relatorio sobre encontro nuestra américa em fortaleza ceara 2007

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Saludos libertários desde Fortaleza. Por Carlo Romani, Já era quinta-feira 24 de outubro e eu ainda não havia me decidido a visitar o palco do que eu julgava seriam os monólogos da I Conferência Internacional Vozes de Nuestra América iniciada na segunda anterior. Tinha motivos para estar com um pé, ou o corpo inteiro, atrás desse encontro da América Latina e do Caribe. Organizado pela Escola Nacional Florestan Fernandes, o braço educativo universitário do MST, justamente sua ala marxista mais bolchevista aquela que, como fazem todos os leninistas, quando o Partido a que estão vinculados assume o poder político e controla o Estado, abandonam a luta revolucionária e caminham para se estabelecerem como burocracia governativa. Mas, a mim, não restava alternativa como compromisso profissional, afinal agora sou professor visitante da UFC, a Universidade que deu o apoio local para a realização do evento, em ir ao encontro para mostrar a cara: “– Oi gente, que bonito está o Congresso”. Nos centros menores, torna-se ainda mais explícita essa necessidade das pessoas lotadas nos equipamentos públicos de fazerem esse jogo cínico do convívio, da saudação e do consenso forçado: a deturpação cotidiana da política no local de trabalho. Muito bem, vamos a uma breve amostra dos convidados e seus temas revolucionários. Deixei passar em branco o velho nhenhenhém antiimperialista de Ana Ceceña da ala mexicana da CLACSO; também declinei do convite do embaixador da Venezuela para visitar o que chamam de neo-bolivarismo chavista; também me recusei a enfrentar o bronco Stédile agora governista; infelizmente, perdi a exposição matutina dos piqueteros, do argentino Solana e do uruguaio Zibechi (afinal, o primeiro compromisso do professor é com seus alunos); tampouco considerei a “Atualidade do pensamento de Guevara” um tema tão atual; assim como a atualidade da teoria da dependência formulada nos anos sessenta por Rui Marini; menosprezei os sandinistas há vinte anos no governo da Nicarágua; Gilmar Mauro querendo falar pela Via Campesina não dá; Ops, “Resistência dos Movimentos Populares e Urbanos”, parece interessante, quem

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Page 1: Relatorio sobre Encontro Nuestra américa em Fortaleza Ceara 2007

Saludos libertários desde Fortaleza.

Por Carlo Romani,

Já era quinta-feira 24 de outubro e eu ainda não havia me decidido a visitar o palco do

que eu julgava seriam os monólogos da I Conferência Internacional Vozes de Nuestra

América iniciada na segunda anterior. Tinha motivos para estar com um pé, ou o corpo

inteiro, atrás desse encontro da América Latina e do Caribe. Organizado pela Escola

Nacional Florestan Fernandes, o braço educativo universitário do MST, justamente sua

ala marxista mais bolchevista aquela que, como fazem todos os leninistas, quando o

Partido a que estão vinculados assume o poder político e controla o Estado, abandonam

a luta revolucionária e caminham para se estabelecerem como burocracia governativa.

Mas, a mim, não restava alternativa como compromisso profissional, afinal agora sou

professor visitante da UFC, a Universidade que deu o apoio local para a realização do

evento, em ir ao encontro para mostrar a cara: “– Oi gente, que bonito está o

Congresso”. Nos centros menores, torna-se ainda mais explícita essa necessidade das

pessoas lotadas nos equipamentos públicos de fazerem esse jogo cínico do convívio, da

saudação e do consenso forçado: a deturpação cotidiana da política no local de trabalho.

Muito bem, vamos a uma breve amostra dos convidados e seus temas revolucionários.

Deixei passar em branco o velho nhenhenhém antiimperialista de Ana Ceceña da ala

mexicana da CLACSO; também declinei do convite do embaixador da Venezuela para

visitar o que chamam de neo-bolivarismo chavista; também me recusei a enfrentar o

bronco Stédile agora governista; infelizmente, perdi a exposição matutina dos

piqueteros, do argentino Solana e do uruguaio Zibechi (afinal, o primeiro compromisso

do professor é com seus alunos); tampouco considerei a “Atualidade do pensamento de

Guevara” um tema tão atual; assim como a atualidade da teoria da dependência

formulada nos anos sessenta por Rui Marini; menosprezei os sandinistas há vinte anos

no governo da Nicarágua; Gilmar Mauro querendo falar pela Via Campesina não dá;

Ops, “Resistência dos Movimentos Populares e Urbanos”, parece interessante, quem

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fala: Camile Chalmers do Haiti (não sei nada sobre o Haiti) e Ruben Valencia,

APPO/Oaxaca/México. Demorou, é essa!

Quinta-feira, 24 de outubro de 2007 quatro e meia da tarde me dirijo ao velho e

majestoso Cine São Luiz que escapou de virar templo pentecostal para narcotizar a

angústia da massa inerte e desesperada e foi transformado em Centro Cultural do SESC

(o complexo de culpa do capitalismo às vezes dá suas contrapartidas em troca de menos

impostos). Confesso que tinha os dois pés atrás, quem serão esses convidados das redes

populares marxistas latino-americanas? O haitiano não apareceu, não sei os motivos,

falta de dinheiro, fala francês, ninguém entende, mas, mesmo o português, quem é que

entende? Restava ouvir a apresentação do mexicano.

O cinema é enorme, com galeria, tapete vermelho e tudo mais. O palco alto distancia a

platéia dos oradores. Feita a apresentação, Rùben é convidado por uma moça, a hostess

do MST, a vir à mesa. Aplausos. A mesma moça, animadora de auditório, convida os

companheiros do Piauí a se manifestarem com seu grito de guerra e saudação, tá muito

fraco, não tô ouvindo, ahaahaahaahauuuuuuuuuhuuuuu, onde estão os companheiros da

Amazônia, aqui hehehehehehe, um casal evolui no carimbó, abaixo o imperialismo na

Amazônia, a Amazônia é nossa, do Lula, minha, tua e eu que não sabia. Punhos

cerrados, braço estendido, poder popular, Rùben, do alto levanta seu punho direito a la

black power e corresponde: delírio, só faltava o compañeros, venceremos!!!!!!

Não estou gostando, mas vamos ver o que ele tem a dizer. Antes da palestra, Rùben

propõe exibir um documentário sobre o movimento popular que ocorreu no ano passado

em Oaxaca como desdobramento à repressão de um grupo de professores do ensino

fundamental que estava em greve. Começa o filme, a cobertura independente da Rádio

Plantón, as imagens do governador feitas pela Televisa dizendo que não haverá aumento

salarial. Fim de maio de 2006, os professores iniciam a paralisação, ocupam as escolas,

formam o que eles chamam de plantão. Em 14 de junho o movimento que estava sob

controle das instâncias mais centralizadoras do sindicato muda bruscamente de curso.

O estopim da revolta popular generalizada subseqüente foi uma má avaliação tida pelo

governo de Ruiz sobre o movimento popular em Oaxaca. O governador ordenou a

desocupação violenta das escolas e a repressão causou uma reação inesperada na

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população, pelo menos para o governo. Não partiu dos organizadores da greve a reação,

mas dos movimentos populares urbanos, dos grupos libertários, das comunas, dos povos

indígenas organizados nos povoados. Surge a APPO e o lema de ordem passa a ser

“Fuera Ulises Ruiz”. Uma simples greve de professores na cidade de Oaxaca

transforma-se num levante popular que toma conta de todo o estado para depor o

governo e instalar uma Assembléia Popular Permanente em seu lugar. Logo ganha

repercussão internacional. Jornalistas de todo o mundo vão cobrir as manifestações da

Assembléia que deliberam como um governo paralelo em Oaxaca. Os zapatistas, apesar

de manterem a independência das lutas dos povos do vizinho estado de Chiapas,

ingressam na luta ampliando nacionalmente a articulação entre os povos indígenas. A

APPO entra na Cidade do México, cerca o Ministério da Educação, o Palácio do

Governo, enfrenta a Polícia Nacional motorizada nas ruas. O governo federal percebe

que o movimento corre o risco de ultrapassar as fronteiras de Oaxaca. Os autonomistas

da APPO tecem críticas aos zapatistas entendendo que o levante poderia ter se estendido

a todo o sul do México.

O documentário avança rapidamente, o original tem uma hora e meia de duração, o

tempo para a palestra é restrito, o vídeo é condensado em meia hora. Estamos em

outubro, não há sinal de refluxo do movimento em Oaxaca. O governo federal articula

junto com a Televisa e a TV Azteca, as poderosas mexicanas, a organização de um

movimento de reação da classe média a partir da Cidade do México. Passeatas dizem

“Si para Ruiz”, estamos com o governo. Era a retomada da legitimação política

artificialmente requerida para um ordenamento mais incisivo contra os rebeldes.

Fim de outubro, a Polícia Nacional ocupa Oaxaca. Tropas militares terrestres, brucutus,

tanques, helicópteros. Tem início o desalojamento dos professores feito como sempre,

de madrugada, com violenta repressão. Os populares tomam as ruas, são montadas

barricadas, as mães indígenas formam a linha de frente desarmada. Os grupos

anarquistas e zapatistas urbanos mostram suas caras, ou melhor, escondem-nas com os

já clássicos lenços e mostram a força da resistência: choque corporal, pedras, revide das

bombas de gás, mais uma intifada. A repressão recrudesce, tiros na multidão vêm do

alto, são os helicópteros que procuram desbaratar a resistência nas calles. A polícia

embaixo na rua parte pra cima, tiros são disparados horizontalmente. Um loiro

grandalhão de bermuda com uma câmera na mão tomba entre o povo. Imagens mostram

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a população carregando seu corpo ensangüentado. O compa Brad Will, nosso

conhecido, está lá morto congelado na tela. Um arrepio gelado passa pelo meu corpo.

O filme prossegue, agora entendo, parte das imagens anteriores eram do Brad. Nos dias

seguintes a repressão segue aumentando, finalmente a resistência é rompida, os

professores são retirados das escolas. Inicia-se a perseguição. Rùben fala de trezentos

mortos, muitos desaparecidos, mas a APPO continua organizada. As mulheres, as mães

dos estudantes são as maiores interessadas, seguem à frente das assembléias. O

movimento foi temporariamente derrotado, mas a revolta, a vontade da transformação

social está latente na população. A organização é autonomista. As lutas mantêm a

tradição do comunismo indígena de outrora. São os ecos dos Pueblo, dos Navajo, dos

Zapoteca, de todo o Yucatan, da pré-colombiana Oaxaca. O comunismo indígena é

autonomista e libertário.

Rùben esclarece alguns pontos do filme em sua fala. Primeiro um histórico sobre o

México pós PRI e após o advento do EZLN. Depois a questão pontual de Oaxaca:

Fuera Ruiz. A criação da APPO. Mas, o que, quem é exatamente a APPO? Rùben

titubeante no que ele pensa ser uma platéia majoritariamente marxista. Há todas as

correntes, cita os stalinistas, o Partido, os camponeses, faz média com a Via Campesina,

até os sociais democratas. Mas há os povos indígenas, os pueblos, são mais de 400 no

estado de Oaxaca a participarem, os grupos autônomos, os professores independentes,

as mães independentes. De repente a pluralidade cresce, toma conta de sua fala, faz

mais sentido com aquilo que o documentário havia mostrado. A questão da tomada do

poder do governo não está colocada são buscas para a formação de contra-poderes. Mas

e o governo, a APPO quer tomar o poder e mudar o governo? Parece que não. O que

lhes importa é a manutenção da Assembléia, porque permanente, são as deliberações

nos bairros, diretamente com os participantes.

Então o fato de fato não é fora Ruiz, é fora governo. Rùben fala das propostas.

Ampliação da democracia. Como? Democracia participativa ou democracia direta, um

debate dentro da APPO. A representação parlamentar já não é o foco de discussão. Os

pueblos não querem ter representantes na instância estabelecida do poder. Querem que o

poder desça até os bairros, esteja nas escolas, surja das calles, e as decisões sejam

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deliberadas pela população. O nível da discussão política em Oaxaca é o mais avançado

em matéria de autonomia popular que há atualmente no mundo.

Surgiu-me uma dúvida. Será que a platéia acompanha a exposição? Creio que não,

Rùben fala em espanhol, não há tradução. O cine se esvazia. Onde está o líder, o

megafone, os companheiros. Vinde até mim as criancinhas. Em Oaxaca não há mais

criancinhas. A multidão sozinha construiu o seu destino, não há Maomé, só montanhas

a serem removidas. Fim da apresentação. Jogo rápido, a moça da animação logo vem

dizendo: só duas perguntas. Foi atropelada. Um grupo de pessoas se aproxima do palco.

Parece que há anarquistas na platéia. Cinco se dirigem imediatamente ao microfone.

Não há como evitar. Surgem as questões:

Como está a organização da APPO após a repressão?

Um militante do MST quer saber sobre como se organizou a revolta e qual o comando

que dirigiu o movimento.

Um menino do CMI declama uma poesia pela memória de Brad. Arrepio-me inteiro.

Penso no Giulius, já se passou um ano de seu assassinato.

Um dos anarquistas do grupo de Campina Grande presente pergunta sobre quem são os

grupos que tomaram a frente nos protestos, caracterize melhor.

Uma menina anarquista pergunta sobre qual a relação com os zapatistas, porque houve

divergências? E o papel das mulheres, foi fundamental?

E a vontade de conhecer melhor o que ocorreu em Oaxaca toma conta das pessoas.

Eu enfatizo a importância da descentralização do comando e da autonomia no

movimento como forma de haver uma rápida explosão popular. Pergunto: Rùben qual é

a sua posição dentro da APPO?

Faço parte dos coletivos autonomistas libertários ligados ao movimento urbano.

Aproximamo-nos em matéria de compreensão do movimento dos pueblos,

especialmente no desejo da construção de uma democracia direta e comunalista, ou seja,

com as decisões sobre a política realizadas em cada assembléia dos povoados indígenas

de forma direta, através das discussões e da produção de consensos. Este já é o caminho

da deliberação em centenas de vilarejos mexicanos.

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Penso que devamos olhar com mais atenção ao que vem ocorrendo nesse país desde o

zapatismo de 1994, um país cuja maioria da população é de origem indígena e, talvez,

percebamos que o anarquismo contemporâneo, para além de sua matriz européia, se

encontre mais vivo do que nunca no desejo de autonomia, na insubmissão dos povos

indígenas americanos, seja na herança imaterial dos que foram exterminados durante a

conquista por que não se permitiram dominar, seja naqueles que resistiram de outra

forma e sobrevivem até hoje. Retomemos a leitura de Flores Magón, para compreender

o fundamento autonomista da revolução Mexicana e tirar experiências produtivas para a

realidade brasileira.

Ao final da conferência Rùben concedeu uma entrevista ao CMI de Fortaleza.

Aproveitei a oportunidade para pedir o texto integral de sua fala e quando ele disse-me

que viria a São Paulo, convidei-o a fazer contato com o CAVE. Quem sabe, quando este

relato estiver on-line, os santistas possam já ter a oportunidade de assistir o

documentário sobre Oaxaca e charlar com um compa autonomista mexicano.

Até outra.