reinhold

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285 Nota de apresentação do texto SOBRE A POSSIBILIDADE DA FILOSOFIA COMO CIÊNCIA RIGOROSA, de Karl Leonhard Reinhold Ricardo Barbosa UERJ Como transitou em pouco tempo de sua Elementarphilosophie à Wissenschaftslehre de Fichte, e desta ao realismo lógico de Bardilli, o qual, porém, logo começaria a criticar, Karl Leonhard Reinhold (1757-1823) passou à história da filosofia com a triste fama de invertebrado. Sua influência não resistiu à ascensão de Fichte e à de Schelling; mas, enquanto durou, foi deter- minante para o destino da filosofia pós-kantiana: em sua busca da filosofia como ciência rigoro- sa, Reinhold deu o tom segundo o qual os que lhe sucederam afinaram suas primeiras obras. Estimulado pelo êxito de suas Cartas sobre a filosofia kantiana (1786-87), que lhe ren- deu uma cátedra especial na Universidade de Jena destinada ao desenvolvimento do idealismo transcendental, já convencido de que a Crítica da razão pura valia tanto quanto pesava – e isto pelas palavras do próprio autor, que a apresentara como “a propedêutica ao sistema da razão” (A 11, B 25), e não como o sistema mesmo –, Reinhold se pôs a refazer, por conta própria, o caminho crítico recém aberto por Kant. Embora tivesse ao menos esboçado aquele sistema ao final da primeira Crítica, como se lê no capítulo sobre “A arquitetônica da razão pura”, e na in- ANALYTICA, Rio de Janeiro, vol 13 nº 1, 2009, p. 285-289

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Pensador alemão do século XIX

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    Nota de apresentao do texto SOBRE A POSSIBILIDADE DA FILOSOFIA

    COMO CINCIA RIGOROSA, de Karl Leonhard Reinhold

    Ricardo BarbosaUERJ

    Como transitou em pouco tempo de sua Elementarphilosophie Wissenschaftslehre de Fichte, e desta ao realismo lgico de Bardilli, o qual, porm, logo comearia a criticar, Karl Leonhard Reinhold (1757-1823) passou histria da filosofia com a triste fama de invertebrado. Sua influncia no resistiu ascenso de Fichte e de Schelling; mas, enquanto durou, foi deter-minante para o destino da filosofia ps-kantiana: em sua busca da filosofia como cincia rigoro-sa, Reinhold deu o tom segundo o qual os que lhe sucederam afinaram suas primeiras obras.

    Estimulado pelo xito de suas Cartas sobre a filosofia kantiana (1786-87), que lhe ren-deu uma ctedra especial na Universidade de Jena destinada ao desenvolvimento do idealismo transcendental, j convencido de que a Crtica da razo pura valia tanto quanto pesava e isto pelas palavras do prprio autor, que a apresentara como a propedutica ao sistema da razo (A 11, B 25), e no como o sistema mesmo , Reinhold se ps a refazer, por conta prpria, o caminho crtico recm aberto por Kant. Embora tivesse ao menos esboado aquele sistema ao final da primeira Crtica, como se l no captulo sobre A arquitetnica da razo pura, e na in-

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    troduo da Fundamentao da metafsica dos costumes, Kant ainda no havia dado por encerra-do sequer o trabalho crtico. Mesmo assim, Reinhold pensava que ele no fora suficientemen-te penetrante e que era preciso retomar o problema crtico a partir de sua raiz, ainda intocada. Em outras palavras, o que faltaria para a consumao do sistema da razo seria a clara formu-lao de um princpio supremo como o princpio mesmo de sua arquitetnica. Para Reinhold, filosofia como cincia rigorosa significava: filosofia a partir de um nico princpio, um primeiro princpio, o fundamento incondicionado de todo o saber humano. Com esta exigncia, Reinhold terminou por estabelecer a problemtica originria do chamado idealismo alemo e determi-nou a direo dos debates filosficos na Alemanha por quase uma dcada.

    Para Reinhold, Kant analisara a razo distinguindo entre as diferentes espcies de repre-sentaes e as suas fontes: as representaes sensveis, provenientes da sensibilidade; as repre-sentaes conceituais, provenientes do entendimento e as representaes racionais (as idias), provenientes da razo. Pois bem, Kant distinguira entre as espcies de representaes e as suas fontes, mas no se detivera na representao em geral, no gnero. E por no ter investigado a simples faculdade humana de representao como tal, no descobrira o princpio unificante da razo enquanto a faculdade de conhecimento como um todo. Para sanar este dficit, assim pensava Reinhold, seria preciso uma teoria da faculdade de representao.

    Reinhold dedicou-se a esta tarefa e publicou em 1789 o Ensaio de uma nova teoria da facul-dade humana de representao. Nesta obra, ele formulou pela primeira vez a chamada proposio da conscincia (Satz des Bewutseins) como a expresso imediata e universalmente vlida do fato (Thatsache ou Faktum) da conscincia. Ela diz: na conscincia, a representao distinguida do sujeito e do objeto, sendo referida a ambos pelo sujeito. No entanto, esta proposio s seria alada condio de proposio fundamental (Grundsatz) nos escritos seguintes de Reinhold, logo reunidos em dois volumes e sob um mesmo ttulo: Contribuies para a retificao dos mal-entendidos ocorridos at agora entre os filsofos.1 A proposio da conscincia foi ento explicita-mente apresentada como a proposio fundamental, o ponto arquimediano do que Reinhold

    1 Beitrge zur Berichtigung bisheriger Missverstndnisse der Philosophen. No primeiro volume (1790), ensaios sobre o fundamento da filosofia elementar; no segundo (1792), sobre os fundamentos do saber filosfico, da metafsica, da moral, da religio moral e da doutrina do gosto, como se l em seus respectivos subttulos.

    NOTAS DE APRESENTAO

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    agora chamaria de filosofia elementar Elementarphilosophie, ou seja, prima philosophia. Ele a definiu como o nico sistema dos princpios possvel, sobre o qual tem de ser erguida a filosofia tanto terica quanto prtica, tanto formal quanto material,2 ou simplesmente como uma ci-ncia dos princpios comuns a todas as cincias filosficas particulares.3 Eis porque, maneira de Kant, para quem a Crtica continha a metafsica da metafsica, Reinhold propunha uma filosofia da filosofia4 ou como que antevendo a entrada em cena de Fichte uma cincia das cincias5.

    Vienense emigrado, ex-barnabita convertido tardiamente igreja reformada, Reinhold lutou pela Reformazion der Philosophie6 colocando seu fino talento argumentativo e uma oratria vibrante a servio de uma f crist esclarecida pelo esprito da crtica. Em suma, o im-pulso determinante em sua tentativa de fazer da filosofia uma cincia rigorosa, derivada de um nico princpio, foi antes de tudo prtico. Que se pense no Ensaio de uma nova teoria da faculdade humana de representao. As proposies do Livro I, Da necessidade de uma nova investigao da faculdade humana de representao, no deixam dvidas a este respeito.

    2 K. L. Reinhold, ber die Mglichkeit der Philosophie als strenge Wissenschaft, in Beitrge zur Berichtigung bisheriger Missverstndnisse der Philosophen. Erster Band das Fundament der Elementarphilo-sophie betreffend. Hamburgo: F. Meiner, 2003, p. 344 / 233.3 Idem, ber das Fundament des philosophischen Wissens. Hamburgo: F. Meiner, 1978, p. XIV.4 Idem, ber den Begriff der Philosophie, in Beitrge zur Berichtigung bisheriger Missverstndnisse der Philosophen, vol. 1, p. 55 / 44.5 Idem, ber das Bedrfnis, die Mglichkeit und die Eigenschaften eines allgemeingeltenden ersten Grundsatzes der Philosophie, in Beitrge zur Berichtigung bisheriger Missverstndnisse der Philosophen, vol. 1, p. 140 / 97.6 Idem, Wie ist Reformazion der Philosophie mglich?, in Neues Deutsches Museum, 1789 , vol. 1 , p. 31-47, 204-26, 284-304. Este e muitos outros escritos de Reinhold, como a primeira verso do que segue aqui traduzido, esto disponveis numa diviso especial do site da biblioteca da Universidade de Bielefeld: Retrospektive Digitalisierung wissenschaftlicher Rezensionsorgane und Literaturzeitschriften des 18. und 19. Jahrhundertsaus dem deutschen Sprachraum. http://www.ub.uni-bielefeld.de/diglib/au-fklaerung/index.htm

    RICARDO BARBOSA

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    At o presente, a filosofia no estabeleceu nem fundamentos cognitivos universalmente vigentes (allgemeingeltende) para as verdades fundamentais da religio e da moralidade nem as primeiras proposies fundamentais universalmente vigentes da moral e do direito natural.

    II

    Pode-se presumir com razo que esta falta do universalmente vigente tem como funda-mento a falta do universalmente vlido (Allgemeingltigen); e esta presuno conduz dvida crtica: se a filosofia pode estabelecer tais fundamentos cognitivos e proposies fundamentais.

    III

    O interesse das cincias dos nossos deveres e direitos nesta vida e do fundamento da nossa expectativa de uma vida futura e, portanto, tambm o interesse supremo da humanidade transforma esta dvida crtica na exata pergunta: como aqueles fundamentos cognitivos e pro-posies fundamentais universalmente vlidos so possveis?

    IV

    Para poder resolver este problema preciso de incio ter encontrado uma resposta univer-salmente vlida para a pergunta: o que em geral se deixa conhecer? ou: quais so os limites da faculdade humana de conhecimento?

    V

    pura e simplesmente impossvel estar de acordo sobre o conceito universalmente vlido de faculdade de conhecimento enquanto se pensa diferentemente sobre a essncia da faculdade de representao.7

    Os dois livros seguintes tratam, respectivamente, da Teoria da faculdade de representa-

    7 Idem, Versuch einer neuen Theorie der menschlichen Vorstellungsvermgen. 2 ed. Praga e Jena: C. Widt-mann e J. M. Mauke, 1796, p. 71, 120, 141, 146 e 188-9, resp.

    NOTAS DE APRESENTAO

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    o em geral ( VI XXXVII) e da Teoria da faculdade de conhecimento em geral ( XXXVIII LXXXVIII), precedidos por uma longa introduo: Sobre os destinos da filosofia kantiana at o presente. Em ltima anlise, em nome do Evangelho da razo prtica8 que a filosofia deve se apresentar como uma cincia rigorosa, pois todo interesse terico deve estar submetido s exigncias prticas relativas ao que devemos fazer (nossos direitos e deveres nesta vida) e ao que nos lcito esperar (nossas esperanas na vida futura). J se disse que Cristo anunciou o Reino e o que veio em seu lugar foi, porm, a Igreja. Paradoxo das conseqncias. Com seu evangelho, Kant lanou as bases de toda a metafsica futura; mas o que veio e por obra de Reinhold, seu apstolo foi o idealismo alemo...

    O ensaio que se vai ler o primeiro escrito de Reinhold integralmente traduzido para o portugus um exemplo significativo deste apostolado crtico. Inicialmente publicado sob o ttulo Vorschlag und Bitte an die streitenden Philosophen (Proposta e pedido aos filsofos em disputa), na revista Der Neue Teutsche Merkur, n 10, outubro de 1790, p. 134-60, foi em se-guida incorporado ao primeiro volume das Contribuies com ligeiras modificaes e um novo ttulo: ber die Mglichkeit der Philosophie als strenge Wissenschaft (Sobre a possibilidade da filosofia como ciencia rigorosa).

    A reproduo fotomecnica da verso definitiva do texto (in K. L. Reinhold, ber das Fundament des philosophischen Wissens. Hamburgo: Felix Meiner, 1978, p. 143-74) e a excelente edio das Contribuies preparada por Faustino Fabbianelli (Hamburgo: Felix Meiner, 2003 e 2004) foram as fontes da presente traduo. Ela tambm foi cotejada com a de F. Gallo in F. Gallo (org.), K. L. Reinhold, G. E. Schulze, J. G. Fichte, S. Maimon. Modelli postkantiani del tras-cendentale. Milo: Unicopli, 1993, p. 130-54 e a de F.-X. Chenet, in K. L. Reinhold, Philosophie lmentaire. Paris: Vrin, 1989.

    A paginao entre barras corresponde original das Contribuies.

    8 Carta de Reinhold a Kant: Kiel, 29 de maro de 1795, in I. Kant, AA XII: Briefwechsel Band III, 1795-1803, p. 10.

    RICARDO BARBOSA

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    Karl Leonhard Reinhold .1

    /341/ Toda disputa (Streit) honestamente conduzida entre filsofos pressupe um mal-entendido ou bem da parte de quem ataca, ou bem da parte de quem defende, ou bem da parte de ambos. Um no pode convencer-se da afirmao do outro ou bem porque no entendeu a mesma e suas razes, ou bem porque ela efetivamente falsa. Dado este ltimo caso, e se so efetivamente verdadeiras as razes mediante as quais quem ataca demonstra esta falsidade, seria impossvel que a disputa prosseguisse sem que estas razes no fossem mal-entendidas por quem defende. No se sabe que se incorreu num mal-entendido antes que se chegue razo do mal-entendido. Este nem sempre o caso, e muito raramente o em mal-entendidos filosficos; e por isso as disputas dos filsofos /342/ terminam habitualmente sem que nada seja decidido atravs delas, e ambas as partes insistem em suas prprias opinies. Se raro, porm, que um mal-entendido se manifeste em sua razo (e por isso tambm raro que seja re-

    1 : Dem-me um ponto de apoio e moverei a terra. Arquimedes. (NT)ANALYTICA, Rio de Janeiro, vol 13 n 1, 2009, p. 291-306

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    conhecido como um mal-entendido), ele com certeza e necessariamente se manifesta em seus resultados (Folge) pela diversidade de opinies, pelo mpeto refutao, numa palavra, porque -se obrigado a negar a aprovao afirmao de um outro ou bem imediatamente, ou bem em suas conseqncias (Folgestzen). Se a afirmao considerada nela mesma e imediatamente como incorreta, no raro que o mal-entendido seja suficientemente remediado quando a pro-posio negada demonstrada e, pela demonstrao, oferecida a explicao do seu sentido autntico. Porm, se uma proposio afirmada a partir de um mero mal-entendido admitida, e conseqentemente num sentido totalmente diverso daquele no qual foi estabelecida, e nega-da apenas uma de suas concluses (Folgerungen), e, alm disso, uma das mais distantes ento a disputa se torna sem fim; os partidos esto, neste caso, separados por uma proposio sobre a qual acreditam concordar e que, justamente por isso, permanece entre eles como no discutida, e quanto mais prosseguem em sua disputa, mais se afastam um do outro. Quanto mais nume-rosos os elos da /343/ cadeia pela qual a concluso disputada se conecta com o seu fundamento mal-entendido, tanto menos o autntico ponto do mal-entendido suspeitado por ambas as partes. Uma acusa a outra de ter negado um resultado (Folge) correto de premissas concedidas; a outra acusa aquela de ter afirmado como demonstrada uma proposio sem fundamento, e assim ambas ou bem se afastam uma da outra, pois se acusam reciprocamente de um pecado contra a lgica, ou bem uma exige, e a outra fornece, explicaes que, por no concernirem ao ponto do mal-entendido, enquanto uma proposio concedida por ambas as partes, tornam a disputa apenas ainda mais complicada.

    Na verdade, com muita freqncia, embora nem sempre, a curta perspiccia do esprito, a ignorncia, a precipitao, a paixo cega etc. so os motivos de tais mal-entendidos encobertos, os quais fizeram at agora do territrio da filosofia um campo de batalha no qual disputou-se tanto e concordou-se to pouco. Existem mal-entendidos entre os filsofos que so pura e simplesmente prprios filosofia mesma ou, se se prefere, ao grau de desenvolvimento no qual se encontra a razo filosofante nos seus paulatinos progressos. /344/ Enumero aqui, antes de quaisquer outros, aqueles que tm seu fundamento no lamentvel estado em que a filosofia elementar se encontra at agora ou, antes, em sua completa falta.

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    Tudo que disse nos tratados precedentes sobre filosofia elementar2 no poder impedir que uma parte dos meus leitores entenda esta cincia como ontologia, uma outra parte como lgica, ou mesmo como psicologia emprica. Portanto, esclareo mais uma vez que entendo por filosofia elementar o nico sistema dos princpios possvel, sobre o qual tem de ser erguida a fi-losofia tanto terica quanto prtica, tanto formal quanto material. Que at agora uma tal cincia no tenha se dado, fato. A filosofia elementar, como a concebo, ou bem no existe de modo algum, ou bem se apia com firmeza sobre uma proposio fundamental universalmente vlida, est concluda em todas as suas partes e exclui do seu territrio todas as disputas. Um fato no menos conhecido que (hoje mais que nunca) se discute entre os filsofos sobre os princpios dos nossos deveres e direitos nesta vida e sobre o fundamento da nossa esperana numa vida futura. Porm, que esta disputa tenha surgido e perdure por causa de mal-entendidos que tm o seu fundamento no territrio /345/ da filosofia elementar, poderia muito bem ser evidente para uma minoria dos meus leitores. Contudo, no h nada mais certo.

    Quem observa h muito tempo, com ateno e com aquele interesse exigido pela impor-tncia das matrias, a disputa sobre as primeiras proposies fundamentais da moral e do direito natural e sobre os fundamentos cognitivos das verdades fundamentais da moral e da religio, logo descobrir que faltam aqui no apenas aqueles princpios sobre os quais se disputa, mas tambm aqueles a partir dos quais e atravs dos quais se disputa. Toda a ateno dos disputantes est habitualmente voltada para as demonstraes pelas quais esperam assegurar suas propo-sies disputadas e, na conduo das prprias demonstraes, para o desenvolvimento de um conceito pressuposto por uma parte como ainda no desenvolvido pela outra. Alm disso, o fundamento (Fundament) das demonstraes e do desenvolvimento habitualmente tanto mais negligenciado quanto mais se cr que ele expresso e assegurado mediante proposies das quais se sabe que so concedidas pela outra parte. Mal se pensa neste fundamento, justamente

    2 Sobre a possibilidade da filosofia como cincia rigorosa o quinto dos seis trabalhos reunidos no primeiro volume de Beitrge zur Berichtigung bisheriger Missverstndnisse der Philosophen, que so os seguintes: 1. Sobre o conceito da filosofia, 2. Sobre a necessidade, a possibilidade e as propriedades de uma primei-ra proposio fundamental universalmente vlida da filosofia, 3. Nova exposio dos momentos principais da filosofia elementar. Primeira parte. Doutrina fundamental, 4. Sobre a relao da teoria da faculdade de representao com a Crtica da razo pura, 5. Sobre a possibilidade da filosofia como cincia rigorosa e 6. Discusses sobre o Ensaio de uma nova teoria da faculdade de representao. (NT)

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    porque ele indiscutvel, porque est decidido (ausgemacht); e porque unicamente o disputa-do e a ser decidido flutua diante do esprito; /346/ e assim, por um engano talvez peculiar aos filsofos, o meio esquecido em nome do fim. Sem proposies admitidas como decididas, no h dvida de que nenhuma prova possvel; mas o fato de uma proposio ser admitida como decidida ainda no significa de modo algum que ela seja inteiramente apta para servir de fundamento (Grund) de uma demonstrao. Esta aptido depende da conexo da proposi-o com a prova erguida sobre ela ou com a cadeia de proposies de que consiste a prova; e a correo daquela conexo necessria depende da inteira determinidade da proposio admitida. Ora, como nos nossos mtodos atuais de filosofar as provas so raramente expostas na sua for-ma logicamente determinada; como so expressamente estabelecidos apenas os elos da cadeia considerados mais importantes; como muitas, e diferentes, afirmaes so pressupostas como decididamente admitidas, e as proposies que devem ser discutidas so misturadas com outras que no devero carecer de nenhuma discusso, pois suficientemente compreensvel como possa ocorrer que, pelas provas dos nossos disputantes filosficos, o disputado, apesar de todo o no-disputado, pelo qual ele deve ser apaziguado, permanea sempre disputado no s para os seus adversrios como tambm para espectadores apartidrios, at que seja removido por uma nova questo disputada /347/, cujo germe j se encontrava na anterior.

    No de modo algum indiferente de onde tomada a proposio tida como decidida (das Ausgemachte) que posta base de uma prova filosfica, e pelo que ela seja decidida. Para persuadir a grande multido no mundo filosfico e fora dele, permite-se ater-se apenas aos preconceitos dominantes. E mesmo para embaraar algum que pensa por si mesmo (einen Sel-bstdenker), raramente faltaro opinies prediletas e afirmaes precipitadas deste pensador que se possa utilizar com proveito para argumentar ex concessis3 contra ele. A histria das disputas sobre a filosofia kantiana oferece suficientemente exemplos muito notveis e novos deste pro-cedimento. Mas o filsofo, para o qual importa mais o proveito da cincia que ele elabora que o convencimento e a humilhao do seu adversrio, rejeitar no s os artifcios dos sicofantas como tambm todas as razes que no so filosficas em sentido prprio e que, recebidas da vida comum no territrio da cincia, tm de provocar no mesmo a desordem e a confuso. O que ele admite como decidido tem de ser filosoficamente decidido; nativo do territrio da /348/

    3 Argumenta ex concessis quem argumenta a partir do que concedido pelo adversrio. (NT)

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    filosofia, tem de ser ou bem determinado por razes filosficas, ou bem ser a prpria primeira proposio fundamental de toda a filosofia.

    O que filosoficamente decidido no se deixa reconduzir nem a dados histricos nem a fenmenos naturais. Ele tem de ser ou bem uma proposio fundamental filosfica universal-mente vlida, ou bem determinado por uma tal proposio. Mas o que significa agora toda pro-posio fundamental filosfica! Desde que a escola leibniz-wolffiana foi suplantada pela maneira emprica, ecltica ou popular de filosofar, raramente se ouve que os partidos em disputa invocam proposies fundamentais universalmente vlidas. Segundo uma opinio bastante universal e admitida por muitos excelentes escritores, prprio ao carter daquele que pensa por si mesmo ter de possuir e estabelecer suas prprias proposies fundamentais. O que est decidido, sobre o qual ele ergue estas proposies fundamentais, e do que ele pode tanto menos prescindir quan-to mais suas proposies fundamentais lhe so prprias, significa habitualmente para ele um ditame (Ausspruch) do sadio entendimento humano e, enquanto um tal ditame, sustentado como to pouco carente quanto capaz de toda prova. Na medida ento que deduziu por raciocnio sua prpria proposio fundamental a partir de uma proposio indemonstrvel, /349/ ele acredita t-la elevado posio de uma proposio filosfica fundamental, e o seu adversrio seria pro-clamado como altamente intolerante ou inculto caso quisesse contestar esta posio. Assim, em quase todo tratado filosfico, as proposies fundamentais neles usadas so antes produzidas e cunhadas de novo. Que o que admitido como decidido, o qual posto aqui como funda-mento, soe diferente em cada um destes escritos e no tenha meramente uma outra frmula, e sim at contenha conceitos diversos, ningum estranha, enquanto pressupe-se que o sadio entendimento humano, que oferece filosofia os ltimos princpios indemonstrveis, tenha de concordar consigo mesmo apesar de toda diversidade no apenas de expresso, mas tambm das espcies de representao, embora no se possa compreender o como disto.

    Todavia, o que admitido como decidido pode ser admitido pelo filsofo disputante que o estabelece ou bem como ditame imediato do sadio entendimento humano, ou bem como um teorema da razo filosofante demonstrado enfim por aquele ditame; assim, porm, o fil-sofo nunca pode estar seguro se o seu adversrio no conecta com a frmula conceitos que ao menos /350/ contenham uma ou outra nota que se encontre em contradio direta com o significado no qual ele estabelece aquela frmula, sem que o adversrio, que ento tinha em vista apenas as notas comumente admitidas, por isso admita a proposio como menos certa.

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    Com bastante freqncia so consideradas como decididas proposies infundadas estabele-cidas por um partido e admitidas pelo outro simplesmente porque no so acompanhadas por fundamentos que, caso estivessem dados, mostrariam com suficiente clareza que a proposio est estabelecida por um dos disputantes num sentido que o outro jamais teria concedido. Na velha polmica sobre a natureza da alma, o materialista concede ao espiritualista a proposio segundo a qual nenhuma coisa pode ser e no ser ao mesmo tempo; o espiritualista entende aqui por coisa a substncia da coisa em si, o materialista, ao contrrio, uma mera qualidade desta substncia. A partir desta proposio, um concluiu que a substncia, que se chama alma, e cuja unidade absoluta ele provou, uma unidade absoluta e justamente por isso no pode consistir de partes; o outro, ao contrrio, admite tanto aquela proposio quanto a unidade absoluta, mas apenas como uma qualidade da substncia, que /351/ no exclui a multiplicidade das partes e sim antes a pressupe.

    A proposio decidida assegurada contra todo mal-entendido oculto apenas na medida em que est inteiramente determinada por ambos os disputantes. Mas como se pode estar certo de que uma proposio qualquer satisfaa esta condio de uma verdadeira proposio funda-mental se os conceitos que lhe esto vinculados no foram previamente esgotados mediante um desmembramento completo e correto, e se no se sabe se isto tambm foi feito pelo outro partido? Alis, a partir de que se pode estar certo que de um lado ou de outro ou de ambos no foi admitida uma nota a mais ou a menos na reunio das vrias notas que constituem o con-ceito do sujeito ou do predicado ou de ambos? Porventura a partir de que sujeito e predicado so designados por palavras de cujo significado tem-se explicaes admitidas ou bem univer-salmente ou bem por ambos os disputantes? Mas isto vale, por sua vez, para as palavras que aparecem nestas explicaes ou antes para os seus significados? Para cada palavra da explicao existem, por sua vez, tais explicaes; e ascendendo a partir destas at proposies em meio as quais toda explicao impossvel, que /352/ possuem evidncia imediata para qualquer um que as pensa, e por isso esto to bem asseguradas contra todo mal-entendido enquanto universalmente vlidas? Suponhamos tambm que uma proposio admitida como decidida e posta como fundamento de outras seja, porm, concedida por ambos os partidos e que at ambos expliquem seu sujeito e predicado atravs da mesma frmula; se, no entanto, em um s dos conceitos que compem o sentido verbal (Wortsinn) desta frmula explicativa, uma ou mais notas das quais ele composto no so corretas; se um dos disputantes admite uma nota supr-

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    flua e o outro deixa de lado uma nota essencial, ento a proposio admitida por ambos tem de confundir a disputa que deve ser resolvida por meio dela e dificultar sua concluso quanto mais profundamente o novo mal-entendido, mediante o qual o antigo ampliado, permanece oculto para ambos os disputantes. Assim, por exemplo, em muita disputa sobre a natureza da alma, aceita por ambos os partidos a proposio: a sensibilidade imprescindvel para o conhecimento; e ambos explicam o termo sensibilidade com a frmula: a faculdade da alma de receber impresses. Contudo, um dos disputantes entende com o termo impresses representaes efetivas /353/ e a sensibilidade para ele, neste caso, no uma espcie da faculdade representativa, mas o gnero mesmo. O outro entende por impresses nada seno motivos externos, pelos quais a capacidade de produzir representaes expressa sua faculdade, alis, independente da sensibilidade; e a sensibilidade para ele, neste caso, uma propriedade contingente da faculdade de representa-o. Em sua reunio de todas as notas, um pensa uma nota a mais e o outro uma a menos; e sua convico comum acerca da imprescindibilidade da sensibilidade est to longe de aproxim-los que antes tem de afast-los muito mais.

    Nenhuma proposio determinada integralmente apenas por outras proposies pode ser assegurada contra mal-entendidos e admitida na filosofia enquanto uma proposio fundamen-tal absolutamente primeira, assim como no pode ser estabelecida sem discusso, em disputas filosficas, com segurana contra mal-entendidos. A proposio fundamental absolutamente primeira, caso exista uma tal, no deve e no pode receber a determinao completa do seu sentido atravs de nenhuma outra proposio; e, conseqentemente, tem de estar garantida por si mesma contra todos os mal-entendidos. /354/ As notas dos conceitos que so estabelecidos por ela tm ento de poder ser determinadas por ela mesma; elas no se deixam derivar de quaisquer outras notas e, conseqentemente, tm de estar contidas nela como as notas originariamente ltimas de tudo o que representvel. (A meu ver, isto no pode valer para nenhuma outra pro-posio que no a proposio da conscincia.4 Os conceitos de sujeito, objeto e representao, que

    4 Diferentemente do Ensaio de uma nova teoria da faculdade humana de representao, no qual a proposio da conscincia figura como o VII, na Nova exposio dos momentos principais filosofia elementar. Primeira parte. Doutrina fundamental, ela o motivo de abertura:

    A proposio da conscincia

    I. Na conscincia, a representao distinguida do sujeito e do objeto e referida a ambos pelo sujeito.

    KARL LEONHARD REINHOLD

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    so estabelecidos atravs dela, so determinados por ela mesma ou pela ao de distinguir e referir que ela expressa. Eles no se deixam derivar de nenhuma outra nota, brotam (quillen) imediatamente da conscincia expressa por esta proposio e so as notas originrias ltimas de tudo o que representvel. A proposio da conscincia , pois, uma proposio integral-mente determinada por si mesma e, na verdade, a nica possvel; pois todas as demais podem estabelecer apenas conceitos que so determinveis por outras proposies e cujas notas tm de ser reconduzidas necessariamente, afinal, quelas que esto originariamente determinadas na proposio da conscincia).

    Seja a proposio determinada por si mesma qual for e como se chame: somente ela pode ser /355/ a proposio certa (das Ausgemachte) que pode ser admitida sem receio de um poss-vel mal-entendido. Qualquer outra proposio pode ser utilizada como proposio assegurada contra todo mal-entendido apenas na medida em que foi determinada por meio da proposio determinada por si mesma. Portanto, enquanto a proposio determinada por si mesma no for

    Esta proposio nada expressa aqui imediatamente a no ser o fato (Tatsache) que ocorre na conscincia; em contrapartida, ela expressa apenas mediatamente os conceitos de representao, sujeito e objeto, quer dizer, na medida em que so determinados por aquele fato.

    Antes da conscincia no h nenhum conceito de representao, objeto e sujeito; e estes conceitos so origina-riamente possveis apenas pela conscincia, na qual e pela qual a representao, o objeto e o sujeito so primei-ramente distinguidos uns dos outros e referidos uns aos outros. As notas caractersticas originrias sob as quais os trs componentes da conscincia a representao, o objeto e o sujeito aparecem no podem ser obtidas por nenhuma abstrao a partir de quaisquer objetos representados, na medida em que so as notas caracte-rsticas originrias; pois todo objeto pressupe a representao pela qual ele representado e o representante para o qual ele representado como algo distinguido dele e referente a ela na conscincia. Portanto, as notas caractersticas pertencentes representao, ao objeto e ao sujeito, na medida em que so componentes da conscincia, brotam (quillen) imediatamente da prpria conscincia, sem nenhuma abstrao, no pressupondo, nesta medida, absolutamente nenhum raciocnio, e precedem toda a filosofia.

    A proposio da conscincia no pressupe, portanto, nenhum conceito filosoficamente determinado de repre-sentao, objeto e sujeito, uma vez que so primeiramente determinados e estabelecidos nela e por ela. Estes conceitos podem ser expressos apenas por proposies que recebem o seu sentido pela proposio da consci-ncia, esto totalmente contidas nela e so imediatamente derivadas dela. Cf. K. L. Reinhold, Neue Darstel-lung der Hauptmomente der Elementarphilosophie. Erster Teil. Fundamentallehre, in Beitrge zur Berichtung der bisherigen Mivertndnisse der Philosophen. Erster Band, das Fundament der Elementarphilosophie betreffend. Hamburgo: Felix Meiner, 2003, p. 167-8 / 113-4. (NT)

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    encontrada e estabelecida na filosofia, todas as proposies admitidas como certas (als ausgema-cht) possuem o carter da certeza (der Charakter des ausgemachten) apenas num sentido muito imprprio e muito oscilante; todas elas, sem exceo, poderiam ser compreendidas corretamen-te somente por acaso, e no h meio seguro para assegur-las contra mal-entendidos ocultos.

    A proposio determinada por si mesma pode e tem de ser uma proposio universalmente vlida. Uma proposio que no integralmente determinada pode ser estabelecida como uma propo-sio certa (als ein Ausgemachter) a partir de um simples mal-entendido. Este sempre o caso se a razo (Grund) na ligao do predicado com o sujeito se encontra numa nota suprflua, despercebidamente admitida nos conceitos, ou numa ausente, despercebidamente suprimida do mesmo; mas isto, caso tivesse sido notado, teria tornado impossvel o juzo. Nestes /356/ casos, a proposio estabelecida e sustentada como decidida por um dos disputantes tem de ser negada pelo outro que pensa corretamente aqueles conceitos. O contrrio tambm pode ocorrer e a proposio verdadeira estabelecida como certa pode ser negada pelo outro que ad-mite nos conceitos da mesma uma nota suprflua ou dela suprime uma nota essencial. Isto impossvel no caso da proposio determinada por si mesma. Como as notas que ela contm so integralmente determinadas pela prpria ao de julgar, ela ou bem no pode ser de modo algum pensada, ou bem tem de ser corretamente pensada; e, nesse caso, ela no se deixa nem afirmar nem negar a partir de um mal-entendido. As notas dos conceitos no so pressupostas nela como determinadas por outras proposies, e sim postas somente como determinadas por ela mesma. Para que nos tornemos inteiramente conscientes das notas originrias dos seus conceitos, no preciso, no caso desta proposio, nenhum raciocnio (Raisonnement), no qual pressupostos incorretos poderiam introduzir-se furtivamente, e sim a simples reflexo (Refle-xion) sobre a significao das palavras, que determinada por ela mesma para o fato (Thatsache) que ela exprime. Ela no precisa de premissas; ela no permite nenhuma premissa, e sim ela mesma estabelece tudo de que ela precisa para ser compreendida. /357/ (Se e at que ponto este o caso na proposio que nada expressa seno o fato da conscincia (das Faktum des Bewusst-seins), pode permanecer no decidido aqui. Afirmo apenas que esta proposio, se ela uma proposio integramente determinada por si mesma, e at que ponto ela uma tal proposio, ou bem no pode de modo algum ser pensada, ou bem est assegurada, pelo seu prprio vir-a-ser-pensada, contra mal-entendidos e , neste caso, universalmente vlida).5

    5 Vide nota 4. (NT)

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    A proposio determinada por si mesma pode ser apenas uma nica. Na medida em que deter-minada por si mesma, nenhuma outra proposio, pela qual ela ou alguma de suas notas fosse determinada, pode preced-la. As notas que ela estabelece no podem pois tambm estar contidas sob notas mais altas e mais universais, e sim tm de ser elas mesmas as mais altas e as mais universais. Se se pudesse pensar uma nota mais alta e mais universal que no estivesse determinada por ela e nela, as notas contidas nela teriam de ser pensadas como subordinadas a esta como a nota superior e, neste caso, determinadas pela mesma; portanto, no haveria uma proposio determinada por si mesma. Assim, ela tem de estabelecer as notas mais altas e mais universais que se deixam representar, e, neste caso, aquela que comum a tudo que representvel; conseqentemente, /358/ o gnero supremo representvel. Como este s pode ser um nico, ela tem de ser tambm essencialmente nica enquanto a proposio que deter-mina o nico gnero supremo possvel. (Tenho de deixar aqui, mais uma vez, aos mais pers-picazes pensadores entre os meus leitores descobrir se podem pensar uma proposio que, na srie das proposies subordinadas, pode preceder a proposio da conscincia e se a nota da representabilidade, que estabelecida imediatamente por ela, no a nota mais alta e mais universal entre tudo que representvel. Mais universal certamente a nota do pensvel, ou seja, do representvel pelo entendimento que, no conceito ambguo de uma coisa, foi tido at hoje como o mais universal).

    A partir do momento em que a proposio determinada por si mesma, seja ela qual for, est encontrada, a filosofia v-se em posse de uma nica proposio suprema universalmente vlida que, neste caso, , pois, no sentido mais rigoroso, uma proposio fundamental e, na ver-dade, a proposio fundamental de todas as proposies fundamentais, a primeira proposio fundamental, no da metafsica, no da lgica, e sim da filosofia. Na medida em que se carece de uma proposio fundamental para estar-se assegurado contra mal-entendidos, tudo que ad-mitido como certo (ausgemacht) tem de ser ento mediata /359/ ou imediatamente determinado por esta primeira proposio. Eu digo na medida em que se carece de uma proposio fundamental; e repito que no se trata aqui nem de dados histricos nem de dados fsicos, que se trata aqui somente de problemas propriamente filosficos e principalmente das razes ainda incertas dos nossos direitos e deveres e da nossa expectativa alm-tmulo. Eu digo mediata ou imediatamente e deveria ser evidente que tudo que pode e tem de ser estabelecido na filosofia como proposio fundamental no pode estar contido imediatamente sob a primeira proposio pensvel. No en-tanto, no pode haver na filosofia uma proposio fundamental pensvel que no tivesse de es-

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    tar subordinada mediatamente primeira proposio fundamental, se ela deve ser integralmente determinada. Toda proposio fundamental tem de ao menos depender, pelas suas premissas, ou seja, pelas suas notas mais altas, que esto reunidas no seu sujeito, da primeira proposio fundamental como do ltimo elo seguro no qual por fim convergem todos os encadeamentos de conceitos filosoficamente determinados e so todos eles aferrados.

    Se a proposio determinada por si mesma no deve ser usada abusivamente, se ela deve ser utilizada com sucesso na disputa dos filsofos sobre os fundamentos dos nossos /360/ de-veres e direitos etc., ento, antes de todas as coisas, a filosofia elementar tem de ser construda sobre ela. A primeira proposio fundamental de toda a filosofia nada estabelece seno as notas mais altas e mais universais de todo o representvel como tal e, na verdade, como integralmente determinada, mas de modo algum como integralmente desenvolvida. Antes que um desenvol-vimento completo tivesse desmembrado tudo que est reunido nas notas determinadas pela primeira proposio fundamental, ela em verdade poder ser corretamente pensada, mas tem de permanecer estril. No nos tornaremos claramente conscientes das notas genricas (Gat-tungsmerkmale) nela contidas para os conceitos e proposies fundamentais subordinados, e assim estaremos sempre no perigo de, em sua aplicao aos ltimos, omitir notas essenciais ou deixar que se introduza furtivamente uma nota suprflua. (Se a proposio da conscincia a pri-meira proposio fundamental da filosofia, o desenvolvimento completo das notas da simples representabilidade em geral, determinada por ela, constitui a teoria da faculdade de representao em geral e esta, a base da filosofia elementar mas tambm somente a simples base).

    Aps o desenvolvimento completo daquilo que determinado na proposio que se de-termina a si mesma /361/, trata-se antes de tudo de descobrir e estabelecer aqueles conceitos ou proposies que no esto contidos nela, mas imediatamente sob ela. Entendo por isto aqueles conceitos ou proposies que esto para o primeiro princpio como as espcies para o seu gne-ro prximo e, conseqentemente, estabelecem notas que so subordinadas s suas, mas que no esto contidas nelas. Se se salta por sobre estes conceitos ou proposies, a primeira proposio fundamental e a base da filosofia elementar estabelecida atravs dela tornam-se inteiramente inteis para o seu fim. Na disputa, por exemplo, sobre as primeiras proposies fundamentais da moral e do direito natural, as proposies fundamentais propostas destas cincias no podem de modo algum ser ento reconduzidas s primeiras proposies fundamentais de toda filosofia e examinadas segundo estas, pois os conceitos intermedirios, as proposies fundamentais in-

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    termedirias esto ausentes. Todo conceito genrico que no est imediatamente determinado pela proposio fundamental absolutamente primeira tem de resistir a todas as tentativas para desenvolv-lo com sucesso enquanto os gneros intermedirios situados entre ele e o primeiro de todos permanecerem indeterminados e no-desenvolvidos. Caso tambm apenas um nico seja omitido, ento, justamente por isso, nas premissas do gnero subordinado e da proposio /362/ que o exprime esto contidas notas indeterminadas que s por um acaso podem ser asse-guradas contra a incorreo. Se a nota imediatamente prxima omitida, e por isso passou-se imediatamente nota mais distante, ou bem falta entre as notas do ltimo uma nota essencial ou bem a mesma substituda por uma nota estranha. (As proposies fundamentais que esto imediatamente sob a proposio da conscincia so proposies que expressam as espcies par-ticulares de conscincia: 1) a conscincia da representao, 2) a conscincia do sujeito ou a au-toconscincia, 3) a conscincia do objeto como tal que se chama conhecimento, na medida em que elevada conscincia do que representado como distinto do objeto representado e do sujeito da representao, e, conseqentemente, na medida em que acompanhada pelas duas primeiras espcies de conscincia. As proposies que expressam estas trs espcies de consci-ncia so determinadas pela proposio da conscincia apenas no que tange nota genrica nelas contida, conscincia em geral; no que tange s notas prprias a cada uma das mesmas, e que distinguem a espcie de conscincia expressa pela proposio tanto do gnero como das demais espcies, cada proposio no , por sua vez, menos determinada por si mesma que a propo-sio da conscincia em geral; /363/ como esta, pelo simples fato (Thatsache) que ela expres-sa, cada uma evidente sem raciocnio, por reflexo, e, nessa medida, universalmente vlida. Assim como o conceito de representao e do representvel em geral tem de ser integralmente determinado pela proposio da conscincia, como o gnero supremo, e ser integralmente de-senvolvido a partir dela, os conceitos das espcies particulares de representao, por exemplo, da representao sensvel, da intelectual (verstndigen) e da racional, e do representvel pela sensibilidade, pelo entendimento e pela razo, tm de ser integralmente determinados e inte-gralmente desenvolvidos a partir das proposies da conscincia particular como as espcies prximas imediatas do representvel. Estes desenvolvimentos constituem assim o contedo das teorias da faculdade de conhecer em geral, portanto da sensibilidade, do entendimento e da razo, pelos quais a filosofia elementar est esgotada. Ela , enquanto filosofia elementar, a cincia do que imediatamente determinado pela conscincia e das proposies universalmente

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    vlidas, determinadas por si mesmas, que expressam esta conscincia; a cincia das representa-es como tais e, conseqentemente, tambm do representvel em geral e do representvel pela sensibilidade, pelo entendimento e pela razo; a cincia das formas das /364/ representaes, e, nessa medida, nem filosofia terica, nem filosofia prtica, mas a premissa para ambas. A simples representao, o gnero com as suas espcies, o objeto da filosofia elementar; a representao referida ao objeto, o gnero com suas espcies, o objeto da filosofia terica, e a representao referida ao simples sujeito, o gnero com suas espcies, o objeto da filosofia prtica).

    Nem a filosofia terica nem a filosofia prtica podem ser elaboradas com algum sucesso como cincias realmente estabelecidas, asseguradas contra todo mal-entendido e universal-mente vlidas em seus princpios, antes que a filosofia elementar seja inteiramente estabelecida sobre o seu fundamento. Enquanto uma nica nota pertencente essencialmente ao mbito da filosofia elementar permanecer indeterminada e no desenvolvida, as premissas que so pres-supostas pelas proposies fundamentais da filosofia terica e da filosofia prtica, e que tm de apresentar-se nelas como conceitos genricos, esto incompletas e, conseqentemente, tam-bm as prprias proposies fundamentais no esto integralmente determinadas, so oscilan-tes, ambguas e nada adequadas para a convico geral daquele que pensa por si mesmo.

    /365/ Deveria ento ser muito atrevimento de minha parte se, dirigindo-me a vs, que, em minha nao, pensais por vs mesmos, que tendes declaradamente vocao e laser para filosofar, e em nome da nica coisa da qual a humanidade carece e do que, depois disto, tem de ser para vs o mais sagrado, a razo que nos comum, vos rogo que suspendam toda disputa sobre as pri-meiras proposies fundamentais dos nossos deveres e direitos nesta vida e sobre o fundamento das nossas esperanas na vida futura, toda disputa sobre a superioridade da filosofia kantiana, leibniziana, lockeana ou de qualquer outra e mesmo tambm todas as tentativas de examinar, refutar, provar, discutir as proposies fundamentais lockeanas, leibnizianas, kantianas ou de qualquer outro escritor, at que vs tenhais levantado, investigado e decido a questo sobre a nica coisa de que a filosofia carece e, nesse caso, de que todos vs careceis conjuntamente!

    O resultado de todos as vossas disputas at agora foi sempre apenas uma nova questo disputada. Amigos da filosofia crtica! Com razo considerais a disputa entre Leibniz e Locke sobre o racionalismo e o empirismo, assim como a disputa entre Hume e os dogmticos sobre o ceticismo e /366/ o dogmatismo como decididas pela crtica da razo. Mas vossa filosofia, o

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    resultado desta deciso, encontra-se por isso menos atacada? E j houve uma contenda mais abstrusa que a atual entre os defensores e os adversrios da vossa filosofia? Considero o Ensaio sobre a faculdade de representao6 como o resultado que extra dos pontos de disputa entre os kantianos e os antikantianos, para cujo acordo desejei contribuir atravs dele mesmo. Contudo, minha teoria est nas mos do pblico h ainda quase um ano;7 e cabe aos seus amigos o con-fronto j tanto com os kantianos quanto com os antikantianos. Qualquer outro novo ensaio que no parta de algo realmente universalmente vlido e que no se ocupe, a despeito de tudo mais, da discusso desta validade universal no carter da primeira proposio fundamental tem de ter necessariamente justo este destino; e seu resultado mais feliz no pode ser nenhum outro seno o de fazer esquecer uma antiga disputa por uma nova.

    Vs, homens, que no achais esta tentativa indigna do vosso exame! Se quereis que eu deva tornar-me sensvel ao benefcio do vosso ensinamento, /367/ ento ou bem parti comigo da proposio fundamental que considero como uma proposio universalmente vlida ou bem dirigi toda a acuidade de vossa crtica contra esta nica proposio. Mas, nesse caso, vs mes-mos tendes de partir de uma outra proposio universalmente vlida se vos empenhais em no ser mal-entendido por mim e pelos seus demais leitores.

    preciso que seja possvel uma proposio universalmente vlida como primeira pro-posio fundamental, ou a filosofia impossvel como cincia; e os fundamentos dos nossos deveres ticos e dos nossos direitos, e, conseqentemente, estes deveres e direitos mesmos tm de permanecer eternamente incertos; e o acaso tem de conservar eternamente na conduo dos assuntos humanos o papel que, segundo a vossa convico, vs, nobres homens, devido razo. Vs quereis derrubar o acaso do trono da razo; e cedeis a ele mesmo a conduo da con-tenda que vs lhe declarastes. ele que ocupa o lugar do princpio supremo da vossa filosofia enquanto vs o deixais desocupado. Depender dele, doravante como at agora, se as obras do vosso esprito podero (drften) ser ou no compreendidas por alguns, em alguns pontos e de vez em quando; e o destino dos frutos mais nobres de vossa /368/ aplicao e dos vossos talen-tos depender na maior parte do seu humor.

    6 Reinhold se refere ao seu Ensaio de uma nova teoria da faculdade humana de representao (1789). (NT)7 O primeiro volume das Contribuies apareceu em outubro de 1790 portanto quase um ano depois do Ensaio, lanado por ocasio da feira (de livros) de So Miguel, ou seja, em setembro de 1789. (NT)

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    Pode vos ser indiferente que, devido a um mal-entendido, vs sejais elogiados e repro-vados at mesmo pelos que so afins ao vosso esprito e corao, por aqueles para quem vs inicialmente pensastes e escrevestes? O que deve ser para vs o assentimento que no vos pode recompensar, a reprovao que no vos pode instruir, posto que se equivocaram quanto vossa opinio?

    Quanto mais profundamente vossa disputa intervm no territrio da especulao, e este tem de ser o caso com cada uma das vossas obras que estabelecem um novo ponto de disputa, menor o nmero daqueles que tm tempo, talento, prazer e vocao no s para ser porventu-ra um participante, como tambm s um espectador da disputa. Entre os poucos que continuam a lev-la, a maior parte composta de sofistas (Grblern) frios e hipocondracos aos quais, uma vez esgotada a fonte da sensao, interessa a especulao apenas enquanto especulao, e para os quais o seu jogo de pensamento pode permanecer atraente apenas atravs de uma cavilao (Spitzfndigkeit) sempre crescente a outra parte composta de jovens ruidosos que, com seus primeiros lances, embuam o campo de luta na poeira.

    /369/ H muito tempo diminui visivelmente a influncia da filosofia sobre as demais ci-ncias e cresce a indiferena dos curadores e amigos destas em face daquela. A teologia e a jurisprudncia j mal a reconhecem como a velha serva; e mesmo os telogos e juristas mais esclarecidos, orgulhosos do que realizaram com o auxlio da histria, acreditam poder passar sem ela. Quanto tendes de achar isto perdovel, vs, filsofos, se considereis quo amargo tem de tornar-se, mesmo para a melhor cabea que aferra o seu ofcio aos inumerveis trabalhos do homem de negcios ou do erudito, avanar pelos caminhos espinhosos da especulao at o vosso santurio, o qual vos leva cada vez mais longe do mbito do mundo efetivo e cada vez mais profundamente para o reino das possibilidades; quo justa tem de ser a indignao de uma tal cabea se neste santurio, no conselho superior dos que pensam por si mesmos por profisso, no recebe nenhuma outra explicao seno uma que recusada por trs partidos con-tra um nico.

    /370/ Somente atravs de um princpio universalmente vlido a filosofia pode e tem de ver-se livre da vergonha de ser, no tocante s demais cincias, ou bem uma escrava ou bem totalmente inutilizvel. Atravs deste princpio ela se torna, no sentido mais rigoroso, a rainha de todas as cincias, que lhe concedero esta posio sem inveja e de boa vontade to logo ela

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    estiver em condies de lhes dar a solidez e a dignidade de verdadeiras cincias, que ela lhes prometeu em vo at hoje e que, no entanto, estas no podem receber de outra parte.

    Vs, homens, que me compreendeis quando se trata da nica coisa de que a humanida-de carece!, vs que, onde importa agir, vos reconheceis por um olhar, por um aperto de mos, como filhos de um nico e o mesmo esprito!, vs que possus uma nica vontade!, deveis ter de permanecer eternamente entre vs mesmos vossos mais terrveis inimigos to logo tomais a pena para expressar o que pensais neste mesmo querer no qual vos reconheceis como irmos? Por menor que seja vossa pequena multido dispersa sobre a face da Terra, /371/ por pouco que podeis, para conseguir vossos fins, repelir com astcia e violncia a astcia e a violncia dos vossos adversrios; vs sois, no entanto, os mais fortes desde o momento em que partis, no vosso pensamento fraco e aberto, de uma proposio fundamental universalmente vlida para vs. Pela primeira e mais prpria fora da humanidade, pela razo, para e pela qual lutais contra a estupidez e a ignorncia, tereis de ter sido j desde muito tempo os mais fortes se no tivestes sido forados a opor-se uns aos outros. Somente por vossa luta uns contra os outros, na qual um sempre demole o que o outro construiu, vs podeis e tendes de aniquilar vossa reputao e vossa influncia. E esta luta, intil desde que encontrado um primeiro princpio, tem de con-tinuar eternamente, com todas as suas conseqncias infelizes, sem realizar o fim de toda luta racional, a paz, enquanto a primeira proposio fundamental do qual partis em vossas investi-gaes no for justamente a coisa nica e comum a todos vs, como a lei segundo a qual o Deus /372/ em ns, a razo ativa, determina o vosso querer e funda, apesar de toda diversidade dos modos de representao dos espritos (der Kpfe), a bela concrdia dos coraes, que assim tem de ser necessariamente conquistada, se bem que sua origem genuna no mais ser um segredo para nenhum de vs.

    Traduo de Ricardo Barbosa

    UERJ

    Recebido em 10/2009 Aprovado em 12/2009

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