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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
Carloman Cordovil Heiderich
RELAÇÃO DO HOMEM COM A NATUREZA NO
PENSAMENTO DE JOÃO AMÓS COMENIUS
São Paulo
2011
CARLOMAN CORDOVIL HEIDERICH
RELAÇÃO DO HOMEM COM A NATUREZA NO
PENSAMENTO DE JOÃO AMÓS COMENIUS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Ciências da
Religião.
Orientador: Prof. Dr. Edson Pereira Lopes
São Paulo
2011
H465r Heiderich, Carloman Cordovil
Relação do homem com a natureza no pensamento de João Amós
Comenius / Carloman Cordovil Heiderich – 2011.
114 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2011.
Bibliografia: f. 112-114
1. Homem 2. Natureza 3. Didática Magna 4. Pampaedia I. Título
II. Comenius, João Amós
LC LB475.C6
CDD 370.1
CARLOMAN CORDOVIL HEIDERICH
RELAÇÃO DO HOMEM COM A NATUREZA NO
PENSAMENTO DE JOÃO AMÓS COMENIUS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Ciências da
Religião.
.
Aprovada em __/__/__
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Prof. Dr. Edson Pereira Lopes – Orientador
Universidade Presbiteriana Mackenzie
________________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Máspoli de Araújo Gomes
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_____________________________________________________
Prof. Dr. James Reaves Farris
Universidade Metodista de São Paulo
Aos meus Pais, Cloves e Eunice Heiderich (in
memoriam), por me ensinarem os primeiros passos na
vida cristã e pelos constantes incentivos na vida
acadêmica.
À minha amada esposa Katia Heiderich, grande
incentivadora dos meus estudos.
Aos meus filhos Mônica, Juliana, Mariana e Adam
Heiderich, que entenderam a minha ausência.
AGRADECIMENTOS
Ao soberano Deus, o criador dos céus e da terra, sustentador e razão da minha
existência, que bondosamente me concedeu a bênção e a alegria da conclusão desta
pesquisa.
Ao Instituto Presbiteriano Mackenzie pelo incentivo à prática de investigação
acadêmica, meus sinceros agradecimentos pela concessão da bolsa de estudo que me
possibilitou a conclusão deste projeto.
Ao prof. Dr. Edson Pereira Lopes, minha sincera gratidão pela paciência e
responsabilidade com que me orientou, fazendo jus ao significado do termo orientação.
Aos professores, Dr. Antônio Máspoli de Araújo Gomes e Dr. James Reaves Farris, a
minha mais profunda gratidão por se dignarem em participar da minha banca
examinadora e pelas valorosas contribuições que deram para a conclusão desta pesquisa.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação, mestrado em Ciências da
Religião, meus agradecimentos pela humildade e lição de vida que me ensinaram.
A todos os amigos, os meus mais sinceros agradecimentos.
RESUMO
Nos últimos anos vem crescendo a discussão em torno das questões ambientais. Prova
disto está no fato de que o ano de 2010 foi declarado, pela Organização das Nações
Unidas (ONU), o ano da Biodiversidade. Segundo seu site oficial trata-se de uma
celebração da vida na terra e a valorização da diversidade da vida. Na resposta a
pergunta quanto à razão da ONU ter escolhido o ano de 2010, explicita-se que o homem
é parte integrante da natureza e tem o poder de protegê-la ou de destruí-la. A presente
pesquisa tem como pano de fundo a reflexão que envolve o meio ambiente e o ano da
Biodiversidade. Inicialmente a intenção era utilizar o termo “meio ambiente” no
pensamento comeniano, todavia, por se tratar de um termo da sociedade atual,
entendeu-se que seria mais adequado, discorrer a respeito da relação do homem com a
natureza, tendo como foco duas obras de João Amós Comenius: Didática magna e
Pampaedia. Por conseguinte, teve como objetivo norteador da pesquisa identificar no
pensamento de João Amós Comenius a relação do homem com a natureza. Para tanto,
partiu-se do princípio norteador de que João Amós Comenius demonstrou na Didática
magna e em sua Pampaedia teve preocupação em acenar para seu mundo que uma
relação imprópria do homem com a natureza, sobretudo, quando este, dela se utiliza
para fins exploratórios e incompatíveis com a finalidade para qual foi criada, faz com
que ela sofra e com ela o ser humano.
Palavras-chave: Comenius. Homem. Natureza. Relação. Exploração.
ABSTRACT
In recent years it comes growing the quarrel around the ambient questions. Test of this
is in the fact of that the year of 2010 was declared, for the Organization of United
Nations (ONU), the year of Biodiversity. As its official site is about a celebration of the
life in the land and the valuation of the diversity of the life. In the reply the question
how much at the rate of the ONU to have chosen the year of 2010, explicit one that the
man is integrant part of the nature and has the power to protect it or to destroy it. The
present research has as deep cloth of the reflection that involves the environment and
the year of Biodiversity. Initially the intention was to use the term “environment” in the
comeniano thought, however, for if dealing with a term of the current society, it was
understood that more it would be adjusted, to discourse regarding the relation of the
man with the nature, having as focus two workmanships of John Comenius: Great
Didactics and Pampaedia. Therefore, it had as objective principal of the research to
identify in the thought of John Comenius the relation of the man of the one with the
nature. For in such a way, it was broken of the norteador principle of that John
Comenius demonstrated in the Great Didactics and in its Pampaedia he had concern in
waving for its world that an improper relation of the man with the nature, over all, when
this of it if uses for exploratórios ends and incompatible with the purpose for which she
was servant, it makes with that it suffers and with it the human being.
Keywords: Comenius. Man. Nature. Relation. Exploration.
SUMÁRIO
Considerações Iniciais .................................................................................................... 10
Capítulo I - Ensinos fundamentais da Didática magna de Comenius...... 14 O homem é a mais elevada e perfeita das criaturas .................................................... 17
O fim último do homem está fora desta vida.............................................................. 18
São três os graus de preparação para a vida eterna: conhecer, dominar e conduzir para
Deus a si mesmo e, consigo todas as coisas ............................................................... 19
Temos em nós por natureza as sementes da instrução, das virtudes e da religião ...... 20
O homem para ser homem precisa ser formado ......................................................... 21
A formação do homem é muito fácil na primeira infância: ou melhor, só pode ser
dada nessa idade ......................................................................................................... 23
É necessário que toda a juventude receba uma formação conjunta, na escola ........... 24
Toda a juventude, de ambos os sexos, deve ser enviada à escola .............................. 25
A educação nas escolas deve ser universal ................................................................. 26
Até hoje faltaram escolas que correspondessem perfeitamente a seus fins ................ 27
As escolas podem ser reformadas e melhoradas ........................................................ 28
A base de toda reforma escolar é a ordem exata em tudo .......................................... 29
A ordem exata da escola deve ser inspirada na natureza e ser tal que nenhum
obstáculo a retarde ...................................................................................................... 30
Princípios para prolongar a vida ................................................................................. 31
Método para ensino das ciências em geral ................................................................. 32
Método para ensino das artes...................................................................................... 33
Método para ensino das línguas.................................................................................. 34
Da disciplina escolar ................................................................................................... 36
Sobre a quádrupla divisão das escolas, segundo a idade ............................................ 36
A escola Materna ........................................................................................................ 37
A escola vernácula ...................................................................................................... 38
A escola latina ............................................................................................................ 38
A Academia ................................................................................................................ 39
A organização universal e perfeita das escolas .......................................................... 40
Requisitos necessários para começar a pôr em prática este método universal ........... 41
Capítulo II - Ensinos fundamentais da Pampaedia de João Amós
Comenius ................................................................................................................................ 43
Panscolia ..................................................................................................................... 45
Educação para todos ................................................................................................... 47
A relevância da Instituição Escolar ............................................................................ 47
Pambiblia .................................................................................................................... 48
Pandidascália .............................................................................................................. 50
Informações úteis aos pais sobre os primeiros cuidados com as crianças ainda no seio
maternal ...................................................................................................................... 54
Cuidadosa formação do filho do nascimento até os seis anos de idade ..................... 56
Classe da Escola Primária........................................................................................... 69
Segunda Classe da Escola Primária ............................................................................ 69
Terceira Classe da Escola Primária: A ética infantil aprendida pelas coisas sensíveis
.................................................................................................................................... 70
Classe quarta ............................................................................................................... 71
Classe Quinta .............................................................................................................. 71
Classe sexta ................................................................................................................ 73
Capítulo III - A relação homem-natureza no pensamento de João Amós
Comenius ................................................................................................................................ 76
Do geocentrismo para o heliocentrismo ..................................................................... 78
A revolução do saber e da ciência .............................................................................. 79
Ciência discutida sistematicamente na procura de método ........................................ 80
O homem pode conhecer o Criador por meio da natureza ......................................... 81
A criação do homem, formado a partir da natureza ................................................... 82
Ensinar os homens a usar e fruir corretamente da natureza ....................................... 88
O método único do ensino é o que segue as leis da natureza ..................................... 92
A natureza aguarda o momento propício .................................................................... 94
A natureza prepara a matéria antes de começar a introduzir-lhe a forma .................. 94
A natureza toma um indivíduo apto e prepara-o antes, oportunamente ..................... 95
A natureza não procede confusamente, mas de modo claro ....................................... 95
A natureza começa todas as operações pelas partes mais internas ............................. 95
A natureza inicia todas as suas formações pelas coisas mais gerais e acaba pelas mais
particulares.................................................................................................................. 96
A natureza não procede por saltos, mas gradualmente ............................................... 96
Depois de iniciar uma obra, a natureza não a interrompe, mas conclui ..................... 97
A natureza está sempre atenta para evitar as coisas contrárias e nocivas................... 97
A natureza inicia pela privação .................................................................................. 98
A natureza predispõe a matéria a desejar a forma ...................................................... 98
A natureza extrai tudo de princípios pequenos em quantidade, mas válidos pela
virtude ......................................................................................................................... 98
A natureza nunca excede, mas contenta-se com pouco .............................................. 99
A natureza não se apressa, mas anda com vigor ........................................................ 99
A natureza só pare o que, tendo amadurecido em seu seio, deseja vir à luz .............. 99
A natureza ajuda-se sozinha de todos os modos possíveis ......................................... 99
A natureza só produz aquilo cujo uso logo se manifesta .......................................... 100
A natureza faz tudo com uniformidade .................................................................... 100
Princípios em que se fundamenta a solidez no ensino e no aprender ....................... 100
Princípios de um ensino rápido e conciso ................................................................ 101
Sentidos; os instrumentos naturais para o ensino do método único ......................... 102
Considerações Finais ..................................................................................................... 109
Referências Bibliográficas .......................................................................................... 111
10
Considerações Iniciais
Nos últimos anos têm crescido a discussão em torno das questões ambientais.
Prova disto está no fato de que o ano de 2010 é declarado, pela Organização das Nações
Unidas (ONU), o ano da Biodiversidade. Segundo seu site oficial trata-se de uma
celebração da vida na terra e a valorização da diversidade da vida. Na resposta para a
pergunta quanto à razão da ONU ter escolhido o ano de 2010, explicita-se que o homem
é parte integrante da natureza e tem o poder de protegê-la ou de destruí-la. O vocativo
do ano da Biodiversidade tem como finalidade o cuidado da vida com vistas a um futuro
melhor1.
A presente pesquisa, cujo título é: “Relação do homem com a natureza no
pensamento de João Amós Comenius” tem como pano de fundo a reflexão que envolve
o meio ambiente e o ano da Biodiversidade. Inicialmente a intenção era utilizar o termo
“meio ambiente” no pensamento comeniano, todavia, por se tratar de um termo da
sociedade atual, entende-se que é mais adequado, discorrer a respeito da relação do
homem com a natureza, tendo como foco duas obras de João Amós Comenius: Didática
magna e Pampaedia.
Por conseguinte, tem-se como objetivo norteador identificar no pensamento de
João Amós Comenius a relação do homem do com a natureza. A partir do objetivo
específico, o qual conduz ao problema da pesquisa e, conforme Azevedo (2001, p. 46),
o problema é a pergunta que a pesquisa pretende resolver, a qual deve ser apresentada
em forma interrogativa, a indagação suscitada é:
- É possível identificar, na Didática magna e na Pampaedia, o pensamento de
João Amós Comenius a respeito da relação do homem com a natureza? Parte-se da
hipótese central de que João Amós Comenius demonstra na Didática magna bem como
na Pampaedia, preocupação com uma possível relação imprópria do homem com a
natureza, sobretudo, quando este dela se utiliza para fins exploratórios e incompatíveis
com a finalidade para qual é criada. Assim, a natureza passa a sofrer e com ela o ser
humano. Isto implica acenar para o princípio de que, ainda que não seja possível utilizar
o termo “meio ambiente” no pensamento comeniano, pode-se concebê-lo, na forma
como ele apresenta a reflexão da relação do homem com a natureza. Há indícios de sua
1Para maiores esclarecimentos ler: The United Nations declared 2010 to be the International Year of
Biodiversity. Disponível em www.cbd.int/2010/welcome/. Acesso em 28/11/2010.
11
preocupação com o futuro do planeta, futuro este diretamente relacionado com a
responsabilidade do homem no cuidado e proteção do seu habitat.
Sob esta perspectiva, a presente pesquisa reveste-se de suma relevância para a
sociedade atual, pois, explora um foco do pensamento de Comenius que não seja
somente o pedagógico como pode ser visto na obra, publicada, pela Editora Unicamp,
de Kulesza (1992), cujo título é: Comenius: a persistência da utopia em educação. Em
autores como Bohumila Araújo em Atualidade do pensamento de Comenius, obra
publicada pela Editora Federal da Universidade da Bahia, no ano de 1996. Não se pode
esquecer do texto de Gasparin Comênio ou arte de ensinar tudo a todos. São Paulo:
Papirus, 1994. Por fim, é necessário lembrar que Covello escreve a obra Comenius,
datada de 1999, a qual se reveste de importância por ser uma das primeiras literaturas
brasileiras a discorrer acerca da vida e principais obras comenianas.
Observa-se que há um intervalo de quatro anos entre a última obra que é a de
Covello e a de Lopes, isso implica em afirmar que as obras a respeito de Comenius
ficaram restrita a estes pensadores e suas respectivas obras, o que permite Lopes (2003)
assinalar que uma das relevâncias de sua obra consiste no princípio de que há pouca
literatura, no Brasil, que trata do pensamento de Comenius. Segundo ele, as poucas
obras que tratam das temáticas comenianas têm como foco o aspecto pedagógico e não
consideram seus pensamentos teológicos. Assim, demonstra em sua obra, “O conceito
teológico e pedagógico na Didática magna de Comenius”, editada pela Editora
Mackenzie, em 2003, o caráter teológico de Comenius. Nesta obra, o autor sublinha que
o teológico precedia, no pensamento comeniano, o pedagógico. Este foco é uma
descoberta na busca pela compreensão do pensamento, do então Comenius, conhecido
apenas como o “pedagôgo”.
Um ano após a publicação de O conceito teológico e pedagógico na Didática
magna de Comenius, Lopes defende, em 2004, sua tese de doutorado na Universidade
Metodista São Paulo, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, com o
título: A inter-relação da teologia e da pedagogia como pressuposto fundamental para
a compreensão do conceito de educação no pensamento de João Amós Comenius. Dois
anos mais tarde (2006), esta obra é publicada pela Editora Mackenzie, com o título: A
inter-relação da teologia com a pedagogia no pensamento de Comenius. Nesta obra
Lopes preconiza que para conhecer o conceito comeniano de educação é fundamental
trabalhar tanto com seus princípios teológicos quanto pedagógicos, em termos
indissociáveis.
12
No momento, Lopes tem se preocupado em difundir, no Brasil, os pensamentos
de Comenius, escrevendo para periódicos religiosos e educacionais. Entretanto, nesta
prévia revisão de literatura, percebe-se que há um razoável avanço no estudo de
Comenius. Só na Universidade Presbiteriana Mackenzie os Trabalhos de Graduação
Interdisciplinar, também conhecidos como Trabalho de Conclusão de Curso são: 06.
Dissertações de Mestrado são: 05. Grupo de Pesquisa com subvenção pelo
Mackpesquisa 01.
Todavia, fica explicitado que ainda não tem sido abordado o pensamento de
Comenius sob a perspectiva da relação do homem com a natureza. Assim, esta pesquisa
se reveste de importância, porque se propõe trazer uma reflexão ainda não discutida, na
acadêmia brasileira, nos mais diferentes trabalhos que tratam de Comenius. Além disso,
é a oportunidade de revisitar a Didática magna e a Pampaedia, esta última pouco
conhecida dos pesquisadores brasileiros, talvez porque, esteja esgotada desde 1971.
Na tratativa do procedimento metodológico é possível eleger a pesquisa
bibliográfica como o caminho a ser percorrido e o procedimento adotado é o da leitura e
análise das obras Didática magna e da Pampaedia. Na fundamentação bibliográfica,
destacam-se como fontes as seguintes obras de Comenius: Didática magna (1997) e
Pampaedia (1971), e as obras que aparecem nas referências bibliográficas desta
pesquisa: GASPARIN (1994); KULESZA NARODOWSKI (2002); ARAÚJO (1996);
CAULY (1995) e RIBEIRO (2003). Como referencial teórico serão utilizados os textos
de Lopes (2003 e 2006) porque fazem interface com o pensamento teológico e
pedagógico de Comenius.
Após esta parte introdutória, como finalidade metodológica, a pesquisa se divide
em três capítulos, a saber:
No primeiro capítulo cujo título é: Ensinos fundamentais da Didática magna de
Comenius. A tônica é propiciar uma concepção panorâmica dos principais ensinos da
Didática magna. A finalidade consiste em prover, além do acesso, a oportunidade para
revisitar os principais pressupostos teológicos e pedagógicos de Comenius e, assim
identificar nesta obra conceitos tais como: homem, criação, natureza, dentre outras
temáticas.
O segundo capítulo com o título: Ensinos fundamentais da Pampaedia de
Comenius é fundamental para a pesquisa principalmente por ser uma obra pouco
conhecida, houve a necessidade de tratar dos principais conceitos comenianos relativo
ao homem; sentidos, natureza, escola, dentre outras temáticas.
13
Como resultado lógico dos dois capítulos anteriores, o terceiro trata da Relação
do homem com a natureza no pensamento de Comenius. A partir das duas obras,
Didática magna e Pampaedia, é possível identificar os princípios da relação do homem
com a natureza. Com isso, alcançar o objetivo e verificar a hipótese proposta nesta
reflexão.
Explicitadas as considerações iniciais, faz-se necessário adentrar na discussão do
primeiro capítulo que trata da temática: Ensinos fundamentais da Didática magna de
Comenius.
14
Capítulo I
Ensinos fundamentais da Didática magna de Comenius
Feita a parte introdutória, é mister neste capítulo propiciar uma compreensão
dos ensinos fundamentais da Didática magna de Comenius com a intenção de indicar os
principais ensinos expostos na citada obra para prover sustentação ao último capítulo
quanto à relação homem-natureza, que é o objeto de estudo desta pesquisa.
A Didática magna, inicialmente chamada de Didática theca, começa a ser
composta entre os anos 1628-1632. É razoável compreender que ocorrem algumas
motivações na vida e pensamento de Comenius que colaboram para que ele deixe sua
obra no campo teológico-pedagógico com ênfase política, dirigida a priori, ao público
theco.
Após a Batalha da Montanha Branca ocorrida 1620 (KULESZA, 1992, p. 31)
que, resulta na destruição da Boêmia, com o propósito de reconstruir, restaurar e
incentivar “o sofredor povo checo a desejar a reforma do seu mundo por meio de
educação de qualidade, que seria a única salvação do gênero humano” (LOPES, 2006,
p. 189-190), Comenius escreve a Didática tcheca, mais tarde ampliada ao seu mundo,
como Didática magna.
A Didática theca é iniciada em 1628 e pode ser considerada como uma resposta
à nova Constituição de 1627, que prescreve a instauração do catolicismo romano como
religião oficial, colocando o alemão como língua oficial, em detrimento ao theco.
Trata-se, portanto, não só de Comenius prosseguir seus trabalhos na área
educacional, mas também, de fazer pelo theco aquilo que os Habsburgos estão fazendo
pelo alemão e pelo catolicismo romano. Sua intenção demonstra a preocupação com a
evidente proposta de supressão do theco, da implantação da língua alemã e da religião
católica romana.
Escrever em língua theca não significa apenas formular o único fundamento
legítimo de uma educação nacional e aberta a todos; “seria realizar um ato de resistência
cultural contra o invasor e formular uma resposta política a uma política educativa sob a
base dos ensinos jesuítas” (CAULY, 1995, p. 128).
Uma vez compreendida a gênese política que motiva Comenius a escrever a
Didática magna, deve-se centrar a atenção, nos princípios fundamentais dos seus
ensinos. Neste caso, é relevante citar as próprias palavras de Comenius (1997, p. 13),
quando pontua seu objetivo ao escrever a Didática magna:
15
Nós ousamos prometer uma Didática Magna, ou seja, uma arte
universal de ensinar tudo a todos: de ensinar de modo certo, para obter
resultados; de ensinar de modo fácil, portanto, sem que docentes e
discentes se molestem ou enfadem, mas ao contrário, tenham grande
alegria; de ensinar de modo sólido, não superficialmente, de qualquer
maneira, mas para conduzir à verdadeira cultura, aos bons costumes, a
uma piedade mais profunda.
E, em outra parte da obra, Comenius (1997, p. 11) declara:
Didática Magna que mostra a arte universal de ensinar tudo a todos,
ou seja, o modo certo e excelente para criar em todas as comunidades,
cidades ou vilarejos de qualquer reino cristão escolas, tais que a
juventude dos dois sexos, sem excluir ninguém, possa receber uma
formação em letras, ser aprimorada nos costumes, educada para a
piedade.
Nota-se, portanto, que o objetivo último da obra de Comenius (1997, p. 11) está
em sua proposição: “[...] tais que a juventude dos dois sexos, sem excluir ninguém,
possa receber uma formação em letras, ser aprimorada nos costumes, educada para a
piedade”. O foco da educação comeniana está firmado no tripé: ensino, moral e piedade.
Infere-se daí que há uma preocupação não só com o ensino, conhecimento e cultura,
com os costumes morais, mas a tônica está na piedade. Por esta razão, a expressão final
de suas palavras: “educada para a piedade”. O pressuposto de Comenius é que a
educação constitui-se o meio para conduzir o homem à piedade.
Compreende-se assim que a preocupação de Comenius (1997, p. 14) é
demonstrar que, por meio da Didática magna, os leitores entendam que a salvação do
gênero humano somente pode ocorrer por meio da educação:
Sem dúvida a empresa é muito séria e, assim como deve por todos ser
desejada, também deve ser ponderada pelo juízo de todos, e todos em
conjunto devem levá-la adiante, pois ela diz respeito à salvação
comum do gênero humano.
No mesmo sentido, mais adiante, afirma Comenius (1997, p. 15):
Por isso peço aos meus leitores, ou melhor, em nome da salvação do
gênero humano, esconjuro todos os que me lêem, em primeiro lugar, a
que não qualifiquem de temeridade o haver alguém ousado não só
16
tentar coisas tão grandiosas, mas, sobretudo, prometê-las, visto que
tudo isso é feito com um fim salutar.
Os pressupostos acima mostram a inter-relação que Comenius estabelece entre a
teologia e a pedagogia, que são indissociáveis, visto que a educação deve conduzir à
piedade e, por extensão, ao verdadeiro conhecimento de Deus (CUNHA, 2005)2.
Sendo assim, Comenius (1997) conclama aos leitores que não menosprezem o
que ele escreve, antes, que leiam sua obra e, depois, emitam juízo de valor. Ao exortá-
los para a leitura, ele está consciente de que a empresa que está determinado a realizar
não é tarefa fácil. No entanto, partindo do pressuposto de que a educação é a salvação
ou a cura para o gênero humano, segundo Lopes (2003, p. 128) duas certezas fazem
com que ele persevere neste empreendimento: o bem público e a obediência a Deus.
O bem público, conforme desejado por Comenius (1997, p. 19), refere-se à sua
intensa preocupação em colaborar para que todas as pessoas tenham acesso à arte de
aprender, pois pretende que sua obra seja de utilidade pública.
Por lei da natureza, quem souber a maneira de prestar socorro a
alguém em dificuldade não deverá deixar de prestá-lo: sobretudo
quando (como em nosso caso) não se tratar de um homem apenas, mas
de muitos, nem apenas homens, mas de cidades, províncias, reinos,
aliás, de todo o gênero humano. [...] Se alguém tiver encontrado coisas
melhores, que faça outro tanto, para que não seja acusado pelo Senhor
de pôr suas minas no cofre e de escondê-las, pois Ele deseja que seus
servos negociem e que a mina de cada um deles, posta no banco, dê
como frutos outras minas.
No princípio do bem público, percebe-se a questão teológica como tônica em
relação à questão pedagógica, pois está consciente de que, se Deus lhe tem dado uma
percepção a ponto de despertar, no seu íntimo, o desejo de buscar colaborar com a raça
humana, na questão educacional, não se pode omitir, mas assumir a responsabilidade e
ensinar tudo a todos. Este é o princípio motivador de Comenius e, por esta mesma
razão, traduz a Didática para o latim, a fim de ser mais facilmente compreendida,
estando ao alcance de um público maior.
Outra certeza motivadora de seus empreendimentos, apesar da dificuldade,
conforme acentua Lopes (2003, p. 129), relaciona-se com a obediência a Deus.
2 Para maiores esclarecimentos ler a Dissertação de Mestrado de Jonas Gonçalves Cunha com o título: A
indissociabilidade do ensino, moral e piedade nos princípios educacionais de Comenius na Didática
magna. Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2005.
17
Comenius (1997, p. 19) está consciente de que sua concepção pedagógica não é
resultado do acaso, ela é concedida pelo próprio Senhor, e assim, deve ser posta à
disposição de todos. “O que o Senhor me concedeu observar ponho à disposição de
todos, para que seja comum. [...] É lícito buscar coisas grandiosas, sempre o foi e será, e
não será em vão o trabalhado iniciado em nome do Senhor” (COMENIUS, 1997, p. 19).
Está explicitado, portanto, que o objetivo central de Comenius, ao escrever a
Didática magna, é prover educação a todos, uma vez que ela é o remédio divino para a
cura da corrupção do gênero humano. Todavia, ela somente cumprirá esta função se
estiver alicerçada no ensino, moral e piedade, como termos indissociáveis entre si.
Com esta síntese em mente é necessário pontuar os princípios fundamentais dos
ensinos de Comenius na Didática magna, sem perder o foco desta pesquisa que é
identificar na Didática magna e na Pampaedia o pensamento de Comenius a respeito da
relação do homem com a natureza. Com preocupação metodológica, sistematiza-se
alguns dos seus principais temas.
O homem é a mais elevada e perfeita das criaturas
Comenius faz uso da máxima de Pítaco: “conhece-te a ti mesmo”, utilizada
depois por Sócrates e colocada na entrada do templo de Delfos (LOPES, 2010, p. 23-24)
para mostrar quão importante é o homem diante de seu Criador.
Assim, começa seu trabalho com a valorização do homem, dizendo ser tal
criatura, excelsa e singular na obra da criação; e que,
por ser imagem e semelhança de seu Criador, não pode ser ignorante; ao
contrário, deve ser instruída em todas as sabedorias, e em todas as artes.
Que tudo isso não seja esculpido nas portas dos templos, nos
frontispícios dos livros, não, em suma, na língua, nos ouvidos, nos
olhos de todos os homens, mas em seus corações! Todos os que têm a
tarefa de formar homens devem educá-los de tal forma que vivam
lembrados de sua dignidade e de sua excelência: que procurem, pois,
orientar seus esforços para esse supremo fim (COMENIUS, 1997, p.
42).
18
O fim último do homem está fora desta vida
Comenius (1997, p. 43-47) demonstra ser o homem a mais esplêndida criatura já
criada, e como tal deve ser instruída. Após isso, ele pontua que tão excelsa criatura não
pode ter uma existência limitada a esta vida. O homem deve gozar, em Cristo, uma vida
eterna, abundante e perfeita. A vida presente é imperfeita e insaciável, tanto na área do
poder e riqueza quanto na do conhecimento, como afirma Salomão3: “Todas as coisas
são canseiras, tais que ninguém as pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem se
enchem os ouvidos de ouvir” (Eclesiastes 1.8).
Na concepção de Comenius, mesmo aqueles considerados como pagãos, não
tratam a morte física como fim de tudo; ao contrário, dizem que a pessoa que morre faz
uma viajem, transmigra-se para outro lugar (COMENIUS, 1997, p. 46). Conclui
Comenius (1997, p. 46) que muito maior razão tem o cristão de vislumbrar a realidade
de um mundo melhor e mais feliz, tendo Cristo como seu precursor; primogênito entre
muitos irmãos e arquétipo de todos os que devem ser reformados à imagem de Deus,
também nós que fazemos parte do seu reino não devemos permanecer aqui, mas migrar
para a vida eterna, morada que contém a perfeição e o verdadeiro gozo.
Diz Comenius (1997, p. 47):
Os israelitas foram gerados no Egito; de lá, transferidos para o
deserto, depois de superarem os obstáculos dos montes e do Mar
Vermelho, construíram os tabernáculos, aprenderam a Lei,
combateram os inimigos; finalmente – atravessaram forçosamente o
Jordão – tornaram-se herdeiros da terra de Canaã, por onde corriam
rios de leite e mel.
Na concepção comeniana, o ser humano possui três moradas: o útero materno, a
Terra e o Céu. “A primeira vida prepara à segunda; a segunda para a terceira; a terceira
é em si mesma, sem fim” (COMENIUS, 1997, p. 47). Este tema é desenvolvido mais à
frente quando afirma “esta vida não passa de preparação para a vida eterna”
(COMENIUS, 1997, p. 49).
Para Comenius, o homem por trazer em si a imagem de Deus deve desfrutar de
um gozo sem fim na eternidade e a realidade da vida presente é um meio de preparação
para a outra vida. “Esta vida sobre a terra não passa de preparação para a vida Eterna, e
3 A discussão a respeito da autoria do livro de Eclesiastes é controversa, mas Comenius, seguindo a
tradição cristã creditou este livro ao rei Salomão, filho de Davi.
19
por esse motivo, não é de admirar que a alma, utilizando o corpo, procure obter o que
quer que lhe seja últil na vida futura” (COMENIUS, 1997, p. 49).
Com essa perspectiva é relevante destacar que para Comenius, todas as coisas
criadas, o mundo visível, de qualquer lado que se olhe, demonstra que só foi criado para
ser útil ao homem, conforme se percebe nesta afirmação: “tudo neste mundo é feito em
função do homem, de tal sorte que quando o número dos eleitos for completado não
haverá mais razão para a continuidade deste planeta, de tal sorte que esta vida não passa
de preparação para a outra” (COMENIUS, 1997, p. 51).
Para Comenius, Deus chama alguns por já estarem preparados como Enoque;
outros, por abusarem da longanimidade do Criador, são por Ele ordenados que sejam
arrebatados pela morte, “bem-aventurado aquele que sai do útero materno com os
membros bem formados; mil vezes bem-aventurado àquele que deixar esta vida com a
alma limpa” (COMENIUS, 1997, p. 51). Ele denomina esta vida de caminho, jornada,
porta, espera; e a nós de peregrinos, forasteiros, inquilinos, pessoas no aguardo de outra
cidade, que durará para sempre, conforme Gêneses 47.9; Salmo 39.13; João 7.12 e
Lucas 12.34.
São três os graus de preparação para a vida eterna: conhecer, dominar e
conduzir para Deus a si mesmo e, consigo todas as coisas
Se no capítulo anterior a ênfase recai sobre esta vida, no capítulo quatro
Comenius mostra, primeiro que o fim último do homem é a vida eterna com Deus. Por
outro lado, entende que o homem criado à imagem e semelhança de Deus, com
autoridade de dominar os animais (Gênesis 1.26), é uma criatura racional, pensante,
senhora das criaturas, feita à imagem de seu Criador e para seu deleite. (COMENIUS,
1997, p. 53).
Essa criatura impar é tida como tal pela capacidade de indagar, de dar nomes às
coisas e de classificá-las. Sabedoria 7.17-21: Saber a constituição do universo e a força
dos elementos, o princípio, o fim e o meio dos tempos, a alternância dos solstícios e as
mudanças das estações, as transformações anuais e as posições dos astros, as naturezas
dos animais e os instintos das feras, os poderes dos espíritos e os pensamentos dos
homens, as variedades das plantas e as virtudes das raízes. Em poucas palavras, todas as
coisas, secretas ou patentes etc. Nisto, diz Comenius, estão inclusos também o
20
conhecimento das técnicas e a arte da homilética para que, como diz Salomão
(Eclesiastes 5.18), em coisa alguma, pequena ou grande, haja nada de desconhecido.
Como tal é imbuído de requisitos peculiares como: conhecer todas as coisas;
dominar todas as coisas, inclusive a si mesmo, e reconduzir a si mesmo e as demais
coisas para Deus (COMENIUS, 1997, p. 55).
Observa-se, pois, que são aspectos interligados e, portanto, inseparáveis, nos
quais se fundamentam a vida presente e a futura.
A convicção de Comenius (1997, p. 56) é a de que:
Quanto mais nesta vida obrarmos por amor à instrução, à virtude, à
piedade, tanto mais nos aproximaremos do fim último. Portanto, serão
estas três a razão de ser de nossa vida; sejam todas as outras coisas
acessórios, óbices.
Temos em nós por natureza as sementes da instrução, das virtudes e da
religião
A capacidade de indagar, inquirir e conhecer, abordada no capítulo anterior e
neste levada a proporções maiores, não está relacionada com a natureza pervertida do
homem depois do pecado, mas sim, ao estado primitivo e original para o qual o homem
deve ser reconduzido na consumação dos tempos, e assim, viver como antes
(COMENIUS, 1997, p. 57).
Segundo Comenius a capacidade de aprender da mente humana é ilimitada. Por
mais que se viva, por mais que se dedique aos conhecimentos, nunca se aprenderá tudo.
A mente humana é comparada a uma semente que, embora não exista na forma da erva
ou da planta, sem dúvida contém em si a erva ou a planta, pois que, uma vez enterrada
expande para baixo as raízes, e para cima os brotos, os ramos e os galhos, vindo a
produzir folhas, flores e frutos. Como a semente, o homem nada recebe do exterior, mas
apenas precisa expandir e desenvolver as coisas que já traz implícitas em si, mostrando
a natureza de cada uma. (COMENIUS, 1997, p. 62).
Comenius concorda com Aristóteles que compara a mente humana a uma tábua
rasa, dizendo que assim como o escritor escreve e o pintor pinta na tábua rasa, da
mesma forma o mestre deve imprimir na mente do homem o conhecimento, e ainda que
o faça, não encontrará seus limites. É como a cera que, adapta-se a todas as formas, da
mesma forma é o cérebro que abrangendo as imagens de todas as coisas, recebe em si o
21
que o universo contém. Uns com maior intensidade, outros com menor, não importa,
para Comenius todo cérebro, de algum modo, as recebe, as representa e as retém
(COMENIUS, 1997, p. 63).
Comenius cita Salomão quando se admira de que todos os rios desemboquem no
oceano e, no entanto, não enchem o mar (Eclesiastes 1.7), e conclui: “e quem não
admirará o abismo de nossa memória, que engole tudo e tudo restitui, e não obstante
nunca está vazio nem cheio? Para ele, então, nossa mente é maior que o mundo”
(COMENIUS, 1997, p. 65).
Por fim, como parte inerente da conduta ideal e do homem completo, Comenius
levanta a bandeira da verticalidade, ou do relacionamento homem Deus. Cita Aristóteles
que diz: “Todos os homens têm a noção dos deuses, e todos atribuem um lugar supremo
a um nome divino” (De Coelo, liv. I cap. 3). Apropria-se, também, da contribuição de
Platão em Timeu, ao afirmar que “Deus é o bem supremo, que está acima de qualquer
substância, qualquer natureza, sendo por todos, desejado” (COMENIUS apud
CALCÍDIO, Comm. In Timaeum, p. 176).
Enfim, Comenius argumenta que até os pagãos concordam com uma vida
piedosa e santa, ou seja, “para o homem é mais natural e mais fácil tornar-se sábio,
honesto e santo pela graça do Espírito Santo do que desse progresso ser impedido pela
sobrevinda perversidade” (COMENIUS, 1997, p. 70).
O homem para ser homem precisa ser formado
Foi observado no tópico anterior que a natureza proporciona ao homem as
sementes da ciência, da honestidade e da religião, mas não concede estas coisas de
modo pronto e acabado, ou seja, a ciência, a virtude e a religião só podem ser
alcançadas com o estudo, com o esforço pessoal e com a prece.
É o que trata o capítulo VI. O homem para ser homem precisa ter conhecimento.
Com razão alguém definiu o homem como um animal disciplinável, uma vez que
ninguém pode tornar-se homem sem disciplina (COMENIUS, 1997, p. 71).
É próprio de Deus conhecer tudo sem necessidade de começo, meio e fim. Não
funciona assim com o homem, em virtude de sua finitude. Segundo Comenius, o
homem pode e deve chegar à excelência com a acuidade mental recebida, com a qual
pode indagar a obra de Deus, se deleitando com seu tesouro de inteligência, e
aprendendo com sua própria experiência (COMENIUS, 1997, p. 71).
22
O homem não tem de nascença nada mais que a aptidão, necessitando assim ser
ensinado aos poucos a se sentar, a ficar ereto, a andar, a movimentar as mãos para
aprender a realizar um determinado trabalho. Precisa, pois, de preparação para a
perfeição.
Toma-se como exemplo o primeiro casal, Adão e Eva, crer-se que tinham já uma
escola onde podiam conversar, ouvir e aprender. Contudo, a experiência de Eva era
pequena. Se ela tivesse um pouco mais de conhecimento, fruto da experiência, saberia
que um animal como a serpente não era dotada de capacidade para dialogar, e, portanto,
não teria caído na conversa. É claro que no estado de corrupção as coisas se tornam bem
mais difíceis de serem aprendidas. Se o homem nasce com a mente nua, como se fosse
uma tábua rasa, que não sabe fazer, dizer ou entender coisa alguma, tudo deverá
começar dos fundamentos (COMENIUS, 1997, p. 73).
Comenius, ao demonstrar que o homem aprende na escola, usa exemplos de
alguns que, “raptados durante a infância por animais ferozes e educados em meio a eles,
não teriam mais inteligência que os brutos e tampouco aprenderiam a fazer com a
língua, com as mãos e com os pés, nada diferente do que fazem as feras, se antes não
voltassem a viver um pouco entre os homens” (COMENIUS, 1997, p. 74). Com
exemplos reais Comenius (1997, p. 74) demonstra que a educação é necessária para
todos:
Pôr volta de 1540 numa aldeia de Hessen, em meio aos bosques, um
menino de três anos perdeu-se devido à incúria dos pais. Depois de
alguns anos os camponeses viram que, com os lobos, corria um animal
de aspecto diferente, quadrúpede, sim, mas com rosto humano. Tendo
se espalhado a noticia, o prefeito do lugar ordenou que fosse feita a
tentativa de capturá-lo vivo de algum modo. Preso, foi levado ao
prefeito e, depois, ao landgrave de Cassel. Introduzido na sala do
príncipe, começou a debater-se, fugiu e escondeu-se debaixo de um
banco, de onde ficou olhando com aspecto torvo e ululando de um
modo terrível. O príncipe ordenou que fosse criado em meio aos
homens: pouco a pouco a fera foi se tornando mais mansa, depois se
ergueu sobre as patas de trás e começou a andar com dois pés;
finalmente, começou a falar de modo inteligível e a tornar-se homem.
Então, pelo pouco que conseguia lembrar, contou que tinha sido
raptado e criado por lobos e que com eles costumava sair para caçar.
M. Dresser descreve essa história, entre outras, em seu livro Sobre o
ensino antigo e moderno.
Comenius compara os ricos sem sabedoria com porcos engordados com farelo.
Os pobres, com burros de carga. Um homem de bom aspecto, mas ignorante é como um
23
papagaio de bela plumagem. Ou uma bainha de ouro com um punhal de chumbo
(COMENIUS, 1997, p. 76).
Enfim, o propósito de Comenius neste capítulo é deixar claro que, para todos os
que nascem homens, a educação é indispensável, a fim de que sejam homens e não
animais ferozes, como no exemplo dado. Conclui com o texto de Sabedoria 3.11:
“Infeliz de quem despreza a sabedoria e a disciplina; vã é sua esperança (de atingir seu
objetivo), infrutíferos os esforços, inúteis as obras”.
A formação do homem é muito fácil na primeira infância: ou melhor, só
pode ser dada nessa idade
No capítulo anterior discorreu-se sobre a vertente de que, ao homem, a educarão
é sine qua non. Neste, observar-se-á que a formação do homem não se dá por acaso,
mas é constituída de norte e de rumo.
Comenius levanta a tese de que somente na primeira fase da vida é possível
aprender com facilidade. Assim como a árvore frutífera para dar frutos doces precisa ser
cultivada por um agricultor experiente, que a plante, irrigue e pode; da mesma forma, o
homem, por si só, cresce com feições humanas, sem, contudo tornar-se animal racional,
sábio, honesto e piedoso. Tais valores só podem ser adquiridos se nele forem enxertados
os brotos da sabedoria, da honestidade e da piedade. Para fazer o enxerto, tem um
tempo, e esse tempo é enquanto é jovem (COMENIUS, 1997, p. 78).
Não é só com o homem que se dá esse processo, mas é da natureza de todas as
coisas que nascem, tanto racionais, irracionais, como plantas. E mais fácil ensinar uma
criança do que um adulto, e mais fácil domar um poltro do que um cavalo adulto, e mais
fácil dobrar uma vara nova do que uma velha e nodosa.
Para a formação do homem, Deus lhe deu os anos da juventude, diferentemente
dos irracionais que com um ano de vida já vivem por contra própria. O homem
necessita de vinte a vinte e cinco anos para sua formação completa.
Diz Comenius (1997, p. 80-81):
No homem é sólido e duradouro apenas o que foi absorvido na
primeira idade, ou seja, as primeiras impressões ficam tão arraigadas
que é quase um milagre modificá-las. Por isso é extremamente
aconselhável propiciar-lhes o surgimento já nos primeiros anos
segundo as verdadeiras regras da sabedoria.
24
Enfim, deixa claro ser perigoso não infundir no homem regras de vida desde o
berço, uma vez que, apreendidas coisas inconvenientes, delas dificilmente se
desvencilhará, mesmo com a ingerência de magistrados e ministros da Igreja. Conclui
mostrando a necessidade de urgência por parte da família, do governo e da religião em
salvar o gênero humano, e para tanto, deve-se começar no berço.
É necessário que toda a juventude receba uma formação conjunta, na
escola
Tendo verificado anteriormente que a juventude não pode crescer
desregradamente, mas que necessita de cuidados a partir dos primeiros dias de vida,
neste capítulo Comenius diz quem de fato tem a responsabilidade na condução da
criança, para que esta alcance a devida instrução nas letras, nos costumes e na piedade.
Tal responsabilidade é, primeiramente, dos pais, desde o começo da
humanidade. Em Gêneses 18.19, está escrito: “Porque eu o escolhi para que ordene a
seus filhos e a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do Senhor, e
pratiquem a justiça e o juízo, para que o Senhor faça vir sobre Abraão o que tem falado
a seu respeito”.
Ha uma recomendação geral de Deus a todos os pais tanto no Velho Testamento
quanto no Novo. Deuteronômio 6.7: “Inculcarás minhas palavras em teus filhos e delas
falaras enquanto estiveres em casa, caminhando, ao te deitares e ao te levantares”.
Efésios 6.4: “E vós pais, não provoqueis a ira de vossos filhos, mas criai-os na
disciplina e na admoestação do Senhor”.
Com a multiplicidade do ser humano e de seus problemas conjunturais, os pais
passam a dividir a responsabilidade do ensino com outros que demonstrem capacidade
para tanto. São os preceptores, pedagogos, mestres e professores, que ministram aulas
em lugares próprios chamados de escola, colégios, ginásios, academias etc. A escola
vem desde Sem, após o Dilúvio. É sabido que na Babilônia, no tempo do cativeiro de
Judá, existiam muitas escolas (Daniel 1.20), assim como no Egito no tempo de Moisés
(Atos 7.22). O povo de Israel, por ordem de Deus, cria escolas chamadas de sinagogas
para toda nação israelita. Os gregos e os romanos criaram escolas em todo o Império. A
historia relata que Carlos Magno ordenou aos bispos e doutores que fundassem
imediatamente templos e escolas junto a todas as populações pagas submetidas
(COMENIUS, 1997, p. 84).
25
Este costume deve ser mantido a ponto de, em cada comunidade humana bem
organizada, ser aberta uma escola para a educação comum da juventude. E assim como
os pais de família se apropriam da colaboração de outros para as lides domesticas, como
buscar o alfaiate quando precisa de roupa ou do sapateiro quando precisa de sapatos etc,
assim também, deve buscar a escola para ajudar na educação dos filhos. Comenius
argumenta que, mesmo havendo pais inteiramente dedicados à instrução de seus filhos,
mesmo assim o ensino em grupo é mais rendoso.
Comenius (1997, p. 85-87) assevera:
É natural fazer o que os outros fazem, ir aonde os outros vão, seguir
quem nos precede e ir à frente de quem nos segue. [...] A escola é, pois,
fundamental para a instrução da juventude. E assim como se devem
preparar os pesqueiros para os peixes e os pomares para as plantas,
também se devem preparar as escolas para os jovens.
Toda a juventude, de ambos os sexos, deve ser enviada à escola
Observou-se a concepção de Comenius com respeito à responsabilidade de quem
deve ensinar – os pais e as escolas – neste, ele pontua que todos, igualmente, de estirpe
nobre ou comum, ricos ou pobres, meninos ou meninas, em todas as cidades, aldeias,
povoadas e vilarejos, devem ser levados à escola para aprender (COMENIUS, 1997, p.
89).
Apropria-se do fato de que Deus não faz acepção de pessoas, ao se posicionar
dizendo que:
Se permitirmos que apenas alguns aprimorem seus talentos, excluindo
os demais, estaremos ofendendo não só nossos semelhantes naturais,
mas a Deus mesmo, que deseja ser conhecido, amado e louvado por
todos aqueles nos quais imprimiu sua imagem (COMENIUS, 1997, p.
89).
Em havendo pessoas que pareçam imbecis ou estúpidas, em vez de servir de
obstáculo, deve-se alentar o ânimo de quem ensina, pois quanto maior for o
retardamento de uma criança, maior a necessidade de ser ajudada, uma vez que não é
possível encontrar uma inteligência tão infeliz que não tenha algum corretivo por meio
da educação, “Ninguém deve ser excluído do processo ensino-aprendizagem, a não ser
aqueles a quem Deus negou sentidos ou inteligência” (COMENIUS, 1997, p. 91).
26
Numa época em que à mulher é negado o direito de estudar, visto ser ela tida
como rés, sem direitos de cidadania, nem do saber, ao ponto de Hipólito, em Eurípides,
dizer: “Odeio a mulher douta, e que em minha casa nenhuma haja que saiba mais do que
convém a uma mulher; e, no entanto a própria Vênus de Chipre à mulher douta dá
astúcia maior” (Eurípides, Hipólito, 640-643). Comenius (1997, p. 91-92) vem a
público dizer o seguinte:
Não há qualquer motivo válido para excluir o sexo feminino dos
estudos da sabedoria, uma vez que, como os homens, elas também são
imagem de Deus, participam da graça divina e do reino do século
futuro. São dotadas de inteligência aguçada e aptas ao saber, também
para elas estão abertas portas de postos elevados.
Assim, Comenius advoga que as mulheres devem ser instruídas por meio dos
livros que permitem adquirir para sempre virtudes verdadeiras e verdadeira piedade,
com o verdadeiro conhecimento de Deus e de suas obras.
A educação nas escolas deve ser universal
No capítulo anterior Comenius defende a tese de que a educação é para todas as
pessoas, homens, mulheres, ricos e pobre, sem acepção de raça ou de cor. Neste, trata da
questão de sua universalidade, onde dá sentido e expressão à sua máxima “ensinar tudo
a todos”. Isso não quer dizer que ele apregoava um conhecimento exato e completo para
todos, no que diz respeito a todas as ciências e artes, o que não seria nem útil, nem
possível a ninguém. A idéia é a de que se coloque todas as crianças na escola. É na
infância, na primeira educação que se prepara para a vida, e de que depende tudo o
mais. Se não há instrução formal na infância, dificilmente se terá uma sociedade
ajustada, boa e feliz. Conclui o capítulo dizendo:
Assim como no útero materno se formam os membros igualmente para
todos os homens, e em cada um se formam as mãos, os pés, a língua
etc., ainda que nem todos venham a ser artífices, corredores, copistas,
oradores, também na escola é preciso ensinar a todos todas as coisas
que digam respeito ao homem, ainda que depois uma delas venha a ser
mais útil a um, e outra ao outro (COMENIUS, 1997, p. 101).
27
Até hoje faltaram escolas que correspondessem perfeitamente a seus fins
Tratou-se do papel fundamental que a escola tem na formação da juventude.
Observar-se-á, agora, que o propósito da escola, em si, é ser uma verdadeira oficina de
homens, onde as mentes dos alunos sejam construídas e iluminadas pelo fulgor do
saber, onde se ensina tudo a todos.
Comenius indaga: “qual a escola que se propôs a atingir tal grau de perfeição?”
E ele mesmo responde que não houve no passado, e que em seus dias ainda não
existiam (COMENIUS, 1997, p. 103).
Martinho Lutero escreve, em 1525, a todos os magistrados, prefeitos e líderes de
modo geral das cidades alemãs, orientando que encorajassem e exigissem a criação de
escolas. Entre outras coisas, manifesta, dois desejos:
Primeiro, que em cada cidade, aldeia ou vilarejo sejam edificadas
escolas para a instrução de toda a juventude de ambos os sexos, de tal
sorte que mesmo quem se dedique à agricultura e a outros ofícios,
estando na escola durante pelo menos duas horas por dia, seja
instruído nas letras, na moral e na religião; segundo, que as crianças
sejam educadas com um método mais fácil, não só para que não se
afastem dos estudos, mas, ao contrário, para que se sintam seduzidas
por eles, a fim de que, como se diz, encontre nos estudos um prazer
não inferior ao que sente, quando passa, o dia inteiro a brincar com
nozes, bolas ou a correr.
Para Comenius, o conselho de Lutero é dos mais sábios e melhores, mas que até
seus dias (de Comenius), não passa de desejo do reformador. Volta a indagar: onde
estão essas escolas para todos? Onde está esse método agradável? (COMENIUS, 1997,
p. 104).
E infelizmente, mais adiante, Comenius (1997, p. 104-106) conclui:
O que é visto é justamente o contrário, ou seja, não é em todas as
comunidades menores, aldeias e vilarejos que se encontram escolas. E
que onde se encontra uma não se destina a todos indistintamente, mas
apenas a alguns, aos mais ricos, e com um agravante, a maioria adota
um método tão duro que muitas vezes são tidas como espantalhos para
as crianças e tortura para a mente, afugentando os jovens das escolas,
levando-os para outras ocupações, ou seja, o que poderia ser colocado
diante dos olhos de modo perspícuo e claro era apresentado de modo
obscuro, incerto, intricado, como por meio de enigmas. Pelo fato de
serem caros, os mais pobres só têm acesso quando alguém assume os
custos.
28
As escolas podem ser reformadas e melhoradas
Percebe-se, no capítulo anterior, a preocupação de Comenius por não haver
escola que cumpra com a finalidade para a qual existe. Neste, ele diz que embora seja
raro o tratamento de uma doença inveterada, quando se descobre um remédio, o doente
dificilmente repudia quem o inventou. Partindo desta premissa se propõe a apresentar
uma organização escolar em que:
Toda juventude nela seja educada (exceto os que não têm
inteligência); [...] Seja educada em todas as coisas que podem tornar o
homem sábio, honesto e piedoso; [...] Essa formação, que é a
preparação para a vida, seja concluída antes da idade adulta; [...] e seja
tal que se desenvolva sem severidade e sem pancadas, sem nenhuma
coação, com a máxima delicadeza e suavidade, quase de modo
espontâneo (assim como um corpo vivo aumenta lentamente sua
estatura; desde que alimentado e assistido e exercitado, o corpo, quase
sem aperceber-se, adquire altura e robustez; da mesma forma, os
alimentos, os nutrientes, os exercícios se convertem no espírito em
sabedoria, virtude e piedade); [...] Todos sejam educados para uma
cultura não vistosa, mas verdadeira, não superficial mas sólida, de tal
sorte que o homem, como animal racional, seja guiado por sua própria
razão e não pela de outrem e se habitue não só a ler e a entender nos
livros as opiniões alheias e a guardá-las de cor e a recitá-las, mas a
penetrar por si mesmo na raiz das coisas e delas extrair autêntico
conhecimento e utilidade; [...] E que essa educação não seja cansativa,
mas facílima, ou facilitadora (COMENIUS, 1997, p. 109-110).
Não há lugar para coisas difíceis na escola. Entre todos os povos, coisas antes
tidas por dificílimas provocam o riso da posteridade. Para Comenius, as sementes da
ciência, da moral e da piedade são por natureza inerentes a todos os homens, com
exceção dos monstros humanos, sendo preciso apenas um pequeno estímulo e de sábia
orientação.
Diz Comenius (1997, p. 115):
Se poucos atingem a sumidade das ciências, apesar de muitos, com
espírito ativo e ávido, nisso se empenharem, e se aqueles que
chegaram até certo ponto só o conseguem com fadiga, ansiedade, mal-
estar e vertigem, depois de tropeçarem e caírem muitas vezes, isso não
significa que haja coisas inacessíveis para o engenho humano, mas
apenas degraus mal dispostos, curtos, gastos, desastrosos, ou seja, um
método intrincado. Outrossim, é certo que se pode conduzir qualquer
pessoa a qualquer altura, dispondo de degraus bem feitos, íntegros,
sólidos, seguros.
29
Por fim, Comenius cita Plutarco: “Não está em poder de ninguém a qualidade
dos filhos que nascem, mas está em nosso poder obrar de tal modo que se saiam bem
com uma educação correta”. Para Comenius toda a juventude, com diversas índoles,
pode ser educada e formada com um método único e idêntico. Certamente que as
deficiências e os excessos podem ser mais bem supridos em idade tenra.
A base de toda reforma escolar é a ordem exata em tudo
Comenius aborda a questão da má qualidade do ensino, e apresenta fundamentos
para que se tenha uma escola de boa qualidade. Neste, ele vai dizer que a ordem exata
de tudo é a base de toda reforma no ensino.
Comenius enumera uma série de coisas e de fatos onde, de modo sequencial,
demonstra a ordem contínua e permanente do universo, concluindo que tudo depende de
uma única ordem. A lógica é que, se o universo é sustentado por uma ordem superior,
que promove a disposição de todas as coisas, grandes e pequenas, durável enquanto a
ordem for mantida, argumenta Comenius (1997, p. 124-127):
[...] O fato de cada criatura se manter dentro de seus limites, conforme
a ordem dada pela natureza e a ordem de cada uma, isto contribui para
manter a ordem do universo. A imutável ordem do firmamento é que
faz o tempo girar através de séculos, com intervalos fixos de anos,
meses e dias. [...] A arte de ensinar não exige mais que uma
disposição tecnicamente bem feita do tempo, das coisas e do método.
Se a escola for capaz de estabelecê-la com precisão, ensinar tudo a
todos os jovens que vão frequentá-la, não será mais difícil que navegar
sobre o oceano e ir para o Novo Mundo. [...] Tudo ocorrerá tão fácil
como o funcionamento de um relógio perfeitamente equilibrado pelos
pesos.
O apelo do pedagogo é para que todos ajudem no ensinar tudo a todos os jovens,
ajudando às escolas, sobre quem pesa a responsabilidade de uma organização tal que
corresponda à do relógio, construído com técnica perfeita e decoração esplêndida
(COMENIUS, 1997, p. 127).
30
A ordem exata da escola deve ser inspirada na natureza e ser tal que
nenhum obstáculo a retarde
Destacou-se a questão da ordem no ensino no capítulo anterior. Neste, Comenius
diz em que bases tal ordem deve ser inspirada e construída.
Nada nem ninguém podem ajudar mais no ensino-aprendizagem que a própria
natureza. Comenius se apropria de vários exemplos da criação para comprovar seu
raciocínio. Entre outros, usa o exemplo do peixe. Veja-se seu argumento:
Vê-se um peixe a nadar? Esse é um fato natural. Mas se o homem
desejar imitá-lo deverá agir com meios e movimentos semelhantes aos
do peixe, e deverá mover os braços em lugar das barbatanas e os pés
em lugar da cauda, do mesmo modo como o peixe move suas
barbatanas. Até os navios são construídos com a mesma idéia: em
lugar barbatanas, os remos ou as velas; em lugar da cauda, o timão
(COMENIUS, 1997, p. 130).
Para Comenius, os exemplos evidenciam o fato de que a ordem desejada por ele
da arte de ensinar e de aprender tudo só pode ser extraída da escola da natureza. Quando
isto acontece as coisas artificiais, ocorrerão com facilidade e espontaneidade. Cita
Cícero, em uma de suas afirmações que “se seguirmos a orientação da natureza, nunca
poderemos errar e tendo a natureza como guia, não é possível errar” e conclui com um
apelo ao dizer: “Esperamos que, observando o modo como a natureza procede para
fazer isto ou aquilo, sejamos convencidos a proceder de modo análogo” (COMENIUS,
1997, p. 131).
Encerra este capítulo com o que chama de indícios da natureza que propiciam
uma melhor aprendizagem, ou seja, para que o homem possa se aprofundar mais na
sabedoria, é preciso:
Prolongar a vida, a fim de aprender tudo o que é necessário; [...]
Abreviar as artes, a fim de aprender mais rapidamente; [...] Agarrar as
ocasiões, a fim de aprender no modo certo; [...] Despertar o engenho,
a fim de aprender facilmente; [...] Aguçar o juízo, a fim de aprender
com solidez (COMENIUS 1997, p. 135).
Como ele desenvolve estes cinco temas? Nos cinco capítulos subsequentes é o
que se pretende apresentar.
31
Princípios para prolongar a vida
No capítulo anterior, Comenius cuida de dizer que a natureza é a grande mestra
para tudo. Neste, ele demonstra que a vida não é medida pela quantidade de anos que se
vive, mas pelo modo como é vivida, pelos resultados auferidos nos anos que Deus nos
concede viver.
Sêneca também pensava assim:
A vida é longa quando é plena; e é plena quando a alma consegue
atingir seu próprio bem, e tiver poder sobre si mesma. E ainda,
fazendo recomendações a Lucílio, diz: “Exorto-te, caro Lucílio, a agir
de tal modo que nossa vida, assim como as coisas preciosas, tenha
mais valor que o tempo”. E em seguida: “Portanto, é de se louvar e de
incluir no número dos felizes aquele que soube empregar bem esse
pouco de tempo, por mais breve, que lhe coube”. E: “Assim como o
homem pode ser perfeito com um corpo menor que o comum, também
a vida pode ser perfeita numa medida menor de tempo. O decurso
mais longo de vida é aquele que levamos para conquistar a sabedoria e
pô-la em prática. Quem a alcança não atinge a meta mais distante,
porém a mais importante” (Sêneca, Epistulae, XCIII, 1- 8).
Com a finalidade de reforçar seu argumento, faz referência a homens como
Alexandre Magno que morre aos 33 anos, sendo cultíssimo nas letras, tanto quanto
vencedor de batalhas, chegando a conquistar o mundo com sua sabedoria na
implementação de decisões, e não apenas com o poder bélico. Giovani Pico della
Mirandola que vive menos que Alexandre, mas nos estudos da sabedoria o supera.
Depois de outros, cita Jesus Cristo como o exemplo maior, que esteve na terra por
apenas 33 anos e realizou a grande obra da Redenção, o que, em parte, foi feito para dar
aos homens um exemplo de como a vida do homem, conquanto breve, é suficiente para
obter os recursos necessários à eternidade (COMENIUS, 1997, p. 138).
Contra os reclamos pela brevidade da vida, a receita comeniana é: “Agir de tal
modo que: Se defenda o corpo das doenças e da morte; e se disponha a mente a fazer
tudo com sabedoria”. Se para viver muito uma árvore precisa de umidade constante,
transpiração frequente e repouso periódico, de igual forma, para se viver bem e ter
saúde e longevidade, é fundamental alimentar-se com moderação, exercitar o corpo e ter
leveza de vida. Se isto for levado a sério, seguramente manterá a saúde e a vida durante
o maior tempo possível, salvo motivo superveniente. Pelo que a correta organização
escolar deve primar da cuidadosa distribuição do cansaço e do repouso, ou seja, dos
32
trabalhos, das férias e das recreações dos docentes e discentes de seu quadro
(COMENIUS, 1997, p. 139).
Comenius termina este capítulo com considerações a respeito do crescimento
lento de uma árvore ou do próprio ser humano que não é perceptível seu
desenvolvimento, fazendo citação de uma máxima do filósofo Hesíodo: “Soma pouco
ao pouco, e mais um pouquinho a esse pouco, em pouco tempo terás acumulado um
montão” (COMENIUS, 1997, p. 143).
Ora, se um dia tem vinte e quatro horas, o homem pode usar oito horas para
dormir, oito para trabalhar e lhe sobram ainda oito para outras atividades, entre elas,
aprender pelo menos uma lição de vida por dia. Se isto acontece, com sériedade, no
final da vida cada homem é um sábio. Para Comenius, pois, a grande questão é saber
utilizar bem a vida.
Método para ensino das ciências em geral
No capítulo XIX trata-se dos princípios de um ensino rápido e conciso.
Discorrer-se-á no capítulo XX sobre método para ensino das ciências em geral. Segundo
Comenius é necessário unir, para por em prática, todas as observações esparsas sobre o
modo de ensinar as ciências, as artes, as línguas, a moral e a piedade. Comenius (1997,
p. 231-233) pontua quatro condições como sendo indispensáveis ao jovem que deseja
descortinar as partes mais abscônditas das ciências: “Aos que estudam: que o olho da
mente seja puro; que os objetos estejam próximos; que a atenção seja viva; que, com o
devido método, todas as coisas sejam oferecidas à observação interligadas. Só então
será possível aprender tudo com segurança e rapidez”.
Para os que ensinam, Comenius (1977, p. 237-240) tem uma receita recheada de
regras, as quais julgam de fundamental importância. Ao apresentar as regras, é
categórico:
Que todas as coisas sejam postas diante dos sentidos, as visíveis ao
alcance dos olhos; as sonoras, dos ouvidos; as que têm cheiro, do
olfato; as sápidas, do paladar; as tangíveis, do tato. E mais: quem
ensina as ciências deve ensinar tudo o que se deve saber; o que se
ensina deve ser ensinado como coisa atual e de inquestionável
utilidade; tudo deve ser ensinado diretamente, e não com
circunlóquios; tudo o que for ensinado seja dado antes de modo geral
e depois em partes; as coisas devem ser ensinadas uma depois da outra
e uma por vez; deve-se insistir em cada coisa, até que seja
33
compreendida; e, por ultimo, devem ser ensinadas as diferenças entre
as coisas, para que o conhecimento de cada uma delas seja distinto.
Como nem todos os que labutam com a docência têm a capacidade de realizar a
tarefa impar de ensinar, conclui o capítulo XX dizendo que todas as disciplinas
ensinadas nas escolas deverão ser elaboradas segundo essas regras metodológicas
(COMENIUS, 1997, p. 242).
Método para ensino das artes
Discorreu-se sobre método para ensino das ciências em geral, abordar-se-á sobre
método para ensino das artes. Comenius (1997, p. 243), ao citar Vives, afirma: “A teoria
é fácil e breve, e proporciona apenas deleite; a prática, ao contrario, é árdua e demorada,
mas de grande utilidade”.
Para Comenius são três os requisitos da arte: “modelo, matéria e instrumentos”
(COMENIUS, 1997, p. 243). E assim para que haja o ensino, se faz necessário o uso
correto desses elementos, a orientação prudente e o exercício frequente.
Comenius (1997, p. 244-251) destaca seis cânones para o uso correto da arte;
três, no que se refere à orientação correta e dois para a elaboração de exercícios. Ele diz:
Quanto ao uso: aprender a fazer fazendo, deve haver sempre uma
forma e uma norma estabelecida dos trabalhos por fazer, o uso dos
instrumentos deve ser mostrado mais com fatos que com palavras, ou
seja, mais com exemplos que com regras, o exercício é iniciado pelos
primeiros rudimentos, e não com obras já acabadas, os primeiros
exercícios dos principiantes devem ser feitos com matéria conhecida,
e a imitação deve relacionar-se diretamente com a forma prescrita, só
depois poderá ser mais livre. Quanto à orientação: que as formas das
coisas por fazer sejam as mais perfeitas possíveis; assim, quem
conseguir imitá-las bem poderá ser considerado perfeito em sua arte; a
primeira tentativa de imitação deve ser a mais exata possível, de tal
modo que não se afaste nem um pouquinho do modelo. Quanto aos
exercícios: o professor deve corrigir imediatamente os erros e
acrescentar as observações que se chamam regras e exceções às
regras; o ensino completo de uma arte consiste em síntese e analise.
A idéia conclusiva de Comenius neste capítulo XXI é a de que em qualquer arte
sejam preparados modelos completos e prefeitos de tudo o que se deva se queira ou se
possa oferecer sobre determinada arte.
34
Método para ensino das línguas
Pelo fato das línguas não fazerem parte da instrução ou do saber, não se deve
gastar tempo com todas elas, até porque não é possível aprendê-las todas, mas se deve
gastar tempo apenas com as que são necessárias, ou seja, os teólogos devem aprender
hebraico e grego, os filósofos o grego e o árabe, para a vida cotidiana as línguas
vernáculas etc (COMENIUS, 1997, p. 253).
Segundo Comenius as línguas não devem ser estudadas em toda a sua dimensão,
mas apenas para poder ler e entender os livros. Ninguém domina plenamente uma
língua; nem mesmo Cícero conhecia a língua latina em sua totalidade, ele mesmo
confessava não conhecer os vocábulos dos artesãos (Cícero, De finibus, II, 2, 4).
Comenius (1997, p. 259) tem uma receita prática para o estudo e aprendizagem,
com rapidez e facilidade de várias línguas, o qual pode ser resumido em oito regras, a
saber:
Aprenda-se uma língua por vez; cada língua deve ser aprendida em
dado tempo, para que não se torne principal o que é secundário, e não
se perca com palavras o tempo devido ao estudo das coisas; cada
língua deve ser aprendida mais com a prática que pelas regras; mas as
regras ajudam a prática e a consolidam; as regras das línguas devem
ser gramaticais, e não filosóficas; ao escrever as regras de uma nova
língua, deve-se fazer referência a uma já conhecida, para poder
mostrar apenas as diferenças entre uma e outra; os primeiros
exercícios de uma nova língua devem ser acerca de temas já
conhecidos; e, todas as línguas, portanto, podem ser aprendidas com
um mesmo método.
Apliquem-se as regras acima às quatro idades da vida: infantil, em que se
começa a falar de qualquer jeito; adolescência, em que se aprende a falar com
propriedade; juvenil, em que se aprende a falar com elegância, e a idade viril em que se
aprende a falar com vigor, que certamente, há de se aprender uma língua (COMENIUS,
1997, p. 259).
Até o capítulo XXII tratou-se do método mais rápido para ensinar as ciências, as
artes e as línguas, no capítulo XXIII abordar-se-á o ensino da moral, e no capítulo XIV,
a piedade, ensino que tem por objetivo tornar a criança mais elevada nos bons costumes,
e mais próxima de Deus. Como estes dois temas, moral e piedade serão discorridos com
maior propriedade no capítulo terceiro desta pesquisa, uma vez que naquele capítulo
abordar-se-á a respeito de ensino, moral e piedade, na Didática magna de João Amós
35
Comenius, estes capítulos, XXIII e XXIV serão objeto de estudo. “Se quisermos
reformar as escolas segundo os princípios do verdadeiro cristianismo, ou retiramos das
escolas os livros de autores pagãos, ou os usamos com cautela maior que a atual”
(COMENIUS, 1997, p. 260).
Comenius é enfático, ousado e destemido, ao orientar as escolas cristãs a que
tirem de seus quadros docentes todos aqueles que não professam o cristianismo, indo à
cata de cristãos convictos para assumirem tal posto. Para ele é um censurável abuso da
liberdade cristã, chegando à raia da “profanação, o fato de se elevar e de se comprazer
mais em Plauto, Cícero, Ovídio, Catulo, Vênus, Aristóteles e outros, do que no próprio
Cristo” (COMENIUS, 1997, p. 289).
A postura comeniana é a de que os filhos do Reino devem ter uma instrução que
reflita o ensino exarado nas páginas da Bíblia. Deus é enfático na proibição explicita de
seu povo quando à cultura e os usos pagãos: “Não aprendais o caminho das nações”
(Jeremias 10.2); II Reis 1.3: “Porventura não haverá Deus em Israel para irdes consultar
Belzebu, deus de Ecrom?” Por que diz isso? “Porque toda sabedoria vem de Deus e está
sempre nele, e ainda a raiz da Sabedoria a quem foi revelada” (Eclesiastes 1.1,6). Já o
salmista afirma de si mesmo: Tu, pelos teus mandamentos, me fazes mais sábio que
meus inimigos, pois estão sempre comigo. Tenho mais entendimento que todos os meus
mestres porque medito nos teus testemunhos (Salmo 119.98-99). Também Salomão, o
mais sábio dos homens, diz: O Senhor dá a sabedoria e de sua boca expande a
prudência e a ciência (Provérbios 2.6). Comenius conclui com as palavras de João 6.68:
Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras de vida eterna.
Os pagãos não têm o que dar para o saber dos cidadãos do céu. Assim, conclui
Comenius (1997, p. 294-310):
[...] Se quisermos realmente purgar a Igreja de todas essas
inquietações, não nos resta caminho mais seguro que abandonar todas
as dissertações sedutoras dos homens e voltar-nos para as únicas e
puras fontes de Israel, tendo Deus e seu Verbo como mestre e guia
para nós e nossos filhos. Só assim poderá acontecer o que foi previsto
que Deus tornará sábios todos os filhos da Igreja (Isaías LIV.13). E
mais: não pode sustentar-se a construção do homem quando começa a
manifestar-se a cidade do Altíssimo (II Esd. 10.54). E como Deus quer
que sejamos árvores de justiça, plantadas pelo Senhor para sua Glória
(Isaías 61.3), é preciso que nossos filhos não sejam mudas da
plantação de Aristóteles, de Platão, de Túlio etc. Caso contrário, a
sentença já foi proferida: Todas as plantas que meu Pai celeste não
tiver plantado serão erradicadas.
36
Da disciplina escolar
Observou-se anteriormente a postura de Comenius com respeito aos ensinos
pagãos nas escolas cristãs; nesta parte da pesquisa a ênfase será a disciplina escolar.
Ao abordar a disciplina escolar, Comenius cita um provérbio boêmio que diz:
“Escola sem disciplina é como moinho sem água”, ou seja, assim como o moinho pára
quando lhe tiram a água, também a escola procede com lentidão se lhe for retirada a
disciplina (COMENIUS, 1997, p. 311). Portanto, quem exerce a missão de ensinar tem
o dever de conhecer o fim e a forma da disciplina. Na concepção de Comenius, a
disciplina, antes de tudo, deve ser exercida contra quem erra, não porque errou, mas
para que não erre mais. Ela deve ser exercida sem paixões, sem ira, sem ódio, porém
com simplicidade e sinceridade, de tal modo que o disciplinado perceba que é para o seu
bem, e o aceite como sendo um remédio, mesmo amargo, quando medicado pelo seu
médico (COMENIUS, 1997, p. 312).
O âmago de toda disciplina encontra fundamento nas afirmações de Comenius
(1997, p. 315):
É que a disciplina deve tender a formar, a reforçar e a favorecer
sempre nos jovens que educamos uma harmonia de sentimentos
semelhantes àquela que Deus quer para seus filhos, que são confiados
à escola de Cristo, para que possam e saibam amar e reverenciar os
que educam, não apenas se deixando conduzir aonde convém, mas
desejando-o ardentemente.
Sobre a quádrupla divisão das escolas, segundo a idade
O capítulo XXVI tratou a respeito da disciplina na escola, neste abordar-se-á as
divisões da escola a partir do próprio ensino, e guia da natureza. Comenius divide o
período de crescimento em quatro momentos: infância, meninice, adolescência e
juventude; cada um tendo uma duração de seis anos e consequentemente sua escola: a
infância sendo o regaço materno; a meninice, o exercício literário; a adolescência, a
escola latina, ou ginásio; e, para a juventude, a academia.
A distribuição dessas escolas deve seguir a seguinte ordem: a escola materna
deve estar em todas as casas; a vernácula, em todas as comunidades, burgos ou aldeias;
37
o ginásio, em todas as cidades; a Academia, em todos os reinos e nas províncias maiores
(COMENIUS, 1997, p. 320).
Comenius (1997, p. 322) compara esses quatro tipos de escola às quatro
estações:
A materna lembra a primavera, cheia de botões e flores cheirosas e
variegadas. A vernácula representa o verão, com suas espigas maduras
e frutos precoces. O ginásio corresponde ao outono, que reúne os ricos
frutos dos campos, dos pomares e das vinhas, guardando-os nos
depósitos seguros das mentes. A Academia, finalmente, é como o
inverno, que prepara os frutos colhidos para os vários usos, para que
sejam suficientes para todo o resto da vida.
A escola Materna
Após discorrer a respeito da divisão das escolas de conformidade com as faixas
etárias, de zero a seis anos, infância; de sete a doze, meninice; de treze a dezoito,
adolescência e de dezenove a vinte e quatro, juventude. Comenius aborda cada faixa
escolar, sendo a primeira a escola materna.
A escola materna é responsável pelos primeiros rudimentos no ensino-
aprendizagem da infância. Reveste-se de importância na medida em que tudo o que o
homem deva ser instruído durante toda a vida, deve ser semeado e plantado a partir da
escola materna.
Isso é possível ao se percorrer todos os gêneros do saber. Resume
magistralmente esse saber em vinte parágrafos, que podem ser sintetizados com uma
palavra para cada um deles, ou seja: “Metafísica, ciências físicas, princípios da óptica,
astronomia, geografia, cronologia, história, aritmética, geometria, estática, mecânica,
dialética, gramática, retórica, poesia, música, economia, política, moral (ética), e
finalmente, religião ou piedade” (COMENIUS, 1997, p. 326-330).
Ensinando essas coisas na infância, como meta e propósito da escola materna,
(COMENIUS, 1997, p. 331) se poderá dizer dos filhos dos cristãos aquilo que o
Evangelho diz de Cristo: crescia em sabedoria, em idade e em graça diante de Deus e
dos homens (Lucas 2.52).
38
A escola vernácula
Neste capítulo abordar-se-á a escola de língua vernácula, para onde devem ser
enviados todos os jovens, indistintamente. Qual é, então, para Comenius a objetividade
e o propósito da escola vernácula?
[...] Que todos os jovens, entre seis e doze anos (ou treze) aprendam o
que terá utilidade para toda a vida: ler perfeitamente, escrever segundo
as regras gramaticais do vernáculo, contar e calcular, medir segundo
as normas corretas, aprender a maior parte dos salmos e dos hinos,
conhecer o catecismo e as palavras mais importantes da Bíblia,
começar a aprender, a entender e a por em prática a doutrina moral,
saber em linhas gerais a história da origem, da corrupção e da
redenção do mundo, aprender as bases da cosmografia, e finalmente,
conhecer as bases gerais das artes mecânicas (COMENIUS, 1997, p.
335-336).
Se tudo isso for ensinado na escola vernácula, os jovens jamais serão
surpreendidos ao ouvir qualquer coisa, além do que, eles mesmos terão maior agudeza
quando utilizarem suas capacidades de pensar, de agir e de julgar (COMENIUS, 1997,
p. 336-337).
A escola latina
Na escola latina os jovens devem estudar quatro línguas após o que estão aptos a
serem gramáticos, com profundo conhecimento da língua latina e da vernácula, além de
conhecerem o grego e o hebraico. Também são instruídas em outras ciências, vindo a
ser conhecedores de dialética, retórica, aritmética, geometria, música, astronomia, física,
geografia, história, ética e teologia. Tudo isso em seis anos de estudo (COMENIUS,
1997, p. 343-344).
Qual o método que Comenius propõe para o aprendizado dessas escolas? Que os
alunos devem estudar quatro horas por dia, assim distribuídas: nas duas horas matutinas,
após os momentos devocionais, deve ser ensinada a ciência ou a arte que dá nome à
classe; à tarde, ocupe-se com história à primeira hora e com exercícios escritos, orais ou
manuais à segunda, de conformidade com a exigência da matéria de cada classe
(COMENIUS, 1997, p. 343-351).
39
Concluídas essas escolas, com as devidas orientações e tarefas cumpridas, o
jovem estudante saberá se expressar, com propriedade, e sempre que for necessário.
Diz Comenius (1997, p. 350) que para atingir esse fim, terão a seu dispor um
instrumental nada desprezível, ou seja, um bom conhecimento de coisas de todos os
gêneros, frases, adágios, sentenças, fatos, etc.
A Academia
Às Academias cabe atingir o ápice e o arremate de todas as ciências e de todas
as faculdades superiores. Os professores devem ser os mais seletos, os mais
competentes. A Academia deve acolher os mais diligentes, os mais honestos e os mais
perspicazes. Não devem ser tolerados os pseudo-estudiosos para não contaminar o
ambiente.
Para tanto, Comenius expressa um desejo tríplice, no sentido de que nelas sejam
feitos estudos universais, ou seja, tudo das letras e do saber deve ser tratado ali; que
sejam empregados os métodos mais fáceis, seguros e eficazes; e que o acesso aos cargos
públicos seja reservado apenas aos que tenham atingido a meta estabelecida e às pessoas
capazes e dignas de ter nas mãos o governo das coisas humanas (COMENIUS, 1997, p.
352).
Sua proposta na Academia pode ser percebida nas seguintes palavras:
Agora só me resta mencionar a extrema utilidade que seria fundar em
todos os países do mundo a ESCOLA das Escolas, ou COLÉGIO
DIDÁTICO; mas se disso não houver esperança, que ela pelo menos
seja cultivada com sagrada confiança entre eruditos dedicados a
promover também desse modo a glória de Deus, a despeito das
distâncias e das diferenças. Que o trabalho deles tenda a aprofundar
cada vez mais os fundamentos das ciências, para purificar e difundir
entre o gênero humano e com maior sucesso à luz do saber, e para que
as coisas humanas progridam com novas e utilíssimas invenções
(COMENIUS, 1997, p. 358).
40
A organização universal e perfeita das escolas
Discorreu-se até aqui a respeito da concepção comeniana quanto à necessidade e
modo de reformar as escolas. Buscar-se-á, neste capítulo, resumir seu desejo na esfera
educacional. Deseja ver implantado um método de ensino perfeito, de tal forma que
mostre a diferença entre a forma até então usada, e a nova forma, agora proposta. É uma
mudança tão acentuada como a que houve entre a técnica usada antigamente para
transcrever livros à mão, e a arte tipográfica em uso.
Comenius compara o método tipográfico com a arte universal de ensinar. Se,
pois, um tipógrafo usando os caracteres tipográficos chega a escrever livros elegantes
mesmo não sabendo escrever elegantemente, uma vez que não executa o trabalho com
as próprias mãos, mas com caracteres, e sem possibilidade de erros, conclui Comenius
que o mesmo acontecerá se houver um encaixe perfeito da nova e universal forma de
instrução que se propõe na Didática magna. Outra observação a ser feita é que com
menos pessoas trabalhando, assim, se produz um maior número de livros.
Usando esse exemplo comparativo Comenius faz a seguinte aplicação: seja
instruído o maior número de pessoas com o menor número de professores; que tais
pessoas sejam instruídas de maneira mais genuína; com cultura refinada e agradável;
(COMENIUS, 1997, p. 362-363).
Depois de mostrar as semelhanças existentes entre o produzir livros por meio da
tipografia e a arte de ensinar, Comenius (1997, p. 370) afirma:
Assim como a descoberta da arte tipográfica possibilitou a
multiplicação dos livros, veículos de instrução, também com a
descoberta da didacografia, é possível multiplicar as pessoas
instruídas para grande proveito da humanidade, segundo a máxima A
multidão de sábios é salvação do mundo inteiro (Sabedoria 6.26). E
uma vez que nos esforcemos por multiplicar a instrução cristã para
infundir em todas as almas a piedade, a cultura e os costumes
honestos, podemos esperar que um dia a terra se encha do
conhecimento do Senhor, assim como o mar está cheio de água Isaías
11.9.
41
Requisitos necessários para começar a pôr em prática este método
universal
O capítulo XXX é ao mesmo tempo conclusão e poslúdio de um louvor.
Comenius convencido de que apresenta o método de ensino, diz: “[...] condição feliz
seria a dos reinos cristãos e dos Estados se fossem criadas escolas tais quais as
desejamos” (COMENIUS, 1997, p. 371).
Para a criação de escolas diz Comenius (1997, p. 371):
É indispensável que se tenham homens capazes de ensiná-la aos
jovens; que todos inclusive os filhos dos pobres sejam contemplados
com o ensino; que a escola seja provida de livros “panmetodológicos”;
que esse trabalho não seja feito por um só homem, porém por uma
sociedade colegiada; que é preciso contar com a autoridade e a
liberalidade de algum rei, príncipe ou Estado, com um lugar próprio,
uma biblioteca e demais coisas indispensáveis.
Termina sua Didática magna, tratado da arte de ensinar tudo a todos, com um
apelo a todos os homens de boa vontade, a que doem de si o saber que receberam,
primeiro a Deus o doador de tudo, depois ao próximo, imagem e semelhança do doador.
O chamamento decisivo e consistente de Comenius (1997, p. 374-375) é:
Vós, homens cultos, que Deus dotou de sabedoria e de sutil juízo, para
que possais julgar essas coisas e melhorá-las com vosso prudente
conselho, não tardeis a contribuir com vossas centelhas, com vossos
fachos, para tornar mais candente esse santo fogo. Lembrai-vos da
recompensa prometida pelo amor aos bons e fieis servos que
multiplicam os talentos que lhes foram entregues! E da ameaça aos
preguiçosos que enterram seus talentos (Mateus 25.14-30). E conclui:
não desejeis serem os únicos instruídos: fazei o que vos for possível
para que os outros sejam também instruídos.
Portanto, dá-se por concluído o primeiro capítulo desta pesquisa, que discorreu
sobre a proposta educacional de Comenius explicita na Didática magna. Percebeu-se
que, com sabedoria e engenho, o autor se propôs à tarefa de criar e expor, a quem
interessar e em qualquer lugar, a arte universal de ensinar tudo a todos. Na consecução
de seu projeto percebeu-se que o educador não se pertence a si mesmo, e por isso
mesmo não pode se eximir da responsabilidade de repassar o que recebeu de Deus e dos
preceptores. Cita Sêneca, conhecido por sua inteligência e máximas: “Desejo infundir,
42
nos outros tudo o que sei”, e: “Rejeitarei qualquer sabedoria que me seja oferecida com
a condição de mantê-la oculta e de não poder difundi-la” (COMENIUS, 1997, p. 375).
Estudado o texto da Didática magna e entendido seus principais ensinos, é
mister, à semelhança do que foi feito aqui, trabalhar com os ensinos fundamentais da
Pampaedia, reflexão a ser feita no próximo capítulo.
43
Capítulo II
Ensinos fundamentais da Pampaedia de João Amós Comenius
Compreendidos os ensinos fundamentais da Didática magna é relevante, neste
capítulo, identificar os principais ensinos comenianos expostos na Pampaedia para
igualmente prover sustentação ao último capítulo quanto à relação do homem com a
natureza.
Comenius (1992, p. 41) define o termo Pampaedia como a educação universal
de todo gênero humano de maneira que a humanidade aprenda tudo plenamente. A
Pampaedia é definida por ele como o caminho pelo qual se implanta a sabedoria nas
mentes, nas línguas e nos corações de todos os homens e a finalidade de sua obra é
enfatizar que o homem é o maior esplendor de Deus.
Assim, para que reflitam a nobreza de sua criação; cumpram sua função neste
mundo de governar sobre todas as coisas, é necessário formar plenamente a cada
indivíduo, sem se importar com a classe social a que pertencem se são ricos ou pobres,
nobres ou plebeus, homens ou mulheres: “resumindo: a todos quantos nasceram homens
[...], de qualquer idade, condição, sexo ou nacionalidade, devem ser educados”
(COMENIUS, 1992, p. 42).
A intenção educacional, ensinar plenamente a todos, é inútil, se todos aqueles
investido de autoridade e poder de decisão desejarem a formação de cada indivíduo,
mas porque muitos destes, desejam que as trevas reinem e que o povo permaneça na
ignorância, Comenius (1992, p. 47) entende que não pode se calar, uma vez que a
educação é interesse de Deus, dos homens e de sua administração junto à criação de
Deus. Portanto, por amor a Deus, a Cristo e ao gênero humano se deve desejar
“verdadeira e sinceramente expulsar as trevas e fazer crescer a luz em todas as mentes”
(COMENIUS, 1992, p. 47).
Após, deixar claro que é imprescindível que o homem seja devidamente
ensinado para que cumpra adequadamente os seus deveres como a mais perfeita das
criaturas divinas, retoma a temática: “que todos os homens sejam educados totalmente”
(COMENIUS, 1971, p. 91). Educar totalmente significa ser educado, não para a
aparência, mas para a verdade, com utilidade certa e segura para esta vida e para a
futura (COMENIUS, 1971, p. 91). O objetivo desta educação é que todos sejam
formados na sabedoria, nos bons costumes e na piedade, não para que se torne um
44
sabichão, mas sabedor; não uma máscara de honestidade, mas a própria honestidade;
não um hipócrita da piedade, mas um piedoso e santo adorador de Deus em espírito e
verdade, afirma Comenius (1971, p. 91).
Para educar totalmente os homens, o ensino não pode ser dividido ou parcial,
mas total; não superficial e aparente, mas profundo e real; não amargo e forçado, mas
doce e agradável e, consequentemente, duradouro. “Deve desejar-se, porém, que todos
sejam instruídos em profundidade e não superficialmente; para a verdade e não para
opiniões ou aparências” (COMENIUS, 1971, p. 94). Devem-se educar os homens
integralmente porque quando se força a natureza humana a se fixar num determinado
pormenor, e não observa todo o conjunto das coisas, não pode manter-se em equilíbrio e
perigosamente sai do centro e, assim traz prejuízo para si, para as coisas e para os outros
homens.
Por exemplo, aqueles que desejam em excesso dominar os outros
homens, e se obstinam nesse sentido, esquecidos de tudo o resto, se
acontece que consigam realizar o seu desejo, facilmente se tornam
tiranos, para perda sua e dos outros. Outros, entregando-se apenas aos
gozos da vida, tornam-se porcos (COMENIUS, 1971, p. 93).
O remédio para esta situação é que os homens sejam ensinados totalmente. “Que
cada um prefira saber, querer e poder tudo o que Deus permitiu que se soubesse,
quisesse e pudesse, e não apenas uma parte” (COMENIUS, 1971, p. 94). Ensinar
totalmente não implica em aspereza, e sim, em espontânea perfeição e suavidade com a
finalidade de alcançar resultados duradouros. “De modo que, uma vez que se tenha
iniciado esta mais plena educação não seja abandonada de novo e os homens não voltem
a cair no habitual torpor, inércia e barbárie” (COMENIUS, 1971, p. 95).
Há pelo menos dois obstáculos que concorrem com a proposta educacional de
Comenius, isto é, ensinar todos os homens totalmente. Um desses obstáculos é o pecado
cuja preocupação é obscurecer a boa compreensão: “[...] todos fomos corrompidos, de
modo que somos cegos mesmo em presença da própria luz, somos surdos perante as
próprias vozes que nos aconselham o melhor” (COMENIUS, 1971, p. 98). O outro
obstáculo são os maus exemplos: “Um outro grande obstáculo para a sã educação do
homem é dado pelos maus exemplos dos costumes e das opiniões, que penetram
também entre os jovens (e sobretudo entre eles) e os conduzem para o mau caminho”
(COMENIUS, 1971, p. 99).
45
Todas estas coisas tornam difícil a verdadeira educação, entretanto, é
incontestável que, estas dificuldades podem ser eliminadas ou diminuídas. Alguns
acreditam que a forma de diminuir ou eliminar estas dificuldades é por meio da
simplicidade das coisas. Não é assim que Comenius pensa, porque para ele, o escasso
número de objetos enche igualmente os sentidos e desvia a imaginação para as coisas
vãs, nocivas ao corpo e à alma. “Será, portanto, mais razoável o conselho de conservar a
ordem instituída pela sabedoria de Deus, isto é, dotar a mais completa das criaturas de
todo os meios preventivos para se manter afastada de todas as coisas prejudiciais”
(COMENIUS, 1971, p. 100). Por outro lado, é necessário dominar os excessos porque o
homem “suportará os freios [...] se for habituado a dominar-se a si mesmo naquela coisa
que vir que são contrárias à razão” (COMENIUS, 1971, p. 101).
Todavia, não se pode esquecer que apesar dos obstáculos, nada pode se opor ao
desejo do educador de reconduzir o homem à sua perfeição primitiva. Para ensinar tudo
a todos há necessidade de escolas universais, isto é, a Panscolia.
Panscolia
Quando Comenius (1971, p. 104) trata de escolas ele pontua que em alguns
povos, nunca houve escolas, e por isso eram bárbaros. Mais adiante assinala que, em
outros lugares existiam escolas, mas não eram boas. Mesmo as escolas que focam a
piedade, não estão bem organizadas, pelo que se assemelham mais a casas de trabalhos
forçados e a labirintos. Portanto, devem-se criar escolas por toda a parte, segundo a
vontade de Deus, a reparar os homens de maneira que sirvam novamente como jardins
de delícias para o Criador.
É relevante neste contexto, atentar para os princípios que fundamentam a
Panscolia. Comenius (1971, p. 107-121)4 assinala que cada idade é destinada a aprender
e que a morte não coloca um fim à vida do homem, porque todo aquele que nasceu
homem, depois da vida terrena, deverá ir para a eternidade, a universidade celestial.
Importa, portanto, repartir todas as fases e todas as tarefas da vida inteira para que os
homens saibam os objetivos pelos quais eles estão neste mundo e escolham o melhor e
não o pior para suas vidas.
4 Na tratativa da Panscolia foi feita uma síntese do capítulo 5 da Pampaedia. O que segue é um resumo
indicativo deste capítulo
46
Os objetivos dizem respeito aos estudos, de modo especial, aos religiosos; mas
dizem respeito também a prudência da vida; os bons costumes; as artes e as ciências e
ao conhecimento das letras. Estes estudos devem ser ensinados a todos os homens,
respeitando os limites de cada fase da vida: a infância, puerícia, adolescência,
juventude, idade adulta e velhice. Se estas fases não forem levadas em consideração,
perde-se o tempo, “uma vez que aquelas coisas que poderiam ter-se aprendido na
infância ou na puerícia, tem necessariamente que aprender-se na adolescência”
(COMENIUS, 1971, p. 109). Enfim, ou faltará tempo para as últimas tarefas ou tudo
será feito precipitadamente e mal feito. Além disso, perdem-se as ocasiões e aptidões
para fazer as coisas: “Com efeito, para a realização daquelas coisas para que foi apta a
primeira idade, não o será a segunda, muito menos a terceira etc”. (COMENIUS, 1971,
p. 109).
Vale ressaltar aqui, ecos do pensamento de Comenius em Piaget. Segundo Lopes
(2008, p. 55), Piaget ao prefaciar uma coletânea de textos de Comenius5, assinala que
ele estava à frente do seu tempo, de maneira que sua discussão relativa ao conhecimento
gradual da criança, a partir das coisas concretas para as complexas foi influência direta
de Comenius em seus estudos. Percebe-se assim, que a abordagem do processo ensino-
aprendizagem deve muito ao autor da Pampaedia.
Necessário é atentar para o princípio de que Comenius (1971, p. 109-110), ao
partir do conhecimento gradual e que saber utilizar cada fase da vida e aplicá-la ao
ensino (COMENIUS, 1997, p. 320), constitui-se em sabedoria, divide a vida humana
em: concepção e a gestação no útero materno; no nascimento e sua sequência que é a
infância; na puerícia; na adolescência; na juventude; na idade adulta e na velhice. Estas
idades correspondem às suas respectivas escolas: a Escola da formação pré-natal; a
Escola da infância; a Escola da puerícia; a Escola da adolescência; a Escola da
juventude; a Escola da idade adulta e a Escolha da velhice.
Ao comentar acerca destas escolas em termos abrangentes Comenius (1971, p.
110), afirma:
O lugar da primeira dessas escolas será em qualquer parte onde
nascem os homens; da segunda, em cada casa; da terceira, em cada
aldeia; da quarta, em cada cidade; da quinta, em cada reino ou
província; da sexta, no mundo inteiro; da sétima, em qualquer parte
onde se encontrem homens mais longevos.
5 Esta obra possui a seguinte referência: PIAGET, J. La actualidade de Juan Amós Comenio. In Páginas
Escogidas. Buenos Aires: A.Z. Editora; Orcalc, Ediciones Unesco, 1959.
47
Nota-se que são sete escolas e cada uma delas, se não for possível sua fundação
em todos os lugares, que sejam estabelecidas em locais estratégicos.
Na Pampaedia percebe-se que estas escolas poderão ser privadas e acontece no
lar, sob a responsabilidade dos pais; públicas, sob a supervisão da Igreja e dos
magistrados e pessoais, uma vez que já se atingiu grau de maturidade que pode ser o
condutor da sua própria vida.
Sua preocupação ao discutir a panscolia está voltada para as escolas públicas.
Ele define escolas públicas como as assembléias onde os jovens de toda a aldeia ou
conjunto de famílias, cidade ou província, sejam exercitados coletivamente nas letras,
nas artes, nos costumes e na verdadeira piedade (COMENIUS, 1971, p. 111). Este
princípio conduz ao pressuposto da pansofia, isto é, ensinar tudo a todos, com
sabedoria. Isto significa que todos têm direito e acesso à educação e na concepção de
Comenius (1971, p. 111) que os pais sejam obrigados a enviarem os seus filhos à
escola.
A partir desse pensamento comeniano há dois princípios relevantes a serem
destacados aqui:
Educação para todos
Está explícito no pensamento de Comenius que a educação não deve ser dirigida
a um determinado grupo de pessoas, tampouco, deve haver diferença de qualidade na
educação. No estudo da Pampaedia Comenius (1971, p. 116) trata dessa questão ao
conceber que os nobres e os plebeus podem ser ensinados com os mesmos professores e
nos mesmos lugares, daí sua ênfase: “[...] onde quer que os homens nasçam, é
necessária a educação para que os dotes da natureza passem de potência a acto”
(COMENIUS, 1971, p. 117).
A relevância da Instituição Escolar
Esta existe em função de duas coisas: a primeira porque em sua maioria, os pais
não podem propiciar a educação a seus filhos em sua plenitude, “pois muitos deles
também são ignorantes” (COMENIUS, 1971, p. 111); a segunda é que no estudo
coletivo há estímulo recíproco dos alunos. Entretanto, deve-se explicitar que o objetivo
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da escola não é só aprender a ler e a escrever, mas também que aprendam conteúdos
úteis e necessários para toda a vida (COMENIUS, 1971, p. 115).
Que na escola os alunos aprendam além das letras, a se exercitarem nos bons
costumes, isto é, que as escolas empreguem todos os esforços para que seja uma oficina
pública de virtudes, para que as crianças não aprendam vícios ou malefícios para si e
para o próximo. Que nelas se aprendam a piedade, definida por ele como: “[...] coração
- impregnado pelo reto sentimento, no que se refere à fé e à religião – saber buscar Deus
em toda parte” (COMENIUS, 1997, p. 271), de maneira que as crianças ao voltarem
para suas casas, mesmo que lá haja algum desvio de comportamento por parte dos seus
pais, estas saibam identificar e não sejam corrompidos pelos seus maus exemplos.
As escolas devem possuir os seguintes requisitos essenciais: os professores, os
alunos e os bons livros. Além disso, devem possuir edifícios para as aulas, reuniões, os
meios financeiros para pagar os professores e dos diretores, que serão os responsáveis
pela manutenção da autoridade e do estímulo a todos os alunos e professores. Deve
haver ainda a preocupação com a utilização de métodos atraentes, com estudo
inteiramente práticos, que resultem no prazer da juventude em fazer parte dela. Alguns
dos métodos apontados por Comenius (1971, p. 120) são: debates, redação de cartas e
representações cênicas. Entretanto, esta reflexão será aprofundada neste trabalho,
quando for tratar da discussão em torno da Pandidascália.
Em síntese, há uma profunda preocupação de Comenius com a criação de
escolas, denominadas por ele de panscolia (escola para todos), cujo objetivo é
“conseguir que, por toda parte, haja grande abundância de homens bem instruídos”
(COMENIUS, 1971, p. 115). Em suas reflexões da escola pansófica (ensinar tudo a
todos) explicitada em toda a Pampaedia, Comenius pontua que a escola no
cumprimento do seu objetivo deve possuir bons livros, e na tratativa de sua
interpretação do que seriam, “os bons livros”, ele escreve um capítulo que discorre esta
matéria, denominando-a Pambiblia.
Pambiblia
Comenius adentra na discussão da Pambiblia porque está convicto de que os
livros, segundo a intenção proposta por ele, estão destinados à reforma do mundo, e a
partir dessa perspectiva é que ele define Pambiblia como “livros destinados à cultura
universal e elaborados segundo as leis de um método universal” (COMENIUS, 1971, p.
49
123). Para que sejam instrumentos universais de cultura eles devem conter todas as
coisas úteis ao ser humano. Ao enfatizar as “coisas úteis” tem em mente que não há
necessidade de muitos livros (COMENIUS, 1971, p. 125), mas apenas os livros divinos
que são: o mundo, a mente e a Revelação feita com palavras e narrada na Bíblia.
Estes três livros, para Comenius, são a verdadeira e completa biblioteca, porque
o seu conteúdo diz respeito às coisas deste mundo e prepara o homem para a eternidade.
Os demais livros são relevantes na medida em que prepara o entendimento humano para
a compreensão dos livros divinos. Nesse contexto é que ele discorre acerca de como os
livros devem ser editados. Aqui segue apenas as linhas mais gerais de Comenius que
trata de como deveriam ser editados todos os livros da escola pansófica. Eles devem ser:
Poucos e breves. Na concepção comeniana os livros devem ser poucos e breves,
“de modo a não fazer perder a coragem pelo seu número e pelo seu tamanho, e em
alguns, privados das coisas necessárias [...] em alguns, sobrecarregados com coisas
supérfluas” (COMENIUS, 1971, p. 125). Percebe-se que Comenius não só defende a
brevidade do livro, mas que os livros não sejam sobrecarregados de coisas supérfluas.
Além disso, enfatiza que somente os livros que tragam novas e úteis descobertas sejam
publicados.
Publiquem-se apenas descobertas novas e úteis [...]. Desapareça a
perniciosa atitude de escrever livros acerca de coisas já conhecidas
(isto é, de transcrever o que outros escreveram [...]. Se alguém,
mudando apenas o estilo, quiser parecer que fez um livro e, desse
modo, vender, como suas, coisas alheias, seja considerado plagiário;
ou então ridicularizado (COMENIUS, 1971, p. 131).
Claros e verdadeiros. Esta deve ser outra qualidade dos livros da escola
pansófica: clareza na exposição do que é verdadeiro. Como visto, Comenius assinala a
importância de escrever livros que contenham apenas os conteúdos úteis. Portanto, não
podem estar carregados de coisas supérfluas. Nesta parte da Pampaedia o destaque é
que estes livros ensinem de modo claro o que é verdade.
Se expuserem todas as coisas com verdade tão clara e sólida que, por
assentimento comum, toda a humanidade tenha de reconhecer que
aqui estão as verdadeiras chaves para abrir os livros de Deus, as
chaves que abrem a compreensão de todas as coisas neles contidas
(COMENIUS, 1971, p. 125).
50
Atraentes e diferentes. Diferentes no sentido de que devem ser aplicados aos
diferentes graus da idade. Atraentes, em oposição aos livros ou aos métodos utilizados
em seus dias, isto é, que provocavam tédio por causa da ênfase nas repetições e do
decorar apenas conteúdos (COMENIUS, 1971, p. 125). Para que estes livros sejam
atraentes Comenius discorre acerca de diversas formas, entretanto, sua ênfase na
Pampaedia será no diálogo.
Conseguir-se-á isso, sobretudo se a maior parte desses livros for
escrito em forma de diálogo, pelas utilizações interessantíssimas a que
tal forma se presta [...] Por este processo, todos se habituam a
interrogar inteligentemente acerca de todas as coisas e a responder
inteligentemente às coisas perguntadas inteligentemente, quer a tarefa
de interrogar seja confiada aos professores, quer seja confiada aos
alunos. Com efeito, cada um deles se habituará a desempenhar um ou
outro papel, ora fazendo-se aluno, ora fazendo-se examinador. E se
todos forem ensinados a interrogar e a responder assim,
prudentemente, acerca de todas as coisas, todos se tornarão sábios
(COMENIUS, 1971, p. 129).
Observa-se, a partir das palavras acima, que tanto as escolas (panscolia) quanto
os livros escolares (pambiblia), tem o foco de fazer com que a educação seja uma tarefa
agradável de se realizar. Infere-se daí que, sua abordagem educacional se preocupa com
o professor e com o aluno, ou seja, que o último não seja apenas um recipiente, antes,
seja parte integrante do processo ensino-aprendizagem, porque só assim, é que a
educação cumprirá o seu propósito: educar para a sabedoria.
É nesse contexto que, logo após, tratar da Panscolia e Pambiblia, volta-se
especificamente para os professores. Estes devem se preocupar em inserir e extrair
conhecimento dos seus alunos. Nessa discussão, Comenius utiliza o termo
Pandidascália, conforme será a tratado a seguir.
Pandidascália
Como se pode perceber, Comenius intenciona delinear a escola pansófica, isto é,
“ensinar tudo a todos”, a partir dessa perspectiva é que se preocupa em propor a criação
de escolas (Panscolia) e com a literatura que deve ser utilizada nesta escola
(Pambiblia). Entretanto, ainda falta em sua proposta pansófica, uma relevante figura, a
do professor.
51
Em sua concepção, para ensinar todos os homens totalmente (pansofia), são
necessários professores universais que saibam inculcar em todos, todas as coisas,
designados de Pandidascália. “[...] que não faltem em nenhum lugar [...] que sejam
doutos e capazes de ensinar, que eles próprios entendam todas as coisas que tornam o
homem, homem e saibam, em todas as coisas, instruir os outros” (COMENIUS, 1971, p.
105).
Noutra parte da Pampaedia, Comenius (1971, p. 147) define o professor da
escola pansófica como: “É um professor pampédico que sabe formar todos os homens
em todas as coisas que aperfeiçoam a natureza humana, para tornar os homens
totalmente perfeitos”. O contexto próximo dessa afirmação é a comparação feita por
Comenius entre os professores e os apóstolos formados por Cristo, pois, em seu
entendimento os professores têm responsabilidades e devem ser tão valorizados como
os apóstolos são na Igreja: “depois dos tempos dos apóstolos, estão [os professores]
encarregados da formação dos homens [...]” (COMENIUS, 1971, p. 148).
Ao comparar o ofício docente com o trabalho realizado pelos apóstolos fica
demonstrado quão importante é o exercício desta função na formação dos alunos.
Ressalta-se que o objetivo específico desta “formação” é: restabelecer no homem a
imagem perdida de Deus, porque quando se estabelece no homem a imagem perdida de
Deus, este passa a escolher o bem e a reprovar todo o mal. “Lembrem-se, portanto, os
educadores dos homens que o seu dever é ensinar aos homens todas aquelas coisas que
dizem respeito à reparação da imagem divina em nós” (COMENIUS, 1971, p. 149).
Observa-se que, educar os homens, no pensamento de Comenius (1971, p. 150)
não diz respeito apenas à transmissão de conhecimento, antes disso, o foco está na
restauração da imagem divina perdida no homem. Este é o objetivo de todo educador. É
com essa perspectiva que o autor da Pampaedia explicita o perfil dos que podem
exercer tamanha responsabilidade. Segundo ele, os formadores dos homens serão os
mais seletos dentre a sociedade.
Os docentes devem ser, antes de tudo, piedosos, isto é, “totalmente dedicados a
Deus” (COMENIUS, 1971, p. 148). Além de piedosos, eles devem ser honestos, ou
“imaculados diante dos homens, sob todos os pontos de vista” (COMENIUS, 1971, p.
148). Devem ainda, serem dignos, “para que façam todas as coisas com a mais suave
severidade” (COMENIUS, 1971, p. 148); diligentes, “a fim de que nunca sintam o peso
ou se envergonhem do seu ofício, nem se deixe abater facilmente pelas fadigas”
(COMENIUS, 1971, p. 148); prudentes, “porque os espíritos humanos [...] se
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transformam em monstros multiformes, se não presos e firmemente apertados nos
vínculos da ordem” (COMENIUS, 1971, p. 148).
Este perfil resultará na competência docente, que está diretamente ligada ao
método de ensino e é uma das principais preocupações de Comenius. Este foco pode ser
percebido, além da Pampaedia, também na Didática magna: “Nós ousamos prometer
uma Didática Magna [...] de ensinar de modo fácil, portanto sem que docentes e
discentes se molestem ou enfadem, mas, ao contrário, tenham grande alegria”
(COMENIUS, 1997, p. 13).
O objetivo educacional comeniano na Pampaedia é referente à restauração da
imagem divina perdida no homem, mas para alcançar este objetivo é necessário estar
consciente de que os professores conheçam todos os fins da sua profissão; todos os
meios educacionais possíveis e apliquem uma variedade de método de ensino. Assim,
sua didática deve se fundamentar em três princípios: universalidade, para que todos
sejam ensinados em todas as coisas; simplicidade, para que com meios adequados
cheguem à certeza e espontaneidade, para que façam tudo suavemente e
agradavelmente, como se fosse um jogo; “de modo que todo o processo da educação do
homem possa chamar-se escola-jogo (schola ludus)” (COMENIUS, 1971, p. 150).
Comenius pontua um método, composto de três partes, que devem ser utilizados
pelos professores. As partes são: análise, síntese e síncrise. Na análise ocorre a
decomposição da unidade nas suas partes. “Com efeito, as coisas indivisas e indistintas,
são confusas, perturbam os sentidos, a mente e a si mesmas” (COMENIUS, 1971, p.
155). Na síntese ocorre o inverso, isto é, a recomposição das partes no seu todo. “Ele é
vantajosa para consolidar o conhecimento das coisas” (COMENIUS, 1971, p. 156). Por
fim, a síncrise, que é a comparação das partes com as partes e dos todos com os todos.
Esta comparação esclarece o conhecimento, porque “conhecer as coisas isoladamente
(como costuma fazer o comum dos homens) é algo de parcial, mas conhecer a harmonia
das coisas e as relações comuns de todas as coisas com tudo [...] traz às mentes luz
pura” (COMENIUS, 1971, p. 156).
Nesta mesma discussão é relevante atentar para o princípio educacional de que
Comenius compreende a necessidade de, uma vez observadas todas as condições para a
educação do homem, o educador não pode fazer distinção entre a teoria (theoria), a
prática (práxis) e sua utilização, que é denominada por ele como chresis (COMENIUS,
1971, p. 160). Na prática isso implica num único método que está focado na teoria, na
prática e nos exemplos. As regras deveriam ser poucas, mas claras; a aplicação prática
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deveria ser contínua e muitíssima, até se transformar em hábito e os exemplos, seriam
ligados diretamente ao tema (COMENIUS, 1971, p. 160).
Na reflexão do método comeniano Gasparin (1994, p.154) assinala que ele pode
ser definido como sincrítico que corresponde à “ação da mente que compara uma coisa
com outra, fazendo-as passar por um crivo a fim de separar, discernir o que é o melhor
de todo resto”. Semelhantemente Lopes (2003, p. 111) define: “método que confronta
duas ou mais idéias, ou realidades, buscando compreendê-las dentro de uma totalidade”.
As definições acima contemplam pelo que se pode perceber, uma parte do
significado do método comeniano, porque ambas acentuam “a comparação entre duas
coisas ou realidade”. Entretanto, deixam de assinalar um princípio fundamental do
citado método que é o termo “exemplo”, o qual está diretamente relacionado com
método de ensino que permite a compreensão de que “exemplos” não dizem respeito à
questão moral, como pode se pensar, mas tem a ver com a utilização de recursos
práticos e visuais aplicados ao processo de ensino-aprendizagem.
Já que não se consegue prover todos os recursos visuais, que eles sejam inseridos
no livro escolar, daí, na Didática magna, ao fazer referência ao seu método de ensino,
Comenius (1997, p. 332) registra as palavras: “[...] seria muito útil para a escola [...] um
livro ilustrado com figuras [...] Nesse livro podem ser pintados montes, vales, árvores,
pássaros, peixes, cavalos [...]”. Portanto, no método comeniano há três partes
indissociáveis: a teoria, a prática e as ilustrações, as quais formam o método sincrítico
que deve ser utilizado continuamente pelos docentes em suas aulas.
Além do método comeniano, proposto acima, o docente (pandidáscalos) deve ter
em mente os seguintes princípios educacionais6:
1- Que todo homem seja submetido à educação o mais cedo possível. Além
disso, deve-se ter a consciência de que este ensino tem início, mas não tem fim, pois se
trata de algo contínuo. Por ser um ensino contínuo e ter início desde a mais tenra idade,
não pode ser enfadonho, e sim, alegre e suave em sua maneira de aplicá-lo
(COMENIUS, 1971, p. 151).
2 – Que todo homem tenha diante de si os instrumentos necessário à sua
educação. Todas as discussões dispostas à educação devem ser planejadas
antecipadamente e com os alunos. Que a estes não faltem ilustrações, livros,
6 Esta parte pode segue a estrutura proposta por Comenius (1971, p. 162-163).
54
observações práticas para que os ensinos sejam incutidos na memória. Para tanto que
sejam observadas, num primeiro momento as coisas simples e depois as complexas.
3 – Que os recursos educacionais sirvam como alimento ao desejo inato de
conhecer do homem. Por conseguinte, deve-se primeiramente, apresentar todas as coisas
a serem aprendidas aos sentidos. Após isso, apresentá-los na prática e, por fim, que se
discorra a respeito da temática da aula.
4 – Que o conhecimento por ser contínuo é gradual. Por isso, deve-se partir dos
princípios mais elementares; após os elementares é mister pormenorizar mais
precisamente as partes, com a finalidade de obter o máximo de exatidão no que está
conhecido.
Observa-se que, em Comenius o processo educativo só cumpre seu objetivo que
é reparar no homem a imagem perdida de Deus, se ele respeitar o desenvolvimento
educacional dos alunos e tiver a consciência de que o processo educacional, sobretudo,
escolar deve ser revestido de satisfação e alegria por parte dos alunos. É nesse contexto
que ele, propõe que a forma popular de ensinar seja a utilizada, em detrimento do rigor
filosófico. Segundo Comenius (1971, p. 164), o método do rigor filosófico comete ou
ameaça cometer violência aos espíritos dos alunos e, por isso, atemoriza-os.
Entretanto, o método popular estimula a luz inata, para que se transforme numa
chama, e assim, “a verdade das coisas virá à luz espontaneamente” (COMENIUS, 1971,
p. 164). A partir dessa mesma perspectiva Comenius (1971, p. 170) afirma: “[...] que
nada se faça a não ser com prazer. [...] nada será difícil para quem quer, porque (como
diz Santo Agostinho), naquilo que se ama, ou não há fadiga, ou a própria fadiga é
amada”.
Isto posto, Comenius passa a se preocupar com a educação infantil, conforme
pode ser visto na continuação deste estudo.
Informações úteis aos pais sobre os primeiros cuidados com as crianças
ainda no seio maternal
O ponto de partida na reflexão da educação infantil em Comenius (1992, p. 175)
é a união conjugal, a qual, segundo ele, é imprescindível para a boa educação escolar da
criança. Por esta razão, no capítulo VIII levanta a discussão em torno da relação
matrimonial.
55
Dentre as finalidades da união conjugal, Comenius destaca que ela serve para
cumprir o desejo de Deus quanto à proliferação da raça humana conforme explicitado
no texto bíblico de Gênesis capítulo 1, versículo 28: “E Deus os abençoou e lhes disse:
Sede fecundos; multiplicai-vos, enchei a terra [...]”. Segundo Comenius (1992, p. 175),
a prole humana é semente de Deus, ela se propaga por meio de semente como os
vegetais e animais e para que esta propagação seja santa, é necessário encomendar que
ela corra a cargo dos pais, como representantes de Deus, cuja semente está encarregada
de propagar.
Os pais, por considerarem um privilégio cuidar, formar e alimentar os cidadãos
do futuro mundo devem agir como homens e não se propagarem como animais, como
uma geração lasciva, mas procriar piedosa e santamente como filhos e filhas de Deus
(COMENIUS, 1992, p. 175). Para que isso ocorra é necessário ter a consciência de que
não deve haver relação sexual alguma fora do matrimônio (COMENIUS, 1992, p. 176)
e, além disso, os cônjuges devem coabitar prudentemente, cuidando-se antes de tudo de
sua própria saúde e de que as crianças nasçam dentro da igreja, isto é, que elas tenham
pais santos. Disto decorre que antes de se pensar em ter filhos, os pais devem ter
consciência da responsabilidade que lhes será exigida, dentre elas: devem tê-los com
temor de Deus, com oração, com pura, santa intenção; que a criança seja fruto de um
matrimônio, honrado e honesto; que uma vez concebida a criança seja cuidada com
piedade e santidade.
A partir das palavras acima, Comenius (1992, p. 176-177) demonstra quem deve
contrair matrimônio: 1) os que estão em idade apropriada ou madura. “Não deve ser
demasiado novo ou adolescente, porque prejudicará a si mesmo e aos seus filhos”
(COMENIUS, 1992, p. 178); 2) somente os homens e as mulheres maduras e fortes
devem ter filhos; os que apresentarem debilidade ou enfermidade devem se abster do
matrimônio (COMENIUS, 1992, p. 178).
Segundo Comenius (1992, p. 179) durante a gestação a mãe deve observar três
princípios:
1) Evitar o prejudicial, não só para a saúde, mas ao que se refere aos costumes,
porque na alma do filho repercute as impressões recebidas pela mãe e, depois de nascida
a criança elas serão manifestadas. Tais cuidados são extraídos por Comenius dos
exemplos bíblicos das mães: do nazireu Sansão (Juízes 13. 3-5) e de João Batista (Lucas
1. 15) as quais deveriam se guardar e não beber vinho ou bebida forte, nem comida
imunda. “Por isso se ela é bebedora, lasciva, iracunda [...] todas estas coisas passaram a
56
seu filho [...] Por isso os filhos e às vezes famílias inteiras herdam as enfermidades do
corpo e da alma de seus progenitores” (COMENIUS, 1992, p. 179);
2) Preocupar-se com o bem estar da saúde pessoal. Devem-se praticar
exercícios físicos moderados, abster-se de comer com excesso, mas tomar vitaminas
com o propósito de assegurar a saúde, a beleza e a inteligência do feto;
3) Deve orar assiduamente a Deus, não só para que a previna de males e ter um
parto feliz, em que a prole seja bem formada, sã, robusta e vigorosa, mas
principalmente, para que o útero seja santificado pelo Espírito Santo e que a criança,
manchada pelo pecado de Adão, seja cheia de bondade (COMENIUS, 1992, p. 180).
Percebe-se a preocupação de Comenius com relação à união conjugal e ele deixa
explícito que a educação tem seu início, antes do nascimento da criança, as quais só
devem nascer dentro de uma relação matrimonial e após os pais tomarem as devidas
precauções morais e de saúde para que sua prole seja bem formada e educada para a
felicidade, pois só assim, os pais agradarão a Deus e demonstrarão sua gratidão em
terem sido abençoados como pais daqueles a quem o Senhor lhes confiou (COMENIUS,
1992, p. 180).
Cuidadosa formação do filho do nascimento até os seis anos de idade
Após, o nascimento, Comenius (1992, p. 181) enfatiza que a criança é um
homem que acaba de nascer e entrou a pouco no mundo exterior à sua mãe, portanto é
desconhecedor das coisas, necessita ser instruído nelas e a sua primeira escola é a casa
materna.
A Pampaedia pressupõe que a corrupção universal do mundo começa nas raízes
e, portanto, uma reforma universal do mundo deve também começar no mesmo lugar.
Assim, após o nascimento da criança, no devido tempo, é necessário ensiná-la os
primeiros rudimentos para que ela não seja ignorante, isto é, não seja “um material
bruto” (COMENIUS, 1992, p. 182), o que implica em ser de vazio entendimento, mãos
torpes, com mau comportamento e, sobretudo, desconhecedor de Deus. Pelo contrário, é
necessário educá-lo para que seja um homem instruído nos bons costumes, cujo coração
esteja cheio de Deus, cujo desejo seja agradá-lo e gozar de sua graça. “Esta cultura é e
deve ser o fim e o objetivo de todas as nossas escolas, especialmente das primárias, e de
toda nossa educação; e é precisamente aqui, na infância onde devem ser semeadas suas
sementes e lançados os fundamentos” (COMENIUS, 1992, p. 182-183).
57
Nota-se que, para ele, toda esperança de uma reforma universal das coisas
depende da primeira educação, pelas seguintes razões:
1) Porque é demonstrado no texto bíblico e “os principais lugares das Escrituras
Sagradas são: Salmos 8.3; Isaías 28.9; Zacarias 13.7; Isaías 40.11; 60. 22; Marcos
10.14: “Deixai vir a mim os pequeninos”; Mateus 18. 3 [...]” (COMENIUS, 1992, p.
183).
2) O homem se faz na primeira infância, conforme afirmação de Comenius
(1992, p. 183): “Somos enquanto corpo, enquanto espírito, enquanto costumes,
enquanto aspirações, palavras e gestos, conforme nos fizeram a primeira educação e a
formação da adolescência”. Nesse mesmo contexto, em sua concepção deve haver todo
esforço em incutir na criança as questões morais e espirituais desde a primeira infância,
haja vista que, uma vez nelas formadas, estas permanecerão durante toda a vida
(COMENIUS, 1992, p. 183). Na atitude oposta ele afirma: “Os vícios da primeira
educação nos acompanham durante toda a vida” (COMENIUS, 1992, p. 185-191).
Está claro que o foco de Comenius é demonstrar que a educação infantil é uma
temática que deve ser levada a sério em qualquer sociedade e em qualquer época, uma
vez que a criança ao entrar no mundo, vive num lugar “cheio de perigos” e o esforço
dos pais e educadores deve ser evitar que elas procurem as trevas e busquem a luz
(COMENIUS, 1992, p. 185). Após esta afirmação cita Cícero, o qual afirma: “O
fundamento de toda República é uma reta para a educação da juventude” (COMENIUS,
1992, p. 185-186) para atestar suas palavras e completa: “E não deve ter-se em mente
unicamente à República, mas também a Igreja e ao céu, para que tudo marche bem”
(COMENIUS, 1982, p. 186).
Ele está convicto de que o fundamento de qualquer sociedade é a reta educação
da juventude, e que a Igreja não pode se omitir desta discussão. Este princípio merece
uma reflexão à luz do que foi exposto quando se demonstrou a relevância do trabalho de
Comenius. Um dos princípios ali mencionados é relativo à educação infantil nas
comunidades cristãs, que um teólogo chega a denominá-lo de “ministério esquecido”.
Esta questão, por diversas razões, aqui não pode ser aprofundada, mas no estudo de
Lopes (2008, p. 12-39) percebe-se quão distante estão as comunidades religiosas em
geral desta preocupação de Comenius.
Após as considerações acima, o autor da Pampaedia indaga: “A quem cabe a
educação das crianças?”. Na resposta a esta questão Comenius (1992, p. 186) explicita
58
que o “primeiro cuidado dos filhos é de responsabilidade dos pais”, os quais, nesta
questão cometem alguns erros:
1) viverem preocupados com o seu próprio ventre; na busca de riquezas e
descuidam dos seus filhos;
2) por confiarem a educação dos seus filhos exclusivamente aos preceptores: “a
maioria dos pais cometem enormes erros [...] quão poucos são os que, como Licurgo,
estão dispostos a pagar, não mil dracmas, mas a metade de sua fortuna àqueles que
prometessem tornar melhores a seus filhos” (COMENIUS, 1992, p. 188-189);
3) acreditarem que nos primeiros anos, tudo deve ser permitido aos filhos.
Comenius, entretanto, afirma que é necessário desde o começo mostrar o caminho desde
a partida (COMENIUS, 1992, p. 189-190). “Aos pais que desejam passar os primeiros
anos sem instruir a seus próprios filhos em coisas úteis, saibam que estão perdendo uma
ocasião que não voltará [...] nunca o fruto será o mesmo” (COMENIUS, 1992, p. 191).
Alguns pais, segundo Comenius, podem objetar dizendo que os filhos são
incapazes de receber instruções e que gastar tempo com isso é um trabalho vão.
Todavia, no texto da Pampedia pode ser lido que os filhos potencialmente já possuem
as habilidades para as diversas formas do conhecimento, “com base na opinião emitida
por Platão do eterno retorno do mundo, no qual disse que „aprender é recordar‟”
(COMENIUS, 1992, p. 191-192).
Num dos seus argumentos ele conclama que os pais devem considerar
atentamente suas atitudes, pois os filhos são formados do seu sangue, da sua própria
carne, do seu próprio espírito e, se eles enquanto estão sendo gestados são cuidados
pelos pais, também quando nascem são dignos do mesmo acompanhamento e cuidado.
“Os filhos são uma possessão preciosa, preferíveis ao ouro e às pedras preciosas e a
qualquer classe de tesouro” (COMENIUS, 1992, p. 187), e por isso “não podemos
deixar aos filhos herança melhor nem tesouro mais precioso que a sabedoria, a virtude, a
comunhão com Deus, a dignidade celestial e, depois desta vida, a herança do reino
eterno” (COMENIUS, 1992, p. 187).
Há vários exemplos bíblicos que demonstram equívocos de alguns pais que não
deram atenção à educação desde a mais tenra idade e sofreram as consequências desta
atitude. Um deles é Eli, o qual mesmo sendo um homem piedoso, descuidou de assim
fazê-lo, e quando chegaram à idade adulta, quis repreendê-los, porém foi em vão, e os
filhos não só foram ímpios, mas atraíram a maldição de Deus para si e a toda sua casa.
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Comenius (1992, p. 193) explicita que se há interesse pela salvação do gênero
humano, os dirigentes das coisas humanas no campo político e no campo eclesiástico
devem prudentemente prover educação de qualidade, desde a mais tenra idade e que
jamais se deve descuidar dela em nenhuma ocasião.
O objetivo da primeira instrução deve ser:
1) que se espalhem prontamente as brasas divinas escondidas no corpo;
2) preservar-se para que o mundo e satanás e a própria força da natureza, não os
desviem para as coisas vãs e perniciosas;
3) que lhes ensine conforme a verdade das coisas que são verdadeiramente úteis
para esta vida e para a vida futura, ou seja:
a) que se procure no mundo criado, coisas que não sejam prejudicais e que de
todas tirem proveito;
b) que lhes ensine o trato adequado com os homens do mundo cujo consórcio
não possa, nem devem evitar;
c) que se elevem a Deus e lhes ensine a viver a vida celestial.
Os meios para conseguir tais resultados são:
1) entender o mundo como um teatro, isto é, a partir dele exercitar os sentidos:
“[...] quem quiser dar aos alunos uma ciência verdadeira deverá ensinar tudo sempre por
meio da observação direta e da demonstração sensível [...] será fácil imprimir na mente
das crianças, por meio de imagens sensíveis” (COMENIUS, 1997, p. 234);
2) a própria complexidade da natureza humana, a qual uma vez corretamente
analisada mostra igualdade da natureza em todos os homens, e assim entendida,
aprenda-se a estimar aos seus semelhantes e a querer ou não para todos o que não deseja
para si;
3) o conjunto das profecias de Deus que traz conhecimento e familiaridade com
ele. Para que estas coisas se concretizem deve haver: Interesse próprio; disposição para
ajudar e receber a cooperação de outrem, pois, “O que deseja que os demais façam por ti
ou pelos teus, faça-os tu primeiro” (COMENIUS, 1992, p. 195); e que se obtenha por
meio das orações e da bênção divina: “Toda prudência humana de nada vale se falta o
olho providente de Deus” (COMENIUS, 1992, p. 195).
Assim, que haja dedicação nos próprios pais de cuidar e a formar seus filhos; os
que não tenham tempo busquem homens piedosos, porém, devem estar sob a vigilância
dos pais, aos quais pelo menos uma vez por semana devem examinar o que está sendo
ensinado; que os filhos sejam encomendados a Deus todos os dias.
60
O exame dos pais deve consistir nos princípios:
1) seriedade, “pois se os primeiros passos não forem bem dados, e se não se
estabelecerem devidamente os fundamentos, o trabalho posterior será vão”
(COMENIUS, 1992, p. 195);
2) suavidade, segundo o modo de aprender das crianças. “Que se estabeleçam
jogos e recreios, porém de tal modo que, por meio deles, se aprendam o nome das coisas
e a utilidade que no momento oportuno terão” (COMENIUS, 1992, p. 195-196);
continuamente, uma vez que a educação é contínua.
É a partir de uma concepção contínua da educação que Comenius (1992, p. 196)
estabelece seis classes da escola infantil. Ressalta-se, todavia, que Lopes (2006, p. 222)
ao comentar o texto da Didática magna (1997) sintetiza a organização escolar na qual
revela que Comenius ao escrever o texto da Didática pontua a educação infantil de uma
forma abrangente, o que permite afirmar que a Pampedia é o texto em que ele procura
aprofundar conceitos, termos e concepções da educação, pois, o que se via antes era
apenas uma compreensão geral das ideias citadas acima. É com esta perspectiva que
Comenius demonstra as seis classes da escola infantil conforme segue abaixo:
1 – A classe dos recém-nascidos, a qual compreende até a idade de um mês e
meio. A primeira coisa a fazer, quando ainda as crianças são pequenas, é consagrá-las
ao serviço de Deus. “Os homens que estão destinados a serem templos de Deus, antes
de se empenharem a viver a vida, por si mesmos devem ser oferecidos a Deus para que
não se dediquem ao que é profano, e, portanto saibam o que precisam fazer”
(COMENIUS, 1992, p. 196) para agradar a Deus. “Porém como? Por meio de orações,
do batismo e de uma boa formação, a partir da primeira e mais tenra infância”
(COMENIUS, 1992, p. 196).
2 – A classe materna ou da lactância, a qual corresponde à idade até um ano e
meio. É necessário que a criança seja amamentada pela mãe (COMENIUS, 1992, p.
197), conforme afirma Comenius (1992, p. 180):
Que a mãe amamente ao recém nascido com seu próprio leite: 1) para
obedecer ao mandamento divino que ordenou este alimento para o
recém nascido; 2) para que o filho seja acostumado ao sangue
materno, receba o alimento mais conveniente para a sua saúde; 3)
porque nada mais é proveitoso para os bons costumes do filho que ser
alimentado com o espírito e sangue materno e paterno.
61
Observa-se que Comenius enfatiza a necessidade da amamentação e com a
mesma intensidade, propõe que o leite espiritual, denominado por ele de “leite da graça
de Deus” (COMENIUS, 1992, p. 197), seja administrado à criança para que a formação
interior alcance as raízes espirituais: “A mãe, o pai, a babá, os cuidadores, os parentes e
toda a Igreja devem orar para que ali onde não penetra a força da atividade humana, o
Espírito de Deus, trabalhando interiormente, prepare o filho como vaso da graça”
(COMENIUS, 1992, p. 197). Dos dois ou três anos e, sobretudo, aos quatro deve
começar a dar às criaturas uma idéia de Deus, de si mesmos, da vida e da morte para
que segundo a medida de sua capacidade (COMENIUS, 1997, p. 178-320), comecem a
saber porque estão neste mundo e que devem fazer nele (COMENIUS, 1992, p. 197).
3 – A classe do balbucio e dos primeiros passos. Nesta fase se devem ensinar as
palavras, por meio das coisas, com a finalidade de “que assim se cumpra o dito de
Salomão: a sabedoria abre a boca dos mudos e faz eloquente as línguas das crianças”
(COMENIUS, 1992, p. 198). Assim, devem-se ensinar, começando pelas partes maiores
do corpo ou se “iniciar sempre pelo mais fácil” (COMENIUS, 1997, p. 251), por
exemplo, pois, é necessário, que nesse momento não aprendam os pormenores, mas a
língua e pronúncia. Para isso, conforme Comenius (1997, p. 211) defende na Didática
magna, ao discutir Princípios de um ensino rápido e conciso, a necessidade de se
“levantar problemas”, na Pampedia orienta que se devem suscitar perguntas tais como:
“Mostrando uma coisa perguntem: que é isto? E vice-versa [...] onde está a cabeça”
(COMENIUS, 1992, p. 198).
A razão desse princípio é que na concepção comeniana as coisas vistas
pessoalmente são aprendidas, mais facilmente do que as apenas ditas: “Será de grande
serventia [...] um resumo de todos os livros de cada classe [...], ilustrações pintadas [...]
com os quais os sentidos, a memória e o intelecto dos alunos possam exercitar-te todos
os dias” (COMENIUS, 1997, p. 218). Com o mesmo princípio, Comenius (1997, p.
332) afirma: “[...] seria muito útil para a escola materna um livro ilustrado com figuras,
que seria entregue às crianças”. É com essa preocupação que Comenius escreveu suas
obras: Orbis pictus (1651) e Schola ludus (1654), das quais Comenius (1997, p. 332)
comenta na Didática magna: “[...] reforçar as impressões das coisas [...]; 2) estimular as
mentes ainda jovens [...]; 3) facilitar o aprendizado da leitura. E como acima de cada
imagem esta escrito o seu respectivo nome, esse poderá ser o começo da leitura”.
À luz do exposto, fica claro uma profunda preocupação de Comenius quanto à
educação infantil e isso justifica por que ele escreve boa parte da Didática magna com
62
foco num método a ser aplicado à faixa etária citada acima; igualmente ele escreve pelo
menos duas outras obras (Orbis pictus e Schola ludus) em que demonstra a preocupação
com as imagens e o aspecto lúdico a serem utilizados na educação das crianças. Daí sua
concepção em afirmar que as mães devem prover os cuidados fundamentais necessários
para a vida e as amas igualmente devem ter a mesma atitude, e estruturar a criança por
meio do lúdico, isto é, com música e fazer de todas as formas para que os meninos e
meninas se mantenham alegres em todo o tempo (COMENIUS, 1992, p. 199).
Nesse contexto, Lopes (2003, p. 120) pontua que a escola no aspecto físico deve
ser um lugar tranquilo, bonito, bem iluminado, limpo, ornado com pinturas, retratos de
homens ilustres, mapas, recordações históricas ou emblemas, e em suas imediações
deve ter um espaço não só para brincar e andar, mas também um jardim onde fosse
possível levar os alunos para que aprenderem a admirar as árvores, as flores, a relva,
pois, serviria para despertar nas crianças a alegria em ir à escola, uma vez que ali
poderiam ver ou ouvir algo de novo (COMENIUS, 1997, p. 170).
Quando as crianças começarem a se susterem em seus próprios pés, as amas
devem permitir os movimentos e o uso variado igualmente dos seus membros, de modo
que se acostumem a se movimentar.
Isso pode ser alcançado por meio de: brincadeiras, corridas, jogar bola, com
disco. Todavia, deve-se imitar “os antigos laucedemônios, que acostumavam aos filhos
aos mais duros exercícios, para que fossem: 1) de saúde mais robusta; 2) mais capazes
de suportar os trabalhos; 3) mais preparados para as vicissitudes” (COMENIUS, 1992,
p. 199). Portanto, “os filhos não devem ser educados com delicadeza, mas sim, seguir o
exemplo dos espartanos” (COMENIUS, 1992, p. 199).
Para alcançar este objetivo devem-se seguir os princípios:
1) Os preceitos, os quais devem ser breves, isto é, no momento oportuno e de
modo adequado; em pouco tempo; com clareza e eficácia. Para que as criaturas ouçam
com atenção; entendam com facilidade, recordem solidamente e ao entenderem não seja
esquecido. Ao mesmo tempo, além de mostrar-lhes por meio de imagens ou figuras é
mister que eles aprendam por meio da realização prática, a qual é denominada de
autopraxia (auto-atividade), a qual segundo sua compreensão é o “grande segredo ou a
chave de toda atividade” (COMENIUS, 1992, p. 200).
Entretanto, na concepção de Comenius (1992, p. 200), o lúdico e a auto-
atividade, devem cumprir a finalidade de educar, assim eles são prelúdios para sérios
trabalhos, a fim de que não haja perda de tempo ou talento, para tanto se devem
63
empreender atividades com um objetivo preciso e que se coloquem em prática os meios
úteis aos fins que se desejam alcançar (COMENIUS, 1997, p. 225).
4 – Classe das sensações. “As crianças desta idade são novas no mundo, não
tem ainda dentro do seu entendimento nenhum conceito (nem bom, nem mau), devendo,
portanto adquiri-lo pelas portas dos sentidos” (COMENIUS, 1992, p. 201), pois, para
ele, nada há no entendimento que não passe primeiramente pelos sentidos. Observa-se
que nesta fase, a tônica de Comenius é referente aos sentidos, temática vista
anteriormente, mas aqui, ele deseja aprofundar princípios ainda não discutidos. Em sua
concepção não se deve falar abstratamente às crianças, porque elas não conseguem
abstrair os conceitos das coisas nem formar suas idéias nas mentes apenas por meio da
voz. “Porém, é mais fácil mostrar-lhes as coisas e depois chamá-las por seu nome [...],
que lhes fale da natureza, imprimindo-se e manifestando-se aos olhos, aos ouvidos, ao
nariz, ao paladar e as suas mãos” (COMENIUS, 1992, p. 201).
É com esse pressuposto, que o autor da Pampedia enfatiza a importância da
ordem de Deus quanto às diversas cerimônias da Igreja desde os tempos da Igreja
Primitiva (COMENIUS, 1992, p. 202), para ele, este modo é perfeito e o único legítimo
para que as crianças não sejam escravas de opiniões, antes que sejam candidatos à
verdadeira sabedoria, dispostas a não aceitar nada falso, vão e irracional, admitindo
somente a verdade e a sabedoria (COMENIUS, 1992, p. 201-202).
Por fim, para que os sentidos sejam corretamente formados é necessário: 1)
impedir que se distraiam, haja vista que, o primeiro indício de uma mente bem formada
é a capacidade de se concentrar; 2) dirigir unicamente a fazer o bem; 3) habituar às
coisas sólidas, para prevenir os erros.
5 – Classe dos bons costumes e da piedade. Ainda que não saibam falar, é o
momento de formar os bons costumes, pois é nesta idade que as crianças começam a
desejar, a recusar e a temer algo, por isso é que “o apóstolo proíbe que se provoquem os
filhos à ira [...] para que não sejam habituados à ira, da que depois seria difícil
desabituá-los” (COMENIUS, 1992, p. 203). Para desenvolver os bons costumes nas
crianças são necessários: o exemplo, o ensino e a disciplina.
Na questão do exemplo se deve atentar para o princípio de que não se deve
exigir de alguém algo que a própria pessoa não faça. Portanto, é necessário dar-lhes
bons exemplos. O ensino deve ser claro e com palavras conhecidas, convertidas em
parábolas para que sejam mais fáceis de serem fixados e as crianças devem ter diante
dos seus olhos o fim do homem: 1) dominar prudentemente às criaturas; 2) reger-se
64
sabiamente a si mesmo e 3) por ser “imagem e semelhança de Deus” devem ser paraíso
de delícias para o Criador (COMENIUS, 1992, p. 204). Com relação à disciplina, ela é
relevante para esta idade. Não disciplina de açoite, mas aquela que consiste num
cuidado contínuo, que os encaminhe a fazer o bem, que não permitam a petulância
intencional e se isso ocorrer devem ser advertidos.
Para alcançar a piedade são necessários os mesmos princípios para a formação
da moral: os exemplos, o ensino e a disciplina. Os exemplos utilizados com foco na
piedade devem observar: 1) “todas as casas, onde há crianças, devem ser uma pequena
igreja, na qual, pela manhã e pela noite, se façam orações em comum, se dêem graças,
se cantem hinos, se leia a palavra de Deus, e se tenham conversas piedosas”
(COMENIUS, 1992, p. 205). Além disso, “comecem também a ser conduzidos pelos
pais à Igreja [...] para que aprendam a sentar-se tranquilos, a mover-se em silêncio, a
ouvir as Sagradas Escrituras e a aceitar a vontade de Deus, desde a mais tenra idade”
(COMENIUS, 1992, p. 205).
O ensino com foco na piedade deve servir para se falar em Deus em todas as
ocasiões, seja num funeral, seja na vista de um malfeitor condenado ao suplício. “Deve-
se contar-lhes as história dos juízos de Deus e como ele tem castigado sempre e sempre
castigará aos ímpios” (COMENIUS, 1992, p. 205) e é necessário lhes ensinar orações
curtas, as quais devem seguir o modelo da do Pai Nosso (COMENIUS, 1992, p. 207) e
elaboradas com palavras adaptadas à sua mentalidade (COMENIUS, 1992, p. 207),
“Durante a oração, ensinar-lhes a cruzar as mãos, levantar os olhos ao céu, sentar e
levantar-se decorosamente” (COMENIUS, 1992, p. 206).
Comenius (1992, p. 207) está convicto de que a piedade é proveniente da oração,
tanto é que, se preocupa em registrar o conteúdo das orações a serem feitas nos horário
da manhã. A oração antes das refeições, depois das refeições, ao ir para a cama, em
qualquer momento e por fim, registra o autor a necessidade de inculcar nas crianças,
desde o princípio, os fundamentos da religião cristã, a fé, a esperança e o amor.
A disciplina também é importante na tratativa da piedade, todavia, ela não deve
ser rígida, e só deve ser administrada de modo que os filhos percebam que estão sendo
observados, e que se fizerem o que não devem, poderão ser corrigidos; entretanto,
quando se comportarem bem deverão ser louvados (COMENIUS, 1992, p. 207).
Comenius (1997, p. 311), compreende a relevância da disciplina escolar e acentua que
ela deve ser exercida contra quem erra, mas não porque errou, mas para que não erre
mais:
65
Portanto, deve ser exercida sem paixões, sem ira, sem ódio, mas com
simplicidade e sinceridade, de tal modo que mesmo aquele a quem for
aplicada perceba que é para seu bem e que é ditada pelo afeto paterno
de quem tem a responsabilidade de guiá-lo; assim poderá recebê-la
com o mesmo espírito com que se torna um remédio amargo receitado
pelo médico [...] Se, por vezes, for necessário instigar e estimular há
meios mais eficazes que o açoite. Por exemplo, uma palavra áspera ou
uma repreensão feita em público, ou mesmo um elogio feito a outro:
“Veja como fulano e beltrano, são sabidos! Como entendem tudo! E
tu, por que és preguiçoso?”.
Com esta mesma perspectiva, Comenius (1997, p. 314) afirma: “a disciplina
deve tender a estimular e a reforçar com a constância e a prática, em todos e em tudo, o
respeito a Deus, a dedicação ao próximo e o entusiasmo pelos trabalhos e os deveres da
vida”. No estudo do pensamento de Comenius quanto à disciplina, observa-se que seu
foco está na prevenção e não necessariamente na execução, conforme pode ser visto em
suas palavras: “É preciso estar atento para nunca recorrer a remédios extremos em
coisas de pouca monta, como frequentemente acontece, para que os remédios extremos
não cheguem antes dos males extremos” (COMENIUS, 1997, p. 315).
Por fim, destaca-se a última fase da Escola da Infância:
6 - A primeira classe coletiva ou das primeiras letras. Na idade entre os 4 e os 6
anos, as crianças se habituam a conviver, a jogar, a cantar e a cultivar os bons costumes
e a piedade e a exercitar os sentidos e a memória, e nesta fase há necessidade de se
criarem jogos com as vogais, com as consoantes até a formação de sílabas e palavras
(COMENIUS, 1992, p. 207-211). Nesta parte de sua obra discorre acerca de alguns
métodos de ensino a serem utilizados para que as crianças aprendam mais rapidamente
o latim. Após esta perspectiva pontua: “antes de terminar o tratado desta escola da
infância, é bom que nós, os adultos, deduzamos algumas advertências saudáveis que
contribuam indiscutivelmente para evitar a ruína dos homens, das famílias e dos reinos”
(COMENIUS, 1992, p. 211).
Tais advertências são:
1) o descuido da educação é a ruína dos homens, das famílias, dos reinos e do
mundo;
2) a corrupção doméstica dificulta o trabalho nas escolas, nas Igrejas e nos
assuntos políticos;
3) aqueles nas quais estão postas a esperança das pessoas devem ser educados
com muito cuidado [...];
66
4) o fundamento de uma boa educação consiste em que saibam distinguir um
homem bom de um mau; e, no fim, desta vida, saibam distinguir o caminho que
conduza à bem-aventurança daquele que conduz à condenação (COMENIUS, 1992, p.
212).
Comenius (1992, p. 213) inicia sua reflexão acerca da escola infantil com a
seguinte afirmação: “as crianças, são homens de tenra idade, destinados a suceder
àqueles dos que agora estão constituídos o mundo (o Estado, a Igreja e a Escola)”.
Infere-se daí que, se são homens, logo devem ser educados plenamente; se são crianças,
logo devem ser educadas como crianças, segundo sua própria idade, isto é, ensinadas
gradualmente; se são varões do futuro, devem ser instruídos nas coisas que lhes farão
úteis.
Além disso, por se tratar de homens com tenra idade, desconhecedores ainda das
coisas, é mister professores de confiança que saibam fundamentar o conhecimento das
crianças daí: “O professor da escola primária deve ser mais sábio que os outros e
remunerado com um salário maior com relação aos outros”(COMENIUS, 1992, p. 214-
215).
O objetivo e o fim desta escola deve ser adquirir agilidade para o corpo, para os
sentidos e para a inteligência, isto é:
1) consolidar a atividade do sistema motor, o qual inclui a leitura rápida por
meio dos olhos; da língua por meio das pronúncias rápidas das coisas lidas; e as mãos
para escrever e entender todas as coisas rapidamente;
2) iniciar o uso da razão por meio dos primeiros elementos das artes (aritmética,
música) dos rudimentos da prudência (bons costumes) e os fundamentos da piedade
(COMENIUS, 1992, p. 215).
Nesta fase, à semelhança do que foi dito anteriormente, o cuidado dos sentidos é
relevante, todavia o foco será relativo aos sentidos interiores, isto é, estender a atenção
dos sentidos mais intensos sobre coisas mais profundas, aprender, imaginar e a
distinguir as coisas com mais aprofundamento e aprender de memória as coisas com
maior exatidão: “É verdade a sentença: de pequenos as coisas não são só aprendida mais
rapidamente, mas também mais perfeitamente” (COMENIUS, 1992, p. 215).
Concernente às artes e as ciências, dentre elas destacam-se as relativas à
matemática, ou seja, a diferença entre os números, as medidas e os pesos:
“Aconselhamos que sejam ensinadas desde o primeiro momento aos jovens [...] ponham
67
nas mãos das crianças uma regra, um compasso, uma balança, símbolos de medidas e
dos pesos” (COMENIUS, 1992, p. 216).
No capítulo referente à Didática magna percebeu-se que Comenius discorre
acerca dos livros didáticos de uma maneira geral, enquanto que no texto da Pampaedia
ele especifica não só o formato, mas também identifica o conteúdo a ser exposto à
criança no livro didático. Nesse contexto, para se alcançar os objetivos e o fim desta
escola, segundo Comenius (1992, p. 216) são necessárias seis classes, cada um com seu
programa, fundamentados num livro:
1) Estrela das letras; 2) Mundo sensível; 3) Ética infantil, inferida das coisas
sensíveis e da análise da natureza humana; 4) História bíblica; 5) fundamentos bíblicos,
que contenham, de maneira sensível, um resumo das coisas que há que crer fazer e
esperar; 6) coleção de jogos.
Os livros a serem utilizados nesta escola devem colaborar do seguinte modo:
1) preparar o caminho àqueles que ingressaram mais tarde na escola do latim;
2) aqueles que não frequentaram as primeiras letras, mas depois, por seu próprio
esforço, conseguiram aprender satisfatoriamente o conteúdo das outras disciplinas.
Isso ocorrerá se todos os livros e cada um deles forem: Universais, isto é, conter
toda a matéria; metódicos, fazendo avançar a inteligência espontânea e
progressivamente; adornados com figuras, símbolos intercalados no texto, e com outras
coisas atraentes e agradáveis; que esses livros tenham nomes extraídos do cotidiano da
criança:
As razões destes requisitos são as seguintes:
1) Que as crianças, cativadas por esta classe de títulos, se animem mais
facilmente;
2) “Para que entendam melhor sua graduação e cada um veja claramente que há
de fazer” (COMENIUS, 1992, p. 217);
3) Que os programas contidos nos livros da infância, ocupem todo o tempo para
que não permita que a criança busque as coisas vãs e as maldades;
4) Que estejam cheios de sentenças seletíssimas, extraídas das Escrituras, isto é,
pelo menos mil palavras da Bíblia (COMENIUS, 1992, p. 218), de aforismos,
provérbios ou máximas.
Uma das críticas que pode justificar a falta de conhecimento das obras
comenianas em terras brasileiras é justamente a questão relativa ao livro didático. Lopes
(2006, p. 17-19) pontua que Éster Buffa (1986, p. 19-26), em seu texto Educação e
68
cidadania burguesa, faz críticas a Comenius por ter sido ele o precursor do livro
didático e de utilizá-lo como material ideológico para difundir os ideais políticos e
educacionais da burguesia. Lopes, todavia, demonstra que esta não era a intenção do
autor da Didática magna. No estudo da Pampedia esta questão fica ainda mais explícita,
haja vista que, Comenius (1992, p. 218) afirma que o livro didático deve servir apenas
como “muletas para endireitar as pernas, porém, uma vez fortalecidos, devem ser
tirados”. Ressaltam-se as palavras de Comenius (1992, p. 218):
Finalmente estes livros didáticos (como os outros instrumentos
artificiais), não devem ser para nós como os pés, mas como muletas
para endireitar as pernas, que sustentam e dirigem aqueles que dão os
primeiros passos, porém, uma vez fortalecidos os pés, se tiram fora.
Do mesmo modo nossa inteligência, mente, vontade, mãos e língua
têm necessidade de guias, porém há que cuidar que não necessitem
sempre desta direção e que sejam utilizadas de forma que, depois,
podem prescindi-las delas.
Está claro, portanto, que o livro didático cumpre certa função, a qual uma vez
alcançada deve ser posto de lado para que um método mais agradável ocupe o seu lugar,
cuja finalidade compreenderá:
1) autopsia (ver por si mesmo);
2) autolexia (dizer por si mesmo);
3) autopraxia (fazer por si mesmo);
4) autochrestia (utilizar por si mesmo), pois, só assim poder-se-á prover às
crianças: “ver, ouvir, tocar todas as coisas; pronunciar, ler e escrever todas as coisas;
desfazer e fazer tocar todas as coisas e utilizar as coisas de maneira que lhe sejam mais
úteis” (COMENIUS, 1992, p. 218-219). Infere-se daí que, Comenius está preocupado
com uma educação reflexiva e não aquela que se fundamentada apenas no exterior
livresco. O livro apresenta uma direção, mas o importante é a reflexão desde que
respeitadas à idade mental da criança (COMENIUS, 1992, p. 219).
Após discorrer acerca de sua concepção relativa ao livro didático, Comenius
aponta quais classes devem existir para que a educação seja reflexiva e adaptada à idade
mental da criança, é o que será demonstrado a seguir.
69
Classe da Escola Primária
Para a primeira classe da escola primária Comenius (1992, p. 219) pontua que
ela está constituída de três graus: principiantes, isto é, os que falam; adiantados, os que
lêem e os mais adiantados, os que escrevem. Quanto aos instrumentos didáticos, ele
deixa claro que sua preocupação é a práxis, isto é, “reflexão-ação” como termos
indissociáveis entre si, pois divide os seus conteúdos em teóricos e práticos, da seguinte
maneira:
1) Os teóricos constituídos do alfabeto, do vocabulário rítmico e sentenças e de
diálogos;
2) Os práticos são constituídos de tabela alfabética e silábica, os fundamentos da
caligrafia, isto é, se as letras estão nas linhas, e papel e quadro-negro.
São indicados alguns exercícios lúdicos para se alcançar o objetivo proposto
nesta escola:
1) O jogo do alfabeto;
2) O concurso da velocidade em que os que escrevem mais rapidamente são os
vencedores;
3) O exercício da caligrafia, cuja finalidade não é a rapidez, mas a perfeição da
estrutura das letras.
Segunda Classe da Escola Primária
Nesta classe se começa a fazer análise das coisas que se deve saber, ainda que
seja com pouca profundidade. O que importa é propiciar à criança os seguintes
conhecimentos:
1) De todo o mundo, conforme podem ser percebidos pelos sentidos;
2) De toda alma, conforme os ditames da razão;
3) De toda a Escritura Sagrada, conforme a fé apresenta.
Para alcançar tais conhecimentos deve-se fazer uma análise de todas estas
coisas, recordá-las com perguntas e respostas, adorná-las se necessário com figuras
(COMENIUS, 1992, p. 220-221).
70
Terceira Classe da Escola Primária: A ética infantil aprendida pelas
coisas sensíveis
Esta classe intentará conseguir que os alunos aprendam a ser discípulos da
natureza, no sentido de colher dela lições quanto aos bons costumes. Com esta proposta,
Comenius (1992, p. 221-225), apresenta vários exemplos que podem auxiliar os alunos
neste intento. Para esta obra foram separados alguns desses exemplos, pois, a finalidade
é apenas a de ilustrar o método. “Este método de ensinar é agradável e não aborrece;
[...] os conceitos simbolizados pelas coisas penetram com mais profundidade [...] é
suficiente para educar o homem em sua integridade e para conformá-lo com as leis da
natureza” (COMENIUS, 1992, p. 223).
Da água, uma vez que “ela é igual por todas as partes, e nenhuma parte quer se
sobressair em relação às demais” (COMENIUS, 1992, p. 222), assim também os
homens precisam aprender com ela que “todos são da mesma natureza e que ninguém
procure se elevar diante sobre os outros” (COMENIUS, 1992, p. 222). Um rio quando
leva suas águas de uma parte para outra, para regar cidades e campos demonstra que
enquanto ela se movimenta é útil ao mundo. “Do mesmo modo, o homem ativo no
trabalho é querido, e o preguiçoso é menosprezado e termina por ser inútil para si
mesmo e para os demais” (COMENIUS, 1992, p. 222). Da rosa é bonita e agradável de
ver, entretanto, nasce entre espinhos. “[...] também a ciência e a virtude são belas,
porém, o esforço com que se adquire (com trabalho e disciplina), se parece aos
espinhos” (COMENIUS, 1992, p. 223).
Além dos exemplos que podem ser extraídos da natureza na formação dos bons
costumes da criança, Comenius (1992, p. 224) oferece um pequeno compêndio de
prudência ética: Não deseje tudo o que vê e será sábio; não creia em tudo o que se ouve
e serás sábio; não diga tudo o que se sabe e serás sábio; não faça tudo o que podes fazer
e serás sábio.
É necessário ensinar as crianças a entender, julgar, a ter os olhos fixos no fim
desta vida, os motivos pelos quais nasceu e as metas que se desejam alcançar, qual seja:
“Portanto, aprenda a contemplar a Deus, e às coisas que conduzem a Deus, a manter
boas relações com Deus e com os homens e a fazer sempre qualquer coisa que seja
digna de Deus” (COMENIUS, 1992, p. 224).
Que na escola da infância todas as criaturas habituem-se a observar, a falar e a
fazer tudo o que é bom para esta vida presente e para a vida futura, “tendo como
71
objetivo sempre e por todas as partes, a meta da felicidade eterna” (COMENIUS, 1992,
p. 225). Por fim, deve-se ensinar desde a mais tenra idade, a distribuir adequadamente o
tempo, “dedicando as horas da manhã aos estudos literários, às da tarde à convivência e
aos negócios e às da noite o repouso. Também aos alunos do terceiro ano se deve dar
um manual ou histórias bíblicas” (COMENIUS, 1992, p. 225).
Classe quarta
Nesta classe deve-se dar uma explicação detalhada da revelação divina, a saber:
1) Deus – é “o poder eterno, que criou e sustentou todas as coisas, é a Sabedoria
que rege tudo e a Bondade que dirige tudo a fazer o bem” (COMENIUS, 1992, p. 226);
2) O homem é a imagem de Deus, “dotado de poder, de inteligência e de
vontades limitadas, porém semelhantes às de Deus” (COMENIUS, 1992, p. 226);
3) O mundo “é o domicílio, a dispensa e a escola dos homens” (COMENIUS,
1996, p. 226);
4) As Escrituras são “o livro de Deus, escrito pelos profetas e apóstolos, para
ensinar-lhes como devem se comportar” (COMENIUS, 1992, p. 226);
5) Os profetas, “foram varões de Deus, do Antigo Testamento; os quais,
inspirados pelo Espírito Santo, mandou-lhes a pregar e escrever, em hebraico, sua
vontade” (COMENIUS, 1992, p. 226);
6) Os apóstolos “foram varões de Deus, do Novo Testamento a quem Cristo
mandou pregar e ensinar o evangelho, ao que eles fizeram, por palavras e por escritos,
na língua grega” (COMENIUS, 1992, p. 226).
Além disso, na concepção de Comenius (1992, p. 226), no terceiro e quarto ano
deve se ensinar, sobretudo, a olhar para o passado, a dirigir o presente e a pensar no
futuro, isto gradualmente e no avanço do que é melhor, tendo sempre em mente o
exemplo da árvore: “quanto mais se vive, mais profundas são as raízes, e mais se
ramifica e cresce” (COMENIUS, 1992, p. 226).
Classe Quinta
Este é o lugar para ensinar os princípios essenciais da doutrina bíblica. “É a hora
ou ocasião de preparar os alunos com todo o zelo, para a piedade” (COMENIUS, 1992,
p. 227). Estes ensinos devem ser simples quanto à intenção, isto é, “sem pedir nada fora
72
da glória de Deus, da edificação da igreja, da salvação própria e da do próximo”
(COMENIUS, 1992, p. 228). Ao falar de “pedido” Comenius (1992, p. 229) tem em
mente as orações, as quais segundo ele devem ser constantes e com perseverança,
“porque unicamente aqueles que pedem que busquem e que chamam a porta, foi
prometido que receberiam, encontrariam e se lhes abririam as portas que queriam que
fossem abertas” (COMENIUS, 1992, p. 229).
Nesse contexto, Comenius traz uma importante reflexão quanto ao levar as
crianças aos cultos religiosos. Na atualidade, há ainda alguma discussão quanto aos
trabalhos infantis no horário do culto religioso. Alguns assinalam que ter um trabalho
específico para criança na hora do culto é “tirá-los” de dentro da Igreja, por esta razão
nestas comunidades as crianças “assistem” o culto dentro da Igreja. Não se pode negar
que muitas crianças dormem durante o culto neste tipo de comunidade. Outros
compreendem a necessidade de ensinar as crianças em linguagem apropriada e por esta
razão, as crianças na hora da mensagem bíblica vão para o salão social ou salas em que
ali podem aprender conforme suas respectivas idades.
O fato é que, esta questão tem sido motivo de discórdia entre as lideranças das
mais diferentes comunidades. Ao que parece era uma questão debatida nos dias de
Comenius (1992, p. 229). Para ele, há pontos positivos e negativos nesta discussão, por
isso, propõe uma solução que ele julga mais sensata: “A solução mais sensata é ensinar-
lhes a palavra de Deus na escola, separadamente, segundo sua capacidade e exercitá-los
no cântico de hinos e salmos [...]”. Infere-se daí que Comenius era a favor de que a
criança aprendesse separadamente e em linguagem apropriada. Além disso, pontua:
1) Que as crianças fossem devidamente preparadas em casa pelos pais e por eles
instruídos previamente quanto aos modos e quanto ao que se faz no templo;
2) Deve-se estimular sua atenção, tanto pelos pais, que estarão sempre com seus
olhos neles, como pelos pregadores, os quais devem encontrar sempre o modo adequado
e adaptado à sua compreensão;
3) Terminado o sermão, devem ser indagados acerca dele (COMENIUS, 1992,
p. 230).
Ao se ensinar, por exemplo, a doutrina da justificação pode-se seguir o método
de um estudo dirigido. Apenas para exemplificar, segue abaixo como seria tal método:
1) Demonstrar que para as Escrituras Sagradas todos os homens são pecadores e
estão privados da glória de Deus, conforme Romanos 3;
73
2) Perguntar: De que modo você espera apresentar diante do tribunal de Deus?
Resposta: pela intercessão e pela assistência de nosso Senhor Jesus Cristo, que está
junto ao Pai;
3) Como provar que é assim? Baseado na primeira epístola de João, capítulo 2.1;
4) Por quem Cristo intercede? Por aqueles que se arrependam e por aqueles que
crêem.
Observa-se, por conseguinte, que Comenius procura atrair a atenção das
crianças, respeitados os estágios mentais, por meio de perguntas e respostas e assim,
estabelecia concurso entre os alunos e os que respondessem o maior número de questões
eram premiados.
Classe sexta
Este é o momento de se adivinhar os temas religiosos e moral, sobretudo, os
ensinados na Bíblia. Para auxiliar a criança reter o que aprende Comenius (1992, p.
232), sugere a técnica mnemônica. Outro método que pode ser utilizado é escrever um
texto e deixar espaço em branco para que os alunos preencham com exemplos,
conforme suas palavras: “um espaço de papel em branco para que os alunos coloquem
outros exemplos” (COMENIUS, 1992, p. 233).
Deve-se cuidar para que nesta classe a piedade seja enraizada nos espíritos, e
para tanto, acostumem-se a ter menos cuidado com o corpo e mais com a alma: “Será
útil, neste momento, oferecer às crianças pensamentos piedosos e seletos, para que fique
guardada na memória” (COMENIUS, 1992, p. 234). Nesta idade as crianças devem ser
conduzidas pelos pais ao templo de Deus, e não só ao externo, a Igreja visível, mas ao
templo interior que serve para a formação espiritual diante de Deus, para isso é
necessário “estimulá-los continuamente a invocar a Deus com breves orações”
(COMENIUS, 1992, p. 235).
Estas breves orações devem ser feitas: ao sair de casa, ao entrar no templo,
quando se celebra a Santa Ceia, ao dormir, ao entrar numa casa, quando ocorrer algo
alegre. Como exemplo, destacar-se-á a concepção de Comenius quanto às orações e
comportamento das crianças no templo. Ao entrar no templo, a oração deve ser: “Oh!
Senhor; confiado na grandeza de tua misericórdia entrarei em tua casa, te adorarei em
teu santo templo e confessarei teu nome” (COMENIUS, 1992, p. 235).
74
No templo, as coisas que uma criança deve fazer, na concepção de Comenius,
são ensinadas por Cristo, quando diz: “Minha casa é uma casa de oração e não covil de
ladrões”. Por conseguinte, afirma Comenius (1992 p. 235):
No templo não se deve ser petulante, não se deve permitir a
insolência, não se deve cochichar, nem julgar, não se deve, enfim,
voltar os olhos de uma parte para a outra, mas que o espírito deve
estar devotamente recolhido. Quando se cantam hinos sagrados, deve
cantar-se, quando se ora, deve-se orar, quando se ouve a palavra de
Deus, deve escutar-se. Nos intervalos deve se implorar a misericórdia
de Deus, em silencioso recolhimento.
Com relação aos exercícios destinados a esta escola Comenius (1992, p. 236-
240) propõe:
1) Da caligrafia, “Há que cuidar dos fundamentos da caligrafia, isto é, deve
permitir que as crianças façam pontos, linhas e letras” (COMENIUS, 1992, p. 236).
2) Quanto à escrita, os graus a recorrer são três: “primeiro, deve-se reproduzir as
letras com proporção e medida [...] segundo, deve-se exercitar as mãos a escrever com
rapidez [...] terceiro, deve se adquirir os hábitos de observar as características de cada
letra” (COMENIUS, 1992, p. 238);
3) Quanto à matemática é necessário que as crianças saibam contar, medir e
pesar, para isso: “deve-se saber que a aritmética, a geometria e a estatística sejam
universalmente ensinadas nas escolas” (COMENIUS, 1992, p. 238).
Além do exposto, Comenius pontua ser necessário ensinar a todas as crianças a
música, “porque a música serve de um honesto recreio [...] e para louvar a Deus ao
estilo de Davi” (COMENIUS, 1992, p. 240).
Por fim, explicita que nesta idade não há fatiga, porque as crianças estão cheias
de curiosidades, facilmente entendem tudo, e porque dada a flexibilidade do cérebro,
aprendem facilmente as muitas coisas, de maneira que: “consideramos que a idade da
infância é a mais oportuna para aprender as línguas” (COMENIUS, 1992, p. 239).
É com esta perspectiva que Comenius (1992, p. 239) pontua:
Na escola da infância se deve dar uma cultura geral, sem ter em
consideração se é um nobre, plebeu, ou se chegará a ser artesão,
mercador, agricultor, ministro ou auditor, porque a escola foi feita
para ensinar coisas que sejam úteis a todos [...] e que todos tenham
uma cultura geral e se cheguem a se dedicar aos mais diversos ofícios,
possuam a cultura indispensável para ler os livros na língua vernácula,
75
para escutar as mais diversas conversas, sobretudo, ler e escutar a
Palavra de Deus.
Estudado o texto da Pampaedia, entendido suas principais propostas,
fundamentadas nos sentidos, o foco seguinte será, à semelhança do que foi feito neste
capítulo, expor os princípios fundamentais da Didática magna sem perder, contudo, o
objetivo deste trabalho que é assinalar no último capítulo a relação homem-natureza no
pensamento comeniano.
76
Capítulo III
A relação homem-natureza no pensamento de João Amós Comenius
Tendo analisado, nos capítulos anteriores, os ensinos de Comenius em suas
obras Didática magna e Pampaedia, a atenção, agora, volta-se para o entendimento
nestas obras a respeito da compreensão comeniana da relação homem-natureza,
sobretudo, em função de que os seus escritos são apresentados a um mundo em
transição e em busca de mentalidade científica.
Por esta razão, torna-se mister rememorar alguns pontos deste mundo para uma
compreensão mais adequada da inquietação central desta pesquisa, qual seja, identificar
o entendimento de Comenius a respeito da relação homem com a natureza, sobretudo.
Há várias formas de se estudar o contexto sociocultural que envolve o
pensamento de Comenius. Um delas é assinalar que suas ideias estão inseridas num
período de transição que possui ecos da fase final da Idade Média. Outra forma é
estudá-lo a partir da reflexão da Renascença passando pela Reforma Protestante do
Século XVI (LOPES, 2006, p. 70-85), com destaque para os reformadores Martinho
Lutero e João Calvino que certamente influenciaram seu modo de entender o mundo
(SPRINGSTED; DIOGENES, 2010, p. 180). Outra ainda é discutir o pensamento
comeniano a partir do período de tempo entre a escrita De revolutionibus de Nicolau
Copérnico em 1543, à obra de Isaac Newton, Philosophiae naturalis principia
mathematica, publicada em 1687, que na compreensão de Antiseri e Reale (1990, p.
186) é conhecido como período da “revolução científica”.
Nesta pesquisa opta-se por pensar as ideias comenianas sob esta última forma,
haja vista que, esta forma de pensar afeta diretamente a relação do homem com a
natureza. Assim, a “revolução científica” parece ser a trajetória mais adequada para essa
discussão, uma vez que, serão destacados personagens como Copérnico, Galileu e
Bacon, os quais influenciaram o mundo em que Comenius viveu, sobretudo, tendo
como foco a tratativa da relação do homem com a natureza.
Tendo como foco a relação do homem com a natureza, ao se pensar as questões
que envolvem a “revolução científica”, não se deve esquecer, ainda que de modo
brevíssimo, do humanismo, surgido num importante momento da Europa, que é o final
da metade do século XIV (NUNES, 1980, p. 1). Este século possui estreita relação com
o pensamento de Comenius que vale aqui, fazer uma digressão.
77
Como o próprio nome indica o humanismo está focado na valorização dos
assuntos humanos é o que pontua Springsted; Diogenes (2010, p. 187), “O humanistas
buscavam reintegrar-nos ao mundo da natureza e história como o lugar apropriado para
a realização de nossas capacidades”.
Originalmente, o termo humanismo referia-se ao movimento literário da
Renascença, com preocupação voltada para os clássicos latinos e gregos, conforme
define Abbagnano (2000, p. 518-519): “movimento literário e filosófico que nasceu na
Itália na segunda metade do século. XIV, difundindo-se para os demais países da
Europa e constituindo a origem da cultura moderna”. No mesmo contexto, ele afirma
que o humanismo pode ser entendido como: “qualquer movimento filosófico que tome
como fundamento a natureza humana ou os limites e interesses do homem”
(ABBAGNANO, 2000, p. 518).
Em razão da definição de Abbagnano muitos cristãos associaram o humanismo
com um princípio filosófico que exclui a existência de Deus. Este princípio, porém, está
diretamente ligado ao antropocentrismo, o qual pode ser entendido como a centralidade
do homem e a exclusão de Deus com resultados numa concepção antropológica não-
cristã; (HOEKEMA, 1999, p. 12-13). Confundir, porém, o humanismo com o
antropocentrismo é uma visão reducionista, pois, na história encontram-se vários
pensadores cristãos considerados como humanistas. Dentre eles destacam-se: Erasmo de
Roterdã e João Calvino. Em relação a João Calvino não se pode entender seu
pensamento sem perceber sua preocupação humanista, daí Hooft (1970, p.7-8) afirmar:
“o ensino de Calvino sobre o humanismo cristão que, fundado sobre o humanismo de
Deus, pressupõe uma sociedade onde o homem age na qualidade de responsável perante
Deus e responsável por seus irmãos”.
No livro de Biéler (1970) encontram-se profundos argumentos que assinalam ser
Calvino um humanista. A partir disso, é possível seguir a afirmação de Springsted;
Diogenes (2010, p. 189): “O humanismo cristão é a visão de que a cultura humana é
valiosa para a vida cristã [...]”. Eles seguem no fundamento de suas afirmações da
seguinte maneira: “Ela [a vida cristã] evita tanto a atitude do filitinismo – o vulgar
denegrecimento dos genuínos empreendimentos humanos – como também a soberba de
se dar mais importância à cultura humana do que seria compatível com uma existência
de criatura” (SPRINGSTED; DIOGENES, 2010, p. 189). Por fim, Springsted; Diogenes
(2010, p. 189) explicitam:
78
O fundamento teológico do humanismo cristão é que os seres
humanos são feitos à imagem de Deus. Como criaturas nós temos
objetivos naturais que são valiosos e só podem ser propriamente
alcançados dentro de uma cultura que reconheça [...] a supremacia e a
graciosidade de Deus.
Entendido desta maneira, na concepção de Nunes (1980, p. 5), o humanismo
propicia uma renovação da vida cristã que colabora para os direcionamentos da
Reforma Protestante do Século XVI. Além disso, é bom lembrar que ele foi um
importante passo no estudo da relação homem-natureza, na qual a preocupação desta
relação se tornou um elemento indispensável de vida e de sucesso apontado naqueles
dias, mas extensivo aos dias de hoje.
Com o passar dos anos a preocupação em valorizar a relação homem-natureza,
iniciada no humanismo, desencadeou uma série de movimentos que resultou na
“revolução científica”, foco da parte final deste capítulo.
A “revolução astronômica” parece ter sido um importante elemento
desencadeador desta “revolução científica”. Dentre seus representantes mais
importantes destacam-se Copérnico, Kepler e Galileu e que iria confluir para a “física
clássica” de Newton (ANTISERI; REALE, 1990, p. 185). Trata-se de um mundo em
transformação nas mais diferentes esferas, que resultam diretamente numa nova
cosmovisão social e que se liga diretamente ao homem e a natureza. Para
aprofundamento desta questão, é necessário destacar algumas dessas esferas em que
ocorrem significativas transformações:
Do geocentrismo para o heliocentrismo
A Terra, até então vista como centro do universo, deixa de sê-lo e passa a ser
mais um corpo celeste (EBY, 1970, p. 2). Há fortes oposições religiosas às ideias
heliocêntricas de Copérnico, por parte dos católicos romanos porque as autoridades
eclesiásticas jamais aceitariam a hermenêutica de Copérnico e Galileu, haja vista que,
somente o Papa possuía a interpretação final e correta das Escrituras. Os protestantes
Martinho Lutero, Melanchton e João Calvino, igualmente se opuseram ao
heliocentrismo em função de que ele contrariava a doutrina bíblica da criação do mundo
e textos bíblicos como o de Eclesiastes, capítulo 1, versículos 4 e 5: “Gerações vêm e
gerações vão, mas a terra permanece para sempre. O sol se levanta e o sol se põe, e
79
depressa volta ao lugar de onde se levanta” e do livro histórico de Josué, capítulo 10,
versículo 13: “O sol parou, e a lua se deteve, até a nação vingar-se dos seus inimigos”
Antiseri e Reale (1990, p. 259) comentam as ideias de Lutero, Calvino e
Melanchton da seguinte forma:
[...] com base nesses trechos da Escritura que Lutero, Calvino e
Melanchton opuseram-se durante a teoria copernicana. Em seus
Discursos à mesa, Lutero parece ter afirmado (1539): “as pessoas
deram ouvidos a um astrólogo de dois vinténs, que procurou
demonstrar que é a Terra que gira e não os céus e o firmamento, o Sol
e a Lua [...]. Esse insensato pretende subverter toda a ciência
astronômica. Mas a Sagrada Escritura nos diz que Josué ordenou ao
Sol – e não à Terra – que se detivesse”. No seu Comentário ao
Gênesis, Calvino cita o versículo inicial do Salmo 93, que diz: “Sim, o
mundo está firme, jamais tremerá”. E se pergunta: “Quem terá a
ousadia de antepor à autoridade de Copérnico à do Espírito Santo”? E
Melanchton, discípulo de Lutero, seis anos depois da morte de
Copérnico, escrevia: “Os olhos nos testemunham que os céus efetuam
uma revolução ao longo de vinte e quatro horas. Mas certos homens,
por amor às novidades ou então para dar provas de genialidade,
estabeleceram que a Terra se mova e afirmam que tanto a oitava esfera
como o Sol não giram [...]. Pois bem: é uma falta de honestidade e de
dignidade sustentar publicamente tais conceitos. E o exemplo é
perigoso. É tarefa de toda mente sã aceitar a verdade como ela foi
revelada por Deus e a ela submeter-se”.
Está explicitado, portanto, que no campo religioso ocidental da época, imperava
o geocentrismo, e isso permite perceber quão profundo foi o confronto da religião com a
ciência, daí a compreensão de que a revolução científica percorreu um longo processo
na busca de sua afirmação e autonomia.
A revolução do saber e da ciência
A “revolução científica” não se restringe às discussões astronômicas, mas
também na revolução da ideia de saber e de ciência; busca-se investigar o mundo e
natureza com autonomia diante das proposições religiosas. A partir de Galileu encontra-
se nesta investigação a ciência experimental que se propõe a obter as mais diversas
concepções a respeito do mundo.
80
Ciência discutida sistematicamente na procura de método
A investigação tendo como fundamento a ciência experimental é responsável
pelo marco da ciência moderna, qual seja a busca pelo método. A ciência passa a ser
pública e o é por questões de método. Há foco na descoberta de métodos mais
adequados para as mais diversas áreas do saber.
Diante do exposto, fica explicitado que a “revolução científica” assinala o
confronto entre duas cosmovisões diametralmente diferentes de mundo. De um lado, a
concepção de um mundo firmado fundamentalmente numa cosmovisão religiosa com
forte influência das crenças da Idade Média e, de outro, uma sociedade que busca
autonomia no conhecimento científico.
Deve-se, entretanto, atentar para o princípio de que esta “autonomia” proposta
pela “revolução científica” convive com a realidade da crença, bem presente, no Deus
que cria o mundo imprimindo nele uma ordem matemática e geométrica, mas também
não se pode negar que é impressa naquela sociedade uma nova imagem de mundo.
Antiseri e Reale (1990, p. 198) ao discorrerem acerca da revolução científica
afirmam:
O resultado do processo cultural que passou a ser denominado de
“revolução científica” foi uma nova imagem do mundo que, entre
outras coisas, propõe problemas religiosos e antropológicos não
indiferentes. Ao mesmo tempo, representou a proposta de uma nova
imagem da ciência: autônoma, pública, controlável e progressiva.
“Dizemos tudo isso para mostrar que a ciência moderna, autônoma em relação à
fé, pública nos controles, regulada por um método corrigível e em progresso, com uma
linguagem específica e clara e com as suas instituições típicas, foi resultado de um
longo e tortuoso processo” (ANTISERI; REALE, 1990, p. 190).
É neste contexto que Comenius reflete, escreve e registra em suas obras sua
impressão de mundo. É nítida sua concepção quanto à importância da cientificidade nas
diversas formas do saber, incluindo a educação. Observa-se que ele é profundamente
influenciado pelos princípios de Francis Bacon, sobretudo, na valorização da
experiência e no uso dos sentidos. E é a partir desta perspectiva que se torna possível
identificar no pensamento comeniano sua concepção quanto à relação do homem com a
natureza, conforme será visto abaixo.
81
O homem pode conhecer o Criador por meio da natureza
No estudo da Didática magna e da Pampaedia, percebe-se nitidamente sua fé
explícita na defesa do criacionismo. Para ele, Deus criou todas as coisas, visíveis e
invisíveis, e a criação reflete Sua sabedoria e divindade.
E tendo feito o homem à sua imagem, dotado de mente, para que à
mente não faltasse alimento, dividiu as criaturas em muitas espécies,
para que este mundo visível fosse como um espelho finíssimo do
infinito poder, sabedoria e bondade de Deus, cuja contemplação
suscitasse admiração pelo criador, promovesse o seu conhecimento,
despertasse o amor por ele, e realmente, permanecendo invisível,
oculto no abismo profundo da eternidade, ele se manifesta em toda
parte nas criaturas visíveis, pela força, pela beleza, ao paladar
(COMENIUS, 1997, p. 50-51).
A criação do mundo possui dois objetivos fundamentais:
1) Ser paraíso de delícias para o Criador;
2) Servir de moradia e fonte de alimento para o homem (COMENIUS, 1997, p.
50). Nota-se ainda que, as coisas criadas, além destas duas funções também cumprem a
função de suscitar nos homens a admiração e o conhecimento do Criador, isto é o que
pode ser extraído da proposição acima: “para que este mundo visível fosse como um
espelho finíssimo do infinito poder, sabedoria e bondade de Deus, cuja contemplação
suscitasse admiração pelo criador, promovessem o seu conhecimento, despertasse o
amor por ele” (COMENIUS, 1997, p. 50-51).
Na escrita da Pampaedia, Comenius (1971, p. 51-52) explicita que a criação de
Deus corresponde ao “Livro do Mundo”: “Ninguém põe em dúvida o valor do Livro do
Mundo, o qual todos vêem abrir-se todos os dias diante de todos”.
Ao tratar do Livro Mundo, ele o faz numa reflexão a respeito dos Livros
Divinos, mas porque em seu tempo poucos tinham o texto das Escrituras nas mãos, ou
alguns que a tinham, não faziam sua leitura, então o Livro do Mundo se reveste de
grande importância, pois, todos podem facilmente reconhecer a pessoa do Criador. Por
causa desta possibilidade é que ele cita Isaías, capítulo 11, versículo 9, no qual Deus
promete que toda a terra se encheria do seu conhecimento (COMENIUS, 1971, p. 52).
Na mesma Pampaedia ele pontua: “[...], com efeito, Deus não criou o sol para
que o contemplássemos apenas a ele, mas também, através dele, as restantes obras de
Deus, e não para que nos cegássemos, mas para que fôssemos iluminados”
82
(COMENIUS, 1971, p. 171). Está claro que a relação do homem com a natureza ou com
o mundo criado baseia-se na perspectiva de que, por meio dela, é possível alcançar o
conhecimento do Criador.
Comenius argumenta que as obras da natureza são espelhos que refletem o
Criador, em função disso, é que Deus ao criar o homem, criou-o com todos os
instrumentos dos sentidos para a compreensão de sua finalidade neste mundo
(COMENIUS, 1997, p. 97). Ainda que a questão dos sentidos seja tratada um pouco
mais à frente, aqui é mister destacar as palavras de Comenius (1997, p. 233): “O
conhecimento tem sempre início necessariamente nos sentidos [...]. As coisas, primeiro
e imediatamente, imprimem-se nos sentidos, para depois, graças aos sentidos, se
imprimirem no intelecto”.
Diante do exposto, concebe-se que a relação do homem com a natureza, isto é,
ela é um dos livros divinos deixados por Deus para que o homem reconhecesse a
existência do Criador e o reverenciasse com cultos. Nesta relação, portanto, não pode
haver da parte do homem, apenas extrair da natureza suas riquezas, mas também a
preocupação de cuidar dela e protegê-la, haja vista que, fazendo assim não ficará sem o
conhecimento de Deus.
Dando prosseguimento ao proposto nesta pesquisa que é identificar a relação do
homem com a natureza no pensamento de Comenius, e conforme visto, o homem deve
compreender que o cosmos manifesta a existência e a glória do Criador, portanto, o
homem tem a incumbência de cuidar dela para que não lhe falte o conhecimento do
Criador, deve-se ressaltar que esta relação do homem com a natureza está diretamente
ligada ao Criador, mas também a maneira como o próprio homem foi criado.
A criação do homem, formado a partir da natureza
Comenius em seus escritos enfatiza sua crença de que o texto bíblico é oriundo
da inspiração de Deus nos escritores, considerados por ele, como santos (COMENIUS,
1971, p. 124)7. Ao tratar desta temática é mister sintetizar o trabalho desenvolvido por
Lopes (2006, p. 140-156) quando trata da compreensão comeniana do texto bíblico.
Soucek (1985, p. 22) ao comentar sobre o pensamento de Comenius das Escrituras
7 Para aprofundamento desta temática, ler: Comenius, (1971, p. 123-145).
83
afirma que a “revelação escrita de Deus, era a maior das três fontes de conhecimento e a
mais perfeita obra de literatura”
Este princípio pode ser visto nas próprias palavras de Comenius (1997, p. 272):
“As fontes são as Sagradas Escrituras, o mundo, e nós mesmos, ou seja, a palavra de
Deus, suas obras e nosso sentimento interior. Das Escrituras se haurem a consciência e
o amor de Deus”.
Infere-se daí, como afirma Lopes (2006, p. 141) que, o texto bíblico, para
Comenius, exercia primazia em sua vida e em qualquer matriz curricular escolar, é o
que se pode concluir das palavras do próprio Comenius (1997, p. 290): “Em primeiro
lugar, nossos filhos, nascidos no céu, renasceram por obra do Espírito de Deus;
portanto, devem receber a formação de cidadãos dos céus”.
Em sua compreensão, os autores pagãos pouco podiam contribuir para um
adequado conhecimento das coisas; ao contrário, propunha aos cristãos de sua época
que imitassem o bom exemplo da igreja grega que proíbe o uso da literatura pagã entre
seus membros e escola.
A igreja grega moderna, apesar de possuir, em sua bela língua, livros
filosóficos e gregos dos antigos conterrâneos considerados os mais
sábios do mundo, proibiu sua leitura a seus fiéis, sob pena de anátema.
Por isso, embora os gregos tenham mergulhado na ignorância e na
superstição pela enorme barbárie circundante, Deus até agora os tem
preservado de uma enxurrada anticristã de erros. Nisso devem ser
imitados para que, aumentado também o estudo das Sagradas
Escrituras seja mais fácil eliminar definitivamente as trevas da
confusão herdadas dos pagãos, pois só na luz de Deus se vê a luz. (Sl
XXXVI, 10); casa de Jacó, vinde, caminhemos à luz do Senhor (Is II,
5) (COMENIUS, 1997, p. 298).
Uma das questões relevantes neste ínterim é referente à sua linha hermêutica do
texto bíblico8. Na Didática magna, encontram-se três formas de interpretações do texto
bíblico: alegórica, anagógica e literal.
Interpretação alegórica. Lopes (2006, p. 145), ao citar Fary, afirma que
Comenius utiliza a hermenêutica alegórica, porém esta aparece apenas no uso que ele
faz da passagem de Marcos 4.26-29, cujo título corresponde à conhecida parábola do
semeador.
8 Segue nesta tratativa, uma síntese da obra de Lopes (2006, p. 140-152).
84
Interpretação anagógica. Fary (1982, p. 31-33), comentando esta linha de
interpretação de Comenius, afirma que ela aparece na Didática magna, mas não reflete
exatamente sua hermenêutica. No texto de Deuteronômio 21.12 podem ser lidas as
palavras: “[...] então, a levarás para casa, e ela rapará a cabeça, e cortará as unhas”.
Comenius (1997, p. 306) dá a seguinte interpretação a esse texto:
Mas mesmo esses livros deverão ser dados aos jovens depois que seus
espíritos estiverem bem firmes na fé cristã, feitas algumas emendas,
para que não fiquem nomes de deuses pagãos ou rastro de superstição.
Do mesmo modo, Deus permitiu tomar por mulheres as virgens pagãs
depois de lhes raparem a cabeça e cortarem suas unhas (Dt XXI. 12).
Para sermos bem entendidos, diremos que não queremos proibir
totalmente aos cristãos os escritores pagãos, pois não ignoramos que
Cristo deu a quem crê o privilégio celeste de poder tratar sem perigo
com peçonhas e serpentes.
Comenius faz uma hermenêutica que parece se distanciar do sentido do texto,
haja vista que, os versículos 13 e 14 do mesmo texto, versam a respeito de como tratar a
mulher prisioneira, não possuindo qualquer ênfase com livros pagãos.
Das duas formas hermenêuticas apontadas acima, a que elucida o pensamento
comeniano é a interpretação literal. Tanto na Didática magna como na Pampaedia,
constata-se a quantidade de uso da interpretação literal no pensamento de Comenius.
Para Lopes (2006, p. 146) a interpretação literal da Bíblia aparece com média de 90%
das citações bíblicas. Isto significa que Comenius procura explicar o texto bíblico a
partir de sua utilização comum e usual, não se importando necessariamente, com o
contexto histórico e com o sentido da palavra na época em que foi escrita, não adotando,
por extensão, a interpretação bíblica da Reforma Protestante, isto é, histórico-
gramatical.
Ressalta-se, porém, que ainda que Comenius tenha utilizado o princípio
hermenêutico alegórico, anagógico e o literal, não se pode negar sua crença na
inspiração das Escrituras, consideradas por ele, como “sagradas” (COMENIUS, 1971,
p. 51). Ao declarar fé explícita na doutrina da inspiração cristã das Escrituras, Comenius
(1997, p. 277) reconhece que Deus cria o homem, a partir do material já existente, o
“barro”, conforme o texto de Gênesis, capítulo 2, versículo 7: “Então, formou o
SENHOR Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o
homem passou a ser alma vivente”.
85
Neste contexto, é relevante a palavra de Reimer (2010, p. 35): “Para qualquer
israelita, o termo Adam necessariamente estabelece uma relação semântica com o termo
adamah, que significa terra ou solo [...] os humanos são „seres saídos da terra‟”.
Entendido assim, concebe-se que os homens são feitos de húmus, daí humanus, que por
sua vez estabelece a relação indissociável do homem com a natureza.
Este pensamento pode ser percebido em Comenius, cuja tônica recai, então, no
fato de que o homem deve manter uma adequada relação com a natureza em função de
que ele não está à parte dela, pelo contrário, saiu e faz parte dela, daí o próprio
Comenius 1997, p.21-22 afirmar:
No princípio, Deus, formando o homem da lama da terra, instalou-o no
Paraíso de delícias, que implantara no Oriente, não só para que o
guardasse e cultivasse (Gn II, 15), mas também para que fosse um
jardim de delícias mesmo para seu Senhor. Assim como o Paraíso era
a parte mais amena do mundo, também o homem era a mais delicada
das criaturas. O Paraíso foi posto no Oriente; o homem era feito à
imagem daquele que existe desde o início dos dias da eternidade [...]
no homem foram reunidos todos os elementos materiais e todas as
formas e seus graus, para exprimir toda a arte da divina Sabedoria.
A antropologia, segundo Kavká (1992, p. 247) é o coração da filosofia de
Comenius. O próprio Comenius indica que o homem é a tônica da Didática, pois
reserva pelo menos seis capítulos para discorrer a respeito do ser humano, afirmando
que ele é um microcosmo, isto é, “a síntese do universo, que em si encerra
implicitamente todas as coisas que se vêem esparsas por todo o macrocosmo”
(COMENIUS, 1997, p. 59). No estudo da Pampaedia também se verifica claramente
que esta é a tônica da obra:
Pampaedia é a educação universal de todo o gênero humano [...] o
que se deseja é que assim se consiga educar plenamente para a
plenitude humana, não apenas um só homem [...] mas todos [...]
deseja-se que cada homem seja rectamente formado [...] para tornar
todos [...] o mais possível semelhante à imagem de Deus (segundo a
qual foram criados) (COMENIUS, 1971, p. 37-38).
Na visão comeniana o homem é compreendido como um micromundo
(COMENIUS, 1997, p. 59), mas, distinto das demais criaturas, pois possui
características específicas, como ser criado para ser “imagem e semelhança de Deus”.
86
Uma das características que distingue o homem dos demais animais refere-se ao
modo como ele foi criado. Desde sua criação, este apresenta características distintivas
em relação às outras criaturas de Deus, ou seja, a essência, a vida, o sentido, a razão.
Por essa razão, afirma que o homem é a mais elevada, perfeita e excelsa das criaturas e
que o próprio Deus veio em forma humana, sendo esta uma maneira de enaltecer o
gênero humano.
Destinei-te a compartilhar comigo a eternidade; para ti criei o Céu e a
Terra e tudo o que contêm; em ti somente reuni todas as naturezas, que
são distintas nas outras criaturas, a essência, a vida, o sentido e a
razão. Fiz-te soberano das obras de minhas mãos, tudo pus aos teus
pés, ovelhas e bois, animais da terra, pássaros do ar, peixes do mar:
por esse motivo te coroei de glória e honra (Salmo 8). Finalmente,
para que nada te faltasse, dei-te a mim mesmo em união hipostática,
jungindo para a eternidade a minha natureza com a tua: sorte que não
coube a nenhuma das outras criaturas, visíveis ou invisíveis. Que outra
criatura, no Céu e na Terra, pode ufanar-se de que Deus manifestado
na carne apareceu aos Anjos? (1º. Tm 2.16) [...] Entende, pois, que és
o termo absoluto, a síntese admirável, o Deus que representa minhas
obras, a coroa da minha glória (COMENIUS, 1997, p. 41-42).
À luz dessas palavras, pode-se compreender que, para Comenius, o homem é a
mais importante das criaturas de Deus. Isto porque a sua criação foi de forma totalmente
distinta das outras criaturas, de maneira que fez dele a coroa da criação e representante
das obras de Deus, um ser racional, que traz consigo o privilégio de Deus haver se
encarnado como homem, conforme declaração do texto bíblico do evangelho de João
capítulo 1.14: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade,
e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai”.
Ainda na discussão antropológica, não pode ser esquecida a afirmação de
Comenius (1971, p. 44):
É de desejar que Deus atinja o objectivo que se propôs ao criar o
homem. Quero dizer, o objectivo que o próprio Deus (após ter tomado
a decisão de criar o homem) exprimiu com as seguintes palavras:
„Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e presida aos
peixes do mar, e às aves do céu, e aos animais selváticos e a toda a
terra‟ (Gênesis 1. 26). E quando disse ao homem depois de o haver
criado: „sujeitai a terra e dominai-a‟ (Gênesis 1. 28).
Da citação acima, colhe-se a informação de que o homem é senhor de si e goza
do direito de sujeitar, no hebraico kabash, e dominar, radah, no hebraico, a terra. Aliás,
é com esse objetivo que Deus cria o homem:
87
De onde se conclui que se algum homem se torna dissemelhante de
Deus (isto é, não sabendo ou não podendo agradar ao seu Criador,
dominar as criaturas e governar-se a si mesmo) afasta-se do objectivo
que o Criador lhe determinou e, em vez da glória de Deus, daí resulta
a sua ignomínia. E nós devemos precisamente desejar e aplicar-nos a
que Deus não seja frustrado no objectivo que se propôs ao criar o
homem, isto é, a sua glória (COMENIUS, 1971, p. 45).
Visto assim, parece que a concepção de Comenius parte do princípio
exploratório da natureza, ou que ele estivesse fundamentando o pensamento ocidental
moderno para um dominium terrae irrestrito, todavia, afirma ele que o homem foi
criado para cultivar e cuidar da criação, preocupado com cada estação própria da
natureza (COMENIUS, 1971, p. 84). Tratando do “mundo natural”, isto é, a natureza,
Comenius (1971, p. 54) contrapõe àqueles que somente exploram a natureza e fazem
dela coisas horríveis: “Se todos forem ensinados a observar isto devidamente, será
possível libertar o mundo de muitos abusos horríveis e abomináveis”.
As palavras comenianas são relevantes, sobretudo, se comparadas às ideias de
Reimer, quando define os termos kabash e radah. Para Reimer estes verbos aparecem
em outras partes das Escrituras com diferentes interpretações, entretanto, em seu núcleo
comum está a dominação, sujeição, possessão, no sentido de “tornar a terra algo
aproveitável” (REIMER, 2010, p. 39). Por conseguinte, não deve utilizar os verbos
acima para um domínio irrestrito e predatório da natureza, pelo contrário, o homem
como vice-gerente da criação deveria ser fecundo e protetor de toda a criação visível de
Deus (BARBOZA, 2010, p. 145).
Hoekema (1999, p. 101) afirma que o homem, após sua Queda, conforme o
relato do texto bíblico de Gênesis, capítulo 3, rompe seu relacionamento com Deus,
com o homem e com a natureza. Na perversão desta terceira relação ele ao invés de
dominar a terra em obediência e para a glória de Deus, usa a terra e seus recursos para
os seus próprios propósitos egoístas. Explora os recursos naturais sem se preocupar com
o futuro; derruba florestas sem se preocupar com reflorestamento; planta sem rodízio de
culturas, e assim, deixa de tomar medidas para evitar a erosão do solo. As fábricas
poluem rios e lagos, suas chaminés poluem o ar, e por aí se vai.
Destaca-se que este retrato significativo de Hoekema parece ter sido a
preocupação de Comenius, já no século XVII, por isso ele afirma: “Acrescentemos
agora que é também do interesse das próprias coisas sujeitas ao domínio humano não
serem administradas senão por homens sábios” (COMENIUS, 1971, p. 73).
88
Um pouco mais adiante, Comenius, refere-se à terra como a casa do homem
dada por Deus: “[...] Deus construiu tão opulentamente a casa (o mundo) que nos foi
concedida para habitarmos que todas as coisas necessárias são abundantemente
suficientes para todos, se formos doutros” (COMENIUS, 1971, p. 76). A partir da
compreensão acima é possível acenar que, ele, mesmo não utilizando o termo
“ecologia”, parece ser um dos seus precursores, haja vista a semelhança de suas ideias
com a definição de “ecologia” de Reimer (2010, p. 15): “Em tempos de globalização
fala-se cada vez mais de „aldeia global‟ ou „casa global‟. Com isso, busca-se entender
todo o nosso planeta Terra, ou melhor, todo o Universo como uma grande casa”.
Esta constatação colabora para com o foco da presente pesquisa, isto é,
compreender nas obras comenianas, se em seu pensamento o homem e a natureza
devem viver em harmonia, não sendo opostos entre si, pelo contrário, ambos são obras
da criação do Criador e seres viventes da mesma grande casa.
Ensinar os homens a usar e fruir corretamente da natureza
A partir das palavras acima, vale destacar as relevantes considerações de
Comenius que não pretende deixar dúvidas acerca da relação do homem com a natureza
e, por isso, apela para que todos os homens tenham acesso à educação. Em sua
concepção, a educação de todos não só redunda em torná-lo “paraíso de delícias” para a
glória do Criador (COMENIUS, 1971, p. 66); beneficiar a si mesmo e ao próximo, mas
também resultará em benefício para as coisas que estão sob seu domínio.
A educação do ser humano é do interesse de Deus, de cada homem é do
interesse das coisas sujeitas ao domínio humano. Nota-se, aqui, uma preocupação com
as questões relativas ao meio-ambiente, palavra que emprestada da atualidade. Percebe-
se a atualidade do pensamento comeniano, uma vez que esta é uma temática mundial
atual, porém, só enfatizada, há poucos anos atrás.
Entretanto, o autor da Didática magna e da Pampaedia já demonstra ser esta
uma preocupação pertinente a sobrevivência do ser humano e do seu habitat. Quando o
homem não exerce o seu domínio sábio sobre a natureza, esta sofre violência e geme
sob o jugo humano. O resultado disso é que a natureza fica sujeita à inutilidade, pois,
não conseguirá servir ao homem como deveria (COMENIUS, 1971, p. 73).
89
Ao afirmar que a natureza geme e espera ser libertada da escravidão iníqua
imposta pelo homem (COMENIUS, 1971, p. 50) utiliza o texto em que o apóstolo Paulo
escreve aos Romanos, capítulo 8, versículos 19-22:
A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de
Deus. Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas
por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria
criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da
glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação, a um só
tempo, geme e suporta angústias até agora.
O texto paulino aponta para o princípio de que, no momento presente, a criação
geme e suporta angústias, todavia, há uma ardente expectativa de que não só o homem
seja restaurado, mas igualmente toda a criação de Deus. Tratada esta passagem assim, é
possível afirmar que o autor da Pampaedia tinha em mente questões: uma escatológica
e a outra pensada para ser executada em seus dias.
Os pressupostos escatológicos de Comenius são apreciados no texto de Lopes
(2006, p. 182-187), que entende que a escatologia comeniana se baseia na ideia de
eternidade. A eternidade é algo real porque o homem é composto de corpo e alma, e esta
possui como característica fundamental, a eternidade. Por esta razão, Comenius (1971,
p. 78) faz questão de enfatizar que esta vida é uma preparação para a eterna e que o fim
último da existência humana não está nesta vida terrena, mas na eternidade.
A própria razão nos mostra que uma criatura tão excelsa está destinada
a um fim mais excelso que o de todas as outras criaturas: a
regozijarem-se junto a Deus, sumidade de todas as perfeições, glórias
e bem-aventuranças [...] tudo o que fazemos ou sofremos nesta vida
mostra que não atingimos aqui o fim último, mas que todas as nossas
ações, assim como nós mesmos tendem para outro lugar
(COMENIUS, 1997, p. 46-47).
Ainda na Didática magna encontram-se as palavras de Comenius (1997, p. 47-
49):
Por tender para outra vida, esta vida não é vida (propriamente dita),
mas um preâmbulo para a vida verdadeira e eterna [...] esta vida sobre
a terra não passa de preparação para a eterna, e por esse motivo, não é
de admirar que a alma, utilizando o corpo, procure obter o que quer
que lhe seja útil na vida futura. Assim que terminam esses
90
preparativos, migramos daqui, porquanto não são mais suficientes as
coisas de que nos ocupamos aqui.
Lopes (2006, p. 184), ao citar Kucera, afirma que o conceito linguístico de
Comenius se apoia em sua inclusão no contexto histórico salvífico-escatológico. A
partir deste raciocínio é possível compreender a hermenêutica que Comenius faz do
texto paulino de Romanos, capítulo 8, versículos 18-22, qual seja, a realização plena da
criação de Deus só ocorrerá na eternidade, mas por outro lado, todos os homens, criados
por Deus, são sacerdotes, chamados a servir a Deus, seu criador, no cuidado de toda a
Sua criação (COMENIUS, 1971, p. 59).
Este cuidado é necessário porque no estudo escatológico comeniano encontram-
se indicativos de que ele acreditava num paraíso terrestre restaurado pela ação divina.
Para ele, a implantação deste paraíso não demoraria muito, daí suas palavras: “O fim
está próximo” (COMENIUS, 1971, p. 60).
Nisto percebe-se a influência dos milenaristas hussitas-taboritas no pensamento
comeniano, os quais, mesmo sendo um pequeno exército e, em condições menos
favoráveis que o exército da Casa de Áustria o vence várias vezes, e a principal razão é
a concepção de que há uma salvação coletiva, terrestre, iminente, total e sobrenatural,
ou seja, a implantação de um paraíso terrestre, cheio de felicidade, o qual acontece após
o fim do mundo, inaugurando o novo céu e nova terra.
O próprio Comenius deixa transparecer sua crença em um paraíso terrestre, e
talvez este tivesse sido um dos grandes motivadores de seus escritos ou produções
literárias. Somado a isto, não se pode esquecer da influência de Alsted, que escreve uma
obra intitulada De Mille Annis Apocalypsis, na qual prediz o advento do reinado milenar
para 1694, na sua Magna reformatio (LOPES, 2007).
LEE (1986, p. 150), comentando a respeito da concepção milenarista de
Comenius, afirma:
Comenius acreditava que Jesus Cristo voltaria novamente a esta terra
para consolar e salvar todas as pessoas, e então estabeleceria seu
reinado por mil anos [...] Comenius concebia que a volta de Jesus
Cristo colocaria o fim na injustiça e a vitória final de Deus livraria
todos do poder do mal.
Com a concepção de um paraíso terrestre, implantado nesta terra, é permitido
afirmar que deve haver harmonia na relação do homem com a natureza, do contrário, a
91
terra gemerá debaixo da servidão iníqua dos homens. Por isso, ele conclama que os
homens sejam educados, inclusive na valorização de todas as coisas.
Com efeito, do mesmo modo que um jardim se torna melhor com um
bom que com um mau jardineiro, um ofício se torna melhor com um
bom que com um mau artesão, uma família se torna melhor com um
prudente que com um mau pai de família, um reino se torna melhor
com rei sábio que com um rei ignorante, um exército se torna melhor
com um general experimentado, etc., assim também acontece com
quaisquer outras coisas sob a direcção de homens que as possuem e as
utilizam segundo o seu direito, desde que saibam utilizá-las
legitimamente.
No final das palavras acima é registrada a proposição: “desde que saibam utilizá-
las legitimamente”. O uso legítimo não é só relativo ao direito, mas é, sobretudo, ao
cuidado, conforme Comenius (1971, p. 49) acena, ao citar o livro de Provérbios de
Salomão, capítulo 12, 10: “O homem justo preocupa-se até com a vida do seu jumento;
mas o ímpio é cruel”.
Com o mesmo raciocínio ele afirma: “Por conseguinte, deve desejar-se que
todos os homens sejam ensinados a bem conhecer e a bem compreender as coisas e a
usá-las e a fruí-las correctamente” (COMENIUS, 1971, p. 50). No mesmo contexto,
vale lembrar as palavras de Comenius (1971, p. 56, 57):
E, desse modo, conseguir-se-á que o Paraíso perdido seja
reencontrado, isto é, que o mundo inteiro se torne, para Deus, para nós
e para as coisas, um jardim de delícias. Sabemos que isso se realizará
plenamente na eternidade; mas que isso aconteça ao menos
incoactivamente, também no limiar da eternidade, no fim do mundo
que se avizinha, é o que é necessário desejar, esperar e procurar
realizar, com a ajuda de Deus Amém.
Diante do exposto, também na concepção escatológica de Comenius está a base
para afirmar que a relação do homem com a natureza colabora para a compreensão de
que o homem foi criado para proteger a criação de Deus e, dentre suas tarefas, está a de
restaurar novamente esta terra no paraíso terrestre do Criador.
Não há lugar para abusos, nem ações puramente exploratórias fruto da ganância
humana, pelo contrário, ele é o sacerdote de Deus encarregado por cuidar das coisas que
lhes foram confiadas, deve-se, por conseguinte ter em mente o amor, a vida e todas as
coisas, “de modo que, se há qualquer coisa que se lhe siga, seja também vida e não
92
morte. De outro modo, se, pela vida, se devesse chegar à morte, teria sido preferível não
ter nascido” (COMENIUS, 1971, p. 67-68).
Há ainda outro importante argumento que explicita a relação do homem com a
natureza no pensamento comeniano, trata-se do método de ensinar todas as coisas.
O método único do ensino é o que segue as leis da natureza
Com foco na relação do homem com a natureza, na leitura tanto da Didática
magna quanto na Pampaedia, Comenius dá uma abundância de exemplos emprestados
da natureza, conforme as palavras de Kulesza (1992, p. 106) em seu comentário a
respeito da ordem da escola: “[...] a ordem que deve reinar na escola não é constituída
por uma elaboração teórica, mas deve ser emprestada da natureza, pois „a arte nada pode
fazer, a não ser imitando a natureza‟”. Assim, concebe-se “que o método único de
ensino é o que segue as leis da natureza” (GASPARIN, 1994, p. 147).
Está explícito que há uma profunda consideração de Comenius pela natureza,
por esta razão, pode-se afirmar que mesmo em algumas partes da Didática magna como
da Pampaedia que transparece o pensamento de “exploração da natureza”, quando há
um estudo aprofundado de suas obras o equívoco se desvanece. Um exemplo disso é a
discussão em torno do termo “útil” com referência à natureza.
Na leitura da Didática magna, ao comentar a respeito da criação do mundo, e
por considerar o homem a mais elevada, perfeita e excelsa das criaturas (COMENIUS,
1997, p. 41) explicita que a verdadeira vida humana não está na atual, mas na futura
que, é a eterna. Para ele, o fim último do homem está fora desta vida, de maneira que,
por mais que o conhecimento seja adquirido nesta vida ainda não é suficiente para saciar
o desejo de conhecer do homem. Este desejo somente será saciado na eternidade
(COMENIUS, 1997, p. 43-47).
Bem próximo ao pensamento de Platão9, Comenius (1997, p. 50) demonstra que
em sua concepção esta vida não passa de preparação para a eterna, e por esse motivo,
não é de admirar que a alma, utilizando o corpo, procure obter o que quer que lhe seja
útil na vida futura. O termo “útil” é digno de destaque nesta parte da Didática, pois,
9 Para a compreensão das proximidades do pensamento de Comenius com Platão na tratativa desta
temática ler: LOPES, Edson Pereira. O cuidado com a alma imortal nos diálogos Fédon, Fedro e
República, de Platão. In Estudos de Religião. São Bernardo/SP: Universidade Metodista de São Paulo,
ano XXII, nº 35, p. 178-194, julho/dez 2008.
93
assinala o princípio de que para Comenius, o mundo visível, foi criado para ser útil ao
homem.
Ele justifica a variedade das espécies criadas pelo Criador, considerando que
tudo foi criado para que nada faltasse em termos de alimento à mente do homem e que
ao mesmo tempo servisse para lhe fazer refletir a respeito do infinito poder, sabedoria e
bondade de Deus (COMENIUS, 1997, p. 50). Infere-se daí que, para ele o “mundo é tão
somente o lugar onde nascemos e nos alimentamos” (COMENIUS, 1997, p. 51). Um
pouco mais adiante ele explicita: “Tudo, pois, existe em função do homem, inclusive o
tempo” (COMENIUS, 1997, p. 51).
Estudado apenas por este prisma, pode-se ter uma conclusão não muito segura
sobre do pensamento de Comenius a respeito da relação do homem com a natureza. Em
função disso, é que vale destacar que na Pampaedia demonstra sua ideia quanto ao
significado de “utilidade”. Para ele, as coisas são “úteis” quando são utilizadas
corretamente a fim de atingir o objetivo próprio de sua natureza. “É do interesse das
coisas, para que não corram o risco de serem perpetuamente inúteis, porque
incorretamente utilizadas pelos homens, ou seja, nem para glória de Deus, nem para
salvação sua” (COMENIUS, 1971, p. 44).
Almeida (2007) em sua reflexão intitulada A crise do meio ambiente e a teologia
de Leonardo Boff: uma perspectiva da teologia evangelical, explicita que uma das
razões para a instauração desta crise é a ganância do homem, quando este se utiliza da
natureza sem a preocupação de fazer o seu uso correto. Aí está uma concepção que
Comenius já assinalava no século XVII, quando afirma: “[que os homens] sejam
ensinados a englobar dentro dos limites da prudência os negócios da vida presente, de
modo que, mesmo neste mundo, todas as coisas estejam (o melhor possível) em
completa segurança” (COMENIUS, 1971, p. 40). Pode-se ler em suas palavras,
indicativos de sua preocupação com a segurança do cosmos quando ocorre o uso
impróprio da natureza. Talvez, por causa disso, ele profere estas palavras:
Se conseguirem [...] disporão de antídotos contra a sua infelicidade os
pobres mortais, a maioria dos quais não se preocupa com o futuro, põe
em perigo o presente, todos estão em desacordo e lutam com todos e
cada um, consigo mesmo (nos seus pensamentos, palavras e acções) e,
pela discórdia, arruínam-se e perecem (COMENIUS, 1971, p. 40).
Por conseguinte, seu princípio de utilidade difere do utilitarismo, uma vez que,
ele não parte de uma concepção “exploratória da natureza”, e sim, o uso devidamente
94
adequado das coisas visíveis. A natureza deve ser alvo de observação e de imitação. Isto
pode ser evidenciado quando Comenius utiliza a natureza como exemplo e modelo para
a arte de ensinar e aprender.
A natureza aguarda o momento propício10
O pássaro não inicia a reprodução no inverno, nem no verão, nem no outono,
mas na primavera, quando o sol dá vida e vigor a todas as coisas. As escolas contrariam
esse princípio de duas maneiras: não aproveitando o tempo oportuno para exercitar os
engenhos; e não organizando cuidadosamente os exercícios de modo que tudo avance
gradualmente e sem erros. A criança não pode ser instruída enquanto é pequena demais,
assim como não é de bom alvitre instruir o homem, nem na idade adulta, nem na
velhice. Deve ser feito no vigor da vida e da mente. Deve-se, pois, dar início à formação
do homem durante a idade primaveril, durante a infância (COMENIUS, 1997, p. 148).
A natureza prepara a matéria antes de começar a introduzir-lhe a forma
A partir do exemplo citado acima, observa-se que primeiro ele desprende uma gota
de seu sangue, depois o ovo, para só depois vir o filhote. De forma análoga, as escolas
precisam ter à sua disposição os instrumentos necessários para que os jovens possam
aprender com desenvoltura, tais como, livros, quadros, exemplos, modelos etc. Que
devem ser aplicados por profissionais competentes para que os resultados sejam bons.
Comenius entende que as escolas usam métodos errados, como ensinar primeiro
as palavras antes das coisas, ensinar regras abstratas para só depois virem a ser
esclarecidas etc. Para corrigir métodos equivocados, desde sua origem Comenius (1997,
p. 151) diz ser necessário:
Primeiro, ter prontos os livros e todos os outros instrumentos didáticos.
Segundo, que o intelecto seja formado antes da língua. Terceiro, que
não se aprenda nenhuma língua a partir da gramática, mas apenas a
partir de autores apropriados. Quarto, as disciplinas reais devem
preceder as lógicas. E por último, os exemplos devem preceder as
regras.
10
Os subtítulos a seguir foram extraídos literalmente da Didática magna, capítulo XVI.
95
A natureza toma um indivíduo apto e prepara-o antes, oportunamente
O pássaro coloca no ninho para chocar um ovo, objeto próprio para dele, nascer
um passarinho. No processo de chocar o ovo ele não só o aquece como vai revirando-o
até que o passarinho esteja pronto para sair daquele recipiente. Isto significa que é
preciso predispor as mentes dos alunos para depois ensiná-los, é que pode ser visto na
afirmação de Comenius (1997, p. 152-153):
Na maioria das vezes, tenta-se enxertar as mudas da ciência, dos
costumes e da piedade antes que a planta tenha lançado raízes, antes de
estimular o amor pelo estudo naqueles que a isso não foram estimulados
pela própria natureza. Os arbustos e as estacas não foram limpos antes
da plantação: as mentes não foram liberadas das ocupações supérfluas,
nem foram submetidas à ordem.
Nota-se nas palavras acima a preocupação dos envolvidos com o processo
ensino-aprendizagem quanto ao momento mais apropriado para a iniciação educacional.
Isto, na concepção comeniana pode ser aprendido com a natureza.
A natureza não procede confusamente, mas de modo claro
Ao formar um pássaro, antes de fazê-lo voar, ha um processo constitutivo de
ossos, nervos, veias, carne, pele, penas, etc. Para Comenius (1997, p. 154) as escolas
erram quando, não seguindo a sabedoria da natureza, abarrota as mentes dos alunos com
muitos conhecimentos de uma só vez, ou ao mesmo tempo. A ideia é que se ensine e se
aprenda uma coisa por vez em dado momento da vida.
A natureza começa todas as operações pelas partes mais internas
Primeiro forma as vísceras para depois a natureza formar as unhas, as penas etc,
do pássaro. A planta alimenta-se por meio dos poros das partes internas. O arboricultor
rega a raiz, não os ramos. Para Comenius o instrutor erra quando incentiva o decorar
sem cuidadosa explicação, quando tenta explicar sem conhecer devidamente o método,
não sabendo ir até a raiz para nela inserir o enxerto das ciências. Pode prejudicar o
aluno, assim como o jardineiro pode destruir a planta se usa um bastão para poda-la em
96
vez de usar uma ferramenta própria. Antes se forme o entendimento das coisas, depois a
memória e, depois a língua e as mãos (COMENIUS, 1997, p. 156).
A natureza inicia todas as suas formações pelas coisas mais gerais e
acaba pelas mais particulares
Na concepção de Comenius (1997, p. 156-157) ao se educar, há que se aprender
com a natureza também quando ela inicia todas as suas formações pelas coisas mais
gerais e termina nas particulares. Eis algumas de suas afirmações:
Para produzir um pássaro a partir de um ovo, não delineia nem forma
logo de início a cabeça, os olhos, as penas, as unhas, mas aquece toda
a massa do ovo e estende veias por toda parte graças ao movimento
produzido pelo calor, de tal modo que o passarinho fique totalmente
delineado (ou seja, a cabeça, as asas, as pastas em embrião) e por fim
todas as partes se desenvolvam gradualmente, até atingirem a
perfeição.
Um pouco mais à frente, Comenius (1997, p.158) esclarece:
O arquiteto também imita a natureza e concebe em sua mente a idéia
do edifício todo [...] o pintor [...] esboça o todo do homem [...] Segue-
se que o ensino das ciências será mal conduzido se for particularizado,
se antes não forem propostas as linhas mais simples e gerais de todo
ensinamento; nem é possível instruir ninguém perfeitamente numa
ciência sem relacioná-la com as outras.
Neste contexto, a partir dos exemplos da natureza, ele concebe: “que qualquer
[...] arte seja ensinada no início apenas por meio de rudimentos simples, de modo que
delas se tenha uma idéia geral para depois se aprimorar [...] por meio de sistemas
completos” (COMENIUS, 1997, p. 158-159).
A natureza não procede por saltos, mas gradualmente
Para que o passarinho esvoace o céu, há um processo paulatino e contínuo, desde
sua formação dentro do ovo, à alimentação, à formação das penas, ao vôo. Essas ações
exigem o momento oportuno e uma série de graus, conforme compreende Comenius
(1997, p. 160):
97
É absurdo que os mestres não distribuam os estudos, para si e para os
alunos, de tal modo que não só uns se sucedam naturalmente aos
outros, mas que cada matéria seja completada em dado limite de
tempo. Se não se estabelecerem bem os fins, os meios para atingir
esses fins e a ordem dos meios, será fácil esquecer ou inverter alguma
coisa, e todo estudo de algum modo será prejudicado.
Depois de iniciar uma obra, a natureza não a interrompe, mas conclui
“O pássaro que, por natural instinto, começou a chocar os ovos não pára
enquanto eles não se abrem” (COMENIUS, 1997, p. 161). Assim como o pássaro não
interrompe a chocação dos ovos e o aquecimento dos filhotes até expô-los ao tempo, de
igual forma seria prejudicial mandar as crianças para a escola com intervalos de meses e
de anos, distraindo-as com outras ocupações. O preceptor erra se inicia, com o aluno,
ora uma coisa, ora outra. Onde falta calor, tudo se esfria. Em função disso, Comenius
registra (1997, p. 162) “quem se dedica aos estudos devem frequentar a escola até se
tornar homem instruído”.
A natureza está sempre atenta para evitar as coisas contrárias e nocivas
No aquecimento dos ovos o pássaro os defende do vento, da chuva, do granizo,
das cobras, das aves de rapina e de outros perigos. Comenius (1997, p. 163) pontua:
Seja, pois, deliberado que: não se deve dar aos jovens nenhum livro, a
não ser os de sua classe; que sejam livros inspiradores de sabedoria,
virtude e piedade; que não se devem tolerar as más amizades nas
escolas ou em suas imediações. Se forem observados tais princípios as
escolas certamente alcançarão seu fim.
Isto posto, está claro que no pensamento comeniano, o homem tem muito a
aprender com a natureza. Seu uso da natureza não é exploratório, mas sim de
observação e imitação, isto é, deve-se ter uma relação harmônica do homem com a
natureza. Com este pensamento em mente, é mister avançar este estudo, relacionando-o
com as questões educacionais. Afirma Comenius (1997, p. 165):
Se iniciada cedo, antes que as mentes se corrompam; se ocorrer com a
devida preparação dos espíritos; se proceder das coisas mais gerais para
as particulares; e das mais fáceis para as mais difíceis; se nenhum aluno
for sobrecarregado com coisas supérfluas; se em tudo se proceder
98
lentamente; se as mentes só forem compelidas para as coisas que
naturalmente desejarem por razões de idade e de método; se tudo for
ensinado por meio da experiência direta; se for para utilidade imediata;
e com um método imutável, único e assíduo. Assim, todas as coisas
fluirão de modo suave e agradável.
A natureza inicia pela privação
O pássaro usa ovos frescos para chocar; o construtor usa área vazia para
construir; o pintor pinta melhor sobre uma parede limpa; se alguém quiser guardar
unguento é melhor um frasco vazio e limpo; o arboricultor planta melhor as mudas
novas, e assim por diante. De igual forma, as mentes jovens absorvem melhor o estudo
do saber, pois que quanto mais tarde o processo educativo for iniciado, mais cansativo
será, uma vez que a mente já foi ocupada com outras coisas (COMENIUS, 1997, p.
167).
A natureza predispõe a matéria a desejar a forma
No ovo, o passarinho já formado desloca-se, rompe a casca com o pico, e liberta-
se. Agrada-lhe ser aquecido pela mãe, alimentado, olhar para o céu e voar.
Erram na educação das crianças quem as obriga a estudar a contragosto.
Comenius (1997, p. 169) cita Isócrates: “Se tiveres vontade de aprender, serás muito
instruído”. Nas crianças o amor pelo estudo deve ser suscitado pelos pais, professores,
escola, métodos e pelas autoridades.
A natureza extrai tudo de princípios pequenos em quantidade, mas
válidos pela virtude
Tudo o que deverá formar o pássaro está contido no ovo; a arvore está incluída
por inteiro no caroço de seu fruto. Nas escolas os mestres devem semear sementes em
vez de ervas, plantar mudas em vez de arvores. Quando o principio é invertido, o aluno
fica com a mente pulverizada de tratados inteiros em vez de princípios basilares
(COMENIUS, 1997, p. 172). De modo que, toda arte deve encerrar-se em regras
brevíssimas, mas absolutamente exatas; toda regra deve ser concebida com palavras
brevíssimas, mas muito claras; toda regra deve ser exemplificada com muitíssimos
exemplos esclarecedores.
99
A natureza nunca excede, mas contenta-se com pouco
Não exige que nasça de um ovo dois passarinhos. Constitui distração para o
aluno ensinar varias coisas ao mesmo tempo, como gramática, dialética, retórica, poesia
e língua grega no mesmo ano (COMENIUS, 1997, p. 175).
A natureza não se apressa, mas anda com vigor
O pássaro não coloca os ovos no fogo a fim de que os passarinhos nasçam logo,
mas aquece-os lentamente com o calor natural. Não os empanturra de comida para que
cresçam depressa, mas alimenta-os pouco a pouco. Semelhantemente, é tortura para a
criança ficar ocupado durante sete, oito horas por dia com aulas e exercícios coletivos;
ter de fazer ditados, exercícios e aprender de cor o maior numero possível de coisas, até
a loucura. Torna-se inepto quem se põe a ensinar aos alunos o que lhe apraz, e não o que
eles entendem (COMENIUS, 1997, p. 177).
A natureza só pare o que, tendo amadurecido em seu seio, deseja vir à luz
Não obriga o pássaro a romper o ovo enquanto seus membros não estão bem
formados, nem a voar antes de ter pena, etc. De igual forma, as mentes não devem ser
forçadas. Veja-se o que ele diz a este respeito: “As mentes são forcadas sempre que
submetidas a coisas superiores à idade e à capacidade; sempre que obrigadas a aprender
de cor ou a fazer coisas que não foram antes explicadas, esclarecidas ou ensinadas”
(COMENIUS, 1997, p. 177).
A natureza ajuda-se sozinha de todos os modos possíveis
A cegonha carrega seus filhotes nas costas, leva-os a dar voltas em torno do
ninho, enquanto bate as asas. A ama procura de toda maneira ajudar a criancinha.
Ensina a manter a cabeça reta, a sentar-se, a ficar em pé, a movimentar os pés para
andar, a dar os primeiros passos e a avançar devagar até a chegar a andar com destreza.
É inconcebível a missão do preceptor que sem explicar devidamente obriga o
aluno a executar determinada tarefa, enfurecendo-se quando a mesma não é feita a
contento. A natureza ensina a tolerar a fraqueza enquanto o vigor não chega
100
(COMENIUS, 1997, p. 179). Para ensinar não se deve aplicar nenhuma chicotada, e
tudo que se queira ensinar deve ser exposto e mostrado de modo claríssimo.
A natureza só produz aquilo cujo uso logo se manifesta
Ao pássaro a natureza dá asas com a finalidade de voar, patas com a finalidade
de correr etc. Com respeito ao aluno deve se dá o mesmo. Facilitará seu estudo quem
lhe mostrar como usar na vida cotidiana aquilo que está sendo ensinado (COMENIUS,
1997, p. 180).
A natureza faz tudo com uniformidade
A geração de um pássaro é a mesma para todos os pássaros, alias isso acontece
com todos os animais. O mesmo ocorre com as plantas: o modo como uma erva nasce e
cresce de uma semente ou uma arvore, é o mesmo para todas ervas e plantas em todos
os tempos e lugares.
Para Comenius a diversidade de métodos didáticos confunde os jovens e torna os
estudos intrincados demais. Daí se tornar necessário que todas as ciências sejam
ensinadas com um único e mesmo método, assim como as artes e as línguas. Que a
ordem e o modo sejam idênticos, que as edições dos livros para uma mesma matéria
sejam as mesmas (COMENIUS, 1997, p. 181-182).
Princípios em que se fundamenta a solidez no ensino e no aprender
Observou-se meios de se ensinar e de se aprender com facilidade. Observar-se-á
princípios concernentes a solidez no ensinar e no aprender. A grande questão da
aprendizagem pode ser resumida em duas causas: ou as escolas negligenciam as coisas
mais consistentes e se preocupam com as superficiais e frívolas, ou os alunos esquecem
o que aprenderam porque tiveram contato rápido com muitas matérias, sem que nelas se
detivessem. Ora, como a memória não nos devolve o que decoramos, memorizar é como
pegar água com uma peneira.
Comenius indaga: haverá remédio para esse mal? E responde afirmando que isso
só será obtido com a escola da natureza. Comenius (1997, p. 183-184) diz:
101
Se só forem estudados assuntos de inquestionável utilidade; [...] E
todos juntos, sem separação entre eles; [...] Se a tudo forem atribuídos
sólidos princípios; [...] Se esses princípios forem muito aprofundados;
[...] Se tudo se apoiar nesses fundamentos; [...] Se tudo o que precisar
ser distinguido, for distinguido de modo bem claro; [...] Se tudo o que
é posterior se fundamentar no que for anterior; [...] Se tudo o que tiver
relação for relacionado para sempre; [...] e se a tudo for dada uma
ordem que tenha relação com o intelecto, a memória e a língua; e, por
fim, se tudo for consolidado com exercícios constantes.
Princípios de um ensino rápido e conciso
No capítulo XVIII discorreu-se sobre como ensinar e aprender. Observar-se-á
princípios de um ensino rápido e conciso. A grande indagação a principio é: serão
necessários quantos professores, quantas bibliotecas, quanta labuta para que se tenha
uma educação de qualidade?
Como encontrar o remédio se antes não se detectar a enfermidade e
principalmente as causas da doença?
Comenius (1997, p. 204-205) aponta as mais verdadeiras:
Nunca foram estabelecidas as metas às quais os escolares deveriam
chegar todos os anos, meses, dias; portanto, sempre houve incertezas;
[...] Nunca foram estabelecidos os caminhos capazes de conduzir
infalivelmente às metas; [...] As coisas interligadas por natureza
sempre foram consideradas sem seus nexos, aliás, nitidamente
separadas; [...] As artes e as ciências eram ensinadas de modo
enciclopédico, em poucos lugares, e mesmo assim de modo
fragmentário; [...] Os métodos eram múltiplos e variados. Cada escola,
aliás, cada preceptor tinha o seu; e, por fim, faltava um método para
ensinar ao mesmo tempo todos os alunos de uma mesma classe, etc.
Entende Comenius que só há uma saída, uma possibilidade para se corrigir os
desvios do ensino nas escolas, e este se encontra, por incrível que pareça na natureza.
Desta feita usa o sol como princípio norteador a ser imitado Comenius (1997, p. 207):
O sol não se ocupa com objetos em particular, como uma árvore ou
um animal, mas ilumina, aquece e ergue vapores sobre toda a terra;
[...] com os mesmos e únicos raios, dá luz a tudo; [...] ao mesmo
tempo, produz em todas as regiões a as quatro estações, faz germinar,
florir e frutificar; [...] mantém sempre a mesma ordem: a de hoje será
a mesma de amanha; a deste ano será igual ao próximo, etc. [...] faz
nascer cada coisa de sua própria semente e não de outra; [...] faz
nascer as coisas que devem ficar juntas: o tronco com a cortiça e o
cerne, a flor com as folhas, o fruto com a casca, o pecíolo e o caroço;
[...] faz tudo gradualmente, para que uma coisa abra caminho para a
102
outra e elas se interliguem; [...] e, finalmente, nada produz que seja
inútil.
Qualquer um, a qualquer tempo, em qualquer lugar, pode verificar essa
sabedoria ministrada pela natureza. E, como se propõe o autor da Didática magna, o
ensino da natureza é universal, nivelador e não discriminatório. Para agir imitando o sol
diz Comenius (1997, p. 208) o seguinte:
Para cada escola, ou ao menos para cada classe, deverá ser designado
apenas um professor; [...] Para cada matéria, um só autor; [...] Um
único e idêntico trabalho deverá constituir empenho comum de toda a
classe; [...] Todas as disciplinas e línguas devem ser ensinadas com
um único e idêntico método; [...] Tudo deve ser ensinado a partir de
princípios primeiros de modo breve e essencial, para que o intelecto se
abra, como com uma chave, e todas as coisas se exponham diante
dele; [...] Tudo o que for interligado deve assim continuar; [...] Tudo
deve ser ensinado segundo gruas ininterruptos, de tal modo que o que
for aprendido hoje reitere o de ontem e abra caminho para o de
amanha; [...] E, finalmente, tudo o que for inútil deverá ser descartado.
De acordo com Comenius, se essas regras forem introduzidas nas escolas, com
certeza, o âmbito das ciências será abarcado com mais facilidade e rapidez, assim como
o sol completa todos os anos sua trajetória em torno do mundo.
Está explicitado que Comenius utiliza-se da natureza, mas não parte de uma
concepção “exploratória da natureza”, e sim, o seu uso devidamente apropriado. Para
ele, conforme visto, ao invés de explorá-la deve-se utilizá-la como digna de imitação,
sobretudo, no processo ensino-aprendizagem. No processo ensino-aprendizagem o
método único que, está calcado na natureza, é concebido por meio do uso dos sentidos.
A partir desta perspectiva, observa-se a compreensão de Comenius a respeito da relação
do homem com a natureza.
Sentidos; os instrumentos naturais para o ensino do método único
Conforme visto, o que distingue os homens das demais criaturas de Deus é a sua
aptidão inerente para entender as coisas por meio da mente. Deus o dota de
características que o torna enaltecido. Essa característica é ensinada pelo autor da
Didática e da Pampaedia, ele distingue alguns desses sentidos:
103
A mente cultiva-se e aperfeiçoa-se para que saibamos muitas coisas
verdadeiras e fugindo das más. A mão, juntamente com as outras
faculdades em nós existentes, é cultivada para que possamos fazer
aquelas coisas que devem ser feitas e superar com a nossa operosidade
as deficiências das coisas. A língua cultiva-se para que as nossas
relações com os homens sejam racionais, agradáveis e fecundas
(COMENIUS, 1971, p. 265).
Ele ainda registra ao perguntar quanto ao significado de conhecer:
Significa não ignorar que as coisas existem, o que se consegue vendo,
ouvindo, cheirando, gostando e apalpando as coisas [...] o objectivo da
Escola [...] será ordenar em formas seguras a selva das noções
recolhidas pelos sentidos para uma utilização mais plena e mais clara
do raciocínio, uma vez que a dignidade do homem, acima dos animais
depende da razão (COMENIUS, 1971, p. 265-266).
Infere-se das palavras acima, duas ideias centrais no pensamento comeniano:
1) que o homem exercita os seus sentidos, quando está numa relação com a
criação do Criador. Portanto, cuidar dela e protegê-la é alimentar sua constante busca
pelo conhecimento. Isto significa que deve ser uma relação do homem com a natureza
não exploratória, mas harmônica.
2) pelo fato de o homem ter sido criado à “imagem e semelhança de Deus”,
como Comenius afirma constantemente, ele foi dotado com a capacidade de adquirir a
ciência das coisas e aprender as diversas formas do conhecimento. Isto pode ser lido em
Comenius (1997, p. 58):
Todo homem nasceu com capacidade de adquirir a ciência das coisas,
antes de qualquer coisa, porque é imagem de Deus. De fato, a imagem,
se acurada, representa necessariamente as feições do arquétipo, ou não
seria imagem. Portanto, uma vez que entre as outras propriedades de
Deus sobressai a onisciência, necessariamente algo semelhante
resplenderá no homem.
Na continuação de seu argumento, Comenius assinala que a forma do homem
chegar ao conhecimento é por meio de uma mente lúcida, visto que ela é semelhante a
um espelho, que recebe as imagens de todas as coisas, não só as que estão próximas,
mas também, aproxima as imagens que estão distantes de si.
104
Na verdade nossa mente não apreende só as coisas próximas, mas
também aproximam de si as distantes (em lugar e tempo), alça-se às
mais difíceis, indaga as ocultas, descobre as veladas, esforça-se por
investigar também as imperscrutáveis; é algo infinito e sem limites. Se
fossem concedidos ao homem mil anos, durante os quais, adquirindo
sempre novos conhecimentos, ele passasse de um conhecimento a
outro, ainda assim teria novos objetos para conhecer, tal é a
inexaurível capacidade da mente humana, que no conhecimento é
como um abismo. Nosso pequeno corpo é circunscrito por limites
muito exíguos: a voz pouco alcança a visão só circunscreve a altura do
céu, mas à mente não se pode impor limite algum, nem no céu nem
além do céu; ela ascende além dos céus dos céus assim como desce ao
abismo dos abismos, ela seria capaz de penetrá-los com incrível
velocidade. E queremos negar que tudo lhe seja acessível? Queremos
negar que ela seja capaz de tudo conter? (COMENIUS, 1997, p . 59).
Comenius afirma que a mente humana já possui a semente do conhecimento, de
forma que o homem nada recebe do exterior, mas que a semente do conhecimento parte
de dentro para fora (COMENIUS, 1997, p. 59). Lopes (2006, p. 160) sugere que este
princípio se aproxima da filosofia socrática no método da maiêutica. Na argumentação
de que a mente humana já possui a semente do conhecimento, Comenius recorre ao
pressuposto de Pitágoras. Pitágoras, segundo ele, afirmava que qualquer criança de sete
anos, sendo interrogada convenientemente sobre qualquer problema filosófico, estaria
em condições de responder com segurança a tudo (COMENIUS, 1997, p. 60).
Sendo assim, o conhecimento é inato ao homem, pois no homem é inerente o
desejo de saber. O próprio Comenius (1997, p. 60) pontuou que os sentidos são
acréscimos ou acessórios à alma racional que cooperam para o alcance do
conhecimento:
Ademais, à alma racional que temos em nós foram acrescentados
órgãos, que servem de emissários ou observadores; são elas a visão, a
audição, o olfato, o paladar e o tato, e por seu intermédio ela chega a
todos os objetos externos, para que nada possa ficar oculto. Como no
mundo sensível nada existe que não possa ser visto, ouvido, cheirado,
degustado ou apalpado e cujas essências e qualidade não possam ser
conhecidas, segue-se que nada há no mundo que um homem dotado de
sentidos e razão não possa compreender.
Na concepção de Comenius, Deus, ao criar o mundo e tudo o que existe, e ao
dotar o homem de uma mente, objetivou prover alimento não só para o corpo, mas
também para a mente humana a fim de que esta tivesse a oportunidade de adquirir as
diferentes formas do conhecimento, resultando no inerente desejo humano pelo saber.
105
No homem é inerente o desejo de saber e também de enfrentar (e não
apenas de suportar) os esforços que isso implica. Tal já ocorre na
primeira infância e nos acompanha por toda a vida. Quem não deseja
escutar, ver, fazer sempre algo de novo? A quem não agrada ir todo
dia a um lugar qualquer, conversar com alguém, fazer perguntas ou
contar coisas? Assim é que: os olhos, os ouvidos, o tato e a própria
mente, buscando sempre alimento, estão sempre sendo levados para
fora de si, e para a natureza vivaz nada é mais intolerável que o ócio e
a preguiça. E, além disso, para maior prova disso, por que os indoutos
admiram os doutos, senão porque sentem os agradáveis atrativos de
um desejo natural e também gostariam de ser partícipes, se possível?
Mas como não têm esperança, anseiam e admiram os que consideram
superiores (COMENIUS, 1997, p. 60).
Neste mesmo contexto, Comenius (1997, p. 62) afirma que a mente humana é
infinita e que quanto maior a diversidade do conhecimento, mais agradável será a vida
humana:
[...] quanto maior a variedade, mais agradável é o espetáculo para os
olhos, mais suave o perfume para as narinas, maior o consolo para o
coração. Aristóteles comparou o espírito do homem a uma tábua rasa
na qual nada está escrito, mas onde tudo pode ser escrito [...] e há uma
diferença, pois numa tábua só é possível traçar linhas até onde as
margens o permitam, enquanto na mente nunca se encontrarão limites,
ainda que se escreva ou grave o tempo todo, porquanto, como já foi
dito, ela não tem limites.
Outra forma de argumentar a favor do conhecimento como inato, são os
autodidatas, que, na concepção de Comenius (1997, p. 61), jamais necessitam de
preceptores, mestres ou professores, mas aprendem com os carvalhos, passeando pelos
bosques e meditando.
Os exemplos dos autodidatas mostram com muita clareza que o
homem, com a orientação da natureza, tudo pode alcançar [...] alguns
[...] tendo como professores os carvalhos e as faias (ou seja, passeando
pelos bosques e meditando), aprenderam mais que outros através do
laborioso ensino dos preceptores. Isso não nos ensina que tudo
realmente está no homem? [...] São inatas em nós as sementes de todas
as artes, e Deus, nosso mestre, extrai engenhos do oculto.
É na mente, portanto, que estão todas as capacidades e condições necessárias ao
homem para alcançar o verdadeiro conhecimento, e ela só exerce essa função porque o
homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Presume-se, assim, que Comenius
não tem uma visão puramente antropocêntrica, como alguém pode objetar, mas
106
teológica, visto que, se o homem é tão exaltado, deve-se ao fato de ter sido criado com a
atenção singular do Criador. Portanto, para Comenius, o homem é enaltecido não por
suas próprias forças ou méritos, mas porque Deus enalteceu-o no ato da sua criação.
Percebe-se ainda que, para Comenius, Deus não somente criou o homem com
uma mente infinita, mas adicionou os órgãos do sentido que servem para ajudá-lo na
questão do conhecimento. É por intermédio desses órgãos que a mente chega a todos os
objetos externos, para que nada possa ficar oculto. Segue, assim, que “nada há no
mundo que um homem dotado de sentidos e razão não possa compreender”
(COMENIUS, 1997, p . 60).
Não obstante, ser a nossa mente infinita e receber milhares e milhares de
imagens, o impressionante, é que a massa do nosso cérebro não é muito grande. Nisso,
pode-se notar, na compreensão de Comenius, a sabedoria e onipotência de Deus, visto
que as informações adquiridas com a leitura e a experiência estão todas no cérebro.
[...] O que é essa imperscrutável sabedoria da onipotência de Deus?
Salomão admira-se de que todos os rios desemboquem no oceano e, no
entanto, não encham o mar (Eclesiastes 1.7); e quem não admirará o
abismo de nossa memória, que engole tudo e tudo restitui, e não
obstante nunca está vazio nem cheio? Por isso, em verdade nossa
mente é maior que o mundo, do mesmo modo que o continente é
necessariamente maior que o conteúdo (COMENIUS, 1997, p . 63).
Nas palavras de Comenius, observa-se que, para ele, o próprio cérebro humano
foi criado por Deus e, com Sua sabedoria, o Criador fez com que o cérebro jamais fosse
“completado”; antes, criou-o como uma espécie de abismo na questão do conhecimento.
Somado ao cérebro, depara-se com os olhos, comparados por Comenius, como a
alma. O olho é representante de mente e não se cansa em ver, tampouco é obrigado a
abrir-se, mas isso é seu processo natural, como a mente humana que é sequiosa por
conhecer, está aberta para o conhecimento, deseja ardentemente explorar, compreender,
é incansável (COMENIUS, 1997, p. 63-64).
Todavia, à luz desse argumento, alguém poderia objetar quanto à razão pela
qual, algumas pessoas, aparentemente, não conseguem aprender as coisas. Responderia
Comenius que a mente humana, por natureza, tem a semente do conhecimento,
entretanto, deve-se despertá-la para tal fim.
Na concepção comeniana, tudo realmente está no homem: “Estão lâmpada,
candeeiro, óleo e pavio, e tudo o que é necessário: quem souber produzir a centelha,
107
acolhê-la, acender a luz poderá ver – belíssimo espetáculo – os maravilhosos tesouros
da divina sabedoria” (COMENIUS, 1997, p. 61).
Em outra parte de sua Didática, Comenius (1997, p. 62) afirma:
Aristóteles comparou o espírito do homem a uma tábua rasa na qual
nada está escrito, mas onde tudo pode ser escrito. Então, assim, como
numa tábua rasa o escritor pode escrever o que desejar e o pintor que
não ignore a arte pode pintar o que quiser, também para quem não
ignora a arte de ensinar é fácil gravar o que quiser na mente do
homem. Se isso não ocorrer não será por culpa da tábua (mesmo que
seja grosseira), mas por ignorância do escritor ou pintor.
Isso se deve ao fato de que a mente humana é como a terra e como a cera. Como
a terra, pois ela está sempre disposta a receber todo tipo de semente e, “quanto maior a
variedade, mais agradável é o espetáculo para os olhos, mais suave o perfume para as
narinas, maior o consolo para o coração” (COMENIUS, 1997, p. 62).
Portanto, a mente está sempre disposta a apreender as variedades do
conhecimento, desde que seja arada e despertada. Quanto à cera, esta é comparada ao
cérebro (COMENIUS, 1997, p 62). A cera pode ser moldada e remoldada, da mesma
forma que a mente, pode compreender, aprender e reaprender as diferentes formas de
conhecimento, de modo que, o homem possui toda esta capacidade, e não se aprender, o
erro só pode estar no pintor (preceptor).
Comenius afirma que, depois do pecado, nossa mente ficou “obscurecida e
involuída e não é capaz de expandir-se livremente; e aqueles a quem caberia a sua
libertação estão inibindo-a cada vez mais” (COMENIUS, 1997, p. 60). Com esse
pressuposto, afirma que “no mesmo instante em que nascemos e somos reconhecidos,
estamos já envolvidos em toda espécie de mal, de tal modo que parecemos quase sugar
os erros com o leite da ama” (COMENIUS, 1997, p. 64).
Diante disto, pode-se indagar se a não aprendizagem é proporcionada pelo
preceptor ou pelo pecado do homem. A resposta de Comenius refere-se ao preceptor,
visto que a sua função é despertar a mente dos discentes para o conhecimento: “[...] para
quem não ignora a arte de ensinar é fácil gravar o que quiser na mente do homem. Se
isso não ocorrer não é por culpa da tábua (mesmo que seja grosseira), mas por
ignorância do escritor ou do pintor” (COMENIUS, 1997, p . 62).
108
Por conseguinte, pode-se ter a compreensão da valorização da natureza no
pensamento de Comenius. Sua preocupação é que a proteção e o cuidado com a
natureza devem ser alvos de todos os homens. Por ela o homem é incitado a conhecer o
Criador; por ela, a partir de sua imitação, o homem pode encontrar o momento propício
para o início educacional e, igualmente, baseado em sua observação ele pode aprender e
ensinar de maneira mais correta. No cuidado da natureza, jamais lhe faltará alimento e
oportunidade de chegar às mais diversas variáveis do conhecimento.
109
Considerações Finais
Na atualidade uma das temáticas mais importantes é a que diz respeito ao Meio-
Ambiente. Ainda que não seja possível aplicar tal termo a João Amós Comenius, por ser
uma palavra diretamente relacionada com os tempos modernos, por outro lado, não se
pode negar que ele já apontava para esta preocupação, estando em pleno século XVII.
Por si, esta constatação pontua que ele estava à frente do seu tempo e que é um autor
clássico, uma vez que suas idéias perpassam por várias gerações, que resulta em sua
sempre atualidade. Novamente, percebe-se ao permitir a reflexão da relação do homem
com a natureza, a atualidade do seu pensamento.
Sua atualidade se deve ao princípio de que ele estava preocupado com seu
mundo, mas também de olho no futuro, por isso, à semelhança dos filósofos gregos,
como Aristóteles e outros, estava preocupado com a felicidade, não em termos
egocêntricos, porém, em descobrir antídotos contra a infelicidade,
[...] se conseguirem [...] disporão de antídotos contra a sua infelicidade
os pobres mortais, a maioria dos quais não se preocupa com o futuro,
põe em perigo o presente, todos estão em desacordo e lutam com
todos e cada um consigo mesmo (nos seus pensamentos, palavras e
acções) e, pela discórdia, arruínam-se e perecem (COMENIUS, 1971,
p. 40).
Pois bem, partindo desta visão futurista de Comenius e por causa de sua busca
pela restauração e implantação do paraíso na terra, a presente pesquisa tinha como
objetivo específico:
Identificar no pensamento de Comenius sua compreensão a respeito da relação
do homem com a natureza.
A partir deste objetivo a indagação, por sua vez consistia, em saber se ele
concebia apenas uma relação exploratória da natureza, já que a hipótese se
fundamentava no princípio de que o autor da Didática magna e da Pampaedia pareceria
diferir do pensamento de alguns de sua época que viam na natureza apenas uma
oportunidade de benefício próprio.
Após as tratativas, conforme dissertadas nesta reflexão, o que pareceria ser
apenas uma hipótese, agora se reveste de convicção, isto é que nas obras Didática
magna e Pampaedia, Comenius deixa claro que o homem e a natureza devem viver em
harmonia. Não opostos entre si, pelo contrário, ambos são obras do Criador. Fato é que
110
o homem é o ápice da criação e a ele foi dada a responsabilidade de cuidar e proteger
toda a criação de Deus, conforme visto, nos primeiros capítulos.
A ênfase comeniana de que a criação está sob o domínio do homem, não o
coloca na posição de explorador com finalidades gananciosas ou qualquer outro fato
motivador que não seja utilizar de forma adequada as riquezas da natureza para a glória
do Criador, e sim, faz dele um sacerdote encarregado de cuidar das coisas de Deus. Ele
compreendia esta relação desta maneira porque em sua concepção, a natureza e o
homem são parceiros na glorificação do Criador, no que tange especificamente a relação
do homem com a natureza, destacam-se os seguintes princípios de Comenius:
A possibilidade de o homem conhecer o Criador, por intermédio das coisas
criadas.
Enfatiza que o homem foi formado a partir da natureza. Portanto, faz parte dela e
não é seu inimigo.
As leis da natureza propiciam ao homem o método único do ensino, porque
todas as coisas são postas e funcionam exatamente em ordem.
Que os homens foram criados com a possibilidade de conhecer todas as coisas
por meio dos sentidos, de maneira que, este ao cuidar bem da natureza não lhe faltará
jamais as mais e infinitas formas do saber.
Ressalta-se, por fim, que esta pesquisa não teve a pretensão de esgotar o assunto,
em função disso, deixa o caminho aberto para futuras pesquisas tais como: o Meio-
Ambiente no pensamento de Comenius; educação voltada para um método que valorize
o estudo do meio; a comparação entre o pensamento de Comenius na Didática magna e
na Pampaedia a respeito do meio ambiente.
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