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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X RELATO DE EXPERIÊNCIA - OFICINAS COM MULHERES PRESAS EM SÃO PAULO: ARTE E HIPERMATERNIDADE NA PRISÃO Carolina Bessa Ferreira de Oliveira 1 Carla Regina Gonçalves de Andrade 2 Resumo: Este trabalho apresenta um relato de experiência de oficinas realizadas no Centro de Progressão Penitenciária do Butantã e na Penitenciária Feminina da Capital, em São Paulo, na ala materno-infantil. São oficinas realizadas por voluntárias de um projeto da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB de São Paulo. Por meio de canto, diálogo e meditação, objetiva promover um espaço de livre expressão, que possa relativizar os efeitos do aprisionamento. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2014), o aumento da população feminina presa foi de 567,4%, enquanto a média do masculino foi de 220,20% de 2000 a 2014. Davis e Dent (2003) refletem sobre o tema, descortinando as estruturas de gênero presentes na prisão. A mulher presa possui necessidades e peculiaridades que tendem a ser agravadas por, não raro, históricos de violência, uso de drogas e saúde. Sobre a maternidade na prisão, pesquisas apontam sua grande vulnerabilidade. Para Braga e Angotti (2015), no período de convivência entre mães e bebês na prisão, há uma hipermaternidade, dada a permanência ininterrupta com a criança permeada pelo rigor disciplinar. O afastamento gera a sensação de solidão, além do não exercício de atividades laborais e educativas. As oficinas realizadas levam à reflexão sobre a necessidade de um olhar acurado sobre o encarceramento feminino e as possibilidades de intervenção pelo mundo externo. Palavras-chave: Prisão. Mulheres. Maternidade. Introdução Historicamente, a prisão vem desempenhando um papel de isolamento, controle e seletividade de uma parte da população, como mecanismo punitivo por excelência (FOUCAULT, 1999), permeada por relações de poder, que não recaem de maneira equânime nos diferentes grupos sociais. A prisão tem se mostrado incapaz de cumprir um papel preventivo e/ou positivo no retorno à vida em liberdade. No Brasil, o encarceramento é notadamente seletivo em termos sociais e raciais, predominantemente em relação às pessoas negras, de regiões periféricas, jovens, sem acesso à justiça e pobres, como evidenciam os levantamentos oficiais disponíveis (BRASIL, 2014). Verifica-se um crescimento significativo no número de pessoas presas no país, sobretudo nos últimos dez anos, com destaque para o público feminino. De acordo com os dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), de dezembro de 2014, publicados no Relatório do Levantamento de Informações Penitenciárias (INFOPEN), o país ultrapassou a marca de 622 mil pessoas presas, sem considerar os presos domiciliares, “chegando a uma taxa de mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes, enquanto a taxa mundial de aprisionamento situa-se no patamar de 144 presos por 1 Advogada, mestra em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e doutoranda pela Universidade de São Paulo (USP). Membro da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB de São Paulo/SP. 2 Advogada, Especialista em Direito de Estado (UNISUL), Peregrina de O Caminho do Canto. Membro da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB de São Paulo/SP.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

RELATO DE EXPERIÊNCIA - OFICINAS COM MULHERES PRESAS EM SÃO PAULO:

ARTE E HIPERMATERNIDADE NA PRISÃO

Carolina Bessa Ferreira de Oliveira1

Carla Regina Gonçalves de Andrade2

Resumo: Este trabalho apresenta um relato de experiência de oficinas realizadas no Centro de

Progressão Penitenciária do Butantã e na Penitenciária Feminina da Capital, em São Paulo, na ala

materno-infantil. São oficinas realizadas por voluntárias de um projeto da Comissão de Política

Criminal e Penitenciária da OAB de São Paulo. Por meio de canto, diálogo e meditação, objetiva

promover um espaço de livre expressão, que possa relativizar os efeitos do aprisionamento. Segundo o

Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2014), o aumento da população feminina presa

foi de 567,4%, enquanto a média do masculino foi de 220,20% de 2000 a 2014. Davis e Dent (2003)

refletem sobre o tema, descortinando as estruturas de gênero presentes na prisão. A mulher presa

possui necessidades e peculiaridades que tendem a ser agravadas por, não raro, históricos de violência,

uso de drogas e saúde. Sobre a maternidade na prisão, pesquisas apontam sua grande vulnerabilidade.

Para Braga e Angotti (2015), no período de convivência entre mães e bebês na prisão, há uma

hipermaternidade, dada a permanência ininterrupta com a criança permeada pelo rigor disciplinar. O

afastamento gera a sensação de solidão, além do não exercício de atividades laborais e educativas. As

oficinas realizadas levam à reflexão sobre a necessidade de um olhar acurado sobre o encarceramento

feminino e as possibilidades de intervenção pelo mundo externo.

Palavras-chave: Prisão. Mulheres. Maternidade.

Introdução

Historicamente, a prisão vem desempenhando um papel de isolamento, controle e seletividade

de uma parte da população, como mecanismo punitivo por excelência (FOUCAULT, 1999), permeada

por relações de poder, que não recaem de maneira equânime nos diferentes grupos sociais. A prisão

tem se mostrado incapaz de cumprir um papel preventivo e/ou positivo no retorno à vida em liberdade.

No Brasil, o encarceramento é notadamente seletivo em termos sociais e raciais,

predominantemente em relação às pessoas negras, de regiões periféricas, jovens, sem acesso à justiça e

pobres, como evidenciam os levantamentos oficiais disponíveis (BRASIL, 2014).

Verifica-se um crescimento significativo no número de pessoas presas no país, sobretudo nos

últimos dez anos, com destaque para o público feminino. De acordo com os dados do Departamento

Penitenciário Nacional (DEPEN), de dezembro de 2014, publicados no Relatório do Levantamento de

Informações Penitenciárias (INFOPEN), o país ultrapassou a marca de 622 mil pessoas presas, sem

considerar os presos domiciliares, “chegando a uma taxa de mais de 300 presos para cada 100 mil

habitantes, enquanto a taxa mundial de aprisionamento situa-se no patamar de 144 presos por

1 Advogada, mestra em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e doutoranda pela Universidade de São

Paulo (USP). Membro da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB de São Paulo/SP. 2 Advogada, Especialista em Direito de Estado (UNISUL), Peregrina de O Caminho do Canto. Membro da Comissão de

Política Criminal e Penitenciária da OAB de São Paulo/SP.

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100.000 habitantes (conforme dados do ICPS – International Centre for Prison Studies)” (BRASIL,

2014, p. 6). O Relatório afirma, ainda, que o pais apresenta aumento da população prisional em torno

de 7% ao ano, e no caso das mulheres o aumento chega a 10,7%, e situa-se como o quarto país com

maior número de pessoas presas no mundo, atrás de Estados Unidos, China e Rússia.

Dados mais recentes, divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)3 – oriundos de

inspeções nos estabelecimentos penais e informações dos Tribunais de Justiça, revelam um quadro

nacional constituído por 655.591 pessoas – não se especificando a população feminina – em 2.771

estabelecimentos, considerando presos em regime fechado, semiaberto, aberto, provisórios, domiciliar

e, ainda, 3.455 em cumprimento de medidas de segurança. Entretanto, esse encarceramento tem

refletido na redução da violência e criminalidade?

Não há pistas de que o encarceramento desse enorme contingente de pessoas, cuja análise do

perfil aponta para uma maioria jovens (55,07% da população privada de liberdade tem até 29

anos), para uma sobre-representação de negros (61,67%da população presa), e para uma

população com precário acesso à educação (apenas 9,5% concluíram o ensino médio, enquanto

a média nacional fira em torno de 32%) esteja produzindo qualquer resultado positivo na

redução da criminalidade ou na construção de um tecido social coeso e adequado. Basta

registrar que partimos de noventa mil presos no início da década de noventa, e saltamos para

mais de seiscentos mil presos, num intervalo de menos de 25 anos. (BRASIL, 2014, p. 7).

Em se tratando das mulheres, apesar de representar em média 5,8% do total da população

prisional, observa-se um crescimento maior. Dados do Infopen (BRASIL, 2014, p. 39) afirmam que

“em termos absolutos, a população feminina saltou de 12.925 presas em 2005 para 33.793 em 2014”.

Trata-se de uma população marcada pela aplicação da lei de drogas, nº 11.343/2006, no tocante ao

crime de tráfico de drogas e associação para o tráfico, que representa 64% das mulheres encarceradas

(no total de pessoas presas, a média é de 28%) e evidencia a relação entre a criminalização do

comércio de drogas e o crescimento do encarceramento feminino.

No ano de 2014, também foi publicado pelo Ministério da Justiça um levantamento que buscou

identificar o perfil das mulheres presas no país, denominado “Infopen Mulheres”, que é considerado

um avanço, se considerarmos a falta de atenção estrutural e sistêmica às mulheres presas. Porém, o

documento não traz dados relativos às mulheres transexuais e às mulheres presas em unidades de

segurança pública, como carceragens, além de gestantes e lactantes.

Segundo os últimos dados de junho de 2014, o Brasil conta com uma população de 579.781

pessoas custodiadas no Sistema Penitenciário, sendo 37.380 mulheres e 542.401 homens. No

período de 2000 a 2014 o aumento da população feminina foi de 567,4%, enquanto a média de

crescimento masculino, no mesmo período, foi de 220,20%, refletindo, assim, a curva

ascendente do encarceramento em massa de mulheres. Em geral, as mulheres em submetidas

ao cárcere são jovens, têm filhos, são as responsáveis pela provisão do sustento familiar,

possuem baixa escolaridade, são oriundas de extratos sociais desfavorecidos economicamente e

3 Fonte: http://www.cnj.jus.br/inspecao_penal/mapa.php Acesso em 24 mai 2017.

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exerciam atividades de trabalho informal em período anterior ao aprisionamento. Em torno de

68% dessas mulheres possuem vinculação penal por envolvimento com o tráfico de drogas não

relacionado às maiores redes de organizações criminosas. A maioria dessas mulheres ocupa

uma posição coadjuvante no crime, realizando serviços de transporte de drogas e pequeno

comércio; muitas são usuárias, sendo poucas as que exercem atividades de gerência do tráfico.

(BRASIL, 2014A, p. 5)

No que se refere à infraestrutura de unidades prisionais que custodiam mulheres, o Infopen

Mulheres (BRASIL, 2014A) mostra que 34% dos estabelecimentos dispõe de cela ou dormitório

adequado para gestantes. Em relação à existência de berçário ou centro de referência materno infantil,

32% das unidades femininas dispunham do espaço, no momento do levantamento.

Sobre a análise acerca do encarceramento feminino, Davis e Dent (2003) apontam a

necessidade de cautela, para além dos dados quantitativos, pois se pode privilegiar questões que podem

ser consideradas clichês e reproduzir discursos acríticos, que não enxergam as mulheres presas como

sujeitos de direitos ou suas demandas mais específicas.

Qualquer estudo convencional das ciências sociais: sobre mulheres prisioneiras vai lhe

apresentar uma prisioneira típica – geralmente caracterizada como ‘mãe’, com um nível de

escolaridade relativamente baixo e que é também viciada em drogas. Nós sabemos que, quando

vamos a prisões femininas em um país europeu, descobrimos – como no caso das masculinas –

um número bastante desproporcional de mulheres imigrantes, cidadãs ilegais, africanas,

asiáticas e latinas. (DAVIS; DENT, 2003, p. 528)

De acordo com os dados do Infopen e, ainda, com informações anteriores de relatório da

Organização dos Estados Americanos4, o perfil da mulher presa é, em geral, de jovens, com filhos,

baixa escolaridade e trabalhadoras informais, antes do aprisionamento.

Se eu fosse tentar sintetizar as minhas impressões das visitas às prisões ao redor do mundo, e

na sua maioria foram visitas a prisões femininas, incluindo três penitenciárias que visitei

involuntariamente, teria de dizer que elas são sinistramente parecidas. Sempre me senti como

se estivesse no mesmo lugar. Não importa o quão longe eu viajasse através do tempo e do

espaço - de 1970 a 2000, e da Casa de Detenção Feminina em Nova Iorque (onde eu mesma

estive presa) até a prisão feminina em Brasília, Brasil -, não importa a distância, existe uma

estranha similaridade nas prisões em geral, e especialmente nas prisões femininas. Essa

mesmice das prisões femininas precisa ser avaliada com relação ao quanto é importante para os

feminismos desvencilharem-se da noção de que há uma qualidade universal que podemos

chamar de mulher. Isso me faz pensar no seu trabalho sobre o desafio de repensarmos as

fronteiras entre as ciências sociais e as humanidades, como um meio de reflexão específica

sobre as mulheres nas prisões. (DAVIS; DENT, 2003, p. 527)

Nesse sentido, uma análise dos números deve estar aliada a aspectos qualitativas, que sejam

capazes de identificar recorrências no perfil das presas, em diálogo com marcadores sociais de

diferenças, como raça, classe e orientação sexual, por exemplo, vez que as prisões apresentam

4 Fonte: CENTRO PELA JUSTIÇA E PELO DIREITO INTERNACIONAL - CEJIL et al. Relatório sobre mulheres

encarceradas no Brasil. Brasília, 2007. Disponível em: Disponível em: http://carceraria.org.br/wp-

content/uploads/2013/02/Relato%CC%81rio-para-OEA-sobre-Mulheres-Encarceradas-no-Brasil-2007.pdf Acesso em 20

mai 2017.

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peculiaridades no tocante ao controle e às privações, mas também reproduzem as relações sociais mais

gerais e de poder, dentre elas, a opressão de classes sociais, o machismo e o sexismo.

No caso das mulheres gestantes ou que convivem com os filhos (principalmente bebês) por um

período no cárcere, há que se considerar suas peculiaridades. Ainda que normativas garantam direitos a

essa população, como a Lei de Execução Penal nº 7.210/1984, a “Política Nacional de Mulheres em

situação de privação de liberdade e egressas do Sistema Prisional”5 e as Regras de Bangkok – Regras

das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade6,

estudo aponta que o exercício da maternidade em prisão não tem sido realizado com as garantias dos

direitos vigentes, sendo necessária a adoção de políticas de desencarceramento e convivência familiar

(BRAGA; ANGOTTI, 2015). Ademais, o estudo indica reflexão sobre o paradoxo de hiper e

hipomaternidade no espaço prisional, uma vez que

as mulheres passam 24 horas por dia com seus bebês e, quando há a separação, se dá de

maneira radical, havendo uma ruptura brusca da relação. Assim, durante o período de

convivência entre mães e bebês na unidade prisional, estas exercem uma hipermaternidade,

estando, como mencionado, impossibilitadas de frequentarem atividades e trabalharem.

Quando a convivência é interrompida e a criança é retirada do convívio materno (entregue para

a família ou encaminhada para o abrigo), ocorre a transição da hiper para a hipomaternidade,

que é o rompimento imediato do vínculo, sem transição e período de adaptação. (BRAGA,

ANGOTTI, 2015, p. 65)

Diante desse cenário, descreveremos projeto que inclui oficinas realizadas com mulheres

privadas de liberdade em duas unidades prisionais paulistas: Centro de Progressão Penitenciária

Feminino do Butantã e Penitenciária Feminina da Capital, no período de 2014 a 2017. As oficinas são

possibilitadas com iniciativa da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos

Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo7, em parceria com o Poder Executivo – Secretaria de

Administração Penitenciária (SAP), por meio do trabalho de voluntárias.

Assim, o relato de experiência que constitui este trabalho, ainda que esteja descrito a partir de

olhares e subjetividades das autoras, tem como panorama a compreensão dos indicadores e condições

sobre o encarceramento de mulheres no sistema prisional brasileiro, numa perspectiva crítica, que

entende a necessidade de debater políticas de desencarceramento, alternativas penais e novas formas

de responsabilização penal, que não priorizem o cárcere e, no limite, o fim das prisões como estrutura

produtora e reprodutora de violências.

5 Instituída pela portaria Interministerial nº 210 de 16 de Janeiro de 2014. Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-

direitos/politica-penal/politicas-2/mulheres-1 Acesso em 10 mai 2017. 6 Sobre as Regras de Bangkok:

http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/a858777191da58180724ad5caafa6086.pdf Acesso em 20 mai 2017. 7 Para mais informações, acessar: http://www.oabsp.org.br/comissoes2010/criminal-penitenciaria

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No entanto, tendo em vista as condições em que se encontram as mulheres já encarceradas, que

apresentam peculiaridades e demandas próprias, como saúde e maternidade, entendemos que, de

imediato, é preciso buscar a efetivação de seus direitos, isto é, pautar-se na perspectiva de garantia de

direitos e buscar minimizar os efeitos do aprisionamento sobre seus corpos e vidas.

1. Sobre o projeto e as oficinas realizadas com mulheres encarceradas em São Paulo

No escopo da atuação da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB de São Paulo,

tem sido desenvolvido, desde 2014, o projeto denominado “Ser livre é arte”8. O projeto foi iniciado no

Centro de Progressão Penitenciária Feminino do Butantã9, em 2014, migrando para a Penitenciária

Feminina da Capital10, em 2016, na ala materno-infantil, visando priorizar mulheres-mães presas, com

seus bebês, que, em geral, não tem acesso a atividades escolares e laborais, por exemplo.

A metodologia geral consiste em realização de oficinas por profissionais facilitadoras

voluntárias, com duração de duas horas, cujo objetivo principal é proporcionar um espaço de expressão

às mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade, por meio da prática de atividades

artísticas, corporais e terapêuticas, objetivando, além de contribuir para redução dos efeitos do

aprisionamento, fomentar mecanismos de interação entre o cárcere e a sociedade civil.

Cada oficina tem sua especificidade metodológica e objetivos, mas todas estão fundamentadas

em valores humanos universais, como paz, verdade, amor, retidão e não-violência, são realizadas uma

vez por mês, com aprovação e apoio da direção da unidade prisional, registro de comparecimento,

elaboração de relatórios periódicos por parte das voluntárias e participação por adesão/interessee por

parte das mulheres presas.

Ademais, a presença dos bebês, entre zero e seis meses (em média) é constante na realização

das oficinas, junto a suas mães. A dinâmica das oficinas, em que participam cerca de 20 mulheres

presas por encontro, conta com a escuta ativa das voluntárias, no sentido de acolher suas demandas e

sugestões.

A escolha das linguagens artísticas e de expressão corporal, como meditação, música, dança,

yoga, canto e diálogo, visa contribuir no sentido de mitigar a alienação social e recuperar experiências

8 Notícias publicadas sobre o Projeto: http://www.sap.sp.gov.br/noticias/not578.html e

http://www.oabsp.org.br/noticias/2017/01/iniciativas-da-oab-sp-colabora-para-aliviar-a-tensao-no-sistema-

penitenciario.11487 9 Sobre a unidade, apenas para uma caracterização geral, dados disponíveis no portal da Secretaria de Administração

Penitenciária de São Paulo (SAP)9, informam que o CPP, inaugurado em 1990, voltado ao cumprimento do regime

semiaberto, tem a capacidade para atender 1028 mulheres, abrigando a população de 989. Fonte:

http://www.sap.sp.gov.br/uni-prisionais-fem/cpp.html# Acesso em 24 mai 2017. 10 Sobre a unidade, apenas para uma caracterização geral, dados disponíveis no portal da Secretaria de Administração

Penitenciária de São Paulo (SAP), informam que a PFC, inaugurada em 1973 e localizada na região do Carandiru em São

Paulo/SP, apresenta a capacidade para 604 mulheres presas em regime fechado, e a população de 600. Fonte:

http://www.sap.sp.gov.br/uni-prisionais-fem/pen.html# Acesso em 24 mai 2017.

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emocionais reprimidas em decorrência do processo de prisionização, ofertando mecanismos de

reflexão e reintegração social às mulheres presas através de experiências com as quais não tiveram

oportunidade de contato anterior ou deixaram de ter após a prisão, integrando-as com profissionais da

área de dança, canto, música, psicologia e expressão corporal, dentre outras.

Desde 2016, em articulação com o Poder Judiciário, a Comissão tem buscado aliar as oficinas,

que tem premente caráter pedagógico, com a possibilidade de remição de pena, de acordo com o que

prevê a Recomendação do CNJ nº 44/201311, que “dispõe sobre atividades educacionais

complementares para fins de remição da pena pelo estudo e estabelece critérios para a admissão pela

leitura”. A ideia é que, a partir dos registros de comparecimento e relatórios, possam ser emitidas

declarações de horas de oficinas para fins de remição de pena. Entretanto, requer uma ação em âmbito

do Judiciário e que, por ter sua discussão iniciada em meados de 2016, está em acompanhamento.

Portanto, a construção das oficinas, em geral, passou por discussão, no âmbito da Comissão,

sobre a participação de cada voluntária, a carga horária de cada oficina (duas horas), os procedimentos

de segurança das unidades, o planejamento e definição de objetivos, alinhados ao objetivo principal do

projeto e a necessidade de registros sobre o desenvolvimento de cada oficina. Ainda, é evidente a

importância da parceria com a SAP e com a gestão de cada unidade prisional, na elaboração conjunta

de acordos, cronogramas e na definição de responsabilidades para a realização do projeto.

Atualmente, as oficinas realizadas são assim denominadas: 1) “Meditação e autoconhecimento”

(oficinas sistemáticas vivenciais que consideram a meditação uma ferramenta importante para

despertar a auto-observação, fortalecer a estrutura emocional para uma boa relação no cárcere e pós

cárcere); 2) “Musicando” (encontro de pessoas com interesse em Música, para vivenciarem com o

grupo, atividades corporais e de sensibilização); 3) “O Caminho do Canto” (convida à liberação e

harmonização da energia pelo canto, revelando nossa singularidade impressa na voz e, “com-fios”,

expressa no mundo); 4) “Pérolas por Elas” (proposta de experimentarmos a ampliação da consciência

de nossa competência relacional intra/intersubjetiva e sistêmica, resgatando a potência do diálogo e o

poder da empatia); 5) “Yoga” (exercícios da yoga e momentos de meditação); 6) “Cinema e Prosa”

(rodas de conversa a partir da exibição de filmes, documentários e curtas metragem, escolhidos pelo

interesse das presas. Proporciona o aprofundamento de temas e desperta, através da reflexão e do

diálogo, um raciocínio crítico e uma atuação cidadã); 7) “Conselho das anciãs das 13 luas” (com a

intenção de manifestar os princípios do Profundo Feminino na transformação planetária, e encontrar o

equilíbrio interno diante da vida, traz a essência original da mulher).

11 Fonte: http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=1235

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1.1 Oficina “O Caminho do Canto” – a partir de 2014

A oficina, realizada desde 2014, nas duas unidades prisionais citadas, denominada “O Caminho

do Canto”, linguagem de pesquisa vocal criada pela musicista Andrea Drigo12 e que tem por finalidade

expandir os canais de comunicação e criar novas aberturas expressivas por onde essa voz fundamental

possa deslizar e dançar entre as camadas, ressoar, fluir, a partir da pergunta geradora “Quem canta em

mim?”.

Utilizaremos este relato como exemplo, no contexto geral do projeto – visto que cada oficina

possui sua peculiaridade, mas todas seguem uma orientação geral, pautada nos valores humanos

citados – a fim de apresentar as principais questões desafiadoras e qualificadoras deste trabalho.

Em relação à oficina “O Caminho do Canto”, seu objetivo é propiciar um curso livre de

investigação vocal, por meio da palavra, do som, sentido e movimento do fluxo do canto, a partir da

voz de cada indivíduo, que o define e singulariza, mas é infinito em suas possibilidades de expressão.

Temos uma ferramenta para trabalhar as frequências, o corpo-diapasão, uma linguagem, uma

técnica de voz com a qual sejamos capazes de manter uma vibração com as frequências/ressonâncias,

no sentido das leis acústicas, tornando-nos disponíveis para captar frequências mais elevadas de

atitudes e de pensamentos, especialmente, sobre nós mesmos. Treinar, ter um corpo potente para

suportar os atravessamentos que existirão, sempre aprendendo a manter o corpo vibrátil com mais

“afins-na-ação”, “a-fina-ação” e a afinação com a vida, com a existência.

O desejo de dividir esse trabalho, como voluntária mediadora da oficina, partiu da própria

experiência da coautora deste relato, vez que encontrou na arte a maior expressão de liberdade já

experimentada. Afinal, então, o que é ser livre? Sabe-se muito pouco sobre isso, mas podemos sentir

que as pistas cantadas pelo desejo de “com-partilhar” a busca eram um caminho possível.

Dentre as inspirações para a construção da oficina, o contato com o trabalho de Mônica Jurado,

idealizadora da Meditação com Tambores13, atualmente denominado Tambores Flow que, durante sete

anos, conduziu meditações na Penitenciária Feminina da Capital. Ademais, estudos sobre a cultura de

paz foram determinantes, no caminho do aprendizado artesanal. A partir da companhia e apoio de

outros pesquisadores, celebramos que algumas mulheres-mães e seus bebês, que vivem, atualmente, na

Penitenciária, possam estar engajados conosco no caminho da não-violência14.

Sobre o processo de realização da oficina, desde a chegada na primeira unidade prisional, em

2014, até o presente momento, marca a lembrança do caminho longo até a unidade, situada à beira de

12 Fonte: https://ocaminhodocanto.com.br/ Acesso em 30 jun 2017. 13 Sobre a Meditação com Tambores, ver: https://www.facebook.com/TamboresFlowporMonicaJurado2016/Acesso em 30

jun 2017. 14 Dentre as inspirações no tema da comunicação não-violenta uma das fontes é o cientista social inglês, radicado no Brasil,

Dominic Barter. Sobre seu trabalho, ver: https://www.facebook.com/dominicbarter42/ Acesso em 30 jun 2017.

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uma Rodovia, a primeira revista e o som dos portões e cadeados se fechando. A lembrança positiva das

mulheres chegando para participar da oficina, cada uma a seu tempo, com seu modo de andar, dizer ou

não “bom dia”. O piso do palco era de madeira e então, podíamos ficar descalças, nossos sapatos

alinhados nos três degraus desenhavam, como numa partitura, pequenas composições.

Nos primeiros encontros, o compartilhamento sobre qual era a proposta do trabalho, com a

apresentação sobre “O Caminho do Canto” e o levantamento de expectativas, incluindo aquecimento

corporal, meditação, chamamento dos ossos – caixa de ressonância e cantoria, com apresentação dos

conceitos da linguagem: corpo diapasão (de passagem) entre o céu e a terra, regiões de ressonância,

som/sonoridade, “con-fios”.

A experiência com as mulheres estrangeiras, também presentes nesses espaços de privação de

liberdade, fez-se sempre muito forte, porque traziam, dentre outras questões, músicas de suas terras,

normalmente pintadas com cores fortes – é alegre a lembrança das suas vozes chegando até a pele e

“co-criando” espaço de liberdade!

Dentre os desafios enfrentados, na consecução da oficina, podemos citar algumas questões

administrativo-burocráticas, que, em geral, fazem parte da instituição prisão, tais como a organização

do espaço físico – não raro utilizado para outras atividades e serviços, e o tempo destinado a cada

oficina – considerando a necessidade de duas horas por oficina e um tempo a mais para a realização

dos procedimentos para entrada e revista. Além disso, a adesão das presas, como pressuposto, e a

rotatividade das participantes, pela própria dinâmica de cumprimento de regimes de pena, requer um

“recomeço” e nova apresentação a cada oficina, o que é realizado, preferencialmente, com o apoio e a

colaboração daquelas mulheres que permanecem participando.

De todo modo, a realização da oficina citada, possibilitou, a nosso ver, o contato com uma

linguagem inovadora, para boa parte das mulheres participantes, atendeu à mediadora quanto ao senso

de pertencimento, busca de sentido, experiência concreta sobre a qual possa ser viável refletir,

investigar e compartilhar.

Consideramos importante citar que, em novembro de 2014, a referida Comissão da OAB

realizou o seminário “Mulheres encarceradas”15, em São Paulo, em que foram apresentadas

experiências desse projeto, contando com a exposição das voluntárias, além da participação de

egressas, dentre as quais uma idealizadora do Sarau Portas Abertas16 e representantes do Poder

Executivo, resultando em um compartilhamento local da ação.

15 Notícia sobre o evento em: http://carceraria.org.br/oab-sp-realiza-seminario-mulheres-encarceradas-no-dia-1.html 16 Para mais informações, acesse: https://www.facebook.com/search/top/?q=SARAU%20PORTAS%20ABERTAS Acesso

em 06 jul 2017.

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1.2 Oficina na ala materno-infantil na Penitenciária Feminina da Capital (PFC)

Retomando a proposta das oficinas, que nos convida a assumir uma posição utópica perante o

mundo, o projeto passou a ser realizado, em 2016, na ala materno-infantil da PFC. Agregou-se, a partir

de meados de 2016, a proposta de utilização das horas das oficinas ao estatuto da remição de pena por

atividades educativas, como citado, em diálogo com o Judiciário, considerando que às mães presas

cabe o cuidado, praticamente exclusivo, com os bebês.

Apresenta-se, assim, um novo desafio: mediar oficinas no contexto da maternagem no

encarceramento, com todas as questões que possam surgir daí, paralelamente aos desafios já

identificados, como a rotatividade da população – acentuada, neste caso, em que a ala materno-infantil

é um espaço e tempo de transição/passagem, vez que os bebês permanecem, em geral, até completar

seis meses de vida (seguindo para cuidados da família ou acolhimento institucional, quando a mãe

ainda deve permanecer em cumprimento de pena de prisão).

Quais as condições de construção do lugar de mãe para um bebê, em sua imbricação com o laço

social?17 Como planejar e realizar oficinas em um espaço que reflete a ideia de hiper e, ao mesmo

tempo, iminente hipomaternidade? O fortalecimento da individualidade de cada participante e a

utilização de linguagens diversas, pautadas em valores humanos, tem sido o caminho escolhido.

Nesse passo do projeto, a chegada de novas voluntárias ampliou as possibilidades de

linguagens, como a oficina “Cinema e prosa”. Cada oficina, desenvolvida na ala materno-infantil da

PFC, permanece com periodicidade mensal, pelo período de duas horas consecutivas. Em cada

semana, é possível que duas oficinas ocorram, em dias e horários diferentes durante a semana.

Nesse contexto, segue a realização da oficina “O Caminho do Canto”, com aquecimento

corporal, meditação, exercícios técnicos, vocalizes e ativação das regiões de ressonância em respeito.

No grupo, que sinalizou a preferência por dançar, o trabalho corporal é bastante intenso.

Assim, partindo do princípio de que cantamos com todo nosso instrumento (corpo), fluímos

nesse sentido, inclusive por meio da percussão e da dança. Cantamos em roda, com um no centro e a

borda dando sustentação ao trabalho. Consideramos que, em geral, os objetivos são alcançados, com

retorno de prazer e ampliação da consciência corporal e vocal e, de nossa parte, ânimo para

continuidade e aprofundamento do estudo.

Com base nos valores humanos universais, apontados como fio condutor para o nosso trabalho,

fizemos uma escolha que privilegia a cultura da não-violência (ou firmeza constante). Assim, a

17 A esse respeito, a obra: IACONELLI, Vera. Mal-estar na maternidade: do infanticidio a funçao materna. São Paulo:

Annablube Editora, 2016.

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proposta foi de construção de um caminho conjunto, partindo da pergunta “De onde somos e qual a

nossa vivência/memória musical até os 12 anos?”.

Essa pergunta disparadora proporcionou uma linda dinâmica, na qual cada uma, com ou sem

bebê no colo, pôde se apresentar, espontaneamente, a seu tempo e modo, cantando suas memórias. Os

conceitos foram se apresentando organicamente na fala das participantes-peregrinas, bem assim nas

intervenções que faziam nas falas umas das outras. Aos poucos, foi sendo lançada luz sobre cada um

deles, com pontuações como: “olha, tá vendo...? Isso é a borda!”, na mediação da oficina.

Logo, pudemos identificar, minimamente, as coordenadas sonoras, nosso território musical,

revelando como principais influências o Samba, o Caipira/Sertanejo, a Música Regional de

Pernambuco e do Ceará. Assim, sendo esta nossa bússola sonora, decidimos que esse pode ser um

Caminho interessante, explorar aquilo que nos pertence e que é imediatamente convocado pela

pergunta de O Caminho do Canto – Quem canta em mim?

Por fim, foram deixadas perguntas, com o objetivo de abordar, no próximo encontro, os valores

relativos à verdade (auto-análise, autoconhecimento, busca interior, busca do conhecimento, intuição),

à retidão (autoconfiança, coragem, criatividade, disciplina, respeito, responsabilidade) e à paz

(autocontrole, autodisciplina, autoestima, constância, contemplação, silêncio interior).

Com a chegada de novas peregrinas na oficina, lançamos a pergunta “alguém, entre nós, está

disposta a contar, para quem não esteve no primeiro encontro, a que estamos nos propondo, ou seja, o

que estamos trabalhando?”. Esta pergunta está diretamente relacionada com a proposta de exercitarmos

o diálogo e os valores anteriormente citados, além do amor (afeto, compartilhamento, generosidade,

gentileza, harmonia, unidade) e da não-violência (consideração, cooperação, gentileza, aceitação do

outro, participação).

Uma de nós iniciou a fala e outras, três ou quatro, apoiaram, acrescentando informações e

contando de suas experiências pessoais vividas no primeiro encontro, com direito a canto espontâneo e

solo, seguido do trabalho de grupo, com aquecimento corporal. Realiza-se, assim, o exercício da

colaboração entre as participantes e o estímulo à autonomia e reflexão sobre o trabalho realizado.

A partir de instrumentos musicais no centro da roda (pequena caixa do Divino, pandeiro,

caxixi, maracá, matracas, tamancos, mini xequerê), abordamos o nosso coração-tambor, o som

primordial que ouvíamos no ventre de nossas mães. Trabalhamos o pulso e o ritmo, em grupos,

alternando os lados, o andamento e as pausas.

Tão logo o ritmo tenha se estabelecido unimos o canto às batidas. Cantamos samba - parte do

nosso território musical, revelado no primeiro encontro - Clementina de Jesus, oportunidade em

lembramos a importância histórica dessa mulher, neta de escravos, empregada doméstica por mais de

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20 anos, grande artista, descoberta aos mais de sessenta anos! Privilegiando o respeito pelas diferentes

raças, culturas e religiões. Por fim, nos despedimos com uma palavra que pudesse dizer como

estávamos nos sentindo ao final da oficina: “alegre, feliz, livre, contente!”.

Considerações finais

Diante do encarceramento em massa, da prisão como punição e do evidente crescimento da

população de mulheres presas no país, pensando especificamente nas vulnerabilidades das mães

presas, nos questionamos o que pode ser feito, para além de buscar, no horizonte, o

desencarceramento. É possível agir, intervir, de alguma maneira, de modo imediato?

A realização de oficinas, como a relatada, pode contribuir para um giro nesse discurso a fim de

que a mãe possa se reconhecer como sujeito, desejante, apesar da privação de liberdade e de todas as

consequências desse momento? O que seria alcançar o estado de “serem-para-si-mesmas”,

constituindo o “possível não vivido” (FREIRE, 2016) para as mulheres presas e para os seus filhos?

Entendemos que o processo de relacionar-se em diálogo, proposto nas oficinas, cada qual com

sua linguagem, pode contribuir nesse processo, na minimização dos efeitos da transição da hiper para

hipomaternidade, considerando-se toda a complexidade que envolve o momento da chegada e saída

dos bebês dos cuidados da mãe privada de liberdade.

De todo modo, a reflexão permanente sobre as reais impactantes desse trabalho, de modo

crítico e vivo, pois entendemos que há uma questão estrutural e estruturante nas/das prisões e das

pessoas que nelas habitam. Nosso repertório, nosso desejo de aprender a nos libertar, junto, pode

contribuir para que possam ler e nomear o mundo? Por isso, contamos para partilhar, para sermos

ouvidas e refletidas, para contar com mulheres que contam – fazem história!

Referências

BRAGA, Ana Gabriela Mendes; ANGOTTI, Bruna. Dar à luz na sombra: condições atuais e

possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. Brasília:

Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos; Ipea, 2015. Disponível em:

http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2016/02/PoD_51_Ana-Gabriela_web-1.pdf Acesso em

17 mai 2017.

BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de

Informações Penitenciárias – Infopen – Dezembro 2014. Brasília: DEPEN, 2014. Disponível em:

http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/documentos/infopen_dez14.pdf Acesso em 20

mai 2017.

______. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen Mulheres – Junho de

2014. Brasília: DEPEN, 2014A. Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-

da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf Acesso em 21 mai

2017.

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CENTRO PELA JUSTIÇA E PELO DIREITO INTERNACIONAL - CEJIL et al. Relatório sobre

mulheres encarceradas no Brasil. Brasília, 2007. Disponível em: Disponível em:

http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2013/02/Relato%CC%81rio-para-OEA-sobre-Mulheres-

Encarceradas-no-Brasil-2007.pdf Acesso em 20 mai 2017.

DAVIS, Angela; DENT, Gina. A prisão como fronteira: uma conversa sobre gênero, globalização e

punição. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 11, n. 2, 2003. Disponível em: Disponível em:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-

026X2003000200011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt Acesso em: 22 mai 2017.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1999.

FREIRE, Paulo. Conscientização. São Paulo: Cortez, 2016.

Experience report - workshops with women prisoners in são paulo: art and hypermaternity in

prison

Abstract: This paper presents an experience report on workshops held at the Butanta Women's

Penitentiary and at the Women's Penitentiary of the Capital, in São Paulo, in the maternal and child

ward, a placewhere female prisoners and their babies can socialize. The workshops were held by

volunteers who developed a project with the Criminal and Penitentiary Policy Commission of the OAB

of São Paulo State. The purpose of the workshops is to provide an environment of free expression in

which they can interact and, in some way, relativize the effects of the deprivation of liberty of women

and Phenomenon of hypermaternity experienced in prison, through musicalization, films, singing,

dialogue, meditation and yoga. The National Survey of Penitentiary Information (2014), in the period

from 2000 to 2014, the increase in the female population was 567.4%, while the average male growth

was 220.20%. Davis and Dent (2003) provide reflections on male and female prisons, revealing the

gender structures present in prisons. The arrested woman has needs that tend to be aggravated by

histories of violence, drug use, as well as health and gender issues. Regarding maternity in prison,

researches show that every maternity in prisons is vulnerable. According to Braga and Angotti (2015),

in the period of coexistence between mothers and babies in prison, they expirence hypermaternity,

given to the uninterrupted permanence with the child, permeated by disciplinary rigor. The withdrawal

from prison routine generates the feeling of loneliness, which leads to the sensation of being more

confined. This situation is even worse once they do not have labor and educational activities. The

workshops studied in this report lead to the reflection on the need for an accurate look at female

imprisonment and the possibilities of intervention by the external world.

Keywords: Prison. Women. Maternity.