legislações que dispuseram sobre as reservas florestais no Vale do Ribeira têm sido bastante flexíveis no tocante aos projetos de caráter econômico. (...) Criou-se em 1958, por exemplo, o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira – PETAR, mas, até hoje, não existem limites demarcados e essa questão nunca foi objeto de atenção dos governos estaduais subseqüentes. O decreto 41.626 de 30/01/63, colocou o PETAR sob a responsabilidade do Serviço Florestal (...) e da Procuradoria do Patrimônio Imobiliário (PPI). Porém, a partir de pressões, certos interesses econômicos começaram a prevalecer e o decreto de 29/12/69 excluiu 600,17 ha. da área original, ao norte do parque, essa área é ocupada atualmente, por uma empresa de calcário, a Mineradora Espírito Santo”.

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vamos supor, de 343, que é uma multa, a mínima multa que temos aqui, a pessoa dá 34 reais. (...) Dá 34 reais. Pra eles é muito. Eu acho que até pra mim é muito, pra pessoa tirar assim, né? Mas ainda pagam. Dão um jeito e pagam. E quando a multa é de 3000 reais?(...)Porque, então ele acha: tá certo, porque é errado da pessoa desmatar. Mas tem que ver a necessidade. E a pessoa tá precisando, não tem outro jeito: tem que desmatar. Então, tem que ver a necessidade. Como eu disse: eu sou a favor da preservação, mas tem limites71.

Aqui, há que se salientar outro fato bastante intrigante, que revela o tipo de

política de proteção das áreas de preservação ambiental adotada pelo Estado. Mesmo

já estando vigente a atual legislação protecionista, desde a década de 1960 viu-se

proliferar no Vale do Ribeira a abertura de fazendas de gado e plantações de banana,

as quais implicaram na derrubada de mata. Qual a diferença entre estes e as roças

das comunidades quilombolas? A resposta é que aos primeiros é possível e

compensador pagarem as multas aplicadas pelos policiais florestais, e assim poder

prosseguir na implementação de seus negócios que ocupam extensas porções de

terra no interior das áreas de preservação. Conclui-se, assim, que este tipo de conduta

por parte do Estado, aparentemente imparcial, determinou o favorecimento dos

empresários detentores de capital em detrimento das comunidades de quilombo.

O trabalho Olhares Cruzados72 mostra que a atividade começou a ganhar maior

importância na região nas décadas de 1960/70, época em que foram planejados

diversos projetos desenvolvimentistas para a região, dos quais fez parte a construção

de estradas como parte da infra-estrutura necessária para atrair indústrias

agropecuárias para a região. Eram concedidas autorizações para o desmatamento de

cem, duzentos hectares de mata para a implantação de planos de cultivo de chá,

banana, cacau, seringueira, criação de búfalos, etc. Contudo, a maioria dessas

empresas nunca foram implantadas, tendo apenas servido de pretexto para a

exploração desenfreada dos recursos naturais da mata, além de abrirem as portas

para os especuladores imobiliários:

71 FRANCISCO, secretário do Sindicato do Trabalhador Rural de Eldorado, entrevista em Brandão, 1998: 133.72 Brandão, 1998.

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Mas estas atividades foram também apenas os motivos “fantasmas” para o aproveitamento de incentivos fiscais e créditos bancários, gerando o aproveitamento de recursos florestais e sérios conflitos de terra73.

(...) ao lado do indivíduo que efetivamente implantou, por exemplo, pastos para criação de búfalos ou afins, plantou seringueiras ou cacau no Vale, que direta ou indiretamente expropriou pequenos e médios agricultores, outras pessoas, físicas ou jurídicas, souberam aproveitar-se dos incentivos fiscais e créditos bancários não na implantação de cultivos ou criações mas para grilar terras e explorar as riquezas naturais. Aliás, percebe-se que o desmatamento gera duas fontes de lucro: a exploração dos recursos naturais (madeiras e derivados, e palmito) e o maior valor da terra nua, ou seja, destituída da mata74.

OS CHEGANTES

Antes de relatarmos o processo de constituição de fazendas no Nhunguara,

cabe uma análise da transformação do significado da terra para os membros da

comunidade decorrente da dinâmica social mais ampla e da forma como ela repercutiu

no Vale do Ribeira. Uma vez consolidados estes grupos familiares extensos, no caso

do Nhunguara em meados do século XIX, eles assumiram a forma de “comunidades

corporativas fechadas”, para utilizarmos um conceito de Eric Wolf. Podemos aqui

estabelecer uma comparação deste contexto com os tipos comunitários: o “mir russo,

as comunidades andinas e as de Java”, nas quais “a comunidade, mais que o

indivíduo, possui o domínio último sobre a terra e este não pode vendê-la, hipotecá-la

ou alienar sua parcela de terra comunitária em benefício de forasteiros.” (Wolf, 1976,

citado por E. Woortmann, 1995).

Como vimos no capítulo 3, o conjunto de regras que proibia a fragmentação do

território comunitário tinha como objetivo garantir o seu meio de trabalho, a

descendência das famílias e, assim, manter a entidade maior à qual elas pertencem e

que lhes confere identidade: a Comunidade do Nhunguara. A queda da produção

agrícola, conseqüência tanto da perda do preço desta no mercado quanto de restrições

ambientais, deixou as comunidades sem alternativas econômicas e desencadeou um

processo de mercantilização da terra. Concomitantemente, como já dito, a construção

de estradas e a existência de incentivos fiscais para implantação de agroindústrias, a

partir da década de 1970, levou ao Vale fazendeiros e grileiros de terras. 73 Idem:71.

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No Nhunguara, a venda de terras a pessoas estranhas à comunidade,

identificados pelos moradores como “chegantes”, data de 1985. Até então, todos os

moradores daquela área eram ligados por alguma forma de parentesco às famílias

antigas do local e grande parte dos agregados à comunidade por laços de casamento

eram oriundos de outras comunidades de quilombo da região, especialmente de Pilões,

São Pedro, André Lopes e Ivaporunduva, como se detalha na árvore genealógica

anexa a este relatório.

A primeira venda de um “direito”75 de terra para alguém “de fora” mereceu a

reprovação explícita por parte dos outros moradores. Na época, 52 pessoas reuniram-

se com vendedor para expressar sua desaprovação, o que mostra que aquela venda

significou uma ruptura das regras tradicionais de acesso à terra. Contudo, uma vez

aberto o precedente, nos anos seguintes ocorreram várias outras vendas de direitos e

se formaram as duas grandes fazendas de gado, além da entrada de outros tipos de

posseiros.

Antes daquele episódio, vários moradores já haviam sido procurados por

pessoas interessadas em comprar terras, pessoas que hoje são identificadas como

sendo os “capangas” dos fazendeiros. O trabalho de derrubada do mato e plantação do

capim braquiara para a formação do pasto contou com mão-de-obra local, homens e

mulheres que trabalharam intensivamente.

As famílias que venderam seus direitos fizeram a opção que, certamente, lhes

pareceu mais razoável. Ou seja, preferiram mudar-se para perto da estrada e ter

facilitado o acesso aos outros locais de trabalho a continuar morando em um lugar

distante, no qual não poderiam mais praticar a agricultura.

Devemos aqui relembrar que a proibição das roças entrou em vigor em 1963 e

que apenas em 1997 começaram a ser expedidas as licenças, portanto, 34 anos

depois. Admiravelmente, existe um número considerável de famílias na região que

mantiveram a prática agrícola destinada para o próprio consumo, a despeito dos riscos

e penalidades impostas. Portanto, para uma população que foi proibida pelo Estado de

utilizar seu território da forma tradicional, sem que se lhes tenham oferecido outras 74 Idem:48.75 A medida de 10 alqueires e é a referência atual da herança que cabe a cada filho do lugar. Esta medida foi incorporada pela população a partir de 1982, quando o Estado de São Paulo, através da Sudelpa, realizou trabalhos regularização fundiária de posseiros em áreas particulares e de conflito no Vale do Ribeira. 10 alqueires equivalem a 25 hectares, que é a área máxima para a requisição do direito de usucapião especial. Até então este direito de herança não era delimitado; era, isto sim, o direito de

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opções econômicas, as vendas significavam também uma forma de aliviar o sofrimento

das famílias.

Assim, antecipando conclusões, é fundamental que o Parque Jacupiranga seja

recuado na Comunidade do Nhunguara, a exemplo do que ocorreu em outras

Comunidade de Quilombo do Vale do Ribeira76, para que possam lá realizar as

atividades necessárias para a recuperação de sua autonomia, incluindo atividades

agroflorestais.

Algumas famílias que venderam seus direitos no interior se mudaram para perto

da estrada, dentro do Nhunguara. Estas ganharam ou compraram de algum parente

um lugar para a morada e, com o dinheiro obtido na venda, alguns conseguiram

reconstruir uma casa, normalmente feita de blocos de cimento e telhas de amianto,

reconhecidamente de menor conforto térmico, no entanto consideradas “melhores” do

que as de pau-a-pique77. Outra parte das famílias foi morar em outros lugares na

região.

O “direito” de cada herdeiro é uma área ideal de 10 alqueires78, mas na prática

nunca houve marcos divisores, nem era requerida alguma medição, pois este direito,

era o direito de trabalhar com sua família nuclear no sítio da família extensa. Por

ocasião das vendas, os limites de cada “direito” foram indicados verbalmente e os

fazendeiros souberam aproveitar esta imprecisão para abocanhar áreas maiores do

que as compradas e hoje coíbem e controlam o acesso à mata, situada nas cabeceiras

dos sítios. Trata-se de área de “mato virgem, área de caça”, como disse Sr. Pedro

Vieira Almeida. Várias pessoas enfatizaram que as terras foram vendidas a preços

muito desvantajosos para os quilombolas: “Deram tudo de graça”.

ocupar e trabalhar a terra conforme as necessidades e as possibilidades de cada um. 76 Vide nota de rodapé 67, na página 38 deste relatório.77 Queremos mencionar a existência do projeto da Secretaria de Habitação do Estado de São Paulo que objetiva uma revalorização da arquitetura de terra (pau-a-pique e taipa) nas comunidades quilombolas, através da sugestão de um projeto que utiliza preferencialmente madeira de reflorestamentos e incorpora alguns itens valorizados tais como assoalho, acabamento em reboco, instalação de luz e água, tudo a um custo mais acessível do que o das casas de blocos. 78 após os trabalhos de concessão de uso-capião especial para posseiros em áreas particulares e de conflito no Vale do Ribeira realizados pela Sudelpa a partir de 1982 consideravam 10 alqueires como a área máxima permitida. A partir de então, inclusive no Nhunguara, esta medida serviu como .

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7. O NHUNGUARA HOJE

No bairro habitam, atualmente, 96 famílias79, distribuídas, em sua maioria, ao

longo da estrada do Nhunguara. O bairro conta com duas escolas e um posto de

saúde, uma igreja católica e dois locais de cultos das igrejas evangélicas Assembléia

de Deus e Crê em Cristo.

As duas escolas, localizadas nas localidades de Salto e no Guardamó (vide

mapa) atendem alunos de 1ª a 4ª série. A escola de 5ª a 8ª série localiza-se em

Itapeúna, a aproximadamente 20 km de distância do Nhunguara. Há crianças que

moram nos sítios Continente, Tenente, nos Quati, Romãozinho e na Pedra que

precisam acordar por volta das 3:30 horas da manhã e caminhar por uma hora e meia

para pegar o ônibus que parte da Comunidade às 5:30 da manhã, quando as aulas

em Itapeúna iniciam somente às 7 horas. Os alunos de segundo grau freqüentam a

escola em Eldorado ou em Iporanga.

Alguns depoimentos denunciaram que na escola de Eldorado são separados

em classes distintas os alunos considerados mais fortes daqueles considerados mais

fracos. Dentre os últimos é que estão os adolescentes dos bairros rurais, inclusive das

comunidades de Quilombo, o que, a nosso ver, evidencia uma prática discriminatória e

perpetuadora das condições sociais desiguais das populações branca e negra.

O posto de saúde local recebe a visita de médico uma vez por semana e nos

demais dias permanece lá um agente de saúde mantido da prefeitura de Iporanga.

Não temos dados suficientes para avaliar este serviço, mas soubemos que não são

disponibilizados remédios para as pessoas por duas razões: não há remédios

disponíveis e, mesmo que houvesse, este funcionário não está autorizado a ministrar

medicamentos. Ademais, os moradores localizados no município de Eldorado não são

atendidos neste posto de saúde que é mantido pela prefeitura de Iporanga e devem ir

até o posto de saúde localizado no bairro de André Lopes, cujo funcionamento é

bastante precário. Para atendimentos médico e hospitalar estas famílias são obrigadas

a dirigir-se à Santa Casa de Eldorado, tarefa muito difícil considerando-se que a

distância é de mais de 40 quilômetros e o ônibus só passa duas vezes por dia. Muitas

79 Em Janeiro de 2000, o levantamento de campo realizado por equipe técnica do ITESP localizou 96 famílias moradores, dentre elas cinco identificadas como sendo “de fora” da comunidade (croqui anexo).

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mães são obrigadas a percorrer esse trajeto para vacinar seus bebês ou para buscar

atendimento médico para os filhos.

A energia elétrica tornou-se acessível aos moradores ao longo da estrada do

Nhunguara há alguns anos. Mas também aí o serviço apresenta problemas. Ouvimos

várias famílias denunciarem que recebem contas com valores entre R$ 50,00 e R$

100,00 mensais, quando é evidente que as poucas lâmpadas e, eventualmente, uma

geladeira, não poderiam consumir tanto.

Existem várias pessoas que já ultrapassaram a idade necessária para

requererem o benefício da aposentadoria rural, e têm recebido negativas do INSS

quanto a este direito, sob alegação de que lhes estaria faltando a documentação

necessária para provarem sua atividade na agricultura80. Nos grupos domésticos, a

existência de alguém que recebe um salário/aposentadoria é importantíssima, pois

este contribui significativamente para a obtenção das condições vitais e pode liberar

trabalho familiar para o cultivo da própria roça.

A Associação Comunidade de Quilombo do Nhunguara foi fundada em 1997,

teve como presidente, por dois anos, Aparício de Almeida e atualmente a preside

Antônio Vieira. Já havia existido uma breve experiência de Associação de Bairro em

1973, num contexto em que algum estímulo da prefeitura ao trabalho associativo.

Aparício nos conta que, em 1997, procurou a prefeitura para reivindicar benfeitorias

para o bairro, tais como conserto da estrada e linhas de ônibus, e foi orientado a

formar uma associação de moradores que estas solicitações tivessem respaldo e

fossem atendidas. No mesmo período, as comunidades da região tomaram ciência do

Artigo 68 e passaram a reivindicar o reconhecimento de sua condição quilombola por

parte do Estado para que possam recuperar o domínio de seu território tradicional, sua

titulação e o direito de reabilitarem lá sua vida em condições dignas de trabalho e de

vida. Para tanto, a Associação do Nhunguara incorporou esta identidade quilombola, o

que a habilitou a receber o título do território quilombola, e desde então vem ampliando

sua representatividade. Atualmente a maioria dos moradores está associada.

80 As idades mínimas para a aposentadoria dos trabalhadores rurais são: homens - 60 e mulheres – 55. Vide texto da Lei nº 8.213/91 – Plano de Benefícios da Previdência Social.

Ouvimos na comunidade que o Sindicato dos Trabalhadores Rurais tem restringido sua assessoria aos seus filiados e contribuintes efetivos. Freqüentemente, os potenciais beneficiários da aposentadoria não têm recursos financeiros nem para se dirigirem ao posto do INSS em Registro para realizarem a perícia que antecede a aposentadoria compulsória aos 65 anos para mulheres e 67 para os homens. Tivemos contato com Ana Júlia da Silva, 62 anos, e Isalina Pereira de Almeida, 59 anos, as quais estão necessitando de assessoria para ativarem este direito.

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Uma de suas principais funções é representar o grupo perante órgãos públicos

e nas ações conjuntas com outras comunidades de quilombo e, por algum tempo,

intermediou a distribuição de alguns insumos provenientes do ITESP. Hoje, é a

associação que intermedia a solicitação de licenças para roças. Como um mecanismo

para forçar a associação, a sua diretoria encaminha apenas os pedidos de autorização

das famílias associadas e que estejam em dia com os pagamentos das mensalidades,

fato que já é de cohecimento do ITESP. O valor desta é R$ 2,00 mensais e muitos

estão com as mesmas atrasadas; pudemos perceber que este valor pesa no

orçamento de algumas famílias. Não é nossa intenção interferir nos procedimentos da

associação, mas, se por um lado entendemos a motivação da associação com esta

medida, por outro lado, este fato deve suscitar a reflexão sobre a atuação do Estado

nestas comunidades, uma vez que este tem o dever de propiciar as condições básicas

de vida aos cidadãos, independentemente de sua associação ou não a qualquer

entidade.

Trabalho

Como já dissemos, as possibilidades de trabalho para os moradores do

Nhunguara estão muito restritas, sendo a venda da força de trabalho a principal fonte

de recursos para a grande maioria. Como vimos, no interior do bairro Nhunguara estas

possibilidades são reduzidas, pois as fazendas lá existentes empregam não mais do

que 3 ou 4 pessoas ao mesmo tempo e em serviços irregulares. Normalmente, as

mulheres arrancam capins venenosos para o gado e os homens fazem roçadas e

arrancam moitas dos pastos81. Alguns homens se dirigem a fazendas da região do

Vale, nas quais trabalham com gado, bananais, plantações de pinus ou em

empreitadas na limpeza das linhas de energia elétrica ou na pintura de postes de luz,

conforme ouvimos dos entrevistados. Os rapazes menores de 18 anos são os mais

procurados por empregadores de fora para o corte de palmito em outros municípios,

inclusive no litoral norte de São Paulo, pois para estes as penalidades da lei são

menores.

81 Este serviço é especialmente valorizado pelas mulheres, já que, devido ao cuidado com as crianças, não podem se ausentar do bairro por vários dias trabalhando em fazendas, como fazem os seus maridos.

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A extração ilegal de palmito é a principal atividade de algumas famílias de

bairros negros do Vale. Isso acontece exclusivamente por falta de alternativas

econômicas. Quando vemos homens e adolescentes descreverem o medo que sentem

de serem pegos pelo guarda florestal, correndo o risco de serem presos e perderem os

burros usados na atividade, além de serem humilhados e correrem risco de vida 82,

além da preocupação das mulheres, que beira o desespero enquanto maridos, irmãos

e filhos não retornam das incursões cada vez mais longas na mata, podemos

facilmente concluir que todos gostariam de poder optar por outras atividades que

pudessem garantir o sustento sem aviltar a cidadania.

Portanto, o trabalho mais imediato de obtenção de alimento, como os cuidados

com a horta e a pesca, é feito, na maioria das vezes, pelas mulheres, considerando

que os homens vão trabalhar fora para a obtenção de dinheiro. Muitos trabalham nas

fazendas das imediações e voltam para casa todos os dias. Outros, trabalhando em

fazendas mais distantes, têm que dormir nas mesmas, retornando para o convívio com

esposa e filhos apenas uma ou duas vezes por mês.

Em alguns casos, o casal com filhos pequenos se muda para a fazenda onde

vai trabalhar e chegam a viver na itinerância entre fazendas por vários anos. Este foi o

caso de Dominga, conhecida como Maria da Guia, e seu esposo falecido. Dominga,

hoje com 56 anos, voltou a viver na comunidade. Soubemos que várias famílias que

atualmente moram em fazendas manifestam seu desejo de voltar a morar no

Nhunguara, na terra própria.

Em todos estes casos, normalmente o pagamento feito em diárias que variam

entre R$ 7,00 e R$ 10,00 (dez reais). A oferta deste tipo de trabalho tem diminuído

nos últimos anos, o que alguns moradores associam à crise econômica do país.

A venda de banana é outra atividade complementar. Os compradores-

atravessadores encomendam e buscam a banana na comunidade. Aí, os problemas

enfrentados são os preços baixos83 e a incerteza de que a encomenda seja buscada.

Mulheres, normalmente meninas-moças, saem para trabalhar como

empregadas domésticas, com o que também contribuem com a renda familiar. Antônia

Maia de França teve uma trajetória que tem sido comum a mulheres quilombolas há 82 Houve, no primeiro semestre de 1997, no município de Eldorado, o caso de um trabalhador rural, pai viúvo de 5 filhos (o número de filhos aparece ora sendo de cinco, ora sendo de sete, conforme as diversas versões ouvidas) que foi morto pelo guarda florestal ao ser surpreendido retirando palmito da mata.

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algum tempo: foi estudar no colégio de freiras Maria Imaculada, em Santos, onde

aprendeu, entre outras coisas, serviços domésticos. As futuras patroas iam procurá-las

no colégio, já a partir dos 12 anos de idade. É comum que após alguns anos elas

casem com alguém da região e voltem a viver nas comunidades.

Podemos perceber, a partir do texto de Renato Queiroz narrando a situação

observada em Ivaporunduva no final da década de 1970, que esta tem sido a dura e

violenta realidade das Comunidades Negras do Vale do Ribeira há três décadas:

O final da década de 1960 leva até Ivaporunduva a estrada de rodagem e com ela também novos costumes, hábitos, necessidades, mercadorias, apropriação privada e cercamento de terras e, sobretudo, um tipo de relação de trabalho até então estranho ao grupo: o assalariamento. Fragilizados pelo engajamento no corte do palmito, desprovidos dos fundos de consumo, os nossos sujeitos, tendo pela frente a redução da disponibilidade de terras e a progressiva dependência face às trocas monetizadas para o provimento de necessidades ampliadas, viram-se coagidos a vender a sua força de trabalho aos fazendeiros da região.Muitos chefes de família, deixando mulheres e filhos no bairro, partiram à procura de trabalho nas fazendas, onde permaneciam às vezes por várias semanas. Quando retornavam, traziam inexpressivas quantias em dinheiro e escassas mercadorias. Na condição de “diaristas”, jamais viram respeitados os seus direitos trabalhistas. De outro lado, permaneciam sedentárias as mulheres, labutando nas roças, contando às vezes com uma força de trabalho masculina sempre eventual e suplementar.Por sua vez, moças e rapazes, passaram a migrar à procura de oportunidades de trabalho nos centros urbanos. Às primeiras, ofereciam-se ocupações subalternas, em geral empregos domésticos, e aos segundos, nada além de algumas colocações rurais ou urbanas igualmente mal remuneradas84.

O seguintes trechos da entrevista feita com Aparício Almeida são bastante esclarecedoras quanto aos motivos para a migração:

Pergunta: Iam trabalhar em fazenda?“É... na verdade naquele tempo não era fazenda, era sítio, gente que tinha um recursinho melhor, então se ia trabalhar pra ele. E daí ia aumentando a viagem, ficava lá um tanto, arranjavam um serviço melhor, até que chegaram a esse ponto.”

“É como eu disse, tem gente que saiu daqui criança, com 10, 12 anos. Eu tenho irmão no Paraná, tenho irmão no Rio de Janeiro, tenho irmão em sãoPaulo. ... Uns com 10, outros com 12, outros com 15, 20, e assim vai.

... Todos os que saíram daqui saíram por causa de recurso. Aqui tá vivendo os mais teimoso, sabe, os mais teimoso. Porque aqueles mais desanimados

83 Vendem o quilo de bananas a R$ 0,05 ou R$ 2,50 uma caixa.84 Queiroz, !983: 113.

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foram embora e acho que não vêm, só podem vir se tiver recurso aqui sobrando, pra poderem vir.” (Aparecido de Almeida)

Interpretando as relações e as formas de trabalho vividas atualmente, Sr. Daniel

lembra uma profecia: “No fim do século vai ter gente no caminho como formiga no

carreiro.” E diz ainda: “Hoje as mulheres saem mais, tem chegantes do Paraná, da

Bahia”. Ele interpreta negativamente a situação atual, associando-a aos últimos

tempos, que antecederiam a instauração do reino de Deus, na profecia milenarista.

Enfim, deve-se enfatizar que salta aos olhos as condições precárias de vida de

parte das famílias do Nhunguara que têm filhos pequenos e dependem apenas da

venda da força de trabalho do pai e eventualmente da mãe. Isto foi também

constatado pela historiadora Lurdes Carril (1995:180), que afirma: “essas populações

negras foram deixadas no limite da sobrevivência”.

Posseiros

Existem hoje no Nhunguara várias categorias de posseiros, no que tange o

tamanho da área ocupada e sua utilização.

Há duas grandes fazendas de gado, com limites indefinidos, cujos donos são

Segundo Fioravante e Domingos Falavinha. Eles adquiriram posses de moradores das

localidades Romãozinho, Os Quati e Tenente no período de 1986 a 1989 e logo

formaram pastos com capim braquiara. Além das áreas ocupadas com pastos, estes

fazendeiros têm restringido progressivamente o acesso dos moradores a áreas de

mata comunais. O tamanho destas áreas ocupadas não foi por nós medido, mas a

comunidade tem clareza de que ela é efetivamente maior do que a soma dos “direitos”

que foram aí vendidos pelos moradores85. Esta apropriação indébita foi possível

graças à imprecisão e ao caráter “plástico” da definição dos direitos individuais de

acesso à terra num território que é comum, conforme já explicado nas páginas 17 e 43

deste relatório.

Na divisa do território com o município de Barra do Turvo também avançam

extratores de palmito vindos de outras regiões que, através de ameaças, coíbem o 85 Vários depoimentos dos moradores do Nhunguara informaram que o fazendeiro Segundo Fioravante comprou 80 alqueires e hoje declara possuir 300 alqueires. Domingos Falavinha comprou, segundo eles, 5 direitos e hoje declara possuir 430 alq., dos quais 100 foram desmatados e transformados em

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acesso dos quilombolas à área de mata do território, além de fazerem desmatamentos

na cabeceira do Rio Nhunguara, o que já reflete na diminuição do volume de água.

Além dessas fazendas, existem outros “chegantes” ocupando porções menores

identificadas como chácaras (aproximadamente 60 alqueires cada), mas que, no

entanto, assim como os fazendeiros supra citados, não residem no local. São eles:

Geraldo Ugedo, João Pereira de Medeiros (João Samambaia), Pedro da Farmácia,

Germano, Afonso, José da Rocha e Sebastião Rodrigues Filho.

Outra categoria de posseiros não pertencentes à comunidade, e bem distinta

das mencionadas acima, são os posseiros de áreas muito pequenas, que moram e

trabalham na terra utilizando mão-de-obra familiar. No caso de remoção destes, se a

indenização por eles recebida não for suficiente para que se instalem em outras terras

nas mesmas condições das suas atuais posses, isto significará o desencadeamento

de outro grave problema social.

As alternativas de trabalho para os moradores do Nhunguara, já aqui

enuciadas, são reconhecidas por todos como sendo muito insatisfatórias. A

iniciativa de reivindicar o reconhecimento da condição quilombola está

fundamentada no desejo e na necessidade de implementar novas formas de

produção no seu território, uma vez que o trabalho para terceiros é inconstante,

insuficiente e mal remunerado. Para tanto, é indispensável que as grandes áreas

ocupadas por fazendas sejam re-incorporadas ao território comunitário e que o

Estado ofereça condições materiais e assessoria técnica para a implementação

de novas iniciativas econômicas que possibilitem melhorar as condições de vida

dos quilombolas hoje e para os seus descendentes.

pasto.

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8. CONCLUSÕES

A Comunidade do Nhunguara faz parte de um conjunto maior de inúmeras

comunidades rurais negras existentes no Vale do Ribeira. Suas origens remontam à

história dos ciclos minerador, iniciado na região no século XVII, e rizicultor, que teve

seu ápice no século XIX, ambos apoiados na mão-de-obra de homens e mulheres

negros escravizados. Escravos fugitivos ou libertos e seus descendentes fundaram

grupos que deram início a um processo de acamponesamento, resultando no

adensamento populacional negro na região.

Ao contrário da idéia de comunidade fechada, auto-suficiente e isolada, as

comunidades negras do Vale estiveram historicamente engajadas com a economia da

Colônia, do Império e do Estado Nacional, o que certamente constituiu um dos

principais fatores que favoreceram a fixação dessas comunidades em seus territórios, e

sua reprodução no espaço e no tempo. É evidente a importância das comunidades

negras na economia do Vale, seja em relação ao mercado regional, seja na produção

de alimentos para outras localidades do país, como foi o caso do arroz, que no auge de

seu ciclo econômico tornou-se o internacionalmente conhecido “arroz de Iguape”,

famoso por sua alta qualidade.

Essas comunidades podem ser classificadas como populações florestais

camponesas. Trata-se de um grupo social articulado a uma sociedade mais ampla e

que possui um sistema social e econômico próprio, embora sem estar à margem do

sistema capitalista. Possuem semelhanças estruturais com as demais populações

rurais da região, que Maria Isaura Pereira de Queiroz86 chama de bairros rurais.

Contudo, diferenciam-se destes últimos não apenas pela cor da pele dos indivíduos,

mas pelo passado relacionado à escravidão, pela memória carregada de sentido

étnico, e pela consciência de sua história, marcada pelo preconceito, pela

discriminação ainda hoje vigentes tendo sido, num passado não muito distante,

considerados párias pela sociedade branca dominante.

86 Queiroz, 1973.

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Neste sentido, as comunidades rurais negras – não apenas no Vale, mas em

diversos lugares do país – vêm (re) elaborando e fortalecendo sua identidade

quilombola com vistas a reivindicar o direito à titulação de seus territórios previsto no

artigo no 68 do ADCT. Este e suas posteriores regulamentações como legislação

imperativa, apresentam-se como mecanismo ativo capaz de saldar, ainda que

parcialmente, a dívida social e moral de toda uma nação com um segmento étnico que,

escravizado, foi responsável por grande parte das riquezas acumuladas pelo país e

permanece alijado das benesses deste empreendimento.

Relatos de moradores atestam que os que hoje moram no lugar são

descendentes de várias famílias que lá se instalaram no início do século XIX: os Vieira,

Morato de Almeida, Pedroso de Moraes, os Maia e os Ferro, entre outros. Fontes

primárias de documentação, como registros de batismos e de terras, apontam para a

presença de Faustino Vieira em Nhunguara e de descendentes seus em Nhunguara e

André Lopes desde a primeira metade do século XIX.

Até agora, a comparação entre dados presentes na documentação pesquisada e

os depoimentos de moradores nos levam a crer que escravos fugidos que são

considerados “fundadores” de algumas comunidades, constituíam mecanismos

capazes de alterar sua condição, inclusive oficialmente, para livres ou libertos, o que

poderia facilitar suas relações – principalmente comerciais – com a sociedade branca

dominante da região. Chegamos a essa conclusão porque antepassados reconhecidos

por seus descendentes como tendo sido escravos fugidos (casos de Bernardo

Furquim/São Pedro e Gregório Marinho/ Pedro Cubas) e outros cujos relatos de

descendentes apenas sugerem que foram escravos (caso de Faustino Vieira), ao

registrarem filhos nos livros de batismos, aparecem como pretos ou mulatos, livres ou

libertos.

As comunidades quilombolas sempre se guiaram por um conjunto de regras de

herança e de parentesco que proibiam a fragmentação do território comunitário

garantiam o seu meio de trabalho, a descendência das famílias e, assim, manter a

entidade maior à qual elas pertencem e que lhes confere identidade: a Comunidade do

Nhunguara. No entanto, a produção agrícola sofreu uma diminuição drástica a partir da

década de 1960, em decorrência tanto queda do preço desta no mercado quanto de

restrições ambientais, o que deixou as comunidades atreladas à exploração ilegal do

palmito e sem outras alternativas econômicas. Esta diminuição da função produtiva da

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terra desencadeou um processo de mercantilização da mesma. Concomitantemente, a

construção de estradas e a existência de incentivos fiscais para implantação de

agroindústrias, a partir da década de 1970, levou ao Vale fazendeiros e grileiros de

terras.

Lembramos que a proibição das roças no Nhunguara entrou em vigor em 1963,

com a criação Parque Estadual de Jacupiranga. A atuação do policiamento e a

imposição de multas aos agricultores, no entanto, se intensificou no início da década de

1980 e, apenas em 1997, através da atuação do Ministério Público Federal e do ITESP,

as famílias conseguiram autorizações junto ao DEPRN - Departamento Estadual de

Proteção aos Recursos Naturais - para derrubar certas áreas de mato/capoeira e fazer

roças. Admiravelmente, existe um número considerável de famílias na região que

mantiveram a prática agrícola destinada para o próprio consumo, a despeito dos riscos

e penalidades impostas. Portanto, para uma população que foi proibida pelo Estado de

utilizar seu território da forma tradicional, sem que se lhes tenham oferecido outras

opções econômicas, as vendas significavam também uma forma de aliviar o sofrimento

das famílias.

No Nhunguara, a entrada de pessoas estranhas à comunidade, identificados

pelos moradores como “chegantes”, data de 1985. As famílias que venderam seus

direitos, ou suas porções de herança, fizeram a opção que, certamente, lhes pareceu

mais razoável. Ou seja, preferiram mudar-se para perto da estrada e ter facilitado o

acesso aos outros locais de trabalho a continuar morando em um lugar distante, no

qual não poderiam mais praticar a agricultura.

As alternativas atuais de trabalho para os moradores do Nhunguara, as quais

foram apresentadas na íntegra deste relatório, hoje estão muito restritas à venda da

mão-de-obra e são reconhecidas por todos como sendo muito insatisfatórias. A

iniciativa de reivindicar o reconhecimento da condição quilombola está fundamentada

no desejo e na necessidade de implementar novas formas de produção no seu

território, uma vez que o trabalho para terceiros é inconstante, insuficiente e mal

remunerado. Para tanto, é indispensável que as grandes áreas ocupadas por fazendas

– quase todas sofrendo processos de desmatamento, destruição de nascentes e

formação de pastos – sejam re-incorporadas ao território comunitário e que o Estado

ofereça condições materiais e assessoria técnica para a implementação de novas

iniciativas econômicas que possibilitem melhorar as condições de vida dos

quilombolas.

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Desta forma, dá-se cumprimento àquilo que foi enunciado pelo GT: “Isto quer

dizer que o território, em todo seu perímetro, necessário à reprodução física e cultural

de cada grupo étnico/tradicional só poder ser dimensionado à luz da interpretação

antropológica e em face da capacidade suporte do meio ambiente circundante tendo

em vista a necessidade de garantir a melhoria de qualidade de vida de seus habitantes,

através da implementação de projetos econômicos adequados, conservando-se os

recursos naturais para as ger ações vindouras” (GT87, p.24);

Considerando que o trabalho de pesquisa antropológica não deixa dúvidas sobre

a origem quilombola da comunidade do Nhunguara, formada por descendentes de ex-

escravos tornando-se camponeses num contexto de acentuada subordinação à

sociedade envolvente;

Considerando que o mesmo procedimento antropológico também comprovou a

utilização pretérita de toda a extensão territorial reivindicada, de 8.093,981hectares,

dos quais grande parte hoje encontra-se sob domínio de terceiros ou em área de

parque;

Considerando que durante as etapas desta pesquisa, dois aspectos, atrelados

numa relação de causa e efeito, chamaram especialmente a atenção: 1) os efeitos do

ciclo de exploração do palmito e da criação de Unidades de Conservação Ambiental

sobre o sistema tradicional de produção e o modo de vida, sendo que 80% do território

da Comunidade do Nhunguara encontra-se dentro do Parque Jacupiranga; e 2) em

decorrência disto, a condição de precariedade material em que vive boa parte da

comunidade, devido à dificuldade de empreender atividades econômicas que lhes

garantam condições satisfatórias de vida;

Considerando a “vontade política e visão social do governo paulista de atender e

interpretar o mandamento constitucional, não só como obrigação estatal imposta pela

lei, mas principalmente como um ideal da democracia, de proteção aos direitos

humanos e respeito às minorias, a ser perseguido permanentemente (...)” (GT, p. 5);

Concluímos:

que os membros da Comunidade do Nhunguara são remanescentes de

comunidade de quilombo, de acordo com as definições que embasam os critérios

87 No decorrer desta conclusão, as citações identificadas como GT referem-se ao Relatório do Grupo de Trabalho já referido na nota de rodapé número 1.

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oficiais de reconhecimento adotados pelo Estado de São Paulo e discutidas no capítulo

2 deste relatório;

que por ocasião da titulação das terras a Procuradoria do Estado, juntamente

com o ITESP, devem promover amplos debates com a comunidade a respeito do

tratamento a ser dado pelo Estado aos pequenos posseiros que moram e trabalham no

lugar para que o processo de titulação não implique num ato de expulsão

inconseqüente e, possivelmente, trágico para os mesmos.

que é fundamental que o Parque Jacupiranga seja recuado na Comunidade do

Nhunguara, a exemplo do que ocorreu em outras Comunidade de Quilombo do Vale do

Ribeira em 1999, para que possam lá realizar as atividades necessárias para a

recuperação de sua autonomia, incluindo atividades agroflorestais.

Maria Celina Pereira de CarvalhoAntropóloga.

Alessandra SchmittAntropóloga.

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Anexo: Diagrama de parentesco

Muitos dos dados para a construção do diagrama de parentesco que

apresentamos a seguir foram por nós coletados durante pesquisa de campo nas

comunidades de Nhunguara e André Lopes. Mas nossa fonte principal foi uma série de

diagramas desenhados a mão pela antropóloga Deborah Stucchi, trabalho primoroso e

detalhado sem o qual não teria sido possível a elaboração deste nosso trabalho. Outra

fonte importante foram os disquetes com registros de batismos gentilmente cedidos

pela irmã Sueli Berlanga, da pastoral de igreja católica de Eldorado.

Foi elaborado um único diagrama para as famílias de André Lopes e Nhunguara,

considerando que os dois grupos têm origem nas mesmas famílias, constituindo

estreitas relações de parentesco em territórios contíguos.

Não se trata de um diagrama completo, preciso e nem definitivo, o que nos

parece impossível de realizar. As primeiras famílias, presentes tanto na memória dos

descendentes quanto na documentação pesquisada, existiram ainda nas primeiras

décadas do século XIX, e nem todos os descendentes estão presentes. É bem possível

que um ou outro personagem esteja deslocado de sua posição, considerando a

possibilidade de os que informantes, ou então nós mesmos, tenhamos nos equivocado

diante do grande número de pessoas que estão aqui registradas.

Contudo, os possíveis deslocamentos de personagens não impossibilitam a

identificação de estratégias de constituição de parentesco e de território. O trabalho

possibilita uma visão esquemática de várias constatações presentes neste relatório,

como:

· os moradores atuais de Nhunguara e André Lopes são descendentes de

pessoas cuja história está relacionada à escravização de homens e mulheres

ocorrida na região do Vale do Ribeira, como Bernardo Furquim e Faustino

Vieira, entre tantos outros, que aparecem nos registros de batismos como

pretos (e, às vezes, como pardos) livres ou libertos;

· a realização de casamentos entre primos paralelos e cruzados, e entre tios e

sobrinhas classificatórios (o que pode ser percebido pelo grande número de

linhas pontilhadas que indicam esses casamentos);

· a formação de uma extensa malha de parentesco que une famílias de

diversas comunidades negras existentes nos municípios de Iporanga e

Eldorado.

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