“relações teoria-prática” em administração o que desaparece nesse “buraco negro”_mattos

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1 “Relações Teoria-Prática” em Administração: o que Desaparece nesse “Buraco Negro” Autoria: Pedro Lincoln C. L. de Mattos Resumo O tópico deste ensaio, “Relações teoria-prática”, uma das propostas de pesquisa e produção acadêmica da Divisão de Ensino e Pesquisa (Tema 1), da ANPAD, aqui significa: a “teoria” – o termo abrangendo, de fato, vários gêneros diferentes de ação discursiva referentes ao mundo organizacional – se pensa perante a “prática”, uma situação de ação não-discursiva, sob estímulo ou inspiração desta (a prática), que é o centro de gravidade em tal relação. Dessa forma, o que está implicado na proposição do tema a uma comunidade de pesquisadores é uma relação teoria – prática – teoria. Mas a repetição estereotipada e eivada de mal- entendidos da expressão “relações teoria-prática” (no título, propositalmente entre aspas) distorce, desvia e absorve, como um “buraco negro” no espaço infinito das discussões acadêmicas, muitos problemas cruciais para a administração, escondendo, além disso, uma energia enorme que da questão poderia advir para a caracterização da área. Definindo-lhe novo contexto, o ensaio busca: a) esclarecimento para esse binômio insidioso; b) estimular trabalhos sobre temas que aí aparecem confundidos ou polarizados – estes são seus objetivos. Ele se apóia na filosofia da linguagem que rejeita uma espécie de “literalidade plena” na representação do mundo e traz diretamente para a questão uma compreensão pragmática (ou seja, presa ao ponto de visa da ação) do ato de fala, inclusive os discursos teóricos. Esta concepção é também suficientemente ampla para permitir qualificar diversos outros gêneros discursivos, entre eles textos técnicos, mantendo-os na discussão do problema, e alcançar o próprio tecido social da vida nas organizações onde surgem. Por isso mesmo, a prática não é aqui entendida como uma espécie de “oposto” da teoria (“fazer” por oposição a “pensar”, os que fazem a organização e a administração, por oposição aos que apenas ensinam e escrevem sobre isso), nem apenas como seu campo de esperada aplicação. A situação prática é autônoma e plena de saberes. Isso é desafiante para a teoria, os que com ela trabalham, porque põe em questão sua validade, geralmente concebida dentro de um paradigma de representatividade potencialmente adequada da linguagem em relação ao mundo, no caso, o mundo da ação nas organizações. No entanto, o desafio maior da teoria administrativa – que nesse percurso deve reconhecer-se diferente de outras formas discursivas, como a técnica, a formulação de políticas e estratégias e a tecnologia – não é ver-se realizada ou aplicada, mas chegar a reconhecer seu próprio sentido e lugar. Daí poderia resultar também um caminho de reposicionamento de instituições e carreiras na área acadêmica, vis-à-vis os profissionais das organizações e o mundo editorial ou de consultoria que lhes presta serviços diretamente. Ao final, o texto levanta questões de pesquisa, um trabalho que esclareça e enriqueça temas que o binômio “teoria-prática” esconde. Longo trabalho crítico e autocrítico resta para a academia, pois, por bom tempo, aquele dualismo ainda habitará, de uma forma ou de outra, a linguagem de senso comum na administração. A oportunidade deste ensaio Para o XXXIII EnANPAD, em 2009, foi definido como “Tema 1”, da Divisão de Ensino e Pesquisa em Administração e Contabilidade – EPQ, “Relações entre teoria e prática”, sendo que o descritor desse Tema só foi publicado em 2010, como a indicar que a expressão, por si, tinha um significado bem reconhecível. Não foram apresentados, porém, no evento, artigos relativos ao Tema 1. O que teria acontecido? Trata-se de uma expressão

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“Relações Teoria-Prática” em Administração: o que Desaparece nesse “Buraco Negro”

Autoria: Pedro Lincoln C. L. de Mattos

Resumo

O tópico deste ensaio, “Relações teoria-prática”, uma das propostas de pesquisa e produção acadêmica da Divisão de Ensino e Pesquisa (Tema 1), da ANPAD, aqui significa: a “teoria” – o termo abrangendo, de fato, vários gêneros diferentes de ação discursiva referentes ao mundo organizacional – se pensa perante a “prática”, uma situação de ação não-discursiva, sob estímulo ou inspiração desta (a prática), que é o centro de gravidade em tal relação. Dessa forma, o que está implicado na proposição do tema a uma comunidade de pesquisadores é uma relação teoria – prática – teoria. Mas a repetição estereotipada e eivada de mal-entendidos da expressão “relações teoria-prática” (no título, propositalmente entre aspas) distorce, desvia e absorve, como um “buraco negro” no espaço infinito das discussões acadêmicas, muitos problemas cruciais para a administração, escondendo, além disso, uma energia enorme que da questão poderia advir para a caracterização da área. Definindo-lhe novo contexto, o ensaio busca: a) esclarecimento para esse binômio insidioso; b) estimular trabalhos sobre temas que aí aparecem confundidos ou polarizados – estes são seus objetivos. Ele se apóia na filosofia da linguagem que rejeita uma espécie de “literalidade plena” na representação do mundo e traz diretamente para a questão uma compreensão pragmática (ou seja, presa ao ponto de visa da ação) do ato de fala, inclusive os discursos teóricos. Esta concepção é também suficientemente ampla para permitir qualificar diversos outros gêneros discursivos, entre eles textos técnicos, mantendo-os na discussão do problema, e alcançar o próprio tecido social da vida nas organizações onde surgem. Por isso mesmo, a prática não é aqui entendida como uma espécie de “oposto” da teoria (“fazer” por oposição a “pensar”, os que fazem a organização e a administração, por oposição aos que apenas ensinam e escrevem sobre isso), nem apenas como seu campo de esperada aplicação. A situação prática é autônoma e plena de saberes. Isso é desafiante para a teoria, os que com ela trabalham, porque põe em questão sua validade, geralmente concebida dentro de um paradigma de representatividade potencialmente adequada da linguagem em relação ao mundo, no caso, o mundo da ação nas organizações. No entanto, o desafio maior da teoria administrativa – que nesse percurso deve reconhecer-se diferente de outras formas discursivas, como a técnica, a formulação de políticas e estratégias e a tecnologia – não é ver-se realizada ou aplicada, mas chegar a reconhecer seu próprio sentido e lugar. Daí poderia resultar também um caminho de reposicionamento de instituições e carreiras na área acadêmica, vis-à-vis os profissionais das organizações e o mundo editorial ou de consultoria que lhes presta serviços diretamente. Ao final, o texto levanta questões de pesquisa, um trabalho que esclareça e enriqueça temas que o binômio “teoria-prática” esconde. Longo trabalho crítico e autocrítico resta para a academia, pois, por bom tempo, aquele dualismo ainda habitará, de uma forma ou de outra, a linguagem de senso comum na administração. A oportunidade deste ensaio

Para o XXXIII EnANPAD, em 2009, foi definido como “Tema 1”, da Divisão de Ensino e Pesquisa em Administração e Contabilidade – EPQ, “Relações entre teoria e prática”, sendo que o descritor desse Tema só foi publicado em 2010, como a indicar que a expressão, por si, tinha um significado bem reconhecível. Não foram apresentados, porém, no evento, artigos relativos ao Tema 1. O que teria acontecido? Trata-se de uma expressão

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“que cansou”? Teria o tema se esvaziado, como conseqüência do avanço de temas paralelos, que teriam retirado de cena termos problemáticos que o alimentavam? Ou simplesmente ele permanece resistente em seu núcleo e precisa de nova contextualização para estimular a pesquisa? De qualquer forma, ele volta agora para o XXXIV EnANPAD, e este ensaio, escrito especificamente para o simpósio, como oportunidade de exposição de idéias à crítica dos pares, aposta na última daquelas alternativas. Por que a metáfora “buraco negro”?

Dizem as narrativas da astrofísica, que o universo está povoado de pontos de concentração de incrível densidade de massa e tal energia gravitacional que sorvem, como um redemoinho devorador, o que lhe passa próximo, seja um asteróide, uma estrela ou uma constelação. O que se observa é simplesmente o desaparecimento dos corpos que trafegam em certa área (“horizonte de eventos”) cujas bordas internas são o “limite”: não se vêm os buracos negros, pois nem a luz lhes escapa. O fenômeno segue-se à “morte” espetacular de uma estrela (“supernova”, uma explosão imensa de raios gama) e dela resta, após esgotar-se o “combustível” (do hidrogênio até o ferro) da fusão nuclear que equilibrava a força gravitacional e mantinha a estrela “viva”. Supõe-se que a densidade do núcleo dos buracos negros, feita de elétrons, é tal que contém a massa equivalente a 1,5 vezes a do sol em uma “bola” de apenas 10 km de diâmetro!

O que significa dizer aqui que o tema “Relações teoria-prática” é um “buraco negro”? É uma forma de contornar uma discussão, via metáfora, ou de entrar nela? Metáforas não são truques de retórica. São uma forma básica de gerar significados e iniciar análises fecundas, inclusive com largas implicações práticas. Da teoria atômica à biologia celular, em ciência é assim, inclusive na Teoria Organizacional (OSWICK; KENNOY; GRANT, 2002). A analogia é o núcleo central da cognição (HOFSTADETER, 2001). Em administração, a metáfora tem exercido uma função lingüística especialmente importante tanto na literatura de pesquisa acadêmica quanto na de ensino e na de consultoria a organizações (MOURA, 2009). Referir-se a buraco negro para qualificar um tema de discurso naquela área não é apenas uma forma de introduzi-lo, mas de abrir vias de análise. Buraco negro, ele próprio um fenômeno descrito com auxílio de metáfora, é morfema emprestado da astrofísica e pode agregar grande riqueza de significado a um recorrente problema de pesquisa em administração.

Note-se, de entrada, que não se trata apenas daquilo que não é revelado quando se fala de teoria por oposição à prática, em administração, ou seja, o que não aparece no uso ordinário da expressão “relações teoria-prática” (a metáfora astronômica então seria outra: a “face escura da lua”...). A energia misteriosa que devora e seduz a curiosidade perante os buracos negros, aqui pode representar o potencial do tema para a área. Richard Marsden e Barbara Townley assim iniciam o primeiro capítulo do volume II da série Handbook de Estudos Organizacionais: “a relação entre ‘teoria’ e ‘prática’ é, talvez, a questão mais central de todo o Handbook”. (2001, p. 31)

“Relações teoria-prática”, entendido, pelas aspas no título deste artigo, como uma espécie de clichê, é o “buraco negro” onde têm desaparecido: a) a riqueza de significado de “teoria” e de “prática”, estiolada pelo reducionismo, estereotipia e polarização; b) a fecundidade da pesquisa científica, que, posta entre os dois termos, permanece presa aos usos mal diferenciados pelo senso comum para eles; c) as esperanças de uma integração natural entre gestores, pesquisadores e consultores, entre os quais, paradoxalmente, teoria e prática têm promovido uma “separação artificial e desnecessária” (VASCONCELOS, F. C.; VASCONCELOS, I. F. G., 2004, p. xx).

A força do efeito absorvedor se mostra, antes de tudo, ao condicionar, dualisticamente, o vetor da análise. Mas, na ótica deste ensaio, o “buraco negro” de significação já não

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acontece por uma “falsa oposição”, que muitos autores se esforçariam desesperadamente por negar ou superar; o problema já não é de relação inadequada (a de oposição, seja de conceitos, seja de situações sociais ou de discursos), criada – segundo eles – pela quase inserção de um “versus” entre os dois termos. É, segundo aqui se propõe, de ausência de algo no significado de ambos, capaz de transfigurá-lo, e que, nisso mesmo, poderia gerar uma energia enorme para a teorização: o significado pragmático da linguagem.

Tenta-se, como objetivos: a) de modo geral, contribuir com um trabalho de esclarecimento desse binômio fatídico: “relações teoria-prática”. “Esclarecimento” aqui é visto como um trabalho modesto, mas necessário, em que o pesquisador não está na vanguarda teórica da área, mas caminha na retaguarda, retomando eventuais aporias, paradoxos, inconsistências e ambigüidades, deixadas pelas concepções e escritos de outros pesquisadores que avançam suas pesquisas empíricas e ensaios teóricos, produzindo evidências, algumas, porém, inevitavelmente em desarmonia com outras; b) chamar a atenção para temas de fundo, sobretudo o da produção de teoria, recolocando-os em um contexto diferente, o da filosofia pragmática da linguagem, e esperando com isso estimular novos trabalhos sobre eles; c) sugerir algumas pistas para tais trabalhos, permitindo, inclusive, evoluir da atual temática para outros problemas cruciais da área e que, de fato, podem estar sendo sonegados ao enfrentamento, quando a discussão se fecha no binômio teoria-prática. O “buraco negro” começa aqui...

Para que este ensaio não caia, ele próprio, no “buraco negro” da confusão que cerca o assunto, é indispensável uma referência aos termos e, em seguida, um posicionamento preliminar em relação ao seu significado – que também surgirá das seções seguintes.

Paradoxalmente, “teoria” e “prática” habitam tanto o submundo do que se diz sobre administração quanto os ambientes mais preocupados com a qualidade do que se diz sobre ela. É impossível inventariar-lhes todos os usos, embora a pesquisa empírica deles venha a ser um veio promissor de investigação (MATTOS, 1998). Neste caso, ocorre especialmente a dificuldade de esclarecer um campo de práticas discursivas: procedendo a um trabalho crítico de significados insuficientes ou desorientadores é preciso chegar a outros significados mais defensáveis e articulados, sem deixar de usar os mesmos termos.

No vocabulário de uso mais amplo, nas organizações em geral, mas também nos ambientes empresariais e gerenciais e nos níveis iniciais da formação regular em administração, há uma raiz de significado dualizado para “teoria” e “prática”: dois lados em confronto, dois pólos. “Teoria” (ou “teorização”) é – só ou principalmente – narrativa, interpretação e orientação sistematizadas para situações e contextos de ação, a “prática”. “Teoria” é discurso, “prática” é ação efetiva. É claro que ao longo de toda a escala de complexidade desses significados está presente um juízo de valor, em desconfiança para com o pólo de “teoria” (o “teórico”) e de confiança última no pólo “prática”, onde se dão a “comprovação”, a verificação, os fatos que julgam, afinal, as versões. Este é o contexto de significação mais corrente em que se entende “teoria” e “prática”. Ele é valorativo e, nessa qualidade, pode chegar a extremos (“isso não passa de teoria”, ou seja, palavras vazias, ou “isso é a prática, mesmo”, ou seja, algo real e completo em si).

Mas há, imediatamente, uma segunda linha de outros usos, onde o dualismo não está ausente, nem, agora, limitado ao repertório do senso comum, mas presente à literatura da área: a metonímia em que “teoria” significa aqueles que lidam ordinariamente com a teoria administrativa e organizacional, seus ambientes e instituições, e, “prática”, o correspondente para os que têm atuação ordinária nas organizações. Nessa linha, “teoria” pode valer por academia ou produção tipicamente acadêmica, e, “prática”, pelo mundo de que ela trata. É sintomática, e aponta para estratos mais profundos da dicotomia, a colocação da consultoria

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organizacional do lado da “prática” (por quê, se ela é essencialmente um discurso articulado?).

A elaboração sistemática do saber, na filosofia e nas ciências, consolidou para “teoria” um significado que remete à formalística da linguagem, e que, diferentemente do uso de senso comum, não se define em contexto de polarização com “prática”. Mas, assim como cada disciplina (ou “ciência”) desenvolve sua própria linguagem e estrutura seu método de trabalho, quase consistindo nessas realizações sociais, assim, “teoria” tem significados diferentes no glossário de cada uma, seja, por ex., o pragmatismo de Charles Pearce, a sociologia de Merton ou a psicologia social de Weick. No campo das ciências sociais e da psicologia, que mais alimentam o mainstream da administração, uma “teoria” costuma ser entendida como certo discurso sistemático, estruturado sobre elementos (conceitos), relações, sobretudo causais, contexto ou problema de interesse, bem identificados e justificados por argumentos lógicos ou empíricos. Apropriadamente, também, “teoria” é toda produção que antecede, cerca, desenvolve ou contribui com uma ou várias teorias, pouco importando a natureza metodológica do estudo, se empírico ou não. Nessa concepção, teoria é o produto maior e mais nobre da ciência. Um campo que se pretende científico, como essa nova interface de disciplinas chamada administração, ciência organizacional ou estudos organizacionais, supõe-se sob o desafio de ir além dos simples elementos empíricos e de levantamentos prévios (SUTTON; STAW, 2003, p. 75-79); a “contribuição teórica” é o que leva àquela composição conceitual, ou seja, a pesquisa de desenvolvimento de teoria (WHETTEN, 2003, p. 69-73).

Tal enfoque da teoria como uma peça literária científica, caracterizada pela composição lógica, não parte de oposições ingênuas ou superficiais entre teoria e prática. Mas também não se responsabiliza pelo alheamento da pesquisa em um campo de práticas como a administração, pois não toma a si resolver o enigma persistente que tem produzido tantas respostas insuficientes. Mais, pode até mal-orientar para o formalismo, e então contribuirá indiretamente para o “buraco negro”.

Enfim, cabe esclarecer um significado de (relações de) desencontro “teoria-prática”, extraído de outro contexto, que se imiscui na discussão que envolve os significados acima, confundindo-a mais. É quando alguém se refere à diferença radical entre o que se diz (a linguagem, no caso, teórica) e a situação (real ou “prática”) da qual se diz algo. Dizer que “na prática a teoria é outra” pode ser apenas aludir a uma questão básica de toda a epistemologia, a da correspondência linguagem-mundo, quando se usa uma das funções da linguagem, a representativa. Ora, incluir essa questão entre as relações conflituosas “teoria-prática” é dar um nó adicional ao emaranhado do tema. Na argumentação deste texto, ela surgirá, tomar-se-á posição em relação a ela, mas não será aprofundada. Isso exigiria retomar-se toda uma longa evolução da filosofia ocidental.

Na concepção aqui adotada, o tema “relações teoria-prática” estará falando sempre de situações de ação (de onde, aliás, o “ator” não deve excluir-se): a “teoria” – o termo abrangendo, como se mostrará, vários gêneros diferentes de ação discursiva referente ao mundo organizacional – se pensa perante a prática, uma situação de ação não-discursiva, sob estímulo ou inspiração desta, que é o centro de gravidade em tal relação. Dessa forma, o que está implicado na proposição do tema a uma comunidade de pesquisa, como faz o EnANPAD, é uma relação do tipo teoria – prática – teoria. Como fugir ao reducionismo e à estereotipia da expressão?

A fecundidade do tema para pesquisa é a primeira vítima do “buraco negro” “relações teoria-prática”. O reducionismo ou uso estereotipado dos termos tem efeito esterilizante: não se problematizam significados ambíguos ou se atenta para seu alcance.

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Há um título-padrão na editoração e publicação de livros na área para públicos mais amplos: “[tema]: teoria e prática” – como em: “Administração: teoria e prática no contexto brasileiro” (SOBRAL; PECI, 2008); “Administração Estratégica: teoria e prática” (COSER, et alii); “Auditoria contábil: teoria e prática” (CREPALDI, 2009), etc., há dezenas desses títulos em qualquer grande editora. Tais trabalhos obedecem a uma lógica bem conhecida: primeiro, vem a apresentação sistemática de plano teórico para o tema, ou questões mais amplas; depois, problemas de gestão, de prática profissional, discussão de casos, aspectos pontuais da “aplicação” da teoria. “Prática” é prática e “teoria” é teoria, isso já está claro e aceito pelo senso comum, de que vive o grande público. No entanto, esse influxo de mercado na academia, saudável na necessária comunicação do trabalho acadêmico ao grande público, pode não beneficiar uma investigação mais cuidadosa do que se deve realmente entender por “prática” e por “teoria”, que retorne mais adiante para aquele mesmo público sob a forma de um produto mais resistente à dicotomia que todos sentem ao tentar incorporar a linguagem da “primeira parte” à ação da “segunda parte” da obra.

A distância entre o que se diz e o que (realmente) se faz é experiência de todas as culturas, mergulha na história delas. Sem dúvida, aí se mostra um mistério humano que, ao nível do senso comum, aparece como refratário à explicação. Ora, sobre tal lugar comum autores projetam o binômio “teoria-prática”, que surge então como desafio e paradoxo. Braga e Tonelli (2004, p. 53) dizem que “O paradoxo discurso versus prática gera percepções inconsistentes nos indivíduos, que polarizam a interpretação da realidade ao seu redor entre as dimensões opostas “discurso” e “prática”. Em que pese não ser o binômio “teoria-prática” objeto direto de seu interesse, mas apenas ponto de partida, as autoras acima o reconhecem cenário desse drama humano nas organizações, que é a diferença paradoxal entre o dizer e do fazer.

É assim que a Ciência da Ação, uma teoria e método de intervenção organizacional para a mudança, de Chris Argyris (1970, 1985) e Donald Schön (1983) e de ambos (1978), se depara com o mesmo fenômeno, agora em relação ao processo de aprendizagem, e elabora uma resposta prática, largamente difundida entre profissionais de consultoria. O método se apóia na idéia de “teoria-em-uso” (ARGYRIS; SCHÖN, 1974, p. 6-19), que o praticante tem que aprender reflexivamente a reconhecer em seu comportamento – pois ela tem conseqüências – para confrontar com sua “teoria professada” (ou “esposada”), e realizar a integração que fecundará seu desempenho e desenvolvimento pessoal. Mesmo que em nível da ação individual o conflito real venha a encontrar solução, é difícil não tropeçar na idéia de “teoria-em-uso”, em nível da justificação teórica dessas estratégias de intervenção. Afinal, “em que cabeça” está essa teoria? É muito menos apropriado falar de “teoria” na prática do praticante do que no mundo interpretativo do psicólogo-consultor que a imagina, formula, e desenha instrumentos que, em imprecisos intervalos de probabilidade, a identificarão, eles próprios, nos “comportamentos” (fatos cientificamente observáveis e computáveis). Ao contrário do que dizem os autores (1974, p. 18), aprendizagem não é “theory-building”. Imaginar uma “teoria” (de que seria ela “feita”? De sinapses? De determinismos neuro-lingüísticos?) gerando comportamentos “coerentes” é professar um mecanicismo hoje insustentável para entender a pessoa humana.

Assim, a “teoria-em-uso” não resolve, teoricamente, a dicotomia original “teoria-prática” – e esse é o problema – pois, em nível de prática, diversas soluções já têm funcionado, inclusive as baseadas em crenças religiosas.

Mesmo sem desmontar a armadilha, há dois exemplos em que a ausência da polarização explícita “teoria-prática” permitiu aprofundamentos e soluções práticas: o ensino profissional de administração e a aprendizagem gerencial.

Uma das teorias de aprendizagem gerencial que têm causado impacto nos meios de pesquisa organizacional é o “Ciclo da aprendizagem vivencial”, de Kolb (1984), cujas idéias

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potencializaram as de Mezirow (1991), hoje de larga aceitação prática. A questão que desafiava os pesquisadores – no caso, sobretudo, psicólogos sociais – era explicar convenientemente a aprendizagem pela experiência, dado universal. Trabalhando no contexto da aprendizagem de adultos, Kolb põe o conceito ou idéia como passo necessário entre a experiência e a aprendizagem efetiva, depois de passar pela observação refletida. Poder-se-ia discutir a sustentabilidade dessa generalização e a formalística do processo que parafraseia a lógica da ciência. Mas o ponto específico de interesse para a discussão deste ensaio é: como pode um conceito (algo genericamente entendido) ser diretamente responsável por uma ação situada? São coisas da mesma ordem? O “conceito” é um dado imediato da consciência “observadora”, ou já é, ele próprio, um produto secundário dela, nem sempre ocorrente, apesar da aprendizagem? O “salto” conceito-ação nos lembra inevitavelmente o gap “teoria-prática”...

“O fim das escolas de negócios” (PFEFFER; FONG, 2003) é um dos bons textos que, há quase duas décadas, vêm apontando o impasse a que tem chegado a academia face a recorrente insatisfação dos mercados e de muitos professores com a educação superior em administração (graduação, MBAs e mestrados profissionais). Ruas e Comini (2007) levantam uma boa amostra dessa literatura. Não é que os professores não saibam o que estão fazendo; não é que muitos esforços e progressos não tenham sido feitos, nem que o mercado de profissionais da administração deva ser atendido, como princípio orientador da formação, inclusive porque as empresas não têm a solução; não se duvida do mérito das titulações em si. Têm-se mesmo promissores avanços estratégicos (MINTZBERG; GOSLING, 2003); é possível, sem dúvida, aprender com a experiência, auscultar os tempos e identificar “fatores críticos para o sucesso das escolas de Administração no século XXI” (FRIGA; BETTIS; SULLIVAN, 2004); mas, a identificação desses fatores, por intuição direta da experiência, apenas nos deixa mais confiantes em resultados futuros – alívio que sempre aconteceu no passado. A dificuldade está nas convicções teóricas sobre aquela formação vis-à-vis o ambiente em que viverão os profissionais. A sensação de que algo está faltando e algo está “sobrando”, traz a incômoda suspeita do que estamos todos, de certa forma, tateando no escuro. Todos falam de um gap (RUAS; COMINI, p. 2) – os processos de formação se manteriam distantes das condições de trabalho –, mas não há interpretação satisfatória sobre ele, para recolocar-se com mais segurança as práticas pedagógicas e os currículos escolares, onde hoje toda “teoria” circulante é jogada. Os acadêmicos precisam dizer algo melhor sobre a natureza daquela “distância”. Ela não se situa no plano temático, mas pode ser epistemológica. É possível que a inadequação esteja justamente em uma falsa expectativa sobre o saber teórico, principal componente da formação universitária. Ora, se os avanços estão ocorrendo, sobretudo, na identificação de habilidades e nas estratégias de treinamento profissional, pode estar havendo, inclusive, algo de artificial (embora real) no tal gap: nós o criamos junto com uma concepção de “teoria”... O que haveria no núcleo duro desse “buraco negro” e como chegamos a ele, opondo dessa forma “teoria” e “prática”?

Note-se, em primeiro lugar, que não fomos nós, de administração, que criamos a dicotomia. Mesmo sem pretender fazer aqui sua arqueologia, bastará situá-la a partir do senso comum da nossa civilização ocidental, de onde, certamente, foi absorvido pelo senso comum de uma área de prática como a nossa. A pretensão científica da administração, que nos chegou em pleno ocaso da modernidade (MARDSEN; TOWNLEY, 2001, p. 33), só fez reforçar a tendência.

Com acerto, Bertero (2004, p. 367-369) procura na cultura clássica grega a origem das dicotomias conhecer e fazer, saber e atuar (ética ou politicamente), teoria e prática. É sabido

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que os gregos cultuaram a linguagem discursiva, a retórica e as discussões públicas. Entre os séculos V e IV a. C., onde situamos o apogeu daquela cultura, houve, por séculos, uma grande polêmica entre homens letrados, uns pondo em dúvida e relativizando a segurança das conclusões da razão lógica, e, outros, defendendo a possibilidade de certeza dessa prática discursiva. Lá se originou a filosofia e o saber erudito de nossa civilização, consolidado por milênios (SANTOS, 2004). Parmênides, Platão (inclusive Sócrates) e o próprio Aristóteles, ao escreverem intensamente contra grandes filósofos, profundamente humanos e de senso prático que a tradição anatematizou e chamou de “sofistas”, foram, de fato, campeões de uma cruzada de valores. Aqueles nossos “pais” sempre estiveram deslumbrados com o poder da razão lógica no relacionamento social e no conflito. No manejo lógico dos conceitos, ou seja, na linguagem discursiva e nas proposições denotativas (que descrevem o que as coisas são por suas próprias qualidades) estava o grande valor do homem. O prático, o concreto, padece da imperfeição congênita de “não ser”, porque está no fluxo da mudança, é instável e não incorpora a qualidade que deveria, como existe no conceito, no discurso correto, pois das coisas concretas e situações práticas sempre se pode mostrar “o outro lado” e o momento seguinte em que “já não são”. Socialmente, as atividades práticas e seus praticantes não podem ter o status daqueles que trabalham com o saber discursivo, se dedicam à competência da palavra, e têm, afinal, o privilégio da verdade.

Da dualidade dessa cultura são herdeiras, muitas gerações depois, com passagem pela filosofia e pelas ciências, as concepções de “teoria” e de “prática”. Semente bem plantada. O centro de gravidade estava, sem dúvida, no saber teórico, e a questão, de mil formas, girou em torno da qualidade garantidora de seu status epistemológico, raiz da dicotomia: a questão da verdade – a de ser ele (ou não), em que medida e por quais processos, garantidor de uma correspondência, única e semântica, ao mundo. O iluminismo moderno e toda a metafísica que suporta as ciências naturais e origina o positivismo nas ciências sociais não pôde prescindir dessa noção. Hoje, porém, um “motivo do pensamento [...], caracterizando ruptura com a tradição, [é] a inversão do primado da teoria frente à prática, ou seja, superação do logocentrismo” (HABERMAS, 1990, p. 14), e tal inversão “é devida à radicalização de um pensamento de Marx.” (1990, p. 15)

Assim, romper com o dualismo teoria-prática em nível mais profundo significaria rever uma cultura filosófica e científica. Por mais desafiante que pareça dizer, nós ocidentais estivemos teoricamente equivocados, por milênios, sobre o sentido de nossa própria linguagem, por assim dizer “ofuscados” por ela própria; tratamo-la como meio a serviço de formas mentais; dissociamo-la da ação de pensar, restringindo-a à “fase” da expressão e criando, por isso, “sujeito” (o pensante) e “objeto” (o pensado) divorciados, quando, de fato, a linguagem é que viabilizava ambos. E mais: concebemo-la como um evento individual, quando ela é um recurso social que os indivíduos partilham. Essa “guinada lingüística” (HABERMAS, 1990, p. 53-57) já se opera há quase um século no ocidente. Ela é a premissa para a solução teórica do nosso enigma “teoria-prática”, porque nos permitiu ver, com mais fundamento, que o discurso teórico é uma prática social que incorpora sempre um significado semântico em estilo analítico. Pouco adiante, se voltará a ela. “Relações teoria-prática” e a concepção tradicional de linguagem

A posição tomada explicitamente por este ensaio, e já insinuada mais de uma vez até aqui, é a de que os mal-entendidos e problemas em que nos deixam as “relações teoria-prática” não se resolvem sem um reposicionamento preliminar da concepção de linguagem. A história da filosofia e da cultura ocidental, até o momento, veio a opor duas maneiras de entender a linguagem: uma formal, a linguagem como instrumento de expressão do

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pensamento, outra pragmática, a linguagem como ação social semiotizada, da qual o “pensamento” é uma experiência subjetiva.

A cultura erudita ocidental viveu por muitos séculos envolvida em uma concepção, dita “clássica”, de linguagem, e ainda hoje há nichos dela em setores tradicionais que ficaram à margem sequer da filosofia moderna, iniciada por Kant no Séc. XVIII. Ela se coloca dentro do que chamou “processo de conhecimento”: conhecemos, cada um por si e independentemente dos outros, os elementos do mundo sensível dado; depois, por meio de abstração, captamos a estrutura ontológica do mundo; no terceiro momento, representamos os conteúdos por meio de associação de símbolos; por fim, os comunicamos aos outros homens, por esse mesmo meio simbólico convencionado (1996, p. 33). Ora, é dessa concepção formalizada de linguagem que surgem relações de confronto “teoria-prática”, em que o hiato cognitivo consiste exatamente em opor a natureza da linguagem (“conteúdos” teóricos simbolizados, no caso) e a daquilo a que ela se refere, uma ação (a prática). Então surgem como conflitantes palavra e ação, o que se diz da situação de ação versus o que ela é de fato, e, por transposição, o que alguém diz versus o que faz.

Quer mantendo, com Platão, as idéias como essências puras do “tópos noetós” que se “encarnavam” em objetos e situações desse mundo, quer explicando-as pelo processo mental de abstração de tais objetos e situações (Aristóteles), a herança grega não evoluiu para a noção moderna de linguagem porque prendia o significado ao conceito e não às sentenças, ou juízos, onde Kant, inovativamente, passou a colocá-lo (SOUZA FILHO, 1989, p.12), fossem eles sintéticos ou analíticos. Com a superação de uma função apenas designativa para a linguagem (que, como exemplo, era apontada na aprendizagem da língua pela criança) abre-se o espaço para a semântica: o significado está – muito mais que pela designação – em uma estrutura vocabular compositiva, conforme regras de uso (a sintaxe). Uma lógica pôde ser desenvolvida com a linguagem (FREGE, em meados do Séc. XIX) e daí surgiu a filosofia analítica.

Contudo, a subjetividade kantiana ainda dominou a teoria do conhecimento deixando a linguagem na concepção tradicional: ela é um instrumento de expressão individual (e, secundariamente coletiva, cultural) do pensamento. Primeiro se concebe, como um ato autônomo da consciência, depois se verbaliza; conhece-se por um processo mental, que a linguagem pode apenas facilitar. O próprio Husserl – hoje ainda de larga influência – funda sua fenomenologia transcendental, que define as condições lógicas de toda teoria dedutiva (ciência), em uma filosofia de consciência. Na análise fenomenológica, o conhecimento verdadeiro ocorre por mediação consciencial: as coisas nos são dadas em atos intuitivos (vivências) individuais; a linguagem inicia esse processo de conhecimento e depois o tematiza, mas não o constitui. (OLIVEIRA, 1996, p. 36-39) “Relações teoria-prática” e a concepção pragmática de linguagem

A ruptura com toda a concepção tradicional do significado e da linguagem surgiu a partir da filosofia analítica, com o “segundo” Wittgenstein, em Investigações Filosóficas (1936-1951), e respectivos estudos prévios em “The Blue and Brawn Books” (1933-1935). O ponto central, pelo qual o filósofo se bate incessantemente, é o de que o significado do que se diz não é prévio à ação de dizer (WITTGENSTEIN, 1996, p. 113). Está nela, na forma como se usa a linguagem, na ação de usá-la (1996, p. 43). E, contra a concepção tradicional, não há uma intenção de significar algo “anterior” e desvinculada de um contexto circunstancial e social, seja ele presente ou recuperado em uma operação de memória.

“A intenção está inserida na situação, nos hábitos e nas instituições. [...] Desde que tenho antecipadamente a forma da frase, isso só é possível pelo fato de eu poder falar essa língua. [...] Quem quer, pois, dizer alguma coisa deve ter aprendido a dominar uma língua; e é claro que, ao querer falar, não

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precisa falar. Como também ao querer dançar, não dança. E quando refletimos a respeito, o espírito lança mão da representação [ação de representar] da dança, da fala, etc. Pensar não é nenhum processo incorpóreo que empresta vida e sentido ao ato de falar. [...] As palavras “processo incorpóreo” serviram-me de ajuda em meu embaraço, pois queria explicar o significado da palavra “pensar” de uma maneira primitiva. [...] Não podemos adivinhar como uma palavra funciona. Temos que ver seu emprego e aprender com isso.” (WITTGENSTEIN, 1996, p. 114. Grifos do original)

Wittgenstein despertou ou fortaleceu, nas décadas de 1950 a 1970, uma intensa produção acadêmica na filosofia (SOUZA FILHO, 1986) – que tomou rumo próprio na Teoria dos Atos de Fala (AUSTIN, 1962; SEARLE, 1969) – e também na sociologia do conhecimento (BLOOR, 1983). Vale destacar aqui os estudos de Grice (1971) sobre o significado da linguagem, centrados na intenção dos interlocutores em diálogo, sendo essa intenção, como já dissera Wittgenstein, um produto da situação e ambiente social do discurso.

Paralelamente à filosofia analítica pós-Wittgenstein, mas cada vez mais articulada com ela, a pragmática da linguagem foi também uma evolução da lingüística. (WEEDWOOD, 2002). Por uma via ou por ambas (LEVINSON, 2007), a pragmática da linguagem expandiu-se intensamente na segunda metade do Século XX, e constituiu-se um campo próprio de estudos. À medida que se expande em áreas de interseção com a sociologia e com a psicologia (SPINK, 2004; BRONCKART, 2003), e com a própria antropologia (HANKS, 2008), mais a pragmática da linguagem mostra o ambiente social da formação dos significados. Mikhail Bakhtin, a partir da filosofia e da análise literária deu grande impulso à pragmática social presente à composição de textos e aos gêneros de discurso (BAKHTIN, 2004, 2005), e é de larga influência na lingüística atual (MARCUSCHI, 2008, p. 146-224).

A significação pragmática da linguagem pervade e “controla” sua significação semântica, ou seja, aquilo que se deveria entender ao ler “literalmente” um discurso teórico. Contudo, a significação pragmática freqüentemente não é objeto de reflexão “porque não está escrita”... A problemática social da motivação e das regras, as pressões grupais imediatas e as estratégias individuais que originaram e controlaram aquele discurso teórico deveriam presidir sua interpretação. Mesmo que alguns gêneros de linguagem, como as linguagens formais (na matemática, na informática, na lógica) e o discurso científico, em geral, apareçam quase que semanticamente bastantes em si mesmos, há sempre presente uma ação de dizer, uma razão para dizer e um contexto social e temporal, remoto ou imediato, em que se diz. Mesmo retirada para segundo plano, a significação pragmática estará sempre muito presente à leitura semântica “objetivada” do discurso teórico. Quando tal discurso é introduzido em novo contexto – cada nova leitura sendo mais um ato (mútuo) de fala envolvendo leitor e autor – nova significação é, em certa medida gerada (OLSON, 1997). Imaginar e praticar um “texto em si”, sem interlocutores nem contextos únicos, é uma espécie de “comunicação paranóica”, um potencial de mil mal-entendidos, entre os quais os relativos à teoria, vis-à-vis a (ou sua) prática. Sob este ângulo, é possível cogitar-se: para a academia, a forma mais completa de comunicação não seria ainda o texto produzido, mas a ocorrência, sob circunstâncias diversas, de sua discussão.

Assim, a explicação pragmática da linguagem, jaz no fundo do conflito lingüístico mal expresso como “teoria x prática”. Por que o praticante não entende o “teorizante” (e vice-versa)? Não é só uma questão de “língua”, de vocabulário e estilo literário, pois uma adaptação artificial deles também não resolve realmente o problema. O significado é que se faz inacessível, e isso porque ele está primeiro no nível pragmático da comunicação. Em administração, se o dizer for retirado de seu contexto de ação, para imaginar-se reduzido ao mundo simbólico do dito (que, na verdade, é ele mesmo quem cria) fatalmente expressará naquele binômio a nostalgia inconsolável do auto-exílio em tal mundo, como se subsistente fosse.

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Gêneros de linguagem “teórica” em administração: ainda fugindo ao “buraco negro”

Boa parte da confusão e mal-entendidos que cercam as “relações teoria-prática” decorre de significado unívoco atribuído a “teoria”. Ainda que seja propósito deste ensaio tomar como ponto de partida o senso comum para a expressão-título e seus termos, que está querendo dizer quem menciona “teoria”? Não se responderá definindo um sentido estrito para o termo (como no Special Forum on Theory Building, da AOM, 1989) – mesmo que seja justificável, para fins de clareza das comunicações, uma hierarquia de pertinência no uso dele em ambiente acadêmico. Mas a pragmática da linguagem, acima aludida, leva a perguntar: qual é, realmente, no caso, a intenção significante?

Quando alguém fala com toda a convicção de sua longa experiência em “aplicar uma teoria na prática”, pode estar pensando de fato em técnica e usando o termo “teoria”. Mesmo aceitando que “teoria” para o senso comum da área possa significar muita coisa, a predicação associada a ela (como em “aplicar”, “desenvolver”, “confrontar com”, etc.) não é indiferente ao significado! Seria fatal para a linguagem como relação comunicativa! Esse seria um “buraco negro”... Sem dúvida, há linguagens, como a técnica (operacional), que criam “artificialmente” práticas, e suas práticas que mimetizam tais criações lingüísticas. Neste caso, uma correspondência pragmática (que pode ser do tipo linguagem-mundo ou mundo-linguagem, dependendo da situação específica do ato) subsiste na estrutura intencional do falante (autor do processo, rotina ou forma de trabalho), ou seja, espera-se que um processo qualquer realize exatamente a linguagem em que foi previsto por aquele falante. Neste caso, o ato de fala envolvido é de natureza diretiva (SEARLE, 1997, p. 13-14).

Ora, estamos diante de um campo de pesquisa novo e desafiante. Têm-se ainda por inventariar adequadamente os gêneros discursivos que se desenvolvem a propósito da ação organizacional e administrativa. E não há limite para isso. De um ponto de vista da língua como prática social e forma de interação simbólica, a pesquisa se voltaria para os diferentes contextos sócio-lingüísticos implicados nos discursos teóricos que se desenvolvem sobre e para a administração – sendo essa distinção um bom divisor de águas – dentro e fora da academia. Mattos (2003), usando as mesmas bases teóricas deste ensaio, aponta para as diferenças constitutivas de linguagem entre academia, consultoria e de ambas para o ensino de administração.

Entre os “discursos-para-a-ação”, está a formulação de políticas e estratégias. Aí, há uma intenção clara que molda todo o discurso: deseja-se, ao comunicá-las, que seja guardada uma coerência no longo prazo, que se garantam certos resultados, para os quais se imagina serem tais e tais os caminhos mais seguros, etc. – essa é sua dimensão pragmática. A teoria interpretativa – estruturada como discurso descritivo-normativo – não é (não deve ser tratada como sendo) um discurso-para-a-ação, mas um “discurso-sobre-a-ação”; não é formulação de política ou estratégia de ação, que, encaminhando as decisões, precisa justificar-se; não é técnica gerencial ou organizacional, ou seja, desenvolvimento de soluções conceituais sob modelos-padrão, nem tecnologia gerencial (onde um instrumental não humano permite a agregação de conhecimento da ciência à prática administrativa). Mesmo que, na linguagem ordinária, seja impossível negar-lhes a designação de “teoria”, esses são discursos práticos e têm seus próprios ambientes, fontes, gêneros e métodos de produção literária, diferentes dos da teoria interpretativa. E esta, que seria a teoria “sem aspas”? Como ato de fala, ela é proferida para o esclarecimento e “visão de contexto” do interlocutor, inclusive o praticante. A teoria – este seria o momento de diferenciá-la como um dos produtos acadêmicos típicos, agregando estudos históricos, inventariantes e outros – é o jogo de linguagem em que alguém pergunta “o que é”, “como se imaginaria que seja”, “como se explicaria que...”, “por que acontece de...”, etc., e tenta responder sistematicamente a essas

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perguntas dentro de alguma tradição de trabalho de pesquisa – este que é um fenômeno social típico, mesmo sendo difícil de identificá-lo, desde Merton, (1942, 1973). Conclusões e questões de pesquisa, a meio caminho

Este ensaio é apresentado a um congresso acadêmico, está em discussão. As pesquisas e reflexões que seu autor vem fazendo há algum tempo sobre o tema estão a meio caminho. Há, pois, conclusões provisórias, etapas incompletas, e por isso podem algumas agora ser enunciadas em termos de questões para pesquisa e proposições provocadoras dela, todas se reportando às seções precedentes. “Teoria-prática” transfigurada: em questão a identidade do campo?

Quero sugerir que a desconstrução do bloqueio conceitual “teoria-prática” abre caminho para questão ali subliminarmente tratada: a da identidade do campo. De fato, entendendo a linguagem como uma prática social simbólica, qual o sentido do trabalho de boa parte dos pesquisadores e acadêmicos em administração ao desenvolverem teoria, já que estão todos em condições de professar seu compromisso com o mundo real das organizações, dos mercados, do ensino de administração? Consideram-se trabalhando na mesma faixa de consultores ou de tecnólogos da administração? Certamente que não. Então que fazem eles? Dizer que geram análises e teorias, é prender-se ao formal da ação. Insistir que a utilidade disso é inegável na prática, é argumento já repetido e que pouco tem ajudado nas discussões “teoria-prática”. De fato, é pelo lado da teoria que começa a fragilidade da área (BERTERO; CALDAS, WOOD Jr., 2005, p. 1)...

Se uma das dimensões da pragmática é o significado ativo da linguagem praticada, a produção do campo, suas instituições e a conversação em momentos importantes são um grande corpus para a investigação da identidade real, não formalizada em regulamentos, da academia de administração. E se, de um ponto de vista da psicosociologia (Enriquez, 1992), toda linguagem discursiva é uma revelação do sujeito social, então, cabe voltar à pergunta: o que – como grupo e tradição – revelam e procuram esclarecer a si próprios esses pesquisadores em suas práticas profissionais? É possível levantar a hipótese: eles procuram entender-se como cultura, eles, enfim, com sucesso ou não, trabalham a consciência da própria identidade. Essa questão se prolonga na seguinte. “Teoria-prática”: que tal um confronto com outras áreas profissionais?

Uma coisa: pode ser que uma “ciência das organizações” esteja suficientemente clara para constituir-se, independente da investigação para a prática administrativa profissional, ainda que entre elas se reconheçam sempre cognatos, imagens espelhadas e derivações. Por mais que insistamos em falar de uma área só (“Administração e Contabilidade”), abrangendo, em nível mais amplo, o conhecimento da prática profissional, as divisões da pesquisa acadêmica dentro da ANPAD estão mostrando que a coisa não é bem assim. É importante dizer isso claro: por que não pensar institucional e metodologicamente em duas áreas acadêmicas? Uma produzindo para a prática profissional, a outra, não. Não seríamos situação única. Hoje são reconhecidas as “ciências biomédicas” ou “biomedicina” vis-à-vis a medicina, prática profissional investigada e ensinada, assim como a “ciência da informação” vis-à-vis a biblioteconomia e a algumas aplicações da informática.

Outra coisa: qual o lugar da neurociência, da oncologia ou mesmo de ciências básicas como a bioquímica, a farmacologia, a citologia e tantas outras na formação do diagnóstico e da decisão da conduta terapêutica na prática da medicina? Vale ou não o paralelo com análise

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contextual do problema e decisão, na prática administrativa? Como se combinam na realidade da criação artística, o talento, a habilidade técnica e o saber teórico de um artista? No caso, a teoria da arte não tem nada a ver com a prática da criação ou da execução artística, constituindo-se em reflexão ou estudo paralelo? E se pensarmos o quanto arte e habilidade estão presentes na gestão, que teríamos a dizer da técnica e da teoria na prática dessa atividade? Há algum paralelo válido entre a atividade gerencial ou organizativa na solução de problemas e a criação de soluções nas engenharias, usando elementos das ciências básicas (física, química, etc.) ou aplicadas (resistência de materiais, programação e controle da produção, etc.)? É sabido que a prática da advocacia recorre diretamente à sociologia ou filosofia do direito, assim como às várias ciências aplicadas do direito, na argumentação que constitui o ponto central e decisivo do sucesso do advogado. Qual o lugar daquelas ciências face à estratégia de defesa ou acusação, à astúcia, à técnica retórica, saberes da prática forense ou do jurisconsulto? O que isso lembraria às situações da prática administrativa, geralmente envolvida com estratégia política, conflitos e relacionamento humano? Teoria da contingência estrutural: uma porta secreta para o impasse teoria-prática

Em nota técnica, comentando capítulo sobre a Teoria da Contingência Estrutural, de Lex Donaldson, no volume 1 do Handbook de Estudos Organizacionais, Bertero observa que a preocupação com a estrutura, a que responde aquela teoria, se origina da pergunta: “qual a forma correta, ou a melhor maneira de organizar?” (BERTERO, 1998, p. 134). Note-se, esta é uma pergunta da prática, do praticante em situação, não do “teorizante”! Na Teoria da Contingência Estrutural, o teórico pesquisador, tomando uma perspectiva de observador externo, como no modelo das ciências naturais, pretende evoluir de um cientificismo racionalista e de sua resposta pretensiosa (embora coerentemente positivista), “the one best way”, para um modelo flexível de dependência múltipla entre dois grupos de variáveis, à luz de um modelo estatístico (correlações múltiplas), de credibilidade científica. E diz que não há um “best way”, tudo depende de cada caso. Ora, isso leva o homem da prática a perguntar-lhe: “e qual é ele, no meu caso?”. O que lhe será respondido? Que não se estava falando para ele? Além do fato de que a cientificidade pretendida no método fica perplexa diante da generalização e previsibilidade comprometidas, a suposição de aplicabilidade literal de uma formulação teórica desse porte à prática singular continua (pois prossegue respondendo à pergunta “qual a forma correta, ou a melhor maneira de organizar?”). Este conflito mostra que a teoria explicativa estava sendo confundida com técnica, discurso de intencionalidade diferente, que tenta definir previamente o cenário e o processo da ação: passos, relações e modos de operar. É-se levado a pensar que a Teoria da Contingência Estrutural talvez tenha sido o “fim de linha” de certo mal-entendido practicista, que não honra a tradição de boas teorias sociológicas e psicológicas das organizações, que se limitaram a gerar esclarecimento e convicções sobre o contexto administrativo, deixando à prática sua esfera de saber. É nesse sentido que se poderia entender o autor acima, agora falando da teorização face à prática administrativa: “Não se pode colocar a teoria a serviço da prática” (BERTERO, 2004, p. 381). A pragmática da linguagem rejeitaria o pensamento não-discursivo na prática?

Esse é um problema relevante para a epistemologia da administração, e que se coloca no presente contexto. Não é propósito tratá-lo aqui, mas levantá-lo, apenas. A experiência psicológica de quem vive a administração (embora não só ela), é de que a situação de prática é – e intensamente – uma situação cognitiva. Por isso, o termo “prática” nunca poderia ser entendido como “o oposto” de “teoria”, como pode sugerir o dualismo “teoria-prática”. Estamos ligados ao fluxo da ação, aos contextos, aos problemas, a cada um dos

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relacionamentos singulares ou coletivos que mantemos, às dezenas ou centenas. “Sentimos” tudo isso em plena ação; para boa parte disso temos “posicionamento” orientador, “sabemos” como reagir e temos constantes insights, tanto de compreensão quanto de ação. A psicologia estuda tudo isso intensamente e a teoria administrativa tenta usar essa ciência. Sobretudo a aprendizagem organizacional, incorpora o conceito, já mais que cinquentão, de “conhecimento tácito” (POLANYI, 1951-1952). Na prática administrativa, o pensamento não-discursivo – aquele que não se expressa por qualquer tipo de proposição – provavelmente é muito mais intenso que o discursivo-articulado, em linguagem conceitual, aqui tratado. Devemos entregá-lo à psicologia? Mas, se pusermos nossa experiência, ela própria, sob questão e reconhecermos que nos iludimos ao interpretá-la, ao formular qualquer juízo sobre seu “valor de verdade”, que somos grandes “produtores de mitos”, então precisamos antes recorrer à filosofia como instância puramente crítica, inclusive de si própria.

Os gregos (Platão, primeiro) elaboraram a noção de “noûs” que pode ser perfeitamente entendido como “pensamento não-discursivo” (SOUZA FILHO, 1989), uma forma de diánoia (“o que passa pela mente”), em confronto com a epistéme – a competência discursiva que originou a idéia de saber “científico”, logicamente sustentável. O noûs precede e fundamenta todo lógos, porque estamos em contato imediato com a realidade – daí porque a intuição, em sentido próprio, “o instinto no homem”, é tão universal – apenas precisamos da linguagem para nos esclarecer e nos decidir na multiplicidade daquele contato imediato. Husserl concordaria plenamente. Então vem a pergunta: entender a linguagem como uma prática social semiotizada conflitaria com a noção de noûs na prática administrativa? Ou, ao contrário, “liberaria” essa noção, justamente porque entende a linguagem, toda linguagem e só ela, como prática social significante e constituinte das relações e da cultura? O que Wittgenstein rejeitou explicitamente foi a chamada “linguagem privada”, a que cada indivíduo poderia criar, ter em si ou para si (ARAÚJO, 2004, p. 120-123). Algumas proposições para o debate

1. No caso da teoria explicativa (descritivo-normativa de contextos e situações), cultivada especialmente pela academia, há duas proposições a debate.

1.1. Só incidentalmente a teoria pode ter algo a ver com uma situação real de prática, aquela em que o ouvinte ou leitor, em algum momento, viesse a estar realmente envolvido. Servir-lhe-ia de inspiração em tal momento. A “tradução” de estruturas de linguagem do tipo “o que é?” para outras do tipo “como lido com os elementos da presente situação?”, é algo bastante misterioso, não se sabe como isso é processado. “Aplicar teoria” é uma expressão enganosa – exceto para o caso do discurso técnico e o tecnológico. Aliás, ao contrário do que se diz das ciências da natureza, nas ciências da ação humana ou da cultura (Weber) a teoria não “representa” a realidade.

1.2. A teoria não é (estruturada) para a prática, mas pode ser para a convicção, esclarecimento, informação de contexto e inspiração do praticante, inclusive os próprios acadêmicos enquanto praticantes de uma arte. Surge daí uma nova valorização da criação teórica (“imaginação disciplinada”, segundo Weick, 1989); nova fecundidade prática para a teoria, que ressurgirá em idéias, atitudes e soluções imprevisíveis, via agente convicto; novo espaço de pleno direito para a ética na administração, superada, de vez, a dicotomia positivista entre “conhecimento objetivo” e ética. Os teóricos, na academia, devem estar livres para criar teoria. Seu compromisso com a prática é muito mais sério e difícil do que produzir “ferramentas conceituais”. Sob este aspecto, ao contrário da insistência corrente em querer que a teoria acadêmica em administração e a prática profissional convirjam, dever-se-ia afirmar quase o contrário: elas não devem procurar isso.

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2. Na prática da administração, “teoria” (em toda a variedade de sentidos) é um recurso lingüístico funcional, com diversos usos, declarando-se pleno respeito ao “outro lado”, o lado “imaginado” e significado, sempre imprevisível. Daí se originaria uma gestão inteligente da linguagem teórica nas organizações. Esta seria uma resposta pragmática à situação que, de outra forma, acabaria vista no paradoxo teoria-prática.

3. Pergunta-se: não deveria a compreensão pragmática da variedade de gêneros discursivos, presos a diferentes situações e contextos de fala, não menos que os acadêmicos, levantar o anátema lançado pelo mainstream atual da teoria organizacional contra a “teoria” prescritiva e os diversos “gerencialismos”, aliás, plenamente cidadãos nessa área do saber?

4. Esse tempo de convivência com a expressão “relações teoria-prática” já nos deixou suspeitosos de que algo ali não pode continuar assim. “Ouvimos o galo cantar”, e temos que parar e olhar (a linguagem, como aconselhou Wittgenstein) para sabermos onde. Parece um desses casos a “ponte entre as formulações teóricas e a prática administrativa”, a que se refere Bertero (2004, p. 382-383). De que natureza seria essa “ponte”? Uma simples linguagem intermediadora, facilitadora? De que “formulações teóricas” se fala? Para ser enfático: a falar de teoria, teoria mesmo, e de prática, prática mesmo, não há ponte alguma! Ou, pelo menos, não há ponte formal, objetivamente formulada. As “pontes” se construirão aos poucos dentro do praticante que pela teoria se esclarece, forma convicções: daí surgirão os insights e critérios, implícitos ou não, de escolha da racionalidade, inclusive a técnica, conveniente à sua situação.

5. Talvez sejamos cúmplices da deliciosa ambigüidade teoria-prática... Ela movimenta auditórios e se presta a diferentes usos. É difícil não se deixar seduzir pelo antológico dito de Kurt Lewin em 1945, repetido por personalidades importantes na área: “Nada é tão prático como uma boa teoria” (VAN de VEN, 1989, p. 486). Fica no ar um sentido transposto de “prático”, embora VAN de VEN tenha sido explícito: “A boa teoria é prática precisamente porque impulsiona o conhecimento em uma disciplina científica, guia a pesquisa para questões cruciais e esclarece a profissão da administração.” (1989, p. 486). Por outro lado, talvez nos passe despercebido – porque integra a cultura de senso comum – o sentido formal de código de ação, assumido para “teoria” por Marsden e Townley, ou uma compreensão platônica da linguagem, que se “corporificaria” na prática, quando dizem: “A maioria das práticas operacionaliza alguma teoria, por mais implícita, vaga e contraditória que ela possa ser.” (2001, p. 31)

Resta à academia um longo trabalho, para livrar tanto a teoria quanto a prática nesse “buraco negro”, “as relações teoria-prática”, pois, por bom tempo, a dicotomia ainda habitará, de uma forma ou de outra, a linguagem de senso comum na administração. Talvez não precisemos da expressão – ou ela só é útil enquanto pólo de crítica e autocrítica, até que desapareça, por caducidade, da produção lingüística na área. Referências ACADEMY OF MANAGEMENT REVIEW. Special forum on theory building, v. 14, n. 4, October 1989. ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. ARGYRIS, Chris; SCHÖN, Donald. A. Theory in practice: increasing professional effectiveness. San Francisco: Jossey-Bass Publishers, 1999. AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas: 1990 [1962]. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Speech genres and other late essays. Austin: University of Texas Press,2004.

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