relação entre enxaqueca e epilepsia

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Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar Largo Prof. Abel Salazar, nº2, 4099-003, Porto RELAÇÕES ENXAQUECA - EPILEPSIA Maria Marta Gomes da Silva Morais Figueira ORIENTADOR: Dr. José Barros Porto, 19 de Junho, 2009

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Neurologia

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  • Instituto de Cincias Biomdicas Abel Salazar

    Largo Prof. Abel Salazar, n2, 4099-003, Porto RELAES ENXAQUECA - EPILEPSIA

    Maria Marta Gomes da Silva Morais Figueira

    ORIENTADOR: Dr. Jos Barros

    Porto, 19 de Junho, 2009

  • RELAES ENXAQUECA-EPILEPSIA

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    RESUMO

    A enxaqueca e a epilepsia so sndromes paroxsticas muito prevalentes. Algumas das

    suas variadas expresses clnicas podem ser classificadas como canalopatias neuronais, um

    grupo de perturbaes neurolgicas causadas por alteraes nos canais inicos. H evidncias

    epidemiolgicas seguras de que a ocorrncia simultnea no mesmo indivduo exprime

    comorbilidade e no simples coincidncia. Isto indicia uma ligao gentica e/ou fisiopatolgica

    entre as duas doenas, desde h muito tempo suspeitada pela comunidade cientfica. Neste

    trabalho abordaremos a enxaqueca, a epilepsia e as suas possveis ligaes.

    As respostas esto longe de ser definitivas, a natureza da relao entre a enxaqueca e a

    epilepsia permanece em grande parte desconhecidas e novas perguntas vo surgindo.

    PALAVRAS-CHAVE

    Canalopatias, enxaqueca, epilepsia, enxaqueca hemiplgica familiar, depresso cortical

    alastrante, CACNA1A.

    INTRODUO

    A enxaqueca e a epilepsia so perturbaes recorrentes, com manifestaes paroxsticas,

    devidas a alteraes da excitabilidade cerebral. Considerando a alta prevalncia de ambas as

    doenas, a sua coexistncia no mesmo indivduo poder ser a uma coincidncia. No entanto,

    estudos epidemiolgicos demonstram uma relao que supera o acaso.

    A ligao entre a enxaqueca e a epilepsia parece ter como base no s uma gentica

    comum, mas, principalmente, um mecanismo fisiopatolgico partilhado. Ambas as patologias

    podero ser classificadas como canalopatias, um grupo de distrbios neurolgicos emergente e

    apenas recentemente delineado.

    CANALOPATIAS NEURONAIS E CANAIS INICOS

    Canalopatias neuronais so um grupo de perturbaes neurolgicas ligadas a mutaes

    genticas que levam ao aumento ou diminuio da funo dos canais inicos. So classificadas

    de acordo com o canal ou o rgo afectado e apresentam uma grande heterogeneidade gentica

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    (mutaes em genes diferentes causam fentipos iguais) e fenotpica (mutaes do mesmo gene

    causam doenas diferentes). As suas manifestaes tendem a ser paroxsticas.

    Canais inicos so poros glicoproteicos transmembranares constitudos por vrias

    subunidades, codificadas por um gene diferente. H dois tipos principais de canais inicos:

    voltagem-dependentes ou ligando-dependentes. (Bernard G et al. 2008)

    Canais voltagem-dependente so activados por alteraes dos potenciais

    transmembranares e localizam-se em diferentes zonas do neurnio. So constitudos por 6

    regies transmembranares, formando um poro central. a estrutura especfica deste poro central

    que determina o tipo de io conduzido, sendo que as subunidades 5 e 6 que determinam esta

    permeabilidade selectiva. A subunidade 4 o sensor de voltagem localizado no campo elctrico

    da membrana, detectando oscilaes de potencial.

    Estes canais so identificados de acordo com o io principal que conduzem. Os canais

    de sdio so responsveis pelo influxo rpido de ies sdio, levando a uma despolarizao e

    gerao do potencial de membrana. Os canais de potssio so os responsveis pelo

    restabelecimento do potencial de membrana aps a despolarizao e pela hiperpolarizao

    subsequente, permitindo o fluxo de ies de potssio para fora da clula. Os canais de cloro so

    tambm responsveis pela hiperpolarizao. Os canais de clcio so responsveis pela gerao

    do potencial de membrana nos msculos cardaco e liso, pela contraco muscular, sinalizao

    intracelular e libertao de neurotransmissores. (Bernard G et al. 2008)

    Entre os canais de clcio voltagem-dependentes destaca-se o tipo P/Q, localizado

    somente a nvel neuronal e distribudo por todo o sistema nervoso, embora com maior expresso

    nos terminais pr-sinpticos do cerebelo e do tronco cerebral. Estes canais devem o seu nome ao

    tipo de corrente que geram: corrente do tipo P, identificada nas clulas de Purkinje e Q,

    identificada nas clulas granulosas, do cerebelo. Intervm em processos de sobrevivncia,

    excitabilidade e plasticidade neuronal, mediando o processo de neurotransmisso rpida na

    sinapse e na juno neuromuscular. Permitem o influxo de clcio na clula, aps a

    despolarizao membranar, o que estimula a exocitose de vesculas sinpticas. So assim

    responsveis pela libertao de acetilcolina e glutamato na fenda sinptica, bem como por

    correntes inibitrias mediadas pelo GABA.

    O tipo especfico de canal de clcio voltagem dependente determinado pela

    subunidade alfa1. So conhecidos dez tipos de subunidades alfa1, sendo que os canais de clcio

    tipo P/Q so constitudos pela subunidade alfa1 do tipo A. A subunidade alfa1A codificada

    pelo gene CACNA1A, do cromossoma 19, e constituda por 4 domnios (I-IV) cada um deles

    com 6 segmentos que atravessam a membrana (S1-S6). (Gazulla J et al. 2007)

  • RELAES ENXAQUECA-EPILEPSIA

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    Mutaes no gene CACNA1A esto na base de vrias perturbaes allicas de

    hereditariedade autossmica dominante: ataxia espinocerebelosa tipo 6 (SCA6), enxaqueca

    hemiplgica familiar (EHF) e ataxia episdica do tipo 2 (EA2).

    SCA6 sndrome cerebelosa de incio na terceira quinta dcada de vida e

    evoluo progressiva, ocasionalmente incapacitante. No apresenta

    oftalmoplgia, retinopatia, parkinsonismo ou outras sndromes, ao contrrio de

    outras ataxias espinocerebelosas

    EA2 caracterizada por paroxismos de ataxia, vertigens e nuseas que duram

    horas ou dias. Pode ser acompanhada de nistagmo e atrofia do vrmis. Responde

    profilaxia com acetazolamida. (Gazulla J et al. 2007)

    EHF descrita posteriormente.

    Os canais ligando-dependentes so activados pela ligao do ligando respectivo,

    como, por exemplo, os receptores nicotnicos (ach), os receptores GABAa e os receptores

    glicnicos. Encontram-se distribudos pelo sistema nervoso central e perifrico e so

    constitudos por 5 subunidades, cada uma com 4 domnios transmembranares, sendo que a

    subunidade M2 de cada domnio que determina a selectividade inica do canal. (Bernard G et

    al. 2008)

    ENXAQUECA

    A enxaqueca uma entidade clnica clssica com caractersticas bem definidas, mas

    tambm com alguma variabilidade. Tem um perfil temporal paroxstico, com episdios de

    frequncia e durao variveis, intervalados por perodos assintomticos. O diagnstico de

    enxaqueca clnico. No h testes laboratoriais ou marcadores que confirmem o diagnstico.

    (Machado J et al. 2006)

    Fisiopatogenia

    A enxaqueca uma doena primria do crebro (Goadsby PJ et al. 2001) em que

    fenmenos neuronais complexos resultam em vasodilatao e numa cascata de acontecimentos

    neuroqumicos.

    A teoria neurognica tem a sua base na depresso alastrante de Leo, que assume que as

    alteraes no dbito sanguneo se desenvolvem como consequncia de eventos neuronais.

  • 5

    A depresso cortical alastrante (DCA) foi descoberta em 1940, na Universidade de

    Harvard, pelo brasileiro Leo. Cinco segundos aps a estimulao elctrica do crtex cerebral

    de animais, Leo observou uma depresso marcada e prolongada de actividade elctrica

    espontnea no EEG, que se alastrava lentamente em todas as direces a uma velocidade de

    cerca de 3 mm/min. A sugesto inicial de que a DCA seria responsvel pela aura de enxaqueca

    surgiu de comparao das taxas de progresso da aura e da depresso.

    Este fenmeno constitui um processo de despolarizao rpida e quase completa, de

    uma agregado de neurnios, com um influxo macio de ies de K+, que progride lentamente

    atravs do crtex, gerando um potencial intenso mas transitrio, seguido de depresso neuronal

    de longa durao.

    Durante a crise h uma breve fase de hiperperfuso seguida de hipoperfuso, que

    corresponde depresso alastrante cortical. Este facto provavelmente reflecte a onda de

    despolarizao neuronal e glial seguida de supresso sustentada da actividade neuronal.

    Estudos em ressonncia funcional, utilizando a tcnica BOLD (blood oxygenation level-

    dependent) vieram confirmar estes dados. Contudo, a duramter e os vasos sanguneos

    menngeos so ricamente enervados por fibras nervosas sensitivas, com origem na diviso

    oftlmica do trigmio. Em conjunto com o ncleo do nervo trigmio constituem o sistema

    nervoso trigmino-vascular. Durante a crise estas fibras sensitivas libertam substncia P, CGRP

    (calcitonin gene-related peptide) e neuroquinina A. Estes pptidos provocam uma resposta

    inflamatria estril na duramter e causam a sensibilizao das fibras nervosas a estmulos

    previamente incuos, como as pulsaes dos vasos sanguneos e as alteraes na presso

    venosa. A sensibilizao perifrica dos neurnios trigmino-vasculares medeia a dor pulstil e o

    seu agravamento pela inclinao anterior da cabea; a sensibilizao central dos neurnios

    trigmino-vasculares no ncleo caudalis medeia a hipersensibilidade do couro cabeludo e pele

    peri-orbitria, como por exemplo a alodnia cutnea.

    Um estudo recente com PET mostrou a primeira evidncia da presena de extravaso

    plasmtica localizada s regies extraparenquimatosas ipsilaterais localizao da dor durante

    um ataque espontneo de enxaqueca. A activao trigmino-vascular ocorre secundariamente a

    um factor iniciador da crise de enxaqueca, no sendo ainda claro o que ser. Estruturas do

    tronco, do crtex ou uma disfuno neuroqumica podero ter um papel importante na gnese da

    enxaqueca, na sua modulao ou em ambas.

    Um estudo do dbito sanguneo com PET, realizado durante uma crise de cefaleia

    unilateral em nove doentes com enxaqueca sem aura, colocou a hiptese de existir um gerador

    da enxaqueca na poro rostral do tronco cerebral. Foi demonstrado, no mesmo estudo, um

    aumento do dbito sanguneo cerebral regional na poro interna do tronco, predominantemente

    contralateral cefaleia, que persistiu aps a administrao de sumatriptano que provocou o

  • RELAES ENXAQUECA-EPILEPSIA

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    alvio da dor. O papel destes ncleos do tronco como geradores da enxaqueca, como

    participantes na modificao do limiar para a activao neuronal ou fazendo parte do sistema

    neuronal que termina uma crise ainda no est completamente clarificado. Estudos recentes

    sugerem o papel de ncleos do tronco cerebral como geradores da enxaqueca, tendo

    igualmente um importante papel na expresso fenotpica desta cefaleia primria.

    Epidemiologia

    A prevalncia no adulto situa-se entre 10% e 15%. No nico estudo de base

    populacional realizado em Portugal, a prevalncia de formas puras de enxaqueca foi de 8,8%.

    (Pereira-Monteiro JM et al. 1995) A maior prevalncia da enxaqueca no sexo feminino

    unanimemente aceite; a razo homem:mulher , consoante os estudos, de 1:2-3. A enxaqueca

    aparece pela primeira vez habitualmente na segunda ou terceira dcadas, e raramente aps a

    meia-idade. Rapazes e meninas podem ser igualmente atingidos; o predomnio do sexo feminino

    s aparece na adolescncia. A enxaqueca tende a diminuir ou desaparecer aps a quinta dcada.

    Clnica

    A enxaqueca uma entidade crnica paroxstica, j descrita nas antigas civilizaes da

    Sumria e da Mesopotmia, com caractersticas definidas, mas tambm com alguma

    variabilidade clnica e diversas formas de expresso.

    Um episdio pode surgir a qualquer hora do dia ou da noite. Na maioria dos casos vai-

    se desenvolvendo e progredindo lentamente durante o dia, com o indivduo em actividade. A

    frequncia dos episdios muito varivel. A maioria das pessoas com enxaqueca tem um ou

    mais episdios por ms. A enxaqueca no apenas uma cefaleia. um conjunto de sinais e

    sintomas decorrentes do compromisso do sistema nervoso central, do sistema nervoso autnomo

    e de outros aparelhos e sistemas.

    A descrio convencional da crise de enxaqueca consiste numa sequncia de

    acontecimentos, sistematizados por Blau em cinco fases: 1) prdromos, 2) aura, 3) cefaleia, 4)

    resoluo, 5) psdromos. Entretanto, na maioria dos casos, esta ordem acadmica no se

    verifica. Algumas fases podem faltar em algumas pessoas e/ou em algumas crises, a ordem de

    aparecimento pode ser outra, em sequncia contnua ou com intervalos variveis entre as fases.

    1) Prdromos: Estes sintomas vagos e mal definidos podem preceder a aura ou a cefaleia de

    horas ou dias. Os prdromos podem incluir alteraes de humor ou comportamento, sintomas

    sistmicos e alimentares.

  • 7

    2) Aura: uma disfuno neurolgica focal transitria que se desenvolve em cerca de 5 a 20

    minutos. A aura aparece em menos de 20% das pessoas com enxaqueca. A aura visual a mais

    comum, podendo ser produtiva (alucinaes visuais) ou deficitria (escotomas). O escotoma

    cintilante o mais distintivo sintoma visual: banda ou arco de viso amputada com uma

    moldura em zig-zag resplandecente. Os doentes tambm podem apresentar auras somato-

    sensoriais na face, mo e lngua. H ainda outros tipos de aura: hemiparsia, afasia, vertigens.

    Em algumas pessoas, um tipo de aura pode seguir-se a outro.

    3) Cefaleia: Quase sempre intensa, pulstil, e com menos de 24 horas. Nas enxaquecas

    unilaterais pode haver, ou no, alternncia de lado. A localizao habitualmente fronto-

    temporal ou para-ocular. A dor exacerbada pelo esforo fsico ou movimentos da cabea. A

    intolerncia luz (fotofobia) ou ao rudo (fonofobia) so os sintomas acompanhantes mais

    frequentes. Quase todos os doentes tem nuseas e metade vomitam durante as crises.

    4) Resoluo: A dor reduz-se lentamente em horas, mas muitos episdios s so concludos

    pelo sono. Os vmitos, espontneos ou provocados, podem aliviar a dor. Pode haver desejo de

    alimentos quentes.

    5) Psdromos: Nesta fase, o trabalho fsico j possvel, mas o esforo intelectual ainda

    penoso. A fadiga, a letargia, a fraqueza, o descuido pessoal podem manter-se. A necessidade de

    conforto e afectividade comum. Ao contrrio, em alguns casos, verifica-se euforia e sensao

    de rejuvenescimento.

    Em 1988, a International Headache Society (IHS), aprovou a classificao e critrios de

    diagnstico de cefaleias. Esta classificao foi revista em 2004 um instrumento fundamental

    na investigao clnica e epidemiolgica. Perante um doente concreto, necessrio alguma

    flexibilidade na interpretao e aplicao dos critrios.

    Resumo da Classificao da Enxaqueca da International Headache Society (2004) 1.1 Enxaqueca sem aura 1.2 Enxaqueca com aura 1.2.1 Aura tpica com cefaleia tpica 1.2.2 Aura tpica com cefaleia atpica 1.2.3 Aura tpica sem cefaleia 1.2.4 Enxaqueca hemiplgica familiar 1.2.5 Enxaqueca hemiplgica espordica 1.2.6 Enxaqueca basilar 1.3 Sndromes peridicas da infncia geralmente precursoras de enxaqueca 1.3.1 Vmitos cclicos 1.3.2 Enxaqueca abdominal 1.3.3 Vertigem paroxstica benigna da infncia 1.4 Enxaqueca retiniana 1.5 Complicaes da enxaqueca 1.5.1 Enxaqueca crnica 1.5.2 Estado de mal de enxaqueca 1.5.3 Aura persistente sem enfarte 1.5.4 Enfarte associado/atribudo enxaqueca 1.5.5 Crise epilptica desencadeada por enxaqueca 1.6 Provvel enxaqueca

  • RELAES ENXAQUECA-EPILEPSIA

    8

    ENXAQUECA HEMIPLGICA FAMILIAR

    A melhor forma de estudar os mecanismos celulares da enxaqueca atravs da sua rara

    forma mendeliana, a Enxaqueca Hemiplgica Familiar (EHF). um subtipo autossmico

    dominante de enxaqueca com aura (EcA), caracterizado por parsia de intensidade varivel e

    pelo menos um familiar em primeiro ou segundo grau com a mesma sintomatologia para o

    diagnstico. (Thomsen LL. 2007) O seu incio na infncia e adolescncia. Os sintomas

    incluem cefaleia uni ou bilateral, precedida e/ou acompanhada por aura, que, para alm das

    alteraes motoras caractersticas, se manifesta ainda com pelo menos trs dos quatro sintomas

    tpicos da aura da EcA (visuais, sensitivos, motores e afsicos). Tanto a cefaleia como a aura

    tendem ter uma durao maior relativamente EcA. No entanto, alguns doentes nunca tm

    cefaleia (1-5%) e cerca de 40% apresentam formas atpicas de EHF com hemiplegia prolongada,

    confuso, alucinaes visuais ou auditivas, alteraes de conscincia (desde obnubilao at

    coma profundo) febre, sinais menngeos, pleocitose do lquor e crises epilpticas. A epilepsia

    pode ocorrer durante ou independentemente da EHF e em 20% das famlias alguns doentes tm

    sintomas e sinais cerebelosos fixos, com ataxia progressiva com ou sem nistagmo, associada a

    atrofia do vrmis. (Pietrobon D. 2007 e Barros J. 2008)

    Stress emocional e fsico e traumatismo craniano de pequena gravidade esto entre os

    desencadeantes mais comuns. A administrao endovenosa de contrastes radiolgicos iodados

    pode precipitar ou agravar os episdios e cerca de 10% dos doentes identificam factores

    desencadeantes comuns EcA (por exemplo, ciclos menstruais). (Barros J. 2008)

    At ao momento, foram descobertos trs genes responsveis pela EHF dois que

    codificam canais inicos e um que codifica um transportador de ATP. Estas mutaes levam,

    em geral, a uma hiperexcitabilidade neuronal, quer atravs do aumento da libertao de

    glutamato ou K+ quer da diminuio da sua clearance, na fenda sinptica, tornando o crebro

    mais susceptvel depresso cortical alastrante (DCA).

    o EHF do tipo 1: Mutaes do gene CACNA1A (cromossoma 19p13)

    Responsvel por 50% dos casos de EHF;

    Descobertas 18 mutaes diferentes;

    Algumas mutaes causam epilepsia durante episdios de EHF ou at

    independentemente;

    Frequentemente associada aos sintomas cerebelosos, que so quase

    exclusivos desta mutao;

  • 9

    o EHF do tipo 2: Mutao do gene ATP1A2 (cromossoma 1q21-31):

    Cerca de 30 mutaes foram descobertas;

    Codifica a subunidade alfa2 de um transportador Na+/K+ ATPase;

    Pode causar ausncia completa do transportador ou apenas modificaes na

    sua actividade;

    Pode-se manifestar com atraso mental permanente, enxaqueca confusional e

    epilepsia, incluindo epilepsia benigna da infncia;

    o EHF do tipo 3: Mutao do gene SCN1A (cromossoma 2q24):

    Recentemente descoberto;

    Codifica a subunidade formadora do poro de um canal de Na+ voltagem-

    dependente;

    A mutao acelera a recuperao aps a inactivao rpida;

    Mutaes neste gene causam epilepsia mioclnica grave da infncia (EMGI),

    um distrbio raro caracterizado por convulses febris precoces seguidas de

    epilepsia imprevisvel, deteriorao mental e ataxia. (Pietrobon D. 2007 e

    Wessman M et al. 2007)

    Os 50% de casos de EH sem histria familiar so classificados como Enxaqueca

    Hemiplgica Espordica (EHE), que poder resultar de penetrncia incompleta ou de

    observao clnica insuficiente, ou poder ser a manifestao de uma variedade de EcA de

    natureza multifactorial, intrincando factores genticos complexos. (Barros J. 2008)

    Alguns casos de Enxaqueca Hemiplgica Espordica (HEE) apresentam mutaes nos

    genes CACNA1A e ATP1A2.

    Foram descritas mutaes em algumas famlias portuguesas: R583Q no gene

    CACNA1A em famlia com indivduos com EHF1, SCA6 ou ambas (Arch Neurol 2003 Apr;

    60(4): 610-4); R1347Q no gene CACNA1A em famlia com ataxia cerebelosa progressiva e

    enxaqueca hemiplgica precipitada por esforos fsicos (Clin Genet 2004 Jan; 65(1):70-2);

    M731T e T376M, em duas famlias com EHF pura (J Hum Genet 2007; 52(12): 990-8); V362E

    no gene ATP1A2 de uma famlia com EHF2 associada a personalidade borderline e P796S no

    gene ATP1A2 em famlia EHF2 com atraso mental (Clin Genet. 2008 Jan; 73(1): 37-43).

    (Barros J. 2008)

    Vrios genes de susceptibilidade foram associados enxaqueca dita comum, mas a

    maioria dos resultados permanece controversa e necessita de confirmao.

  • RELAES ENXAQUECA-EPILEPSIA

    10

    Faltam evidncias que permitam compreender at que ponto as formas mendelianas de

    enxaqueca, partilham o mecanismo com as formas simples. Podemos dizer porm que todos os

    tipos de EHF apontam para uma alterao do equilbrio do potencial de membrana, semelhante

    a outros distrbios paroxsticos, como algumas epilepsias.

    EPILESIA

    A epilepsia uma doena caracterizada por crises espontneas, convulsivas ou no,

    causadas por descargas anormais, excessivas e hipersincrnicas de um agregado de neurnios. A

    sua prevalncia cerca de 1%, afectando todas as faixas etrias, com maior incidncia na

    infncia e na terceira idade.

    As descries mais antigas de epilepsia so atribudas aos egpcios e sumrios, datando

    de aproximadamente 3.500 a.C.

    Por volta de 400 a.C., Hipcrates afirmou que a causa da epilepsia no estava em

    espritos malignos, mas sim no crebro. Na origem da crise epilptica esto descargas elctricas

    no controladas dos neurnios corticais. A actividade paroxstica causada por uma

    despolarizao de longa durao da membrana neuronal devida ao influxo de clcio

    extracelular, levando abertura dos canais de sdio voltagem-dependentes e consequentemente

    gerao de potenciais de aco repetidos. Em seguida, d-se um ps-potencial hiperpolarizante

    compensatrio, mediado por receptores do GABA ou canais de potssio, dependendo do tipo

    celular.

    A classificao das crises e sndromes epilpticas tem sofrido algumas alteraes nos

    ltimos anos.

    Em geral, a classificao das crises epilpticas est dividida em dois grupos principais,

    baseados no mecanismo biolgico especfico envolvido nas convulses e na sua localizao

    anatmica.

    Crises parciais so aquelas em que a actividade convulsiva se restringe a reas isoladas

    do crtex cerebral e esto mais frequentemente associadas a anormalidades estruturais.

    Quando h preservao da conscincia a crise denominada crise parcial simples. Este

    tipo pode manifestar-se com confuso mental, movimentos clnicos e, por vezes, postura tnica

    pura, parestesias, alteraes visuais, sintomas autnomos e ainda sintomas nicos, como medo,

    sensao de mudana iminente, dissociao, despersonalizao, dej vu, micropsia, macropsia,

  • 11

    cheiros e paladares intensos. Em alguns doentes a crise pode comear numa zona muito restrita

    e avanar gradualmente para uma rea maior (marcha jacksoniana), representando a extenso da

    rea convulsiva a uma regio progressivamente maior do crtex cerebral. Aps a crise o doente

    pode apresentar fraqueza ou parsia localizada dos msculos envolvidos (paralisia de Todd), de

    minutos at vrias horas.

    Se a conscincia for comprometida, a crise denomina-se crise parcial complexa. Metade

    das crises em adultos so parciais complexas; cerca de 80% so originadas no lobo temporal e

    20% no lobo frontal. Caracterizam-se pelo compromisso temporrio da capacidade do doente de

    interagir normalmente com o ambiente, podendo ser precedidas por aura. Esta caracterizada

    por sintomas visuais, olfactivos ou auditivos e pode ser uma crise parcial simples. Aps alguns

    segundos os doentes podem iniciar movimentos repetitivos, como mastigar ou estalar os lbios e

    a transio at recuperao plena da conscincia pode demorar de segundos at uma hora. Este

    tipo de crise ocasionalmente seguido por cefaleias intensas.

    Por vezes uma crise parcial complexa pode evoluir para uma crise generalizada, sendo

    classificada como crise parcial com generalizao secundria.

    Crises generalizadas envolvem regies difusas do crebro simultaneamente e esto

    mais frequentemente associadas a alteraes celulares e bioqumicas. Por definio

    comprometem simultaneamente ambos os hemisfrios cerebrais. Tm caractersticas distintivas

    que permitem a diviso em vrios subtipos:

    Crises de ausncia caracterizam-se por lapsos bruscos e sbitos de conscincia, sem

    perda do controle postural e em geral acompanhadas de sinais motores bilaterais subtis, no

    apresentando confuso ps-ictal.

    Crises tnico-clnicas podem iniciar-se subitamente sem aviso prvio embora alguns

    doentes descrevam sintomas premonitrios. A fase inicial da crise consiste numa contraco

    tnica generalizada, podendo dar origem ao grito-ictal quando acomete a musculatura

    respiratria. Aps dez a vinte segundos evolui para a fase clnica que no costuma durar mais

    de um minuto. O doente gradualmente recupera a conscincia em alguns minutos ou horas

    havendo um perodo de confuso ps-ictal. Posteriormente os doentes queixam-se de fadiga,

    cefaleias e mialgias que podem durar vrias horas.

    Existem variantes deste tipo convulsivo como as crises clnicas ou tnicas puras.

    Crises atnicas caracterizam-se por perda sbita do tnus postural com um a dois

    segundos de durao, havendo breve perda de conscincia e apenas raramente confuso ps-

    ictal.

    Crises mioclnicas so caracterizadas por contraces musculares sbitas e breves

    podendo comprometer uma parte ou todo o corpo.

  • RELAES ENXAQUECA-EPILEPSIA

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    Vrias sndromes epilpticas tm caractersticas clnicas e patolgicas que sugerem uma

    etiologia subjacente especfica e comum. A sua classificao baseada na etiologia e na

    localizao do foco epileptognico. Parte destas sndromes fazem parte do grupo maior das

    canalopatias e esto associados a mutaes genticas com implicao no funcionamento dos

    canais inicos.

    Epilepsia do lobo frontal, nocturna autossmica dominante (ELFNAD): causada

    por mutaes dos genes CHRNA4 (20q13.2) e CHRNB2 (1q21.3) que codificam uma

    subunidade de um receptor nicotnico; tem incio na infncia e, tal como o nome indica,

    caracteriza-se por convulses nocturnas breves com movimentos motores proeminentes.

    Convulses neonatais familiares benignas (CNFB): causadas por mutaes nos genes

    KCNQ2 e KCNQ3 que codificam subunidades de em canal de potssio voltagem-dependente;

    tem heretariedade autossmica dominante e incio na primeira semana de vida; a remisso d-se

    em semanas ou meses, mas em cerca de 10 a 15% dos casos a epilepsia mantm-se.

    Epilepsia generalizada com convulses febris plus (EGCF+): causada por mutaes

    nos gene SCN1B (EGCF+ tipo 1), SCN1A (EGCF+ tipo 2), que codificam as subunidade beta,

    alfa de um canal de sdio voltagem-dependente, e GABRG2 (EGCF+ tipo 3) e GABRD

    (EGCF+ tipo 5), que codificam subunidades do receptor GABAA associado a um canal de cloro;

    autossmica dominante e apresenta-se como convulses febris em crianas com idade mdia

    de um ano, podendo persistir para alm dos seis anos como convulses no associadas a febre.

    Convulses familiares benignas da infncia (CFBI): ligada a trs genes de

    susceptibilidade localizados nos cromossomas 19q12-q13.11, 16p12-q12 e 2q23-31, sendo que

    nenhum gene responsvel foi ainda identificado; caracterizada por crises de convulses

    afebris, por volta do sexto ms de vida; tm uma evoluo benigna, permitindo um crescimento

    normal.

    Epilepsia de ausncia da infncia: ligada a mutaes nos genes GABRG2, CLCN2 e

    possivelmente CACNA1H; tem incio entre os quatro e os dez anos e desaparece

    espontaneamente antes dos doze anos, sem recidivas; caracterizada por crises leves, de curta

    durao e apresentao montona, com ruptura do contacto completa, geralmente vrias vezes

    ao dia; no alteram o desenvolvimento psicolgico do doente.

    Epilepsia mioclnica grave da infncia (EMSI ou Sndrome de Dravet): variante

    muito rara, causada por mutaes nos genes SCN1A e GABRG2; inicia-se no primeiro ano de

    vida, geralmente como uma crise clnica (unilateral ou generalizada), frequentemente

    despoletada por febre; ao longo da sua evoluo pode apresentar-se com crises focais ou

  • 13

    generalizadas, clnicas, tnicas, mioclnicas, hemiclnicas, tnico-clnicas ou crises de

    ausncia tpicas; geralmente refractria ao tratamento.

    Epilepsia benigna da infncia (Epilepsia Rolndica): sndrome epilptica parcial, de

    herana autossmica dominante, aparentemente ligada ao cromossoma 15q14 e subunidade

    alfa-7 do receptor de acetilcolina; tem incio entre os trs e os treze anos de idade; as crises so

    caracterizadas por parestesias e actividade clnica ou tnica da face inferior, associada a

    hipersalivao e disartria; tendem a acorrer noite e podem ter generalizao secundria;

    normalmente as crianas apresentam um desenvolvimento normal e as crises no persistem para

    alm da primeira metade da adolescncia.

    EPILEPSIA E ENXAQUECA

    A epilepsia e a enxaqueca representam no seu conjunto quase metade dos pedidos de

    consultas hospitalares de neurologia. A relao entre as duas doenas debatida h sculos, pelo

    menos desde a publicao original de Jackson em 1888. (Pace BP. JAMA 1998) No entanto as

    suas afinidades e associaes permanecem mal compreendidas

    Na grande maioria dos casos, a distino clnica entre a enxaqueca e a epilepsia fcil.

    Mas as suas caractersticas sensoriais, motoras e cognitivas sobrepem-se frequentemente e

    ambas se podem manifestar com cefaleia. Por isso, h situaes especiais em que o diagnstico

    diferencial pode ser problemtico.

    Cada uma delas tem um sistema de classificao internacionalmente reconhecido (Haut

    SR et al. 2006), cuja categorizao permite uma certa analogia entre as cefaleias primrias e as

    epilepsias idiopticas. (Bigal ME et al. 2003)

    Outro ponto em comum entre a enxaqueca e epilepsia o facto de ambas partilharem as

    mesmas fases durante a crise. Desta forma, tanto a crise da enxaqueca como a crise epilptica

    podem ser divididas em quatro fases essenciais: fase premonitria (prdromo), aura, fase ictal e

    fase da resoluo (ps-ictal). (Bigal ME et al. 2003)

    Verifica-se ainda uma sobreposio teraputica considervel: valproato de sdio e

    topiramato tm eficcia confirmada na enxaqueca e na epilepsia. (Faught E et al 1996; Beydoun

    A et al. 1997; Freitag FG et al. 2002; Brandes JL et al. 2004) Alguns estudos sugerem que os

    antiepilpticos lamotrigine (Dandrea G et al. 1999), gabapentina (Saper JR et al. 2001),

    levetiracetam (Drake ME et al. 2001) e sonizamida (Drake ME et al. 2004) possam ser eficazes

    na enxaqueca.

    A enxaqueca e a epilepsia partilham como factores de risco histria familiar, presena

    de depresso e presena da outra doena. (Hesdorffer DC et al. 2000; Chin RF et al 2004;

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    14

    Asadi-Pooya AA et al.2005; Lyngberg AC et al. 2005) Neste sentido, e embora os dados

    publicados variem, o consenso geral que a epilepsia e a enxaqueca so patologias altamente

    comorbidas, isto , a ocorrncia de ambas no mesmo indivduo pode no se tratar de mero

    acaso. (Andermann E et al. 1987; Ottman R et al. 1994; Lipton RB et al. 2004)

    De acordo com Andermann E et al. (1987) a prevalncia mdia de epilepsia em

    indivduos com enxaqueca seria de 5,9%, consideravelmente maior do que os 0,5% da

    populao geral. Igualmente, Ottman R e Lipton RB (1996) chegaram a uma incidncia de

    enxaqueca 2,4 vezes superior nas pessoas com epilepsia em relao populao sem epilepsia.

    Dois outros estudos demonstram ainda que crianas com epilepsia tm um risco muito superior

    de apresentarem tambm EcA (prevalncia de 46% em relao aos 3% no grupo controlo).

    (Yamane LE et al. 2004; Ludvigsson P et al. 2006)

    Mais recentemente, um estudo noruegus (Syvertsen M et al 2007) demonstrou uma

    prevalncia de cefaleias em doentes epilpticos de 65%, cerca do dobro da prevalncia de um

    estudo populacional na mesma rea, que, com o mesmo questionrio, encontrou uma

    prevalncia de 38% de cefaleias na populao geral. Dentro dos 65% dos doentes com cefaleia,

    52% apresentavam cefaleia inter-ictal, 44% ps-ictal, 6% pr-ictal e nenhum com cefaleia ictal.

    Enxaquecas foram descritas em 41% dos indivduos com cefaleia inter-ictal, 42% nos com

    cefaleia ps-ictal e em cerca de 57% dos indivduos com cefaleia pr-ictal.

    H vrias relaes clnicas possveis entre a enxaqueca e a epilepsia. A primeira pode

    desencadear a segunda, o que a ICHD-II classifica como convulses despoletadas por

    enxaqueca (1.5.5). Esta migralepsy limitada a doentes com EcA, refere-se ocorrncia de

    uma crise epilptica durante uma aura tpica e observada mais raramente do que o esperado,

    considerando as taxas de comorbilidade entre as duas doenas. (Simone R et al. 2007) A

    enxaqueca pr-ictal definida como uma enxaqueca que se inicia nunca antes de 24 horas de

    uma crise e que dura at ao incio da mesma. Diferencia-se da anterior pelo facto de no

    implicar presena de aura. Para alm destas duas, existem as, j mencionadas: enxaqueca ictal,

    que ocorre durante uma crise parcial simples, enxaqueca ps-ictal, que se inicia desde trs horas

    aps a crise e cessa antes das 72 horas, e enxaqueca inter-ictal, que se inicia sempre depois de

    trs horas aps a crise e que nunca a precede directamente. (Syvertsen M et al 2007)

    Apesar da aceitao da comorbilidade entre enxaqueca e epilepsia, os mecanismos

    subjacentes a esta associao epidemiolgica permanecem insuficientemente conhecidos. As

    trs principais hipteses descritas por Ottman R e Lipton RB (1996) so: a enxaqueca um

    factor de risco para epilepsia (causando, por exemplo, dano ou isquemia cerebral); a epilepsia

  • 15

    um factor de risco para enxaqueca (possivelmente atravs da activao do sistema trigmino-

    vascular); a enxaqueca e a epilepsia partilham uma influncia comum de factores genticos e

    ambientais.

    Todas estas possibilidades acabaram por ser rejeitadas pelos prprios autores. As duas

    primeiras hipteses implicariam um aumento da incidncia de enxaqueca antes ou aps a crise

    epilptica, o que no se verifica, havendo uma comorbilidade bidireccional, com uma incidncia

    aumentada de enxaqueca quer antes quer depois. (Lipton RB et al. 1994) Isto implica a

    existncia de mecanismos patolgicos comuns s duas doenas, a base da terceira hiptese. Esta

    ltima acabou por ser rejeitada, uma vez que no se observou prevalncia superior de enxaqueca

    nos indivduos com epilepsias familiares. (Ottman R et al 1996)

    Os autores sugeriram ento que a hiperexcitabilidade cortical que caracteriza ambas as

    patologias seria o mecanismo etiolgico comum, explicando esta comorbilidade bidireccional.

    Uma hiperexcitabilidade cortical inter-ictal poderia predispor o crebro a DCA, nos

    doentes com EcA e possivelmente EsA. De facto, possvel que a DCA ocorra tambm nos

    doentes com EsA, mas em regies corticais que permaneam clinicamente silenciosas com a

    passagem da onda. (Del Rio S et al. 2004)

    Graas aos avanos da gentica molecular, parte da base gentica dos subtipos

    monognicos de enxaqueca e epilepsia foi j clarificada. Os nicos trs genes da enxaqueca

    conhecidos at hoje esto associados EHF e, at certo ponto, tambm epilepsia.

    As mutaes do gene CACNA1A manifestam-se, como j referido, assumem vrios

    fentipos, incluindo EHF1 pura, EHF1 com ataxia, EHF1 com atraso mental e EHF1 com coma

    fatal. Vrias das mutaes deste gene esto associadas epilepsia, que ocorre principalmente

    como parte da crise hemiplgica, mas, ocasionalmente, de forma independente da enxaqueca.

    (Haan J et al. 2008)

    As alteraes deste gene afectam as propriedades biofsicas dos canais de Ca2+ e a sua

    densidade na superfcie celular. De facto, todas as mutaes conhecidas causam uma diminuio

    o limiar de activao do canal, levando sua abertura em resposta a despolarizaes menores do

    que o habitual. Esta facilitao da actividade canalicular com potenciais negativos leva ao

    aumento do influxo de Ca2+ e, consequentemente, libertao excessiva de glutamato na fenda

    sinptica.

    A EHF2 apresenta-se com vrios fentipos, incluindo ataxia e atraso mental. Mutaes

    graves esto associadas a sndromes epilpticas como as convulses familiares benignas da

    infncia (CFBI) e a epilepsia de ausncia da infncia. (Kraus RL et al. 1998) Recentemente foi

    descoberta uma mutao do gene ATP1A2 em duas famlias belgas com CFBI e EHF (famlia

  • RELAES ENXAQUECA-EPILEPSIA

    16

    com mutao p.Gly900Arg) ou simplesmente enxaqueca com ou sem aura (famlia com

    mutao p.Cys702Tyr). (Deprez L et al. 2008)

    As bombas Na+/K+ gliais e neuronais so fundamentais na clearance de K+ do espao

    extracelular, bem como de glutamato da fenda sinptica. As mutaes do gene ATP1A2 causam

    a perda de funo, grave ou completa, desta bomba de ATP. Consequentemente, h uma

    diminuio da clearance de K+ e glutamato, levando despolarizao membranar e

    impossibilitando a repolarizao. (Pietrobon D et al. 2007)

    Mutaes no gene SCN1, j implicadas em sndromes epilpticas, como a epilepsia

    generalizada com convulses febris mais (EGCF+) e a epilepsia mioclnica grave da infncia

    (EMSI), foram descobertas em 2005 em famlias com EHF, sendo que alguns destes doentes

    com esta EHF3 apresentavam ainda epilepsia benigna da infncia. Estas mutaes podem levar

    ao aumento ou diminuio da funo dos canais de Na+. Verificou-se que a perda de actividade

    dos canais de Nav1.1 afectava essencialmente o funcionamento dos neurnios inibitrios. Por

    outro lado, as mutaes associadas a ganho de funo levam a uma recuperao acelerada, aps

    inactivao rpida, dos canais de Nav1.2 e Nav1.5 localizados nos neurnios excitatrios. (Kraus

    RL et al. 1998) Desta forma, todas as mutaes levam a um aumento de excitabilidade neuronal,

    quer atravs da facilitao da despolarizao, verificada na EHF3 e na EGCF+, quer atravs da

    diminuio da inibio, presente na EMSI. (Pietrobon D et al. 2007)

    Todos estes genes codificam subunidades de canais inicos que tm uma influncia

    directa na excitabilidade membranar e consequentemente na libertao de neurotransmissores.

    Mutaes destes genes causam perturbao do equilbrio entre o estmulo excitatrio e o

    inibitrio, levando a hiperexcitabilidade e a crises. (Steinlein OK et al. 2004) O efeito final um

    aumento de k+ e glutamato na fenda sinptica e uma propenso para a depresso alastrante

    cortical (DCA), causando enxaqueca, e para mudanas despolarizantes paroxsticas (Deprez L et

    al. 2008), levando a crises epilpticas.

    Para alm disso, algumas destas mutaes, ao causarem alterao na modulao dos

    potenciais inibitrios ps-sinpticos (PIPS), aumentam a susceptibilidade cortical s descargas

    epilpticas.

    Parisi P et al (Epilepsia 2007) descreveram o caso de uma doente de 14 anos de idade

    com crise epilptica occipital fotossensvel seguida de um estado de enxaqueca durante trs

  • 17

    dias. O EEG demonstrou um estado paroxstico occipital durante a enxaqueca e a administrao

    de diazepam IV levou supresso das descargas epilpticas e das cefaleias.

    Na opinio dos autores (Parisi P et al. Med Hypotheses 2007), a enxaqueca e a epilepsia

    representam dois aspectos do mesmo fenmeno neurofsiopatolgico. Defeitos inicos que

    levam a alteraes da excitabilidade neuronal podem resultar em manifestaes tpicas de

    enxaqueca e epilepsia, atravs de DCA, PDS e modulao de PIPS. Porque motivo que esta

    hiperexcitabilidade cortical se manifesta frequentemente apenas como enxaqueca? Neste artigo

    a enxaqueca/cefaleia vista como uma manifestao autonmica do evento epilptico, que pode

    acontecer isoladamente (enxaqueca), antes (cefaleia pr-ictal), aps (cefaleia ps-ictal) ou

    durante (cefaleia ictal) o mesmo, dependendo da idade do doente, do tamanho do foco

    epileptognico, da velocidade, tipo, percurso e forma de propagao da onda.

    Assim, uma alterao na excitabilidade cortical seria capaz de resultar tanto em

    epilepsia como em enxaqueca /cefaleia, dependendo das variveis anatomo-neurobiolgicas.

    Concluindo, a enxaqueca poderia ser encarada como um fenmeno epilptico de longa

    durao e, em certos casos, at como um estado epilptico autnomo puro. (Ferrie CD et al.

    2007; Ghofrani M et al. 2007; Parisi P et al. Epilepsia 2007)

    CONCLUSO

    Nos artigos acerca da relao enxaqueca-epilepsia a aceitao da sua comorbilidade

    praticamente global. Os estudos genticos dos subtipos monognicos permitiram encontrar

    pontos de contacto entre as duas patologias e fazer luz sobre os seus mecanismos

    meurobiolgicos. No entanto, a intensidade e a forma exacta da ligao entre estas duas

    patologias permanecem desconhecidas.

    Seria interessante perceber porque que a maioria dos doentes com EHF no apresenta

    epilepsia, uma vez que as mutaes so comuns s duas patologias. E, por outro lado,

    permanece tambm desconhecido o motivo porque diferentes mutaes no mesmo gene levam a

    um ganho de funo que se manifesta umas vezes como EHF e outras vezes como epilepsia.

    Mais de 100 anos de estudo dedicado possvel relao entre a enxaqueca e a epilepsia

    no foram suficientes para encontrar uma explicao cabal dos mecanismos que esto na sua

    origem. Espera-se que os estudos nesta rea criem conhecimento sobre a biologia destas

    sndromes, permitindo o desenho de medicamentos mais especficos e eficazes, e mais

    qualidade de vida para os milhes de pessoas que sofrem de enxaqueca, de epilepsia e de

    sndromes afins.

  • RELAES ENXAQUECA-EPILEPSIA

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