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REHRevista Eletrônica Estudos Hegelianos

(Revista Semestral da Sociedade Hegel Brasileira - SHB)

Ano 5nº 8 , Junho - 2008

ISSN 1980-8372

REVISTA ESTUDOS HEGELIANOS, Ano 5, Nº 8, JUN -2008

ExpedienteRevista Eletrônica Estudos Hegelianos - ISSN 1980-8372

Sociedade Hegel Brasileira - SHBSede: Av. Acad. Hélio Ramos, s/n - 15º andar - Cidade Universitária

CEP 50740-530 RECIFE - PE (Depto. Filosofia-UFPE)

Editor: Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO-PR)

Conselho editorial

Alfredo de Oliveira Moraes (UFPE)Agemir Bavaresco (PUCRS)Denis Lerrer Rosenfield (UFRGS)Draiton Gonzaga de Souza (PUCRS)Marcos Lutz Müller (UNICAMP)Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO-PR)Marly Carvalho Soares (UECE)Paulo Gaspar Meneses (UNICAP)Konrad Christoph Utz (UFC)

Conselho científico

Diogo Falcão Ferrer (Universidade de Coimbra)Edmundo Balsemão Pires (Universidade de Coimbra) Jean-Claude Bourdin (Université de Poitiers) Jean-Louis Vieillard-Baron (Université de Poitiers)José Pinheiro Pertille (UFRGS)Hans-Christian Klotz (UFSM)Leonardo Alves Vieira (UFMG)Manfredo Araújo de Oliveira (UFC)Marco Aurélio Werle (USP)

Secretário de edição: Danilo Vaz Curado Ribeiro (Grupo Hegel/Neal-PE)

Diagramação: Matheus Barreto Pazos de Oliveira (RDT)

Revisão: André Luís Tavares (RDT); Márcia Isse; Juliana Albuquerque (Grupo Hegel/Neal-PE); Jeferson da Costa Valadares; Clemilson Pereira Teodoro.

Revisão geral: Manuel Moreira da Silva (UNICENTRO-PR)

Aceitamos livros para resenhaManuel Moreira da SilvaDepto. de Filosofia da UNICENTRO/PRRua Presidente Zacarias, 875 - Cx. Postal 3010Fone 55 42 3621-1097 - Fax 55 42 3621-1090CEP 85015-430 - Guarapuava/PR - Brasil

Indexação: QUALIS, Capes, Brasil; LATINDEX, México; SUMÁRIOS, Funpec-RP, Brasil;DIALNET, Espanha.

Materiais assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, assim como as idéias e conceitos expressos nos mesmos ou as figuras e imagens aí utilizadas.

SUMÁRIO

Editorial

Uma consideração especulativa sobre a bibliografia hegeliana em Língua portuguesa: Algumas notas críticas aos lançamentos mais recentes (2007/2008)Manuel Moreira da Silva ................................................................................5

REH. Nota sobre o número 8Manuel Moreira da Silva ...............................................................................23

Artigos

A Crítica e Transformação da “Filosofia da Subjetividade”na Fenomenologia do EspíritoChristian klotz .................................................................................................25

Hegel leitor de Goethe: entre a física da luz e o colorido da arteMárcia Cristina Ferreira Gonçalves ...................................................37

Traduções

Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”Joãosinho Beckenkamp .................................................................................57

O fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804): apresentação e traduçãoErick C. de Lima ..................................................................................................75

Normas de submissão (Versão resumida)...........................................99

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Uma consideração especulativa sobre a bibliografia hegeliana em Língua portuguesa: Algumas notas crí-

ticas aos lançamentos mais recentes (2007/2008)

Manuel Moreira da SilvaDEFIL – UNICENTRO/PR

I.Considerações preliminares:

Propomo-nos aqui analisar sucintamente a produção bibliográfica em Língua portuguesa – especificamente do Português de Portugal e do Portu-guês do Brasil – concernente a textos de Hegel e sobre Hegel editados entre janeiro de 2007 e maio de 2008. Limitar-nos-emos a discutir os aspectos mais relevantes de tal produção e o seu significado filosófico para o desen-volvimento dos estudos hegelianos nos países de Língua portuguesa em ge-ral e no Brasil e em Portugal em especial; isso, em razão de pouco a pouco a investigação em torno dos temas e problemas hegelianos constituir-se em um campo comum aos estudiosos de Hegel em ambos os países. Infelizmen-te não temos como proceder à verificação dessa produção no que tange ao seu confronto com a dos anos anteriores e, de certo modo, nem mesmo os dados necessários para uma verificação completa do que se produziu entre os falantes da Língua portuguesa acerca de Hegel e o hegelianismo nos 15 meses aqui levados em consideração. Por isso, concentrar-nos-emos uni-camente nos dados cuja constatação e verificação pudemos levar a termo entre janeiro de 2007 e maio de 2008.

Os textos sobre os quais tivemos conhecimento de sua edição ou reedição conformam uma média razoável de aproximadamente 1 livro edi-tado a cada 30 dias; isso para um total de 15 publicações nos 15 meses relativos ao período em questão. Esse não nos parece um número pouco expressivo; pois, levando-se em consideração principalmente a realidade editorial do Brasil e as condições gerais de nossa educação filosófica (o que também pode ser o caso de Portugal), a publicação de aproximadamente um livro por mês sobre um filósofo como Hegel ou sobre a filosofia esposada por ele deve ser motivo de celebração. Eis os dados: 4 traduções de obras de Hegel, 4 traduções de comentadores (três do alemão e uma do francês), 3 comentários em língua portuguesa, 2 introduções gerais, 1 reconstrução crítica e 1 volume coletivo (que de certo modo também não deixam de ser comentários). Contudo, os dados acima não nos permitem ainda uma cele-bração propriamente dita do renascimento – em terras lusófonas – do espí-rito que habita a filosofia de Hegel; isso porque encontramos aí algo muito desconfortável, a saber: a discrepância entre o número de comentários e o de traduções das obras do próprio Hegel.

Editorial Revista Eletrônica Estudos HegelianosAno 5, nº8, Junho-2008: 5-22

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Num país ou numa língua onde poucas obras de Hegel foram tra-duzidas até agora, muitas das quais não contando ainda com o aval de representantes importantes da comunidade científica – de certo modo ex-tremamente reduzida –, os quais não apresentam ou não encontram espaço para a apresentação de versões alternativas, não se pode louvar sem mais o descompasso entre a proliferação de comentários (nacionais ou traduzidos) e a baixa produtividade de traduções de textos canônicos do próprio filósofo e da filosofia em questão. Embora na média seja normal que, em se tratando de um filósofo de língua estrangeira, o número de comentários ultrapasse substancialmente o número de traduções das obras comentadas, essa não pode ser a situação ideal em uma língua na qual as obras fundamentais do filósofo ainda não estejam vertidas. Trata-se de uma proporção de quase 5/1 apenas no período aqui investigado – o que poderia ser considerado como algo normal em um país onde as obras completas do filósofo já tenham sido publicadas e se busque traduzir textos raros ou produzir versões alternativas –, com textos que buscam mais um confronto com Hegel do que sua leitura compreensiva e sua compreensão sistemática; o que, não obstante, mostra uma comunidade – direta ou indiretamente – já emancipada ou em vias de emancipação em relação ao pensamento com o qual se confronta. Restaria saber se tal confronto e emancipação assumem esse pensamento naquilo que ele tem de fundamental, i.é, seu espírito vivo, ou se é justamente deste espírito que pretendem se distinguir ou separar, mostrando-se alheios ao mesmo e fazendo com que ele passe ao largo sem lhes revelar seu interior. Esta é uma constatação hegeliana e uma exigência da própria filo-sofia de Hegel, o qual – já em 1801 – afirmara: “O espírito vivo que habita em uma filosofia exige, para se desvelar, renascer através de um espírito afim”; isso porque, “diante de um comportamento histórico que surge de um interesse qualquer pelo conhecimento das opiniões, ele passa ao largo como um fenômeno estranho e não revela seu interior”1. Infelizmente, dos 15 textos aqui analisados, excetuando-se os textos de Hegel (4) e os que (incluindo-se aí o volume coletivo) se propõem a comentar Hegel (5), (os quais, por definição, devem se esforçar para se manterem no espírito da filosofia especulativa tal como Hegel a concebera nos escritos por eles então comentados), mais os que são meramente introdutórios (2) (e nem sempre atingem o espírito acima aludido), os restantes (4) muito dificilmente pare-cem estar em condições de deixar o espírito do Idealismo especulativo neles renascer, pois seu próprio ponto de partida não se constitui senão como uma tomada de posição em face da filosofia hegeliana. A seguir, trataremos pri-meiramente das traduções de Hegel, depois das traduções de comentadores e dos comentários publicados originalmente em Português; enfim, de duas tentativas lusófonas de reconstrução que se querem no espírito hegeliano.

1. G. W. F., HEGEL, Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie (1801), in: Jenaer Schriften (1801-1807). Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845 neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970 [TWA 2], p.16. De ora avante conforme se segue: Differenzschrift, p. 16.

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II. Sobre as traduções de Hegel I: As preleções sobre Arquite-tura (2008), o Artigo sobre o Direito natural e Fé e Saber (1ª. Edição em 2007)

Em 2007 vieram à luz as versões brasileiras de Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural (1802-1803), com tradução e apresen-tação de Agemir Bavaresco e Sérgio B. Christino, pelas Edições Loyola2, e Fé e Saber (1802), com tradução e introdução de Oliver Tolle, pela Edito-ra Hedra3. Também com tradução, introdução e notas de Oliver Tolle, pela Edusp, veio à luz no primeiro semestre de 2008 as preleções concernentes à Arquitetura, da primeira seção da terceira parte da Estética; intitulada A Arquitetura�, versão cujo mérito é jogar luz – em o considerando com exclu-sividade – sobre um momento fundamental da elaboração de Hegel no que tange ao conceito da Arquitetura enquanto forma de arte e o começo mesmo da Arte. Infelizmente, pelo momento, não poderemos aqui nos alongar em torno dessa obra, tomá-la-emos em consideração em outra oportunidade.

Considerados textos de juventude, o chamado Naturrechtsaufsatz [Artigo sobre o Direito natural] e Fé e Saber marcam um momento deci-sivo, senão o momento decisivo – do desenvolvimento filosófico de Hegel; sua redação ocorre ainda nos quadros da colaboração mútua de Hegel e Schelling – levada a cabo sobretudo no Jornal Crítico de Filosofia, publicado entre janeiro de 1802 e maio de 1803 –, em torno da crítica das filosofias da reflexão da subjetividade, sobretudo no que diz respeito às conseqüên-cias céticas do idealismo transcendental – algo aliás muito bem lembrado na Introdução de Oliver Tolle5 a Fé e Saber – e no que tange ao dualismo daí advindo, em especial a recrudescência do antagonismo ou ao menos da justaposição do empirismo e o formalismo, bem como sua conseqüente renúncia ao pensamento especulativo propriamente dito. Talvez por isso, já mesmo nesses textos, Hegel comece como que, senão a ensaiar algum tipo de crítica mais explícita também a Schelling, a ficar mais comedido na defe-sa e no desenvolvimento das teses do amigo, bem como a vislumbrar certa forma de mediação entre a esfera lógico-metafísica e a esfera filosófico-real. Mediação essa que lhe exigirá sobretudo levar a sério o lado da diferença ou da não-identidade – já indicada em 1801 – como um dos elementos consti-tuintes essenciais do próprio Absoluto.

Publicado praticamente seis meses antes do Artigo sobre o Direito natural�, o ensaio Fé e Saber leva a termo a verificação da presumida vitória 2. G. W. F., HEGEL, Sobre as maneiras científicas de tratar o direito natural, tradução e apresen-tação de Agemir Bavaresco e Sérgio B. Christino. São Paulo: Loyola, 2007. 134 p.3. G. W. F., HEGEL, Fé e Saber, introdução e tradução de Oliver Tolle. São Paulo: Hedra, 2007. 174 p.4. G. W. F., HEGEL, A Arquitetura, introdução e tradução de Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 2008. 206 p.5. Ver, O. TOLLE, Introdução. In: G. W. F., HEGEL, Fé e Saber, op. cit., p. 9-15.6. Enquanto Fé e Saber (Band II, Heft, 1) é publicado em meados de julho de 1802, o artigo sobre o Direito natural vem à luz em duas partes, a primeira em meados de dezembro de 1802 (Band II, Heft, 2) e a segunda em maio de 1803 (Band II, Heft, 3). Ver, a respeito, HARTMUT BUCHNER, Nachwort für Neuausgabe, in: Kritisches Journal der Philosophie, herausgegeben

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da razão – transformada em simples Entendimento – sobre uma suposta positividade da religião, essa deixada de lado em seu caráter ideal ou em seu aspecto propriamente autêntico. O intento de Hegel parece ser o de mostrar em que medida – para além de sua vitória de Pirro –, de ora avante, a razão não pode senão “olhar para si, chegar ao seu conhecimento de si, reconhecendo o seu não-ser ao pôr, já que é apenas entendimento, o que é melhor do que ela em uma fé fora e acima de si, como um para-além (...), e reconhecendo que ela se fez novamente criada de uma fé”7. Para Hegel, em última instância, especialmente nos casos de Kant, Jacobi e Fichte, isto significa sobretudo que o dogmatismo do ser da metafísica de outrora foi re-fundido no dogmatismo do pensamento presumidamente crítico e, assim, a metafísica da objetividade na metafísica da subjetividade, fazendo com que o dogmatismo antigo – o da metafísica wolffiana – e a metafísica da refle-xão se refundissem. Da mesma forma, pode-se dizer que, “por meio dessa revolução completa da filosofia, primeiramente apenas com a cor do interior ou da cultura nova e da moda”, de um lado, “a alma como coisa se trans-formou em Eu, como razão prática em absolutidade da personalidade e da singularidade do sujeito”, enquanto o mundo, ao contrário, transformara-se “no sistema de fenômenos ou afecções do sujeito e efetividades cridas”; de outro lado, “como um objeto [Gegenstand] e o objeto [Objekt] absoluto da razão”, o Absoluto fora por sua vez transformado “em um para-além absolu-to do conhecimento racional”8. De onde a necessidade da filosofia verdadei-ra, na medida em que ela surge desta formação [que a precede] e aniquila a absolutidade das finitudes da mesma, se apresentar simultaneamente como manifestação acabada; isso, de modo a “restabelecer (...) a idéia da absolu-ta liberdade” e “ressuscitar a suprema totalidade”9. Essa a tarefa que daí em diante – sobretudo em função do “sofrimento absoluto” ou da “sexta-feira santa especulativa” – não será senão a da Filosofia especulativa ela mes-ma.

Por seu turno, publicado originalmente em duas partes – nos cader-nos 2 e 3 do segundo tomo do Jornal Crítico de Filosofia, respectivamente de dezembro de 1802 e maio de 180310 –, embora ainda se posicione como que em favor da filosofia de Schelling e, por isso, com a pretensão de levar a cabo a crítica das concepções empirista e formalista do Direito natural, o chamado Naturrechtsaufsatz já marca um distanciamento importante de Hegel em relação ao seu amigo de então11. Isto sobretudo pelo fato de aí,

von Friedrich Wilhelm Joseph Schelling und Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Band II, mit einem Anhang herausgegeben von Hartmut Buchner, Hildeshein: Georg Olms, 1967, p. XXI.7. G. W. F., HEGEL, Fé e Saber, op. cit., p. 20.8. G. W. F., HEGEL, Fé e Saber, op. cit., p. 172. Alguns termos, nas citações deste período e do seguinte, foram ligeiramente modificados. Ver o original: G. W. F., HEGEL, Glauben und Wis-sen (1802), in: Jenaer Schriften (1801-1807). Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845 neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970 [TWA 2], p.430 ss.9. G. W. F., HEGEL, Fé e Saber, op. cit., p. 174.10. Veja-se acima, nota 6.11. Para um resumo das discussões acerca desse ponto, veja-se HÖSLE, V. Hegels System. Der Idealismus der Subjektivität und das Problem der Intersubjektivität, 2 Bde, Hamburg: Felix Meiner, 1987, p. 51, p. 133-138. Na tradução brasileira (Loyola, 2007), p. 69, p. 160-165. Mais adiante, também comentaremos esta edição.

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pela primeira vez, Hegel reconhecer que “o espírito é superior à natureza”12 e que, portanto, para além de um projeto de sistema – como o esboçado em 1801 no Differenzschrift13 – cujo momento sintético se daria no âmbito da filosofia da religião e da arte enquanto retorno à Idéia pura e como organiza-ção da intuição do espírito, caberia ao próprio espírito a função sintética da configuração de um terceiro momento do sistema14, compreendendo assim também a arte e a religião anteriormente concebidas em um quarto mo-mento como tal distinto do terceiro15. Esse ponto, contudo, não é abordado pelos tradutores em sua apresentação do texto ora comentado; os quais, no entanto, explicitam de modo bastante interessante a emergência do método especulativo hegeliano no âmbito do Direito natural, então concebido en-quanto um Direito de natureza ética, – desse modo, na medida em que teria por norte já aí (neste Direito de natureza ética) a suprassunção das contra-dições, o método especulativo também como que anteciparia a matriz filosó-fica da intersubjetividade16. De onde o Artigo não poder limitar-se a refutar o empirismo e o formalismo ou, neste último caso, não só Kant e Fichte, mas de certo modo – ainda que muito timidamente – também Schelling; é o que nos mostra sobretudo esse que pode ser visto como desdobramento da tese do Absoluto como a identidade da identidade e da não-identidade17 nessa outra: a unidade da indiferença e da relação, ou melhor, a unidade absoluta da indiferença e da identidade relativa18.

No que diz respeito às traduções propriamente ditas, pode-se dizer que tanto o ensaio Fé e Saber quanto o Artigo sobre o Direito natural con-textualizam adequadamente os textos traduzidos, apresentando-os segundo um viés histórico-sistemático e fornecendo ao leitor uma chave de leitura consentânea ao espírito dos textos e do universo ao qual será iniciado ou – caso já tenha sido iniciado – ao qual dará prosseguimento à sua inicia-ção, isto é, ao universo do chamado Jovem Hegel19. Quanto aos critérios de tradução, as duas versões se esforçam na tentativa de apresentar um texto legível em Língua portuguesa, buscando aliar fidelidade conceitual, transposição de estilo, semântica e, sobretudo, rigor metodológico; contudo, levando-se em conta algumas opções de tradução ou de pontuação, as quais – não obstante – não foram esclarecidas, bem como problemas de revisão

12. G. W. F., HEGEL, Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des naturrechts, seine Stelle in der praktischen Philosophie und sein Verhältnis zu den positive Rechtswissenscgaften (1802-1803), in: Jenaer Schriften (1801-1807). Auf der Grundlage der Werke von 1832-1845 neu edierte Ausgabe. Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970 [TWA 2], p.503. Na edição brasileira, à p. 106. De ora avante, para ambas as versões: Naturrechtsaufsatz, 503/106.13. Differenzschrift, p. 107-113.14. Naturrechtsaufsatz, 456ss/58ss.15. Ver, HÖSLE, V. Hegels System, op. cit., p. 136; ed. bras., p. 163.16. A. BAVARESCO.; S. B. CHRISTINO, Um direito de natureza ética e o método especulativo hegeliano. In: G. W. F., HEGEL, Sobre as maneiras...., op. cit., p. 7-34; aqui, p. 9-10, p. 31.17. Differenzschrift, p. 96.18. Naturrechtsaufsatz, 456ss/58ss.19. Lembramos ao leitor que textos de juventude, como A diferença dos sistemas de Fichte e Schelling (1801), Como o senso comum compreende a filosofia (1802), O sistema da vida ética (1802), já se encontram vertidos para o Português, seja do Brasil ou de Portugal, respectiva-mente em 2003, 1995 e 1991.

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técnica e gramatical, certos termos, conceitos e mesmo construções pode-riam ter sido apresentados de forma a melhor exprimir o que para Hegel, precisamente em tal ou tal momento, estava em jogo. Mas isto, longe de ser uma espécie de advertência, tem aqui o caráter de um convite ao debate so-bre a necessidade de os hegelianos lusófonos se articularem em torno de um projeto comum para a tradução concertada do conjunto da Obra de Hegel.

III.Sobre as traduções de Hegel II: A reedição da Fenomenologia do Espírito (5ª. Edição em 2008)

Ponto de partida fundamental e marco importante na literatura he-geliana mais recente em Língua portuguesa, a Fenomenologia do Espírito chega agora em 2008 à sua 5ª. Edição20. Em tradução de Paulo Meneses, com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado, a Feno-menologia do Espírito mantém-se inalterada desde sua 2ª. Edição (2003), quando foram introduzidas várias alterações; em especial: o volume único, a publicação em parceria (da Editora Vozes e a Editora da Universidade São Francisco) e a revisão completa do texto em Português. Fato curioso, se contarmos as cinco reimpressões da 1ª. Edição (essa em dois volumes), de 1992, a 2. Edição (revista) pode ser tomada como a 7ª. Edição (o que foi inclusive grafado na ficha catalográfica dessa edição); de onde a 5ª. Edição poder ser considerada na verdade como a 11ª. Edição. O que, de 1992 a 2008, apresenta a marca surpreendente de uma edição a cada 18 meses aproximadamente.

Não obstante, nos reportando à nota do tradutor à 2ª. Edição (cor-rigida) de 2003, sobretudo quando ele aí afirma tratar-se quase de uma nova tradução, com o original alemão cotejado e as versões francesas de Jean-Pierre Lefebvre (Aubier, 1991) e Pierre-Jean Labarrière (PUF, 1993), além das “traduções preferidas”, a inglesa de Miller (Oxford University Press, 1977) e a italiana de Negri (La Nuova Italia, Firenze, 1973)21, - parece-nos que – salvo as indicações expressas do tradutor quanto às suas opções terminológicas –, a título de sugestão, alguns melhoramentos de ordem sis-temático-especulativa se fazem necessários. Referimo-nos em geral à tra-dução de ‘in sich’ em diversos contextos por apenas ‘em si’, quando Hegel distingue especulativamente essas expressões: a primeira indicando a Coisa mesma enquanto ainda não se manifestando a nós ou à consciência, e a segunda exprimindo justamente o fato de algo ser ‘em si’ (an sich) tão so-mente na medida em que é ‘para nós’ (für uns); o mesmo ocorrendo com

20. G. W. F., HEGEL, Fenomenologia do Espírito, tradução de Paulo Meneses, com colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado, – 5. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Pau-lista: USF, 2008. Do original: Phänomenologie des Geistes (1807), neu hrsg. von Hans-Fried-rich Wessels u. Heirinch Clairmont. Mit e. Einleitung von Wolfgang Bonsiepen. Hamburg: Mei-ner, 1988. Texto citado de ora avante, conforme o caso, em conjunto com a edição brasileira, segundo o exemplo: PhG, § 1 (p. 3-4), onde ‚§‘ reenvia à edição brasileira e os números das páginas, entre parêntesis, reenviam ao original alemão.21. P. MENESES, Nota do tradutor, in: G. W. F., HEGEL, Fenomenologia do Espírito, tradução de Paulo Meneses, com colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado, – 7. Ed. Rev. [ou 2. Ed., 2003] – Petrópolis, RJ: Vozes: Bragança Paulista: USF, 2002, p. 9.

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‘sich’, no caso, quando aparece sozinho, como em: “Die Individualität, wel-che sich an und für sich selbst reel ist”22 (vertido por ‘para si’ em: “A indivi-dualidade que é para si real em si e para si mesma”23) e em “(...) aber es für sich ist sich noch nicht dieses Wesen selbst, noch nicht die Einheit beider”24 (praticamente sumindo na versão brasileira: “Contudo, para si, ainda não é a essência mesma; ainda não é a unidade das duas”25. Esse ‘sich’, sozinho, pode ser traduzido por ‘a si’, significando um momento do processo de de-terminação, ou mesmo uma determinidade, que – embora já não seja mais in sich ou an sich (dentro de si ou em si) – ainda não se tornara für sich (para si); de onde, nos casos acima, poder-se verter: (1) “A individualidade que é a si efetiva em si e para si mesma” e (2) “(...) mas, para si, ela ainda não é a si a essência mesma, ainda não é a unidade de ambas”.

Neste último caso, ao fim do primeiro parágrafo em que trata da consciência infeliz, Hegel reporta-se diretamente ao início do mesmo, no qual está em jogo – para o filósofo ou para nós – o fato que “dieses un-glückliche, in sich entzweite Bewusstsein muss also, weil dieser Widerspruch seines Wesens sich Ein Bewusstsein ist, in dem einen Bewusstsein immer auch”. Isto é, que “esta consciência infeliz, cindida dentro de si, pois essa contradição de sua essência é a si Uma consciência, tem que ter numa das consciências sempre também a outra (...)” e não que “essa consciência in-feliz, cindida dentro de si, já que essa contradição de sua essência é, para ela, uma consciência, deve ter numa consciência sempre também a outra (...)”. Embora justificável, a opção seguida pelo tradutor (ou melhor, pelos tradutores) deixa de lado o problema da essência mesma e de como, em seu processo de manifestação na (ou à) consciência, ela – enquanto algo objetivo (irreflexivo, um mero ser em si e por si) – cede lugar ao seu vir-a-ser essência consciente de si mesma como essência, reduzindo-a a uma determinação entre outras no movimento de figuração espácio-temporal do espírito que aparece. Talvez por isso, mas em vista de suas opções, os tra-dutores brasileiros da Fenomenologia também não assumem as distinções de Labarrière e Jarczyk entre os termos ‘Autoconsciência’ [Selbstbewusst-sein] e ‘Consciência-de-si’ ou ‘Consciência a propósito de si’ [Bewusstsein seiner, Bewusstsein von sich], permanecendo por conseguinte – em sua interpretação e tradução dos termos referidos unicamente por ‘Consciência-de-si’ – naquilo que os tradutores franceses designaram como “uma com-preensão de si a partir de um ponto de exterioridade”, fazendo com que na versão Meneses, vertido por ‘Consciência-de-si’, ‘Selbstbewusstsein’ não diga essencialmente “a reduplicação interior e imediata do Eu; o que – para Labarrière e Jarczyk – quer significar o neologismo ‘autoconsciência’”26 . Ain-da que, em certos contextos, Hegel não se refira a tal significado, mas sim ao de ‘Consciência-de-si’, essas distinções parecem-nos não só necessárias e não representam apenas um progresso nas investigações em torno da

22. G. W. F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes (1807), op. cit., p. 259.23. G. W. F., HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 275.24. G. W. F. HEGEL, Phänomenologie des Geistes (1807), op. cit., p. 144.25. G. W. F., HEGEL, Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 159.26. G. W. F., HEGEL, Phénoménologie de L’Esprit I, traduction et notes par Gwendoline Jarc-zyk et Pierre-Jean Labarrière. Paris: Gallimard, 1993, p. 694, nota 1.

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Fenomenologia do Espírito, mas também se mostram como fundamentais para a auto-compreensão de nós mesmos, pelo menos na medida em que ainda hoje devemos – como sempre – passar pelo caminho da experiência da consciência a fim de nos despojarmos de nossas aparências contingentes e nos reconhecermos como Essência autoconsciente ou Conceito livre em si e para si mesmo.

Embora isso não deponha contra a legibilidade e a plasticidade da versão brasileira da Fenomenologia do Espírito, as constatações elencadas acima nos indicam a necessidade de se investir em versões alternativas – como já é de praxe em outros países – enquanto forma adequada de se promover o debate e a interpretação em ato das obras filosóficas. Do ponto de vista do público leitor, esse tipo de investimento é até mesmo exigido; sobretudo quando – no caso da Fenomenologia do Espírito – o público leitor mostra-se hoje tão multifacetado que em boa parte já não se reconhece mais naqueles princípios que foram os orientadores da primeira edição bra-sileira, nos já distantes idos de 1992, da obra considerada a mais famosa de Hegel. O que pode ser, enfim, confirmado mediante uma simples verificação de teses, dissertações, livros e artigos produzidos em Português; os quais, em boa parte, vêm se utilizando da Fenomenologia em pelo menos duas ou mais versões.

IV. Sobre as traduções de comentários a Hegel: Em especial de O sistema de Hegel e Hegel e o hegelianismo

Publicaram-se quatro traduções de comentários sobre a obra de He-gel e o hegelianismo no período aqui considerado; entretanto, por motivo de espaço tomaremos em questão apenas os textos mais gerais, deixando para outra oportunidade os que tocam em aspectos parciais do Sistema he-geliano. Assim, nos limitaremos a uma rápida indicação destes últimos – no caso, Sofrimento de indeterminação, de Axel Honneth27, e Hegel e o Estado, de Franz Rosenzweig28 –, passando imediatamente à discussão de O sistema de Hegel, de Vittorio Hösle29 , e Hegel e o hegelianismo, de Jean-François Kervégan30 . Pode-se dizer que os textos de Honneth e Rosenzweig se com-pletam; pois, se um pretende reatualizar – como que empiricamente – a Fi-losofia do Direito, o outro reconstrói criticamente o processo de sua gênese, mas objetando justamente seu ponto de partida idealístico-especulativo.

Em Sofrimento de indeterminação, Honneth aborda o problema de uma fundamentação normativa da Teoria da Justiça nos quadros da impos-sibilidade da dedução de princípios abstratos e universalistas sem nenhuma vinculação a contextos práticos determinados; vale dizer, sem levar em con-

27. A. HONNETH, Sofrimento de indeterminação: Uma reatualização da Filosofia do Direito de Hegel. Trad. Rúrion Soares Melo. São Paulo: Singular, 2007. 145 p.28. F. ROSENZWEIG, Hegel e o Estado. São Paulo: Perspectiva, 2008. 656 p.29. V. HÖSLE, O sistema de Hegel: o idealismo da subjetividade e o problema da intersubje-tividade. Trad. Antonio Celiomar Pinto de Lima. São Paulo: Loyola, 2007. 802 p.30. J.-F. KERVÉGAN, Hegel e o hegelianismo. Trad. Mariana Paolozzi Sérvulo da Cunha. São Paulo: Loyola, 2008. 127 p.

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ta as conseqüências de uma realização insuficiente da vontade livre e sem assumir a tarefa de superar os limites institucionais meramente formais de relações intersubjetivas aquém da esfera da eticidade, – o que não significa que o autor tão somente reafirme essa instância fundamental da Filosofia do Direito de Hegel, a qual na verdade também é criticada em função de uma suposta superinstitucionalização. Por seu turno, em Hegel e o Estado [obra clássica originalmente escrita em 1912 (e apresentada como tese douto-ral), mas publicada apenas em 1920, portanto, depois da I Guerra Mundial, como que – aos olhos do autor – após a confirmação de suas reservas em relação à filosofia da história de Hegel], Rosenzweig busca reconstruir a gê-nese histórica do conceito hegeliano do Estado, dando ênfase justamente a certos problemas de detalhe, sobretudo os de cunho político-institucional, nos quais opções teóricas parecem decididas em confronto com questões políticas circunstanciais, das quais o filósofo tem que se despojar – ainda que gradualmente – para então se concentrar no que realmente lhe importa, o conteúdo propriamente especulativo e sua coerência sistemática. Neste sentido, relembrando o dito acima, na medida em que tanto Honneth (com a sua reatualização), quanto Rosenzweig (com a sua reconstrução) se posi-cionam de modo crítico em relação à Filosofia do Direito e seu ponto de par-tida idealístico-especulativo, poderíamos aí também mencionar O sistema de Hegel, de Hösle, cuja tese principal é justamente que, entre a Lógica e a Filosofia real, não há uma relação contínua de correspondência e de princi-piação, havendo assim, neste caso, a necessidade de sua crítica imanente e sua renovação idealístico-objetiva.

Apesar dos diversos méritos dessa obra e das manifestações de apre-ço das quais ela e seu autor se fizeram dignos, parte-se aí de suposições completamente outras que as de Hegel, a começar por tomá-lo como filósofo transcendental e, então, como idealista objetivo. Isso não quer dizer que a leitura de Hösle não seja correta naquilo que ela se propõe; contudo, embo-ra se possa verificar o Sistema de Hegel como uma filosofia transcendental absoluta e, assim, enquanto uma sorte de Ontologia transcendental ou um Idealismo objetivo, também não se pode negar que isto não é senão um momento, um nível ou um aspecto do Sistema da Filosofia tal como este é concebido por Hegel; o que, em sendo absolutizado, termina por amputar justamente aquele momento, nível ou aspecto mais abrangente e como tal reconhecido enquanto distintivo da própria filosofia hegeliana, esse que He-gel designara como o elemento especulativo. Quanto a isso – embora tão cioso dos desenvolvimentos sistemáticos de Hegel anteriores a 1830 –, Hös-le negligencia por exemplo o texto da Enciclopédia de 1817, precisamente a anotação ao § 17 dessa obra31, na qual – como que a título de um novo pro-grama – Hegel fala explicitamente dos três níveis ou momentos sistemáticos da Lógica, ou ainda, de modo mais rigoroso, de sua tríplice determinação enquanto Filosofia especulativa pura; e isso na esfera do próprio Especula-

31. G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (1817). In: G. W. F. HEGEL, Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse und an-dere Schriften aus der Heidelberg Zeit, neue herausgegeben von Hermann Glockner, Heidel-berg: Frommanns Verlag, 1956, p. 37-38. Texto citado de ora avante conforme se segue: E., 1817, § 17, A. [onde ‚A‘ indica as Anmerkungen – anotações – de Hegel].

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tivo puro, também negligenciado por Hösle justamente em função de sua redução ao Transcendental e ao Idealístico-objetivo. Redução essa justifi-cada no sentido em que afeta, supostamente, “a variante especificamente hegeliana do Idealismo absoluto, que pode ser designada como Idealismo absoluto da Subjetividade”32.

Esta variante não se impõe senão na medida em que o Lógico não pode ser reduzido à sua simples forma objetiva (meramente a priori), essa mediante a qual ele se apresenta para nós em si e para si. Desse modo, a variante especificamente hegeliana do Idealismo absoluto compreende o próprio conteúdo lógico-efetivo cujas determinações são as puras formas-do-pensar que ele próprio põe e assume como as suas, enquanto as mes-mas são consideradas em si e para si, em si e para si mesmas33. Em sendo recusada e assim levando consigo o conjunto da concepção rigorosa de um Idealismo especulativo, essa variante impõe a Hösle – tal como antes a Rosenkranz, a quem na verdade ele retoma – a recusa da determinação-de-conceito da Objetividade34, isto é, o Conceito objetivo e seus momentos particulares – o Mecanismo, o Quimismo e a Teleologia –, e a Idéia da Vida enquanto determinações da esfera da Lógica e, sobretudo, o modo como elas se desenvolvem ou se efetivam no âmbito da Filosofia do Espírito; de-terminações essas sem as quais, por exemplo, dificilmente se poderia levar a cabo a “negação que, na elevação do espírito a Deus, é exercida contra as coisas contingentes do mundo, como contra a própria subjetividade”35. De onde, mais que levar à consumação o programa de Fichte, como quer Hösle, Hegel retomar as instâncias mais profundas do Neoplatonismo e da Mística alemã, algo já constatável – inclusive por Rosenkranz36 –, desde os projetos sistemáticos de Iena.

Finalmente, à diferença de O sistema de Hegel, em seu Hegel e o hegelianismo, Kervégan limita-se a uma sucinta apresentação de Hegel. Buscando posicionar-se para além de certas posturas consideradas como “alguns lugares comuns” que dominam a percepção disso que – muito vaga-mente – ele denomina ‘hegelianismo’ –, Kervégan passa em revista o perío-do da formação de Hegel e as articulações fundamentais da Fenomenologia do Espírito e da Ciência da Lógica, bem como da Filosofia do Direito e da Filosofia do Espírito absoluto. Interessante que, se levarmos a sério a crítica dos chamados lugares comuns detectados pelo autor – a saber: (1) a con-cepção da dialética como comportando os momentos da tese, da antítese

32. V. HÖSLE, O sistema de Hegel, op. cit., p. 24.33. PhG, § 25 (p. 18); E., 1817, § 17, §§ 109-111. Confronte-se com: G. W. F. HEGEL, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830), trad. Paulo Meneses e Pe. José Machado, São Paulo: Loyola, 1995, I, p. 292-295, de ora avante. E., 1830, §§ 160-162.34. V. HÖSLE, O sistema de Hegel, op. cit., p. 271-282.35. E., 1830, § 204 A. Para uma verificação desse ponto, veja-se: G. W. F. HEGEL, Leçons sur lês preives de l’existence de Dieu, traduction, présentation et notes para Jean-Marie Lardic. Paris: Aubier, 1994, p. 359-379 [edição crítica estabelecida a partir da edição Glockner, da qual também se utiliza a paginação].36. K. ROSENKRANZ, Hegels Leben. Berlin: Dunckler und Humblot: 1844, p. 102 ss. Versão eletrônica: <http://www.google.com.br/books?id=9GkRAAAAYAAJ&pg=PR8&dq=Hegels+Leben#PPA102,M1>.

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e da síntese, (2) a fórmula “[tudo] o que é real é racional”, (3) a dialética do senhor e do escravo, (4) a astúcia da razão e, enfim, (5) o fim da his-tória –, o leitor sensato seria obrigado a aplicar o procedimento descritivo utilizado pelo autor à própria percepção deste acerca do hegelianismo. Da mesma forma, portanto, poderíamos considerar lugares comuns (digamos alternativos): (1) a consideração de Hegel como o Aristóteles moderno, (2) a inconsciência de Hegel quanto ao projeto especulativo da Fenomenologia do Espírito no início de sua redação, (3) a Lógica especulativa em geral como “ontologia conceitual” e em especial enquanto dialética, (4) a rejeição hegeliana da teologia negativa, (5) o Idealismo absoluto enquanto filosofia da consciência, etc. Não obstante, o texto em questão realiza um balanço importante e mesmo equilibrado das principais instâncias da elaboração he-geliana da Idéia da Filosofia.

V. Comentários a Hegel e sua obra, escritos originalmente em Língua portuguesa I: Sobre o Sistema em geral e a Fenomeno-logia do Espírito em especial

Os estudiosos brasileiros de Hegel não deixaram passar em branco as comemorações dos 200 anos da publicação da Fenomenologia do Espírito, ocorrida efetivamente em fins de abril e inícios de maio de 1807, mas tendo seus primeiros exemplares já impressos em fins de março e inícios de abril desse ano. Entre nós, de janeiro de 2007 a maio de 2008, foram publicados três comentários à Fenomenologia, sendo um volume coletivo – com tra-balhos de renomados estudiosos do Brasil e do exterior – um comentário ao conjunto da obra e um comentário à Seção Consciência; além disso, apareceram também duas edições menores, introdutórias à filosofia de He-gel. Não discutiremos aqui estas últimas, limitar-nos-emos a indicá-las: (1) Compreender Hegel, 4a edição em 2007, de Francisco Nóbrega37; (2) Hegel, com autoria de Olavo de Carvalho38. Passemos então aos comentários à Fe-nomenologia.

Fruto de um congresso realizado na primeira semana de dezembro de 2006, em Fortaleza, Ceará, com a organização de Eduardo Chagas, Kon-rad Utz e James Wilson de Oliveira, veio a lume em 2007 a obra intitulada Comemoração aos 200 anos da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel39.O importante dessa obra é a confrontação consciente e equilibrada de in-terpretações às vezes bastante divergentes, mas também de certo modo complementares, da Fenomenologia do Espírito; o que mostra o vigor dos estudos hegelianos mais recentes em nosso país e a maturidade filosófica alcançada pela comunidade que se debruça sobre o Sistema de Hegel e seus desenvolvimentos os mais cruciais. Pode-se dizer que o volume em questão, ao mesmo tempo em que celebra a grandeza da Fenomenologia, não se furta a apontar de modo conseqüente seus limites e mesmo suas contradições; 37. F. P. NÓBREGA. Compreender Hegel. – 4. ed. – Petrópolis: Vozes, 2007. 80 p.38. O. CARVALHO, Hegel. Rio de Janeiro. E Realizações, 2008. 72 p.39. E. F. CHAGAS; K. UTZ; J. W. J. OLIVEIRA, (Org.). Comemoração aos 200 anos da “Fenom-enologia do Espírito” de Hegel. Fortaleza: UFC edições, 2007. 441 p.

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algo já constatado pelo próprio Hegel, mas que, no âmbito das vicissitudes de sua obra, vem dividindo seus intérpretes desde a própria época de Hegel. Além dos organizadores, o volume em tela ainda conta, entre outros, com os seguintes colaboradores: Alfredo Moraes, Anton F. Koch, Christian Iber, Leonardo Vieira, Manfredo Oliveira, Manuel Moreira e Marcelo Aquino.

O segundo comentário é O trabalho do negativo, com autoria José Henrique Santos40. Obra cujo aspecto mais importante parece-nos a decisão de correr o risco “de querer dizer o que se deve calar”; por conseguinte, sua lúcida compreensão dos limites do tempo presente e, para além deste, a da necessidade de retomar e desenvolver, ou rememorar, o caminho da experi-ência do Absoluto na disciplina do conceito. Assim, fiel ao caminho rememo-rado, tanto quanto lhe é possível, o autor se põe a desenvolver – segundo ele mesmo, numa série de círculos concêntricos, indo do menor ao de maior diâmetro – o que chama a dialética do objeto (capítulo I ao III da Fenome-nologia), passando à dialética do sujeito, do eu que é um nós (capítulos IV, V e VI) e, concluindo seu movimento na dialética do absoluto (capítulos VII e VIII), cada uma comportando círculos menores. Por fim, há que se ter em conta que o autor concebe tais círculos apenas como fenomenologias de valor e peso desiguais, mas fenomenologias, mediante as quais o espírito se eleva ao “infinito posto no finito”, a partir do qual ele “pode então confron-tar-se com o espírito divino”, considerado como “o nec plus ultra”41.

Enfim, o terceiro comentário como que se desenvolve no mesmo patamar que O trabalho do negativo; porém, ao contrário deste, posicionan-do-se criticamente em relação a Hegel e à sua descrição e interpretação das experiências da consciência. Intitulado A desdita do discurso, de autoria de Leonardo Vieira42, o comentário ora apresentado busca articular linguagem e discurso a partir da convergência entre (a) um estudo sistemático sobre a Fenomenologia do Espírito de Hegel, sobretudo da seção Consciência e (b) a magnitude alcançada pelas investigações atuais sobre os temas referidos. Entretanto, o interesse do autor consiste, mais especificamente, no confron-to das teses de Hegel e as de Ken Wilber em torno do desenvolvimento dos níveis de consciência e sua relação com a linguagem, pressupondo como que uma homologia entre os níveis de consciência e um uso específico da linguagem, que é assim associado a cada um desses níveis. Na verdade, pode-se dizer que o estudo em questão pretende uma espécie de verificação entre a pretensão hegeliana e a sua realização efetiva no que diz respeito aos resultados a que Hegel chegara – enquanto consciência que descreve e interpreta as experiências da consciência natural – em sua investigação sobre a correspondência entre linguagem e discurso em cada um dos níveis de consciência por ele tematizados.

Se Hegel investiga os discursos em jogo em cada um dos níveis de consciência em questão para o autor, bem como sua correção pelo resul-

40. J. H. SANTOS. O trabalho do negativo. Ensaios sobre a Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Loyola, 2008. 356 p.41. J. H. SANTOS. O trabalho do negativo, op. cit., p. 68.42. L. A. VIEIRA, A desdita do discurso, São Paulo: Loyola, 2008. 142 p.

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tado da experiência levada a cabo em cada nível de consciência considera-do; o autor ele mesmo, por sua vez, pretende, senão corrigir os resultados da “experiência da consciência” que em Hegel emerge, pelo menos indicar que uma pretensa perfeita adequação entre saber e linguagem destina-se francamente a ser refutada. Mas essa refutação de Hegel pelo nosso autor não ocorre na obra aqui comentada; inclusive porque isso não só seria algo unilateral, como também o material investigado – uma pequena fração do que na Fenomenologia está em jogo para Hegel – não é capaz de dar con-sistência a conclusões que demonstrem seja a insuficiência do tratamento hegeliano das figuras da consciência nessa obra, seja mais propriamente da concepção hegeliana de uma “ciência da experiência da consciência” ou de uma “ciência da fenomenologia do espírito”. Acrescente-se a isso o fato de o autor passar diretamente das figuras em jogo na seção Consciência, por ele tratadas, para uma discussão sobre o Saber absoluto como a última estação da consciência natural; o que, de certo modo, parece-nos um deslocamento da concepção de Hegel sobre o que seja ‘consciência natural’, ‘Saber abso-luto’, ‘estação’, etc.

Sobre esse ponto, o autor afirma que “a consciência natural consegue no saber absoluto apoderar-se do saber e, portanto, do nosso discurso”43, isto é, do discurso do filósofo acerca de sua experiência. Parece-nos que há aí um deslocamento sobretudo pelo fato de, segundo Hegel, enquanto se restringe ao momento da imediatez, a consciência natural jamais poderá atingir o Saber absoluto, pois este só é atingido na medida em que a consci-ência se desfaz justamente de seu aspecto natural, determinado, particular, e se eleva à universalidade, em seus progressivos níveis de consumação enquanto essência consciente. Pois bem, esse deslocamento parece emergir justamente da interpretação do autor em relação às figuras da consciên-cia tomando-as – a partir de Ken Wilber44 – como estações e, por isso, em última instância, como que formalizando e naturalizando tais figuras (pen-sando-as em conjunto ou reduzindo-as ao chamado eu formal-reflexivo e ao eu vinculado à lógica de sistema de rede tematizados originalmente por Wilber), quando, na verdade, estaria em jogo para Hegel precisamente a fluidificação e a dissolução daquelas figuras e, se fosse o caso, destes eus�5. Exemplo disso é que, quando, no § 77 da Fenomenologia, Hegel fala da sé-rie de figuras como estações pré-estabelecidas pela natureza da alma, ele quer mostrar justamente que não é meramente a consciência natural, mas o próprio espírito que, para se reconciliar consigo mesmo, deverá purificar-se precisamente de tais figuras (tanto as da consciência ou do espírito enquan-to ele aparece, quanto as do espírito ele mesmo enquanto mundo efetivo). Sendo que de tal reconciliação resultará precisamente a liberação do espírito em relação à “diferença não-superada da consciência”, quando, ganhando o conceito, seus momentos não serão mais “figuras determinadas da consci-ência”, mas conceitos determinados, e “o movimento orgânico fundado den

43. L. A. VIEIRA, A desdita do discurso, op. cit., p. 135 ss.; ver também, p. 137.44. L. A. VIEIRA, A desdita do discurso, op. cit., p. 15 ss.45. A título de exemplo, veja-se, PhG, §§ 32-34, §§ 77-80 (p. 25-27, p. 60-63).

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tro de si mesmo”46; isso de modo que, atingido o Saber absoluto, a própria Fenomenologia terá que ser deixada para trás.

Enfim, embora o autor reconheça a limitação de seu trabalho à seção Consciência, o que contribuíra para a exterioridade e a generalidade das conclusões quanto ao Saber absoluto, ele postula que sua afirmação em torno da presumida convergência cognitiva e discursiva entre a posição da consciência natural e a do filósofo no Saber absoluto é pelo menos plausível. Aqui, ele como que identifica a consciência natural qua consciência natural e a filosófica (já instalada no Saber absoluto), dando a entender que o que diferenciava uma da outra era apenas o grau de seu saber e não a inverdade do saber de uma em face à verdade absoluta do da outra; assim, o autor parece indicar que, mesmo em alcançando o Saber absoluto, a consciência não deixa de ser natural. O que justificaria suas interrogações acerca de o Saber absoluto ser o fim de certo tipo de ilusão ou o fim de todas as ilusões, bem como de a desdita do discurso encontrar aí o seu termo final; interro-gações estas cujo ponto de partida preciso é a pressuposição da tese oposta de Plotino e Shamkara em torno da linguagem e do discurso como formas de não-saber.

Por fim, em vista destes se fixarem justamente na consciência natu-ral, reduzindo a ela toda forma de linguagem e discurso, bem como de exi-girem sua dissolução para então se elevar ao saber propriamente dito, talvez fosse o caso de o autor já partir explicitamente de uma crítica à concepção hegeliana do Saber absoluto. Para isso, ele haveria de levar em conta que a Fenomenologia do Espírito investiga experiências circunscritas ao fenomê-nico (as figuras da consciência) e ao fenomenológico propriamente dito (as figuras do espírito), mas não já experiências situadas além da esfera feno-menológica (as quais, em sua Lógica e em sua Filosofia da Religião, Hegel concebera sob o Especulativo puro ou o Místico). Estas, ao invés de aquém de um êxtase como o de Plotino e Shamkara, são antes desenvolvimentos do mesmo – enquanto conceito imediato – no seio do próprio Absoluto.

VI. Comentários a Hegel e sua obra, escritos originalmente em Língua portuguesa II: Sobre o Sistema em geral e a Ciência da Lógica em particular

Finalizando nossa descrição dos textos publicados em torno de Hegel e sua filosofia entre janeiro de 2007 e maio de 2008, passamos agora à dis-cussão de Lógica e Realidade em Hegel, de autoria de Diogo Falcão Ferrer47 e de Depois de Hegel, de Carlos Cirne-Lima48. Ambos os textos tratam da relação entre a Lógica e a Realidade (esta compreendida aqui em seu senti-do amplo), com a diferença fundamental que, para Cirne-Lima – pelo menos

46. PhG, § 805 (p. 528-529).47. D. F. FERRER, Lógica e Realidade em Hegel. A Ciência da Lógica e o problema da fundamen-tação do Sistema. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007. 615 p.48. C. CIRNE-LIMA, Depois de Hegel. Caxias do Sul: Educs, 2006. 183 p. [lançado e distribuí-do em 2007].

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em parte, concordando com V. Hösle –, Hegel teria hesitado e mesmo se contradito mais de uma vez no tocante ao que Cirne-Lima designa ‘dialética descendente’. Por seu turno, Diogo Ferrer propõe-se a um trabalho com-preensivo, cujo ponto fulcral consiste na busca de uma justificação teórica, lingüística e histórico-filosófica para a identificação proposta por Hegel entre essência e negatividade, que, aos olhos do autor, se mostra fundamental para se pensar a relação entre a essência e a existência, isto é, a própria concretização da primeira49. Comecemos então por esse aspecto.

Diogo Ferrer parte de um problema até certo ponto central para toda a filosofia, em todos os tempos: “a questão sobre o que é pensar e como se relaciona ele com a realidade”. Trata-se de um complexo de questões que o autor põe-se a si próprio, identificando na filosofia sistemática de Hegel a concepção que de modo mais completo e influente buscou dar-lhes uma solução satisfatória e consistente segundo a Coisa mesma; de onde o autor propor-se justamente a reconstituir o projeto hegeliano, reconhecendo-o como um pensamento que permanece vivo e atual, sobretudo em função de sua marca dialética, seu profundo realismo e, pode-se dizer, a sua aber-tura ao momento particular e contingente50, – na esfera do qual o conceito se determina, aí assumindo e mantendo suas próprias determinações, de modo a que então retorne dentro de si mesmo. Infelizmente não poderemos aqui aprofundar-nos nas articulações principais do estudo em questão, mas registre-se o fato de Diogo Ferrer não partir dos lugares comuns que, alter-nativamente ou não, mais impedem do que promovem a compreensão ade-quada de Hegel e sua elaboração do Sistema da Filosofia; este que, em não sendo senão a própria ampliação do método especulativo, é levado a sério tanto no âmbito das determinações do conceito quanto em sua articulação no interior do Sistema. O que, apesar de alguns problemas terminológicos, sobretudo quanto ao termo ‘Aufhebung’, e certas opções interpretativas e seus desdobramentos na terminologia, se comprova de modo especial na discussão a respeito dos silogismos da Filosofia, tematizados ao fim das edições da Enciclopédia de 1817 e da de 1830; discussão essa na qual o autor não só passa em revista as elaborações enciclopédicas de 1817, 1827 e 1830 concernentes ao “retorno a si da idéia”, mas também busca escla-recer, a partir de seu ponto de vista, certas dificuldades e mesmo algumas objeções levantadas contra Hegel em torno dessa matéria, em especial, su-postas incongruências presentes na exposição hegeliana dos silogismos da Filosofia51 . Enfim, pode-se dizer que, embora se limitando ao problema da fundamentação do Sistema, por conseguinte, atendo-se à Lógica apenas en-quanto Ciência primeira, o mérito principal de Lógica e Realidade em Hegel é justamente levar a termo uma reconstituição do próprio Sistema de Hegel, a qual se mostra distinta em relação àquelas de V. Hösle e Cirne-Lima entre outras; assumindo pois as instâncias fundamentais do próprio elemento es-peculativo, não se limitando portanto às do transcendental ou do analítico.

49. D. F. FERRER, Lógica e Realidade em Hegel, op. cit., p. 16-17.50. D. F. FERRER, Lógica e Realidade em Hegel, op. cit., p. 14.51. D. F. FERRER, Lógica e Realidade em Hegel, op. cit., p. 534-551 ss.

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Por seu turno, em Depois de Hegel, Cirne-Lima pretende levar a cabo uma reconstrução crítica do sistema neoplatônico. Desse modo, reconhe-cendo em Hegel o último dos grandes neoplatônicos, mas também assumin-do as críticas que este recebera, Cirne-Lima se propõe à tarefa de apontar e corrigir, ou pelo menos evitar os grandes erros que, segundo ele, Hegel cometera. O problema disso é que, em tomando como ponto de partida o caminho de uma transliteração da Ciência da Lógica, mais especificamente, de sua formalização em lógica simbólica (no caso, de seus trechos conside-rados os mais representativos), Cirne-Lima termina por reduzir o Sistema da Filosofia – e sobretudo a Lógica – a seus limites formais e, como diria o próprio Hegel, a um conjunto de determinações-de-pensamento reunido histórica ou empiricamente52. De onde, embora se alegue a reconstrução crítica de um sistema neoplatônico e mesmo neohegeliano – que seja aberto à contingência e à história enquanto produto de nossas decisões –, em últi-ma instância, do ponto de vista do conteúdo propriamente especulativo, tal reconstrução recaí facilmente numa espécie de filosofia da reflexão.

Isso fica patente justamente quando, enfim, ao discutir a Lógica do Conceito, em fazendo suas as instâncias do pensamento contemporâneo e o caráter incompreensível – para este – de uma Lógica especulativa, Cirne-Lima afirma que é justamente a Doutrina do Conceito a parte da Lógica que ficou mais obsoleta, interessando apenas ao historiador da filosofia, mas que do ponto de vista da verdadeira filosofia não tem mais nenhum valor espe-culativo. O que, não obstante sua pretensão neohegeliana, essa ilustrada nos termos ‘ponto de vista da verdadeira filosofia’ e ‘ valor especulativo’, nos parece um diagnóstico que se coloca em franca oposição àquele bastante sensato, proferido por Lima Vaz, segundo o qual “a única tentativa que co-nhecemos, certamente grandiosa, de recuperar de alguma forma a teoria da Idéia no mundo do filosofar pós-cartesiano é a teoria do conceito da Lógica de Hegel, justamente a parte do hegelianismo que se mostrou inassimilá-vel pela filosofia posterior, como atesta nossa atual filosofia”53. Diagnósticos estes frente aos quais os que ainda se querem hegelianos têm que tomar posição; em suma: Pode-se ser neoplatônico, hegeliano ou neohegeliano hoje rejeitando justamente o cerne do neoplatonismo e do hegelianismo?

VII. A guisa de conclusão

Ao fim de nosso balanço crítico em torno da bibliografia hegeliana em Língua portuguesa – à qual tivemos acesso –, publicada entre janeiro de 2007 e maio de 2008, podemos verificar sobretudo não só a consolidação do interesse por Hegel e seu Sistema enquanto objetos de investigação, mas principalmente o renascimento mesmo das instâncias as mais profundas do pensar hegeliano entre os falantes e pensantes de Língua portuguesa. Neste sentido, por mais divergentes que sejam as perspectivas desenvolvidas pe-los autores aqui considerados, o certo é que todos eles – sem exceção –,

52. E., 1830, § 82.53. H.C. DE LIMA VAZ, Escritos de filosofia VII: Raízes da modernidade, São Paulo: Loyola, 2002, p. 224.

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posicionem-se contra ou a favor de Hegel, demonstram que o interesse por Hegel e a filosofia especulativa desenvolvida por este permanecem atuais ou que, no caso disso vir ser questionado, mesmo para uma época que se quer pós-metafísica, pós-moderna, etc., Hegel e o Sistema da Filosofia es-peculativa permanecem como que incontornáveis. Isso demonstra que certa condição de possibilidade (real) de uma nova época do espírito (ou da hu-manidade) jamais poderá ser efetivamente pensada ou levada a cabo se não se voltar para o legado hegeliano e nele demorar-se, como que aguardando seu renascimento, para então fazer florescer adequadamente o novo tempo, esse que, de modo mais rigoroso, só poderá vir-a-ser se e somente se ele-var-se a uma nova esfera ou a um novo plano propriamente lógico-efetivo.

Ainda que sucinta, a análise dos textos publicados mais recentemen-te sobre a filosofia hegeliana, bem como os textos de Hegel traduzidos em Língua portuguesa no período em questão, aponta justamente para o re-conhecimento – progressivo – de que só se pode falar por exemplo em Linguagem e em Intersubjetividade como um novo princípio epocal se, de fato, estivermos avançando para um novo patamar civilizatório-cultural que, tanto científica e espiritualmente, quanto cultural e materialmente, deverá ser – necessariamente – mais elevado que aquele que emergira entre os modernos e que, de certo modo, ainda hoje persiste. Caso contrário, se a emergência de novos princípios – supostamente epocais, mas circunscritos meramente a tal ou tal região do ser e do saber, ou da essência e seu apa-recer – implicar de algum modo em perda de dignidade ontológica, como é o caso de muitas das instâncias do pensamento contemporâneo, o que de certo modo já ocorrera quando da emergência da subjetividade concebida como princípio epocal entre os modernos, não se poderá falar em novos princípios, mas tão só em degenerescência do que ainda se mantém pre-sente; este cujos ganhos se apresentaram como maiores que as perdas, pois (à diferença do chamado pensamento pós-metafísico) não se excluíra a substância ou o ser, sendo estes que se elevaram à autoconsciência ou ao saber espiritual de si enquanto espirituais. De onde a necessidade de se reconhecer como a tarefa mais fundamental dos hegelianos, pelo menos dos que ainda se querem ortodoxos, a delimitação – mesmo que preliminar – de uma esfera propriamente lógico-efetiva ou racional-efetiva, concebida mediante o conceito ele mesmo em sua atividade como espírito livre e a sua efetivação, a partir da qual se dão relações propriamente livres entre os su-jeitos que a constituem em sua efetividade.

Para isso, contudo, sobretudo em terras cujos falantes se exprimam em Língua portuguesa, não basta haver excelentes estudos críticos sobre Hegel ou, principalmente, tentativas de renovação, reatualização, recons-trução, etc., do pensamento ou do Sistema de Hegel. Há que se tenham também, prioritariamente, versões em língua nacional (em nosso caso a Lín-gua portuguesa) de toda a obra hegeliana e seus principais interlocutores, sobretudo daqueles que Hegel retomara e desenvolvera de modo explícito, bem como daqueles que sinceramente buscaram retomá-lo e desenvolvê-lo segundo suas próprias instâncias. Sem isso não se pode ainda celebrar– em

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terras lusófonas – o efetivo renascimento do espírito que habita a filosofia de Hegel; para o que também – ainda que fundamental para um estudo cien-tífico verdadeiramente consistente – não basta ler e estudar Hegel ou com ele discutir tão somente no original, este que só o é na escrita propriamente hegeliana, nos limites de seu tempo vivido, com seus acertos e desacertos.

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REH, NOTA SOBRE O NÚMERO 8

Manuel Moreira da SilvaEditor REH

Neste número 8 da Revista Eletrônica Estudos Hegelianos – REH – publicam-se dois artigos e duas traduções acerca de temas fundamentais do hegelianismo. O primeiro artigo, de Christian Klotz (UFSM), discute o tema da crítica e a transformação da “Filosofia da Subjetividade” na Fe-nomenologia do Espírito de Hegel; o segundo, de Márcia Cristina Ferreira Gonçalves (UERJ), volta-se para o tema: Hegel leitor de Goethe: Entre a física da luz e o colorido da arte. Já a primeira tradução, de Joãosinho Be-ckenkamp (UFPEL), disponibiliza entre nós as duas variantes do fragmento hegeliano “Die Liebe”, da época de Frankfurt (1787-1800), preenchendo as-sim uma importante lacuna entre nós no que diz respeito ao acesso a uma edição crítica do mesmo; a segunda, de Erick Calheiros de Lima (UNICAMP), nos torna disponível o chamado “Fragmento 22” dos Jenaer Sytementwürfe (1803/04). Enfim, além do editorial – em que se consideram os lançamen-tos mais recentes (2007/2008) sobre Hegel em Língua portuguesa –, com o qual se abre esta edição de nossa Revista, ainda publicamos a versão resu-mida de nossas Normas de Submissão.

Em A Crítica e Transformação da “Filosofia da Subjetividade” na Fe-nomenologia do Espírito, Christian Klotz busca esclarecer a relação entre a função crítica do capítulo “Consciência-de-si” e a crítica à filosofia da subje-tividade formulada por Hegel em escritos anteriores à Fenomenologia, so-bretudo em Fé e Saber. O autor defende a tese segundo a qual a crítica he-geliana a concepções filosóficas de subjetividade (como as de Kant, Jacobi e Fichte) e a reconstrução de figuras da autoconsciência são correspondentes entre si; o que contribui à compreensão da função sistemática do capitulo “Consciência-de-si”, sobretudo em razão de tal capítulo criticar figuras da autoconsciência que se opõem à concepção do saber na qual a separação da certeza de si e da referência a objetos é superada. Por seu turno, em Hegel leitor de Goethe: Entre a física da luz e o colorido da arte, Márcia Cristina Ferreira Gonçalves pretende tratar de algumas teses hegelianas, desenvol-vidas na Filosofia da Natureza e na Estética, relacionadas ao fenômeno da luz e da cor; caso em que, segundo a autora, Goethe serviria não apenas de inspiração teórica a Hegel, mas também de exemplo prático. Isso, de um lado, porque a doutrina goethiana das cores se mostra a Hegel enquanto muito mais completa e rica do que a newtoniana e, de outro, pelo fato de Goethe, enquanto artista e poeta, compreender o fenômeno da cor – aos olhos de Hegel – de modo muito mais apropriado à sua aplicação no campo da pintura e da arte.

Já em Hegel, variantes do fragmento “Die Liebe”, Joãosinho Be-ckenkamp fornece-nos a apresentação e a tradução do fragmento hegeliano da época de Frankfurt, intitulado “Die Liebe”. Tal versão se justifica sobre-

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tudo porque, de acordo com Beckenkamp, os textos da época de Frankfurt ainda não receberam uma edição crítica, permanecendo portanto uma la-cuna importante no que concerne a esses textos na edição crítica (em an-damento) da obra completa de Hegel. Diante disso, partindo de uma rápida contextualização da edição dos escritos de Hegel e do lugar do fragmento “Die Liebe” na mesma, especialmente no que tange à situação de impasse na investigação do período de Frankfurt, o tradutor apresenta a tradução de um fragmento na edição de Nohl (até agora considerado como texto de referência), seguido das duas versões originais do mesmo texto, publi-cadas por Ch. Jamme. Enfim, O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804): apresentação e tradução, de Erick C. de Lima, parte de uma contextualização do referido fragmento no que tange aos escritos de He-gel em torno da eticidade e aos fragmentos precedentes a este, de modo a explicitar a articulação hegeliana da tese da constituição do conceito de espírito, pela dialética não reducionista de consciência teórica e prática, em uma gênese intersubjetiva dos nexos comunitários. Logo após a mencionada contextualização, apresenta-se a tradução do fragmento em questão.

Com essas duas traduções, a Revista Eletrônica Estudos Hegelianos – REH – se mantém firme no projeto de contribuir para a disponibilização de textos clássicos ou raros que se mostrem fundamentais para o desenvol-vimento dos estudos hegelianos em Língua portuguesa. Isto significa que, embora o centro de gravidade de nossa política editorial para traduções seja a publicação de versões brasileiras dos próprios textos de Hegel, nossa pre-tensão é ampliar cada vez mais o espaço para artigos, documentos e outros tipos de textos ainda inéditos em Português que, de um modo ou de outro, estejam em consonância com a retomada e o desenvolvimento do Idealis-mo especulativo nos dias de hoje. Apesar disso, infelizmente, pela própria dificuldade em se produzir e, sobretudo, em se avaliar traduções com alto padrão técnico, crítico e científico, a disponibilização de materiais que inclu-sive já foram submetidos à REH permanece lenta. Finalmente, esperando contar com a benevolência de nossos leitores – e, em especial, de nossos colaboradores, justamente em vista de certa lentidão na publicação de seus materiais –, reafirmamos o propósito de uma revista filosófica tematicamen-te específica de alto padrão técnico e científico.

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A Crítica e Transformação da “Filosofia da Subjetivi-dade” na Fenomenologia do Espírito

Christian Klotz 1

RESUMO: Na Fenomenologia do Espírito, Hegel pretende justificar uma concepção do saber na qual a separação da certeza de si e da referência a objetos é superada. A função do capítulo “Consciência de si” é criticar figuras da autoconsciência que se opõem a esta concepção, na medida em que nelas a certeza de si exclui da sua essência qualquer referência a objetos e pretende manifestar-se como “negatividade absoluta” em relação a toda a esfera do ser objeti-vo-natural. O propósito do trabalho é esclarecer a relação entre esta função crítica do capítulo “Consciência-de- si” e a crítica à filosofia da subjetividade formulada por Hegel nos seus escritos anteriores, em particular em Fé e Saber. Defende-se a tese de que a crítica hegeliana a concep-ções filosóficas de subjetividade e a reconstrução de figuras da autoconsciência, apesar delas estarem situadas em planos diferentes, correspondem uma a outra, tal que este fato contribui à compreensão da função sistemática do capitulo “Consciência de si”. Este capítulo pode ser entendido como uma continuação metodicamente alterada da crítica à concepção fichtiana da subjetividade, cuja superação implica ao mesmo tempo a do dualismo de forma e matéria, que Hegel considerara em Fé e Saber como núcleo epistemológico da filosofia da subjetividade.

Palavras-chave: Hegel, Fenomenologia do Espírito, Filosofia da Subjetividade

ABSTRACT: In the Phenomenology of Spirit Hegel aims at justifying a conception of knowledge in which the separation of self-certainty and objective reference is superseded. The function of the chapter “Self-consciousness” in this project is to criticize figures of self-consciousness whi-ch are opposed to this conception, insofar as the certainty of itself here excludes all objective reference from its essence and tries to manifest itself as “absolute negativity” in relation to the entire sphere of objective-natural being. The aim of this paper is to clarify the relation betwe-en this critical function of the self-consciousness chapter and the critique of the philosophy of subjectivity formulated by Hegel in his earlier writings, in particular in Faith and Knowledge. It is argued that the Hegelian critique of philosophical conceptions of subjectivity and the recons-truction of the figures of self-consciousness, even if they are situated on different theoretical levels, correspond to each other in such a way that taking into account their correspondence contributes to understanding the systematic function of the self-consciousness’ chapter. This chapter can be understood as continuing the critique of the fichtean conception of subjectivity by other methodological means, superseding thereby the dualism of form and matter which in Faith and Knowledge had been considered the epistemological nucleus of the philosophy of subjectivity.

Keywords: Hegel, Phenomenology of Spirit, Philosophy of Subjectivity

I. Considerações preliminares

No Prefácio à primeira edição da Ciência da Lógica, cinco anos depois do acabamento da principal obra do seu período ienense, Hegel caracteriza a Fenomenologia do Espírito como exposição de um determinado desenvol-vimento da “certeza de si”. Segundo isto, a Fenomenologia expõe as trans-formações pelas quais a certeza de si supera sua separação dos objetos e

1. Doutor em Filosofia pela Ludwig Maximilian Universität München e professor adjunto da UFSM. Submetido em 15 de janeiro de 2008 e aprovado para publicação em 15 março de 2008.

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do pensamento que se refere a estes2. Assim, o propósito sistemático da Fenomenologia é demonstrar a possibilidade e, num certo sentido, a neces-sidade da absorção completa do saber objetivo na certeza de si.

Este propósito exige a demonstração de que o projeto de integrar a referência a objetos surge da própria estrutura da consciência-de-si. É exa-tamente esta a tese que, no decorrer da Fenomenologia, se expressa pela passagem para a razão. Pois por “razão” Hegel entende a consciência-de-si, na medida em que ela se orienta pelo projeto da apropriação – teórica e prática – de “toda a efetividade”3. No entanto, o ponto de vista da razão é estabelecido na Fenomenologia como resultado de uma transformação da consciência-de-si – aquela que Hegel reconstrói no capítulo que final-mente recebeu o título “Consciência-de-si”. Neste capítulo Hegel pretende considerar figuras da certeza de si que ainda não estão caracterizadas pelo projeto da apropriação total de objetos, sendo até opostas a este projeto. Por isso, aqui Hegel descreve o caráter das figuras da certeza de si conside-radas como “absoluta negatividade”, o que significa que a auto-concepção da consciência operante aqui exclui da certeza de si todo o ser de objetos e o saber referido a estes.4 Assim, o ponto de vista da razão é estabelecido na Fenomenologia como resultado da superação de certas figuras da consciên-cia-de-si que ainda não estão dirigidas para o fim próprio do desenvolvimen-to fenomenológico, sendo até opostas a este fim.

A função crítica que, com isso, o capítulo sobre a consciência-de-si possui, sugere uma vinculação deste capítulo com a crítica de concepções filosóficas da subjetividade que Hegel formulara em seus escritos anterio-res do seu período ienense, em particular em Fé e Saber. No entanto, as posições de Kant, Fichte e Jacobi consideradas ali como principais represen-tantes da filosofia da subjetividade não são mencionadas na reconstrução fenomenológica das figuras da consciência-de-si. E por certo, a crítica de concepções teóricas da subjetividade e a exposição fenomenológica de fi-guras da consciência estão situadas em planos bem diferentes. Que exista, apesar disso, uma vinculação estreita entre elas, cuja investigação contribui para a compreensão da função sistemática do capítulo “Consciência-de-si”, é o que quero mostrar no que segue. Minha tese principal será que a exposi-ção das figuras da consciência-de-si é uma continuação da crítica à filosofia da subjetividade, efetuada através de outros meios metódicos.

Minha exposição terá três partes: primeiro considerarei a concepção teórica de subjetividade que segundo Hegel está pressuposta em Kant, Fichte e Jacobi. Nesta parte, Fé e Saber estará em foco. Como núcleo da concepção de subjetividade evidenciar-se-á um modelo dualista de conhecimento, a cuja versão fichtiana Hegel também atribui uma importância positiva para o seu projeto filosófico. Num segundo passo quero mostrar que a concepção da certeza de si da qual parte o capítulo sobre a consciência-de-si corres-

2. Ver G. W. F. HEGEL, Wissenschaft der Logik, Hamburg: Meiner, 1975, p. 30.3. G. W. F. HEGEL, Fenomenologia do Espírito. – 2. Ed. – Tradução de Paulo Meneses, Petrópolis: Vozes, 2003 (no que segue: FdE), p. 173.4. FdE, p. 146.

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ponde à imagem do princípio da Doutrina da Ciência de Fichte que surge em Fé e Saber. Na parte final considerarei a vinculação entre a superação da concepção fichtiana do sujeito e a revisão do modelo de conhecimento, vinculação esta que tem uma função decisiva na passagem fenomenológica para o ponto de vista da razão.

II. Subjetividade e consciência de si em Fé e Saber

Em Fé e Saber, Hegel pretende apresentar e criticar “na completude das suas figuras” posições que consideram a subjetividade como princípio da filosofia5. No entanto, Hegel subsume sob o conceito geral de “filosofia da subjetividade” posições muito diferentes e aparentemente até opostas entre si – além das posições de Kant e Fichte, a de Jacobi, crítico rigoroso de Kant e Fichte. O conceito hegeliano de filosofia da subjetividade refere-se então a uma característica muito geral de teorias, que pode ser comum a posições consideradas como opostas até por seus autores. Aquilo que dificulta ainda mais a identificação desta característica de teorias é o fato de que Hegel em Fé e Saber enfatiza mais as diferenças entre as teses fundamentais de Kant e Fichte, por um lado, e Jacobi por outro, do que o que elas têm em comum.

No entanto, existem observações de Hegel em Fé e Saber que ex-plicitamente dizem respeito às premissas fundamentais compartilhadas por todas as posições consideradas. Estas apontam para um determinado mo-delo de conhecimento – um modelo que pode ser chamado “dualista” – que caracteriza de modo geral a filosofia da subjetividade.O núcleo desta con-cepção consiste na suposição de que o conhecimento surge da referência do pensamento a um conteúdo dado independentemente dele. Os dois elemen-tos desta relação são concebidos como sendo diferentes na sua essência – o pensamento fornece os aspectos gerais ou formais do conhecido, os dados o conteúdo concreto, para a relação própria do conhecimento com a realidade. Ambos, a contribuição formal do pensamento e o conteúdo fatual dado, são irredutíveis entre si e não podem ser entendidos a partir de um princípio mais fundamental. Assim, o conhecimento tem uma estrutura definitiva-mente dualista, e o modo como seus dois componentes se relacionam torna-se o assunto central da teoria do conhecimento. Segundo Hegel, a exposição do papel do entendimento no conhecimento dada por Jacobi, tanto no seu livro sobre Espinosa, quanto no David Hume, mostram que ele – como Kant e Fichte – aceita este modelo. A diferença entre o “dogmatismo”, isto é, o realismo epistemológico de Jacobi, e o “idealismo” de Kant e Fichte, segundo Hegel, apenas diz respeito a variações dentro deste modelo, que resultam de concepções diferentes a respeito da dependência ou independência do “material” dado do sujeito6.

5. Ver G. W. F. HEGEL, Gesammelte Werke, Hamburg: Meiner, 1986 ss., vol. 4 (no que segue: FS), p. 315.6. Ver FS, pp. 389, 390 e 392. Assim, a intenção da critica do jovem Hegel à filosofia da sub-jetividade corresponde à crítica ao dualismo de esquema conceitual e conteúdo, como esta foi formulada por D. Davidson e J. McDowell. Esta vinculação tem sido discutida recentemente em várias contribuições, no entanto, mais com referência à Fenomenologia do que aos escritos

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Assim, mesmo que Jacobi critique a Doutrina da Ciência de Fichte, há um consenso implícito com ela a respeito da concepção dualista do co-nhecimento. É esta concepção compartilhada por Kant, Fichte e Jacobi que Hegel tem em mente ao falar deles como representantes do mesmo tipo de teoria, da “filosofia da subjetividade”. Por “subjetividade”, ele entende aqui a propriedade do pensamento, pressuposta por estas teorias, de referir-se no conhecimento a uma realidade que é absolutamente dada, sendo essen-cialmente não-conceitual. Então, subjetividade não é nada mais do que a finitude do pensamento no sentido da sua referência a algo essencialmente outro. Aqui fica claro por que Hegel caracteriza as teorias que pressupõem a subjetividade do pensamento como produto da “reflexão”. Pois já no seu escrito sobre a diferença entre os sistemas de Fichte e Schelling ele enten-dera por “reflexão” o operar com concepções dualistas, o ponto de vista do “entendimento”, que atribui a oposições – como aquela entre pensamento e realidade dada – validade última7.

A concepção de um pensamento que se refere a uma realidade não-conceitual, que segundo Hegel caracteriza todas as versões da filosofia da subjetividade, deixa espaço para exposições teóricas muito diferentes. Como já observei, Hegel enfatiza que tal concepção pode ser combinada com am-bas as afirmações da dependência ou independência da realidade “dada”, e assim admite o realismo de Jacobi bem como o subjetivismo epistemológico de Kant e Fichte. No entanto, ao distinguir “formas” diferentes que a filo-sofia da subjetividade pode adotar, Hegel tem outros aspectos em mente. Pois sua distinção refere-se a modos diferentes como a própria concepção de subjetividade é concebida. No entanto, a questão de como Hegel divide a filosofia da subjetividade sob este aspecto não é fácil de responder. A di-visão explícita do texto segue uma tripartição, segundo a qual Kant, Jacobi e Fichte representam cada qual uma das figuras possíveis da concepção de subjetividade como princípio da filosofia. No entanto, encontra-se também uma divisão da filosofia da subjetividade em duas formas, a concepção da subjetividade de Jacobi sendo contrastada com a de Kant e Fichte. Esta úl-tima divisão recebe cada vez mais importância ao longo do texto. Assim, na conclusão do escrito, Hegel diz que a filosofia de Jacobi, sob o aspecto da sua concepção de subjetividade, é a que carece mais de uma relação “ime-diata” e positiva com a filosofia verdadeira. Em contraste com isso, Hegel encontra em Kant e Fichte uma concepção de subjetividade que possui uma vinculação imediata e positiva com a especulação8. A divisão bipolar é siste-maticamente decisiva para Hegel, de modo tal que ela também vai cunhar a exposição da consciência-de-si na Fenomenologia do Espírito, como preten-do mostrar no que segue.

A divisão bipolar da filosofia da subjetividade diz respeito à questão de como a consciência-de-si, e com isso o sujeito, tem que ser explicitada e localizada dentro do quadro epistemológico da filosofia da subjetividade.

críticos do jovem Hegel (ver Chr. HALBIG et al. (org.), Hegels Erbe, Frankfurt 2004, p. 10 s.).7. Ver, FS, p. 13 ss.8. Ver FS, p. 413.

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Dentro da concepção da estrutura dualista do conhecimento, que segundo Hegel constitui o núcleo da filosofia da subjetividade, aparecem duas opções para isso. Por um lado, pode-se localizar a autoconsciência na parte do pen-samento operativo formal, que enfrenta uma realidade dada e não-conceitu-al. Neste caso, a autoconsciência é concebida como referência a um sujeito pensante que, como tal, é diferente de qualquer realidade dada. O “eu” aqui é caracterizado por indeterminação e pela exclusão de diversidade. Ele pos-sui uma identidade distanciada do mundo. Mas o modelo dualista permite também uma outra concepção da consciência-de-si: pode-se atribuir à auto-referência a função de localizar o sujeito na realidade dada ao pensamento. Neste caso, a consciência-de-si é concebida como auto-familiaridade empí-rica, que diz respeito a um ser singular entre outros. Este ser singular ainda é sujeito, e assim distinguido de “coisas”, na medida em que é um indivíduo consciente que vive sentimentos e sensações. Assim, duas concepções con-trastantes da consciência-de-si são possíveis no quadro da filosofia da sub-jetividade, que resultam pelo modo como se localiza o si-mesmo consciente na assumida estrutura dualista do conhecimento – no lado do pensamento formal, ou da realidade pré-conceitualmente dada. A exposição hegeliana das concepções do sujeito encontradas em Kant e Fichte, por um lado, e em Jacobi, por outro, pode facilmente ser entendida a partir desta alternativa. Desse modo, Hegel atribui à filosofia teórica de Kant a concepção de um “eu vazio”, que exclui qualquer diversidade; e o conceito fichtiano do “eu” refere-se, segundo Hegel, a uma atividade pura, que se opõe a qualquer “ser” ou “realidade”. Por isso, o caráter fundamental do eu fichtiano é sua “negatividade” em relação com qualquer determinação9. Em contraste com isso, o conceito de sujeito adotado por Jacobi refere-se ao ponto de vista da “individualidade” e da “sensação”, a “seres singulares que se revelam para si mesmos” e se encontram numa relação originária com objetos dados na experiência10.

O fato de que Hegel reconhece na primeira concepção, atribuída a Kant e Fichte, uma relação positiva com o pensamento especulativo, se tor-na compreensível pelo conceito especulativo da infinitude como caracterís-tica do absoluto, que Hegel expõe em Fé e Saber com referência a Espinosa e ao mesmo tempo no sentido da sua própria posição. Segundo ele, a in-finitude verdadeira tem que ser pensada como todo-abrangente, e assim, como incluindo o finito. No entanto, isso significa que o infinito também tem que ser distinguido do finito, o qual ele envolve, sem simplesmente coincidir com ele. O infinito envolve o finito como o outro de si. Neste sentido Hegel diz que o infinito é “a identidade do infinito e do finito mesmo; a saber, do infinito na medida em que este se opõe ao finito ...”. Conseqüentemente, o infinito, mesmo que inclua o finito, é ao mesmo tempo caracterizado por um “lado negativo”, seu não-ser-finito11.

É exatamente esta relação negativa com o finito, constituindo um

9. Ver FS, p. 387.10. Ver FS, p. 349 (tradução minha).11. Ver FS, p. 358/359 (tradução minha).

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aspecto subordinado mas essencial do absoluto como infinito, o que Hegel considera expresso pela concepção kantiana e fichtiana do sujeito. Assim, o eu “puro” distanciado de qualquer determinação representa, dentro do quadro da filosofia da subjetividade, o aspecto do absoluto de encerrar uma diferença com qualquer determinação; e por isso a filosofia da subjetivida-de de Kant e Fichte, em contraste com a de Jacobi – que coloca o sujeito no lado da determinação – possui uma relação positiva com o pensamento especulativo.

Hegel considera que este pensamento destaca-se “com contorno mais nítido” em Fichte12. Assim, ao apreciar positivamente a filosofia da sub-jetividade na conclusão do seu escrito, Hegel pensa sobretudo em Fichte. De acordo com isso, a exposição sobre Fichte em Fé e Saber enfatiza a relação negativa com qualquer determinação como característica fundamental do eu fichtiano. Segundo Hegel, a idéia da exclusão de determinação está desde o início presente na formulação fichtiana do seu princípio. Isso se mostra, por exemplo, no fato de que o acesso metódico ao eu é realizado através da abstração de todas as determinações dadas na consciência. Pois, como He-gel comenta, “o que é resultado da abstração ... está imediatamente numa relação negativa com aquilo do qual se abstrai”. Conseqüentemente, a rela-ção negativa com determinações não é um aspecto extrínseco do conceito fichtiano do eu, mas um elemento essencial deste conceito.

A exposição, em Fé e Saber, da relação entre a concepção fichtiana do eu e o conceito especulativo do absoluto difere neste ponto da exposição defendida no escrito anterior sobre a diferença entre os sistemas de Fichte e Schelling. Ali, Hegel ainda reconhece que Fichte parte da idéia de uma auto-referência que não envolve qualquer oposição, e com isso de um ab-soluto que não é originalmente definido pela exclusão do finito, mas como todo-abrangente. Conseqüentemente, Hegel considera ali o ponto de vista da especulação presente na exposição fichtiana do princípio da Doutrina da Ciência, mesmo que este não seja mantido na construção do sistema, a determinação não sendo incorporada no “eu”. Assim, surge neste escrito a imagem da Doutrina da Ciência como uma teoria com duas faces, uma delas estando de acordo com a intenção do pensamento especulativo de superar a oposição entre o finito e o infinito, a outra estando caracterizada pela oposição entre o infinito e o finito, correspondendo ao entendimento. No entanto, segundo Fé e Saber a concepção fichtiana do eu tem uma única face. Ela refere-se desde o início a uma auto-referência que exclui qualquer determinação e assim é essencialmente caracterizada por “negatividade”. Na concepção fichtiana do “eu”, diz Hegel aqui, “domina completamente o entendimento”. Portanto, a suposição de uma relação positiva entre a con-cepção de Fichte e o conceito especulativo do absoluto é enfraquecida em Fé e Saber, mas – como se mostrou – ainda se mantém. A concepção fichtiana do “eu” corresponde ao momento subordinado do conceito do absoluto que é concebido pelo entendimento, a saber, sua relação negativa em relação com qualquer determinação.

12. Ver FS, p. 388 (tradução minha).

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III. A exposição hegeliana da consciência-de-si na Fenomenologia do Espírito

Ao voltar-se para a consciência-de-si na Fenomenologia, Hegel não pretende – como em Fé e Saber – criticar certa posição teórica. Segundo o programa da obra, trata-se aqui de explicitar o próprio ponto de vista da consciência-de-si. O propósito é o de considerar as “experiências” – para mencionar o termo chave da metodologia da obra – que a consciência faz, na medida em que ela entende todo o seu saber como um saber de si mes-ma.

No entanto, a exposição introdutória com a qual Hegel abre o capítulo “consciência-de-si” sugere uma correspondência sistemática com a discus-são da filosofia da subjetividade dada em Fé e Saber13. Hegel começa aqui com uma caracterização da estrutura fundamental da consciência-de-si, es-trutura comum às figuras da autoconsciência a serem investigadas. Sem a concepção geral da consciência-de-si exposta aqui, a posterior apresentação das suas “figuras” não seria compreensível. Segundo ela, o caráter original da consciência-de-si consiste em ser um “ser-para-si puro”, que se refere a um “eu puro” livre de toda determinação objetiva ou natural14. Conseqüen-temente, a certeza de si é caracterizada por uma distância com qualquer determinação dada – mesmo que ela seja a “própria” –, que ela exclui da sua identidade como algo não essencial para ela. Hegel chama esta exclusão da determinação, na medida em que ela domina o ponto de vista da consci-ência-de-si, sua “absoluta negatividade”15. Esta imagem da situação original da autoconsciência é pressuposta em toda a exposição hegeliana das suas figuras. Assim, Hegel interpreta o desejo, bem como a luta de vida e morte, não como conseqüências de alguma necessidade natural ou da concorrência por posse, mas como manifestações da relação negativa com qualquer de-terminação dada, seja esta externa ou interna, que caracteriza a consciên-cia-de-si16.

Obviamente, a imagem da consciência-de-si da qual Hegel parte cor-responde àquela que Hegel tinha atribuído a Fichte em Fé e Saber. Ali, a relação negativa do eu com toda determinação foi considerada o caráter fundamental do eu fichtiano. Ao basear a exposição fenomenológica da pró-pria perspectiva da consciência-de-si e das suas experiências nesta concep-ção, Hegel reconhece que o distanciamento de toda determinação realmente constitui um aspecto essencial da consciência-de-si. Foi exatamente com relação a esta característica da consciência-de-si que Hegel falou em Fé e Saber de uma “relação positiva” da concepção fichtiana com o conceito especulativo do absoluto. No entanto, isso não significa que a exposição da autoconsciência dada na Fenomenologia pretende confirmar a posição de Fichte. Em vez disso, a função do capítulo “Consciência-de-si” consiste em

13. Ver FdE, p. 135 ss.14. FdE, p. 140.15. FdE, p. 188.16. Ver FdE, pp. 137, 140 e 145/46.

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mostrar que uma consciência-de-si que se considera como sendo exaus-tivamente caracterizada por sua relação negativa com toda determinação não pode conseguir nenhum “saber” de si. Este “insight” é estabelecido a partir da própria perspectiva da consciência-de-si – como resultado das suas “experiências”. A reconstrução hegeliana destas experiências baseia-se na análise da consciência – presente já na Introdução da obra – pelo par de conceitos “saber” e “verdade”, análise segundo a qual o saber da consciência refere-se essencialmente a um objeto diferente dele17. A autoconsciência pura, que diz respeito a um sujeito que exclui qualquer determinação, ainda não cumpre esta condição. Ela é uma mera “certeza de si”, que, para ser “saber” de si no sentido próprio, precisa fazer referência a objetos e, com isso, à realidade determinada. Portanto, o saber de si tem que incluir refe-rência a uma instância objetiva correspondente a ela, que ultrapassa a mera certeza de si. Ela precisa de algo que é sua expressão ou representação objetiva. É exatamente esta condição que Hegel indica no título desta seção – “A verdade da certeza de si” – como seu assunto próprio18.

A condição de que deve haver uma realização objetiva da certeza de si por si não exclui a possibilidade de manter um saber de si cunhado pela idéia da relação negativa com qualquer determinação objetiva. Pois ela po-deria ser cumprida pelo fato de que o caráter não essencial do ser objetivo para o eu puro se manifesta nos objetos ou no modo como se faz a referên-cia a objetos. Como tentativas de conseguir expressar um si-mesmo não-objetivo em sua referência a objetos, Hegel interpreta figuras da consciência tão diferentes como a do desejo e da atividade do cético, que suspende qualquer afirmação de uma referência objetiva dos seus juízos e assim ma-nifesta-se como um sujeito para o qual uma tal referência não é essencial19. Que tais casos limite de uma auto-manifestação não possibilitam um saber de si coerente – é exatamente esta a tese que a exposição das experiências da consciência visa mostrar. Assim, seu resultado é o de que a consciência tem que incorporar positivamente a determinação objetiva na sua auto-re-ferência, mesmo que o sujeito consciente nunca coincida simplesmente com ela, e que com isso certa distância de qualquer determinação permanece sendo um aspecto essencial da consciência-de-si20.

Pode-se dizer então que o resultado das experiências expostas no capítulo “Consciência-de-si” significa uma revisão radical do modo como a autoconsciência pura se relaciona com objetos como tais. A certeza de si, que subjaz a qualquer referência a objetos, é incluída na transformação das figuras epistêmicas da consciência, e assim não é mais o negativo imutável dos objetos, como o que é concebido em Fichte. Esta dinamização da cer-

17. Ver FdE, pp. 77/78.18. FdE, p. 135. A distinção hegeliana entre “certeza de si” e “saber de si” corresponde a dis-tinções envolvidas já na análise da auto-referência em Kant e Fichte: à distinção entre a “mera consciência” Eu penso e o autoconhecimento em Kant, e à distinção entre a autoconsciência “imediata” e a reflexão em Fichte.19. Ver FdE, pp. 141 e 155/156.20. Corresponde a isso o fato de que na concepção especulativa do infinito – o que segundo Fé e Saber tem uma estrutura análoga à consciência de si - a diferença com o finito é conservada como um momento subordinado.

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teza de si é explicitamente indicada por Hegel como idéia chave do capítulo “Consciência-de-si”, quando logo no início do capítulo ele afirma que o “eu puro” vai “enriquecer-se” e receber um “desdobramento”21. O enriquecimen-to e desdobramento da certeza de si consiste no fato de que ela desenvolve com cada vez mais sucesso modos de relacionar-se com objetos que cap-tam a constituição independente deles e, ao mesmo tempo, envolvem sua atividade espontânea. A tese de que a possibilidade de uma tal síntese de conhecimento objetivo e auto-expressão só é compreensível se uma posição monista é aceita, concebendo o próprio pensamento e a estrutura da reali-dade como momentos do desdobramento da mesma instância absoluta, será a tese final de Hegel na Fenomenologia.

Hegel, portanto, no capítulo “Consciência-de-si”, de fato parte de uma imagem da autoconsciência que corresponde à concepção atribuída a Fichte, em Fé e Saber. A certeza de si é concebida aqui como uma consciência-de-si “pura” e distanciada de qualquer determinação natural, que só pode se manifestar pela negação de objetos. No entanto, a intenção sistemática do capítulo é estabelecer, a partir do próprio ponto de vista da certeza de si, a necessidade de passar para uma outra imagem da relação entre atividade espontânea e determinação objetiva – a saber, para a idéia de que “toda realidade” na sua determinação independente corresponde positivamente às estruturas que são essenciais para o pensamento e agir auto-determi-nado. Uma tal estratégia crítica contra a concepção fichtiana da autocons-ciência pura ainda não se encontrava em Fé e Saber, onde o ponto de vista especulativo estava pressuposto desde o início. Sua possibilidade surgiu só pela concepção fenomenológica de experiências epistemicamente radicais, que podem transformar nossa auto-concepção como sujeitos espontâneos, e com isso também o modo como nos relacionamos como tais sujeitos com a realidade22.

IV. A Guisa de conclusão: Auto-concepção e modelo de conhe-cimento na passagem à Razão

O resultado de que a concepção fichtiana do “eu” pode ser identifi-cada como o alvo implícito do capítulo “Consciência-de-si” ainda não deixa claro em que medida este capítulo também envolve uma crítica do modelo de conhecimento que, segundo a exposição em Fé e Saber, constitui o nú-cleo das formas da “filosofia da subjetividade”. Então, deve-se perguntar em que medida a Fenomenologia continua a crítica da filosofia da subjetividade como crítica de determinado modelo de conhecimento, e, se for assim, em que consiste o procedimento particular adotado na Fenomenologia para fun-dar uma tal crítica.

Estas questões exigem voltar-se para o método que a investigação

21. FdE, p. 140.22. Na medida em que Hegel busca revisar, e não eliminar, a concepção do eu puro, existe ai-nda uma continuidade entre seu projeto especulativo e a fundamentação da filosofia por Kant e Fichte. Cf. R. PIPPIN, Hegel’s Idealism, Cambridge 1989, p. 16 ss.

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crítica de concepções do conhecimento segue na Fenomenologia. Hegel con-sidera aqui modos de relacionar-se com objetos sob o aspecto de como eles conseguem evidenciar o que neles é concebido como “a verdade”, isto é, o caráter fundamental da realidade. Tais modos em consideração de relacio-nar-se com objetos podem ter um caráter teórico ou prático; em todo caso eles visam corresponder ao que é concebido como caráter fundamental da realidade. Na medida em que são dirigidos para uma tal relação de adequa-ção, eles são (ou envolvem), num sentido amplo, práticas epistêmicas, isto é, práticas que visam a conseguir “saber”. Enquanto práticas, as figuras da consciência não se ocupam explicitamente de concepções de conhecimento – elas pretendem realizar um relacionar-se com objetos que corresponde ao assumido caráter fundamental da realidade, e com isso, a realizar “saber”. No entanto, elas pressupõem nisso certa concepção da relação de adequa-ção e, com isto, certa concepção de conhecimento. Pode-se dizer que as figuras da consciência consideradas praticam certos modelos de saber. Ago-ra, a estratégia metódica de Hegel na Fenomenologia consiste em exami-nar concepções de saber ao considerar as práticas epistêmicas que tentam pô-las em ação. As experiências feitas nestas práticas, e não investigações gerais sobre o conceito e as condições de conhecimento, mostrariam como se devem avaliar os modelos de conhecimento em consideração. Assim, a Fenomenologia pode ser vista como o substituto hegeliano da epistemolo-gia; ela é uma continuação deste projeto por outros meios23.

Para a exposição fenomenológica das práticas epistêmicas em con-sideração é decisiva a idéia de que estas são caracterizadas por certa auto-concepção do sujeito que as exerce. A partir disso entende-se o foco na consciência-de-si, presente no resumo da obra que Hegel faz mais tarde no prefácio à primeira edição da Ciência da Lógica. No entanto, isso não significa apenas que a consciência possui, além de uma concepção geral da realidade a ser conhecida, uma concepção de si como a instância cognos-cente. Ao invés disso, a tese de Hegel é que a auto-concepção é constitutiva para o modo como são concebidas a realidade a ser conhecida e a procurada correspondência com ela. No seu relacionar-se com o mundo natural e social a consciência procura realizar o que ela considera seu próprio caráter funda-mental. O que a consciência busca em sua referência a objetos é, no fundo, um saber de si mesma. A afirmação da assim concebida egocentricidade das práticas epistêmicas consideradas, que Hegel introduz na passagem para a consciência-de-si, é a tese fundamental para todas as partes restantes da Fenomenologia. Essa afirmação tem como conseqüência que Hegel, a partir deste ponto, descreve as práticas epistêmicas em questão primariamente com referência à auto-concepção que lhes subjaz. O conceito de saber que orienta uma prática epistêmica é reconstruído como implicação da auto-con-cepção do sujeito cognoscente.

Dada esta estratégia, é plausível considerar que a superação do mo-delo de conhecimento que caracteriza a “filosofia da subjetividade” é efe-23. De acordo com isso, Hegel diz no Auto-anúncio da Fenomenologia que a obra substitui “as abordagens abstratas sobre a fundamentação do conhecimento” (Gesammelte Werke (cf. nota rodapé 4), vol. 9, p. 446).

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tuada pelo fracasso daquelas práticas que se baseiam na auto-concepção fichtiana. Conseqüentemente, deve-se considerar o capítulo “Consciência-de-si” como reconstrução da superação “prática” do modelo dualista de co-nhecimento que a filosofia da subjetividade faz valer. Esta vinculação mani-festa-se na descrição hegeliana do resultado positivo deste capítulo, isto é, do ponto de vista da razão no sentido da certeza de ser “toda realidade”. Por “razão” Hegel entende aqui uma auto-concepção segundo a qual a própria essência não consiste mais na exclusão de qualquer determinação objetiva e da referência a ela, mas na apropriação completa das determinações ob-jetivas – uma apropriação que só torna manifesto o caráter conceitual que a realidade “em si” já tem. Em práticas que se baseiam nesta auto-concepção, o dualismo de “forma conceitual” e realidade dada não-conceitual é abando-nado; ela já visa colocar em ação sua alternativa especulativa, mesmo que inicialmente por meios conceituais inapropriados.

Assim, a Fenomenologia do Espírito continua, de um modo metodi-camente alterado, a crítica à filosofia da subjetividade no sentido da críti-ca de um determinado modelo de conhecimento. Seu propósito é mostrar que a superação deste modelo é necessária para se conseguir uma prática epistêmica coerente. Como foi anteriormente mostrado, a crítica fenome-nológica deste modelo baseia-se na vinculação das práticas que o aplicam com uma auto-concepção que corresponde à concepção fichtiana da consci-ência-de-si. Tal crítica baseia-se na idéia hegeliana de uma possível revisão da consciência-de-si pura, que abandona seu caráter negativo, introduzindo modos de relacionar-se com objetos que implicam o reconhecimento do mo-delo especulativo do conhecimento. Assim, a crítica hegeliana da filosofia da subjetividade não significa a marginalização do papel epistêmico da auto-referência; ao contrário, ela emprega a estratégia de criticar o modelo de conhecimento adotado pela filosofia da subjetividade através da exposição de um desenvolvimento ideal da certeza de si que possibilita o saber verda-deiro. A tese de Kant e Fichte de que a auto-referência é fundamental para o conhecimento é transformada na Fenomenologia, mas não abandonada. “Filosofia da subjetividade”, nesta acepção, não é o alvo da crítica hegeliana, mas um elemento constitutivo do próprio projeto hegeliano24.

24. Agradeço a Thiago Santoro pela revisão preliminar do texto.

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Hegel leitor de Goethe: Entre a física da luz e o colorido da arte

Márcia Cristina Ferreira Gonçalves1

RESUMO: Neste trabalho, pretendo tratar de algumas teses hegelianas desenvolvidas tanto em sua filosofia da natureza quanto em sua filosofia da arte relacionadas ao fenômeno da luz e da cor. Em ambos os diferentes contextos, Goethe serve não apenas de inspiração teórica para Hegel – na medida em que teria oferecido uma doutrina das cores muito mais completa e rica do que a teoria newtoniana mais freqüentemente aceita pela ciência –, mas também de exemplo prático, por que, enquanto artista e poeta, compreenderia o fenômeno da cor de modo muito mais apropriado à sua aplicação no campo da pintura e da arte da imaginação em geral, incluído a poesia. Palavras-chave: Hegel, Goethe, Arte, Cores, Luz.

ZUSAMMENFASSUNG: Im Rahmen dieser Arbeit beabsichtige ich, einige der Hegelschen The-sen zu behandeln, die sowohl in seiner Naturphilosophie als auch in seiner Kunstphilosophie entwickelt wurden und auf die Licht- und Farbphänome bezogen sind. In verschiedenen Zu-sammenhängen dient Goethe nicht nur der theoretischen Inspiration Hegels – in dem Maße, dass er eine Farbenlehre präsentiert, die reicher als die Newtonsche Theorie ist, die öfter in der Wissenschaft akzeptiert wurde –, sondern auch als praktisches Beispiel, weil er als Künstler und Dichter das Phänomen der Farbe in einer adäquateren Weise begriff, um es auf dem Gebiet der Malerei und der Kunst der Einbildungskraft (einschliesslich der Dichtkunst) zu verwenden.Schlüssel-Worte: Hegel, Goethe, Kunst, Farben, Licht.

Neste ensaio, pretendo demonstrar a influência de Goethe sobre He-gel não apenas na formulação de uma filosofia da natureza, mas também em sua filosofia da arte. O primeiro aspecto que pretendo destacar para defender esta dupla influência está no fato de que as principais teses goe-thianas sobre a natureza perpassam também o domínio da arte. Sem dúvida a maior parte das referências que Hegel faz ao pensamento teórico de Go-ethe se encontram em sua Filosofia da Natureza, publicada em 1830 como parte da obra intitulada Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Nos Cursos de Estética, o nome de Goethe é bastante citado, mas em geral como exemplo da boa arte, do excelente poeta, enfim, como parâmetro da poesia univer-sal que Hegel tanto elogia. Na Filosofia da Natureza, Goethe também serve como parâmetro: aquele que poderá um dia finalmente superar uma forma inadequada de se fazer ciência, fundada nas práticas abstratas da empiria e da análise, típicas do chamado entendimento. Contudo, uma das teorias de Goethe sobre a natureza que mais ocupam o autor da Enciclopédia das Ciências Filosóficas consiste em sua doutrina das cores. Meu objetivo neste ensaio é ao menos indicar como a leitura de Hegel da Doutrina das Cores de Goethe foi fundamental não apenas para sua própria concepção de uma físi-ca especulativa, capaz de superar uma visão mecanicista da natureza, mas também para sua concepção estética sobre o fenômeno das artes plásticas,

1. Doutora em Filosofia pela Freie Universität Berlin e professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UERJ. Submetido em 5 de fevereiro e aprovado para publicação em 15 de março de 2008.

Revista Eletrônica Estudos HegelianosAno 5, nº8, Junho-2008: 37-56

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em especial da arte da pintura. Pretendo por fim demonstrar como este diálogo entre o ensaísta da natureza e poeta classicista e o idealista absoluto – que concebeu além de uma filosofia do espírito, uma filosofia da nature-za e uma filosofia da arte – se constrói em função da idéia de que tanto o fenômeno da luz quanto o fenômeno da cor transitam e fluem da esfera da natureza para a esfera da arte.

Quando no § 246 da Introdução de sua Filosofia da Natureza Hegel cita Goethe pela primeira vez nesta obra, sua intenção é provar como a ciên-cia de cunho analítico e mecanicista, predominante em sua época, acabava por realizar uma cisão aparentemente inconciliável entre o aspecto univer-sal de sua teoria sobre a natureza e a particularização ou finitização de sua prática empírica. A passagem de Goethe citada por Hegel não pertence a ne-nhum de seus ensaios de filosofia da natureza, mas sim à sua mais famosa obra poética: Fausto. Esse fato curioso revela já de antemão a conscien-tização que Hegel parece querer despertar em seus leitores sobre a relação intrínseca entre a filosofia da natureza, praticada no início do século XIX por pensadores como Goethe e Schelling, e uma concepção estética ou, mais precisamente, poética da mesma. Uma conscientização que eu pretendo também resgatar com este ensaio.

Essa primeira passagem de Goethe citada por Hegel é retirada de um diálogo, ambientado no gabinete de Fausto, entre Mefistófeles e um jovem estudante. Disfarçado no mestre, o demônio passa a aconselhar o estudante ainda indeciso sobre o objeto de seu estudo. Deveria inicialmente estudar a lógica, pois depois deste inicial “adestramento”, estaria pronto para a ciên-cia, fundada, segundo ele, em duas práticas fundamentais: a redução e a classificação. Comparando o ensino da ciência com uma “fábrica de idéias”, Mefistófeles pronuncia então o trecho citado em parte por Hegel:

Wer will was Lebendigs erkennen und beschreiben, Sucht erst den Geist heraus zu treiben, Dann hat er die Teile in seiner Hand, Fehlt, leider! nur das geistige Band. Encheiresin naturae nennt’s die Chemie, Spottet ihrer selbst und weiß nicht wie. (GOETHE, 1986, p. 54)

Quem quer conhecer e descrever algo vivoBusca primeiro expulsar-lhe o espíritoEntão tem na mão todas as partes Falta-lhe – infelizmente! – o laço espiritual.Encheiresin naturae2 chama-o a química,Zomba de si mesma e não sabe como (HEGEL, 1993, p. 21; 1997, p. 23)3

2. A palavra grega Encheiresin significa “ter em mãos”, dominar. A expressão inteira, formada também com a palavra em latim naturae significa “o domínio da natureza”. Encheiresin naturae é uma expressão alquímica que se refere à suposta ligação entre corpo e alma, ou seja, ao chamado “laço espiritual”. Os alquimistas esperavam encontrar na natureza uma força análoga a esta ligação e com a sua ajuda, produzir a chamada “pedra dos sábios” ou “pedra filosofal”. Mefistófeles ironiza esta pretensão de “saber” presente também, segundo ele, nas ciências da natureza modernas. Cf. PAUL BRIAN. Study Guide for Goethe’s Faust. In: http://www.wsu.edu:8080/~brians/hum_303/faust.html.3. Os quatro últimos versos são citados por Hegel (em ordem invertida) no § 246 de sua

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Ilustrando esta passagem do Fausto, Hegel apresenta (quem diria!) uma imagem bastante romântica: a de uma flor, que analisada pela ciência da química, perderia o chamado “laço espiritual” (geistigen Band), transfor-mando-se em partes sem vida, ou em um agregado de substâncias: “ácidos cítricos, óleo etérico, carbono, hidrogênio, etc”. A solução para tal problema, que Hegel diagnostica como uma tentativa “da reflexão do entendimento” de se impor sobre o espírito, surge quase que “naturalmente”, já que segundo o próprio Hegel “o espírito não pode (kann nicht) permanecer neste modo da (chamada) Verstandensreflexion”. Entretanto, a saída que o espírito encontra para libertar-se dessa finitude do entendimento se bifurca, segundo o filó-sofo, em duas vias distintas – uma mais correta que a outra. Ambas podem começar (e em geral começam) com uma apreensão imediata do fenômeno da natureza, ou com a chamada “intuição” (Anschauung). Em Goethe, essa intuição recebe um significado muito mais espiritual e (podemos mesmo afirmar) muito mais poético do que propriamente sensível. Segundo Hegel, Goethe apresenta como condição fundamental para o surgimento da filosofia da natureza uma espécie de “pressentimento” (Ahnung)4 de que o universo consiste em um “todo orgânico” (ein organisches Ganze) ou numa “totali-dade racional” (eine vernünftige Totalität). Esse pressentimento é comple-mentado pelo “sentimento” (tanto no sentido sensível, quanto no sentido espiritual) de que há uma unidade própria em cada um dos indivíduos que habitam este universo – o que aqui poderíamos interpretar como uma cer-ta evidência da individuação. A primeira via de libertação do espírito de seu aprisionamento pela reflexão do entendimento – que é capaz de cindir analiticamente a evidente unidade dos seres vivos individuais, arrebentan-do-lhe seu laço espiritual – seguiria com a tentativa de aplicar a intuição relativamente imediata da natureza de novo à esfera da reflexão. Como se fosse então possível reagrupar as várias partes cindidas pelo entendimento novamente em um único todo ou – voltando à imagem poética de Hegel – reconstruir ou sintetizar novamente a totalidade de uma flor a partir dos fragmentos resultantes da análise promovida pela química do entendimento. A segunda via, ao contrário, retorna da intuição para o conceito ou para a razão. Este retorno da intuição à via do conceito teria sido alcançado justa-mente pelo maior poeta do classicismo alemão, a quem Hegel novamente cita, ainda no § 245 da Enciclopédia, só que agora com uma passagem de seu ensaio Sobre a Morfologia, de 1820. Neste ensaio, Goethe expressa de forma poética a idéia de uma totalidade orgânica da natureza:

Alles gibt sie reichlich und gern; Natur hat weder Kern Noch Schale, Alles ist sie mit einem Male; Dich prüfe du nur allermeist, Ob du Kern oder Schale seist. (GOETHE, 1820, p. 304; HEGEL, 1993, p. 22)5 A natureza ricamente e de bom grado tudo dá;Ela não tem núcleoNem casca,

Filosofia da Natureza.4. Já que não se pode “ver” imediatamente na natureza isto que Goethe quer afirmar.5. Este poema de Goethe foi reeditado na coletânea Gott und Welt com o título „Allerdings“ e subtítulo „Dem Physiker“.

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Ela é tudo de uma vez;Experimenta-te a ti sobretudo[E apenas vê] se tu és [só] núcleo ou [só] casca. (HEGEL, 1997, p. 24)

A elevação da intuição ao conceito, traçada então por esta segunda via, dá-se assim como reconhecimento de que a totalidade orgânica que confere aos seres da natureza sua vitalidade necessária ou sua alma univer-sal é a mesma que em nós possibilita a “experiência” de que somos um e o mesmo, no interior e no exterior de nossa existência no mundo.

Essa parece ser a maior lição aprendida por Hegel de toda a teoria da natureza de Goethe: superar a aparente oposição entre interior e exte-rior, entre objetivo e subjetivo em relação aos fenômenos da natureza que preenchem não apenas o mundo que nos cerca, mas também e principal-mente o nosso mundo interior. No fundo só existe um único mundo, uma totalidade absoluta e complexa que serve de palco, ao mesmo tempo em que é o ator principal, deste grande teatro que é a natureza.

Neste sentido, Goethe se empenha por revelar que não apenas o pensamento conceitual e racional é capaz de operar em harmonia com a ordem do universo, desvendando e compreendendo os antigos mistérios do mundo, mas também a intuição, se bem compreendida, é capaz de demon-strar uma série de conexões antes desconhecidas. O maior e mais complexo trabalho de Goethe neste sentido consiste em sua doutrina das cores, elab-orada entre 1790 e 1810. Longe de tentar resumir as linhas fundamentais deste tratado, importa-me apontar alguns aspectos desta teoria de Goethe que mais do que provocar uma influência sobre a ciência da ótica e da cro-matografia, representa uma interessante alternativa teórica para se com-preender o fenômeno da pintura.

Logo na Introdução desta obra, Goethe chama atenção para o fato de que ela também incluirá o “lado da pintura”, ou ainda, o “lado da colora-ção estética das superfícies”, e que principalmente a sexta seção, intitulada Sinnlich-sittliche Wirkung der Farbe (algo como “O efeito ético-sensível das cores”) deverá interessar em especial aos pintores. A relação do fenôme-no das cores com a subjetividade é de fato uma espécie de eixo axial da doutrina de Goethe. Por mais que as cores sejam apresentadas em seu as-pecto material, como fenômeno físico e químico, passível de ser reproduzido e controlado, Goethe concebe este fenômeno a partir da ação da luz não propriamente sobre um corpo, mas principalmente sobre o olho humano, apontando, surpreendentemente, a semelhança ou o “parentesco” (Ver-wandschaft) entre o órgão da visão e própria luz. De modo que – observa o próprio Goethe – somos capazes de “ver” claramente uma imagem mesmo estando de olhos fechados e mais ainda quando estamos sonhando graças à chamada “força da imaginação” (Einbildunskraft) (Goethe, 1992a, p.57). Já na primeira seção de sua Doutrina das Cores Goethe descreve uma série de experimentos a fim de demonstrar o aspecto subjetivo da percepção da cores.

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Um deles, por exemplo, consiste em preparar uma pequena placa escura com um orifício de 3 polegadas, o qual pode ser aberto e fechado. Através deste orifício, deixa-se que a luz do sol passe e incida sobre uma superfí-cie branca. À certa distância, ver-se-á, projetado sobre esta superfície, um círculo luminoso. Em seguida, deve-se fechar o orifício da placa e voltar o olhar para o lado escuro do quarto. O re-sultado é que surgirá uma aparição circular flutuante diante do observador. Esse fenô-meno aparece inicialmente sem cor, ape-nas como um círculo claro. Pouco a pouco, torna-se amarelo com um aro púrpura em sua borda. Este aro vai então se alargando e penetrando o círculo que se torna inteira-mente púrpura. Imediatamente, a borda do círculo começa a tornar-se azul e este azul passa a penetrar no círculo púrpura até que este se torne totalmente azul. Em seguida surge uma borda escura e sem cor que vai penetrando no interior do círculo azul, até que este se torne inteiramente sem cor.

Esse experimento demonstra a ex-

istência de uma categoria de cores que não são nem físicas nem químicas, mas fisiológicas, como indica o título da primeira seção da Doutrina das Cores.

Não devemos, entretanto, confundir a constatação de Goethe do as-pecto fisiológico envolvido no fenômeno das cores, com sua descoberta do aspecto subjetivo na apreensão deste fenômeno. O primeiro aspecto pode e deve ser considerado como objetivo, e mesmo como intersubjetivo, ou seja, aplicável a todo o olho humano “saudável”. Já o aspecto subjetivo das cores, diz respeito ao fenômeno das cores físicas, como se pode, por exemplo, comprovar através de um simples experimento, descrito na segunda seção da Doutrina das Cores sob o título Subjektive Versuche (Experimentos sub-jetivos). Trata-se de um disco preto posto sobre um fundo branco e de um disco branco posto sobre um fundo preto. A impressão que se tem é que o disco preto é muito menor do que o branco.

A impressão que se tem é que ela é mais escura no primeiro caso e mais clara no segundo.

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Figura 2

Certamente, a constatação do fator subjetivo na apreensão das cores é fundamental inclusive para que Goethe possa, na última parte de sua obra, sustentar os efeitos “ético-sensíveis” das cores sobre os seres humanos. E esta teoria é também fundamental para uma aplicação estética das mes-mas. Contudo, há uma outra tese fundamental defendida e demonstrada por Goethe neste seu tratado que irá igualmente influenciar a concepção esté-tica sobre as cores, especialmente a concepção hegeliana. Trata-se da tese de que o fenômeno das cores, pensado em sua totalidade, como fenômeno físico, químico e fisiológico, surge a partir de uma espécie de jogo entre o claro e o escuro ou entre a luz e a sombra.

Goethe demonstra esta tese novamente através de um experimento, no qual ele utiliza duas substâncias químicas, para obter duas cores básicas, e uma forma tridimensional, que realiza o efeito de uma escala em degradé. O experimento consiste no seguinte: Uma pequena escada branca é pintada com uma solução azul de sulfato de cobre ou com uma solução amarela de dicromato de potássio. Em cada um dos degraus inferiores, aparece um tom mais forte de azul ou de amarelo.

Figura 3

Este experimento serve para demonstrar que as cores surgem não da decomposição da luz (como afirmava a teoria de Newton), mas “no claro

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e escuro” (am Hellen und am Dunkeln). Na verdade, Goethe vai ainda mais longe quando afirma que tudo o que se vê surge exatamente deste jogo entre o claro e o escuro. No parágrafo 849 de sua Farbenlehre, ele afirma:

Chamamos de claro-escuro (Helldunkel), Clair-obscur, a aparição (Erscheinung) dos objetos corpóreos, quando apenas o efeito da luz e da sombra são neles observados. (...) A separação do claro-escuro de todas as aparições das cores é possível e necessário. O artista só irá solucionar o enigma da exposição (Darstellung) quando pensar o claro-escuro independente das cores e conhecê-lo em sua total extensão (GOETHE, 1992a, p.295).6

Este é um ótimo exemplo de como a doutrina das cores de Goethe está muito mais voltada para um uso prático das cores pela arte do que propriamente para uma consideração meramente teórica da ciência. Hegel observa muito bem esta diferença e a comenta de modo enfático em sua Filosofia da Natureza: “Nenhum pintor é tão louco a ponto de ser newtoniano”, ironiza ele no § 320, após reconhecer o “mérito de Goethe” em ter “derrubado” a teoria de Newton – deduzida a partir do suposto experimento com o prisma – de que a luz seria composta por sete cores básicas (índigo, azul, verde, amarelo, alaranjado e vermelho). Segundo Hegel, “qualquer criança sabe” que o verde não é uma cor primitiva e se origina da mistura do amarelo e do azul.

Uma teoria das cores que leva em conta a complexidade do olho humano; que discute a percepção de cada cor em função de sua contextualização no espaço em que está sendo percebida7; que leva em conta o princípio do claro-escuro, e que, principalmente, observa o efeito psicológico de cada cor sobre a subjetividade humana é obviamente a mais adequada ao uso das cores pela arte da pintura.

A explicação de Hegel para esta aplicabilidade da teoria de Goethe à arte não se baseia no argumento, freqüentemente utilizado pelos físicos newtonianos, de sua pouca cientificidade, mas – muito pelo contrário – no reconhecimento de sua superioridade conceitual. Hegel chega a chamar esses físicos newtonianos de “cegos”, por permanecerem presos à “reflexão” e a “ossificação da representação”. Ao contrário, a descrição das cores de Goethe é, segundo ele, adaptada ao conceito. É essa capacidade que Goethe teve de, saindo da intuição, retornar ao conceito, superando assim a fixidez e a limitação da reflexão do entendimento, que o possibilita também unificar uma ciência da natureza com uma ciência da arte.

Em sua Doutrina das Cores Goethe apresenta uma espécie de história do Kolorit, ou seja, do uso das cores nas artes plásticas. Como momento inicial desta história, Goethe discute a hipótese levantada por Plinius de que

6. No original: “Das Helldunkel, Clair-obscur, nennen wir die Erscheinung körperlicher Gegen-stände, wenn na denselben nur die Wirkung des Lichtes und Schattens betrachtet wird” (...) Die Trennung des Helldunkels von aller Farbenerscheinung ist möglich und nötig. Der Künstler wird das Rätsel der Darstellung eher lösen, wenn er sich zuerst das Helldunkel unabhängig von Farben denkt und dasselbe in seinem ganzen Umfange kennen lernt”.7. Ou seja: em como a percepção de um objeto de determinada cor depende da cor e da luminosidade do fundo em que ele se encontra.

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a pintura teria sua origem no esboço traçado em torno da sombra de um corpo humano, o qual por sua vez teria sido motivado não propriamente pela idéia de fazer uma silhueta, mas sim pela tentativa de desenhar pela primeira vez uma figura (Gestalt) sobre uma superfície. Com esta hipótese Plínio descreve não apenas a origem histórica da pintura, mas também a técnica inicial utilizada pelos primeiros pintores gregos, ainda sem a utilização das cores. A aplicação destas últimas teria surgido da necessidade de imitar, por exemplo, a cor da pele humana, provavelmente através do uso de caco de cerâmica ou lascas de determinadas rochas, como forma primitiva de lápis de cor (Cf. GOETHE, 1992d, p. 72s).

Um dos primeiros indícios da arte da pintura se encontra nas figuras em preto sobre os antigos vasos gregos. Essas figuras, que em geral retratam corpos humanos, já envolvem (principalmente se comparadas às pinturas egípcias) uma noção inicial sobre a perspectiva, o que poderia demonstrar a hipótese de Plinius sobre a origem da pintura a partir da técnica de projeção de sombras.

Figura 4

Por mais hipotética que seja esta origem do ponto de vista histórico, Goethe considera-a em sua conceitualidade, ou seja, para ele todo o fenômeno das cores, não apenas na pintura, mas em toda a esfera da intuição humana, baseia-se no jogo de luz e sombra, ou na dialética entre claro e escuro. Por isso, segundo ele, a evolução da arte da pintura se dá, não com o acréscimo de diferentes cores, mas sim com o refinamento do próprio desenho a fim ampliar o campo de perspectivas e conferir maior volume às figuras inicialmente pintadas em preto.

Esse objetivo é alcançado, por exemplo, nos vasos pintados com figuras alaranjadas sobre um fundo negro e através do desenvolvimento da técnica do degradé, onde as partes mais claras refletem mais a luz,

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enquanto as mais escuras concentram mais a sombra.

Figura 5

A partir deste hipotético começo, Goethe descreve o desenvolvimento da técnica da pintura ao longo da história a partir do uso de diferentes materiais. Entretanto esta pequena história narra de fato a aplicação da sua própria teoria de que o fenômeno das cores surge do jogo entre o claro e o escuro. As bases desta teoria já tinham sido fundadas por Johan Kepler (1571- 1630), como esclarece o próprio Goethe na Parte Histórica de sua Doutrina das Cores. “Color est lux in potentia”, expressa a máxima de Kepler que Goethe traduz para o alemão como “Farbe ist Licht in Wirksamkeit” (“Cor é luz em sua eficácia”). A partir desta concepção, Kepler teria explicado a diferença das cores a partir dos diferentes níveis de claridade, à qual a matéria está submetida, ou ainda devido à maior densidade ou maior porosidade de sua própria matéria e, conseqüentemente, devido à sua maior transparência ou opacidade. Neste sentido – interpreta Goethe –, segundo Kepler, a cor surgiria exatamente do limite entre a luz e a sombra (Cf. GOETHE, 1992d, p.194).

Em sua Estética, Hegel também compreende o jogo do claro e escuro presente na pintura como proveniente de sua própria “matéria” – ou seja, da cor aplicada à superfície da tela – e interpreta este fenômeno como o responsável pela criação da forma neste tipo de arte – uma forma obviamente apenas “aparente” ou ainda “supérflua” (überflüssig), ou seja, criada da

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aparência de tridimensionalidade em uma superfície plana. Para explicar este fenômeno, Hegel provoca um jogo semântico e poético envolvendo a palavra “Schein”, que significa ao mesmo tempo “aparência” e “brilho”.

Na pintura, o claro e escuro pertencem, eles mesmos, com todas as suas gradações e transições as mais sutis, ao princípio do material artístico e apenas produzem a aparência intencional daquilo que a escultura e a arquitetura configuram para si mesmas de modo real. A luz e a sombra, o aparecer dos objetos em sua iluminação, são provocados pela arte e não por meio da luz natural, a qual por isso apenas torna visível aquele claro e escuro e a iluminação que aqui é produzida pela pintura. Este é o fundamento positivo que provém do próprio material mesmo, motivo pelo qual a pintura não necessita das três dimensões. A forma é feita por meio da luz e da sombra e como forma real é por si supérflua (HEGEL, 2002, p.206).

Nesta passagem, Hegel deixa clara a idéia de que a luz responsável pelo fenômeno da pintura não é de fato a mesma luz que se pode considerar natural, aquela, por exemplo, que incide sobre uma folha de árvore deixando-se refletir o verde que comumente vemos. A luz que gera a pintura é muito mais uma luz espiritual, pois ela é capaz não apenas de refletir as cores e as formas dos objetos, mas de criar objetos em uma superfície onde antes nada mais existia além da mera superfície. A superficialidade das formas então criadas contrasta com a sua profundidade aparente ou com a aparência de sua profundidade. A capacidade de gerar formas através do jogo de luz e sombras e, conseqüentemente, através do uso correto das cores assemelha-se ao próprio processo de individuação presente na natureza. No âmbito da pintura, entretanto, o domínio das cores estende este processo de criação das formas para uma singularização cada vez mais subjetiva. Esta tese sobre o processo de subjetivação através da arte da pintura tinha sido de certo modo antecipada por Goethe em sua Doutrina das Cores. Um de seus principais interesses nesta obra é constatar que os pintores que dominaram a técnica do claro e escuro e conseqüentemente que alcançaram uma exposição perfeita da luz através do uso das cores, atingiram também o nível da singularidade na apresentação de suas figuras. Em sua breve história da pintura, Raffael ganha um importante destaque, especialmente porque a singularidade da qual Goethe fala, se expressa também na individualidade e personalidade das figuras deste importante pintor renascentista.

Tomo aqui como exemplo um quadro produzido entre 1505 e 1506, intitulado Retrato de uma jovem mulher com unicórnio. Aqui a história da pintura parece alcançar finalmente a sua verdadeira profundidade. Cada prega do vestido da donzela, cada cacho de seus fios de cabelo, a delicada marca em sua pele alva deixada pelo peso da pedra que lhe pende do pescoço, a mistura de brilho e de sobriedade de um olhar um tanto rígido, talvez distante e alheio, sequer contrastam com o exótico e improvável animal que se acomoda confortável entre os braços dessa virgem – única capaz, segundo o mito medieval, de domesticar este selvagem. O filhote de unicórnio se mostra manso, de pêlos rebeldes porém macios ao tato,

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as patas se entrelaçam às mãos da donzela em sinal de aliança, e o chifre afiado parece não servir de qualquer ameaça. Esta harmonia completa só é conquistada graças ao uso correto das cores, ao equilíbrio do azul contraposto ao vermelho e mediados por um tom de terra esverdeado. Tudo se fecha em um círculo seguro e calmo de uma luz tenra e tranqüila, própria de uma subjetividade espiritual que começa a interiorizar-se.

Figura 6

Em sua Estética Hegel observa a importância da luz na arte da pintura para a construção desta interioridade:

Mas na arte o Conteúdo espiritual não pode ser separado do modo da exposição. Se a este respeito questionamos por que a pintura foi alcançada à sua peculiar altura apenas por meio do conteúdo da Forma de arte romântica, então são justamente a intimidade (Innigkeit) do sentimento, a beatitude e a dor do ânimo este Contudo mais profundo que exige uma animação espiritual, o qual abriu o caminho para a perfeição artística pictórica mais elevada e a tornou necessária (HEGEL, 2002, p.198).

Em seguida, Hegel propõe uma comparação interessante, na qual em um dos lados encontramos novamente Raffael. Trata-se da famosa imagem da madona com o menino Jesus. No outro lado da comparação Hegel põe uma obra de arte que se insere, segundo sua própria designação, na forma de arte simbólica: A rainha Isis segurando o filho Hórus.

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Figuras 7-8

Embora se trate aparentemente do mesmo sujet, ou seja, do mesmo motivo, as duas diferentes obras se distinguem não apenas pela forma de exposição, mas principalmente, segundo Hegel pela sua profundidade e interioridade na exposição do sentimento materno: “A Isis egípcia (diz Hegel) (...) não tem nada de materno, nenhuma ternura, nenhum traço da alma do sentimento” (HEGEL, 2002, p.198).

Já em relação à Madona de Raffael, Hegel exclama com entusiasmo:

Que profundidade do sentimento, que vida espiritual, que intimidade e plenitude, que majestade ou graça, que ânimo humano e todavia inteiramente penetrado pelo espírito divino nos dizem em cada traço! (HEGEL, 2002, p.198).

O mágico enriquecimento das figuras da pintura romântica em relação à escultura simbólica deve-se certamente ao poder do uso das cores e ao domínio por parte dos pintores a partir da época renascentista da técnica do claro e escuro. Como observará ainda Hegel, o “elemento físico do qual se serve a pintura” é de fato “a luz como aquilo que torna universalmente visível a objetualidade em geral” (HEGEL, 2002, p. 205). Seguindo uma dialética que lembra em parte aquela expressa por Schelling em sua filosofia da natureza, Hegel descreve o “princípio da luz” como oposto ao princípio denominado “matéria pesada” (schwere Materie) – o mesmo princípio que servia de base para a arte simbólica, especialmente para a arquitetura. Enquanto para Schelling matéria e luz são a primeira e a segunda potências da natureza, de cuja síntese surge o organismo enquanto terceira e mais elevada potência do mundo real, Hegel considera em seus Cursos de Estética a matéria pesada como um princípio ideal da arte, inferior ao princípio da luz, simplesmente porque possuiria o seu centro ou o ponto de sua unidade fora de si. A luz, ao contrário, é para Hegel absolutamente leve e não oferece resistência, é

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“pura identidade consigo mesma”, pura relação consigo mesma”, consistindo assim na “primeira idealidade da natureza”, ou no seu “primeiro Si” (Selbst) (HEGEL, 2002, p. 205). Isso explicaria a tese de que quando a arte passa a ter como princípio a luz e sua leveza e não mais a matéria e sua gravidade, iniciar-se-ia um ciclo de subjetividade na história da arte, característico da chamada forma de arte romântica:

Na luz a natureza começa pela primeira vez a ser subjetiva e é, pois, o eu universal físico, que certamente não se impeliu nem para a particularidade nem se contraiu para a singularidade e para o fechamento pontual em si mesmo, mas para isso supera a mera objetividade e exterioridade da matéria pesada e pode abstrair da totalidade sensível, espacial, dela (HEGEL, 2002, p. 205).

Quando em sua Doutrina das Cores, Goethe trata do efeito ético do uso das cores na arte, ele enfatiza exatamente a importância do domínio da técnica de luz e sombra para o êxito da pintura: “Apenas por meio da concordância de luz e sombra, da atitude, da verdadeira e característica aplicação das cores, a pintura pode aparecer (...) como completa” (GOETHE, 1992a, p.306)8. O interesse e admiração de Goethe pelos pintores holandeses, compartilhada também por Hegel, está exatamente no reconhecimento do domínio desta técnica do claro e escuro.

Vejamos como exemplo a obra de um famoso pintor holandês do século XVII citado por Goethe e muito respeitado também por Hegel. Em seu quadro intitulado Lição sobre Anatomia, de 1632, Rembrandt supera o que segundo Goethe é um dos maiores desafios da pintura: expressar a carne humana. Aqui se nota claramente o contraste entre a cor da pele dos curiosos e aplicados estudantes de medicina com a palidez exacerbada da carne morta sobre a mesa de exame autopsial. De fato, as faces dos estudantes recebem um gradiente de cores, que vai do esverdeado do provável choque diante da carne exposta, ao púrpura da indisfarçável excitação com a nova descoberta. Estando no centro das atenções, ainda que sobre ele não repouse nenhum dos vários olhares que ali circulam, o cadáver recebe um foco extra de luz, com exceção da região de seus próprios olhos, que, duplamente mortos, se recolhem murchos na interioridade profunda de uma alma alienada de si.

8. No original: “Nur durch die Einstimmung des Lichtes und Schattens, der Haltung, der wahren und charakteristischen Farbengebung kann das Gemälde von der Seite, von der wir es gegen-wärtig betrachten, als vollendet erscheinen”. (Farbenlehre, Letzter Zweck § 901).

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Figura 9

Outro exemplo do uso adequado da luz e conseqüentemente do equilíbrio perfeito das cores podemos encontrar nas obras de um não menos famoso pintor italiano do mesmo século. Na impressionante pintura de 1601-1603, intitulada A Incredibilidade de São Tomé, Caravaggio expõe também o corpo humano sob um fascinante jogo de luz e sombra, sendo que no grupo dos quatro homens o mais exposto é o corpo do cristo ressuscitado. De uma vitalidade misteriosa, ele emana luz mais intensamente que os outros e ainda mais clara do que a refletida pelo manto branco que o envolve. Todo entorno do mundo, responsável definitivamente pela morte do salvador, se encontra, entretanto, mergulhado em trevas profundas.

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Essa aparência de vida, uma vida espiritual, mais poderosa e brilhante do que a vida natural ou corpórea,é conquistada pela pintura dita romântica exatamente através de um estágio elevado de subjetividade interior. Hegel afirma repetidas vezes em sua Estética a importância do domínio da utilização da cor na pintura, que segundo ele “leva a plenitude da alma à sua aparição propriamente viva” (HEGEL, 2002, p.232):

(...) o objeto da pintura (...) é apenas um parecer / brilhar [Scheinen] do interior espiritual que a arte expõe para o espírito, a autonomia se separa da existência efetiva, espacialmente dada, e alcança uma relação muito mais estreita com o espectador do que na obra da escultura (HEGEL, 2002, p. 203).

Contudo, a interioridade subjetiva que marca o início espiritual da forma de arte romântica, representada de modo paradigmático pela pintura renascentista italiana, teve que “evoluir” dialeticamente para o extremo da exterioridade do particular, no qual, ao contrário de ser penetrada e maculada pela não-liberdade da chamada “prosa do mundo”, afirmou ainda mais a sua autonomia e liberdade. É assim que Hegel explica a evolução da pintura como apresentando desde a natureza mais interior, com suas imagens religiosas de martírio e amor espiritual (Figura 11) até a natureza mais exterior, com a apresentação de paisagens (Figura 12); da apresentação do “humano” mais subjetivo (Figura 13), “até o que é mais fugaz nas situações e nos caracteres” (Figura 14). Podemos ilustrar estes momentos de evolução da pintura através dos seguintes quadros:

Figura 11

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Figura 14

A pintura permite-se assim apresentar o que é mais contingente, mais cotidiano, mais prosaico, sem, no entanto, perder a liberdade subjetiva por ela conquistada. A aparência na liberdade se revela assim como o desdobramento e a multiplicação dos “brilhos” na pintura:

Com suprema arte vemos serem fixados os brilhos [die Scheinen] mais fugazes do céu, das horas do dia, da iluminação da floresta, a aparência e o reflexo [Scheine und Widerscheine] das nuvens, das ondas, dos lagos, dos rios, o cintilar e reluzir do vinho no copo, o brilho do olho, o aspecto momentâneo do olhar, do sorriso etc (GOETHE, 1992a, p. 201).

Este último momento da pintura descrito por Hegel revela-se em especial através dos pintores holandeses a partir do século XVII. Considerados também por Goethe como os mestres no uso da cor, por dominarem o conceito do claro e escuro, eles alcançaram este domínio, segundo Hegel, em parte por viverem em um ambiente geográfico privilegiado, “próximos ao mar, numa terra baixa, cortada por pântanos, águas e canais” (HEGEL, 2002, p. 232). Em parte, entretanto, o desempenho excepcional dos holandeses se explica para Hegel por meio de sua história política. Este povo desenvolvera um tal senso de liberdade, de modo que a expressão das cenas mais prosaicas de sua pintura e a aparência mais fugaz de seus objetos exteriores provocam no espectador aquela mesma intimidade já plenamente desenvolvida e cultivada pelo espírito. A pintura agora se permite inclusive apresentar como tema a própria objetivação da vida pela ciência moderna.

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O quadro de Rembrandt de 1632, aqui já citado, expõe um dos mais radicais exemplos desta prática analítica da ciência. A objetivação e alienação total do ser humano se expressa através do fascinante contraste entre luz e sombra, sublinhado pelo sugestivo jogo dos olhares em fuga. Mas o olhar do espectador – podemos aqui interpretar seguindo o ensinamento de Hegel – não se deixa alienar por essa ciência reducionista. Através de um pacto secreto com a própria subjetividade livre do pintor, ele consegue penetrar no mágico jogo de luz, reatando assim o laço espiritual anteriormente perdido. Com a pintura moderna, a arte atinge assim o seu lugar de autonomia diante das práticas alienantes do mundo. Isso graças ao fortalecimento de um sujeito espiritualmente autoconsciente:

Na pintura (...), cujo conteúdo constitui a subjetividade e, na verdade, a interioridade ao mesmo tempo particularizada em si mesma, este lado da cisão tem igualmente também de aparecer na obra de arte como objeto e espectador, mas imediatamente se dissolver de modo que a obra, expondo o subjetivo, também apresente a determinação, segundo todo o seu modo de exposição, de existir essencialmente apenas para o sujeito, para o expectador e não autonomamente para si. O expectador, por assim dizer, participa desde o início, é levado em consideração, e a obra de arte apenas é para este ponto firme do sujeito (HEGEL, 2002, p.203).

Figura 15

Essa consideração da subjetividade do outro, ou da possibilidade da intersubjetividade através do fenômeno da pintura corrobora para a principal tese da estética de Hegel, a de que a arte promove o reconhecimento do espírito pelo espírito. Mas este mesmo processo de espiritualização por meio da arte, iniciado com a pintura renascentista, serviu de base para um processo dialeticamente contrário: o da secularização e do prosaísmo da arte. E foi este processo que possibilitou que a arte ousasse lançar-se em abismos cada vez mais profundos, em cisões cada vez mais graves, a ponto de dissolver-se no radicalismo de uma prática inteiramente livre de fixações

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de objetos determinados. Faz parte desta contradição dialética, entretanto, um movimento reflexivo contrário, que muitas vezes é interpretado como um sinal de grande crise na esfera das artes. Devemos nos perguntar se nossa atual cultura do espetáculo, com seus brilhos demasiadamente fugazes, sua formas cada vez mais estetizadas e seu excesso de cores, não nos deve obrigar a um novo mergulho em uma nova interioridade, a fim de purificarmos o nosso olhar dessa multiplicidade enlouquecida dos objetos do mundo.

Índice das Imagens:

1 – Recorte do Quadro de número 1 (Tafel 1) impresso na edição citada da Doutrina das Cores de Goethe: Johann Wolfgang Goethe: Farbenlehre. Mit Einleitungen und Kommentaren von Rudolf Steiner. Editores: Gerhard Ott und Heirich O. Proskauer. Stuttgart 1992 (ISBN 3-7725-0702-6). Imagens digitais dos quadros da Doutrina das Cores de Goethe podem ser encontrados no site: http://www.farben-welten.de/farbenlehre/tafeln/tafeln_zur_farbenlehre.htm.

2 – Recorte do Quadro de número 2a (Tafel 2a), impresso na edição citada da Doutrina das Cores de Goethe: Johann Wolfgang Goethe: Farbenlehre. Mit Einleitungen und Kommentaren von Rudolf Steiner. Editores: Gerhard Ott und Heirich O. Proskauer. Stuttgart 1992 (ISBN 3-7725-0702-6). Imagens digitais dos quadros da Doutrina das Cores de Goethe podem ser encontrados no site: http://www.farben-welten.de/farbenlehre/tafeln/tafeln_zur_farbenlehre.htm.

3 – Fonte: http://www.seilnacht.com/Lexikon/goethe2.htm

4 - Guerreiros. Detalhe de Ânfora com black-fugure da Ática, ca. 570-565 a.C. Departamento de antiguidades gregas, etruscas e romanas do Museu do Louvre, Paris. (Imagem de domínio público) Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Amphora_warriors_Louvre_E866.jpg.

5 – Red-figure: Hydria (jarro de água) com Hércules menino e Hera the infant Herakles strangling snakes sent by the goddess Hera), ca. 460-450 a.C., atribuida a Nausicaä (pintura). Metropolitan Museum of Art, New York. Fonte: Site do Museu: http://www.metmuseum.org/toah/hd/hera/ho_25.28.htm#.

6 – Rafael: Retrato de uma jovem com unicórnio (1505-1506). Galeria Borghese, Roma. Fonte: http://www.zeno.org/Kunstwerke/B/Raffael%3A+Portr%C3%A4t+einer+jungen+Frau+mit+dem+Einhorn.

7 - Ísis amamentando Hórus. Estátua de Bronze da Era Ptolomaica. Encontra-se no Museum Egpyptisches Museum (Domínio Público). Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/1/15/ MaryAndHorus.JPG.

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8 – Raffael (Raffaelo Santi, 1483-1520): Madona Sixtina (Madonna di San Sisto) (1512-1514) - Gemälde Galerie Alte Meister, Dresden. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/Image:Raffael%2C_Sixtinska_madonnan.jpg.

9 – Rembrandt: Lições de Anatomia (The Anatomy Lecture of Dr. Nicolaes Tulp, 1632). The Hague, Mauritshuis. Fonte: http://www.zeno.org/Kunstwerke/B/Rembrandt+Harmensz.+van+Rijn%3A+Anatomie+des+Dr.+Tulp.

10 – Caravaggio: A incredulidade de São Tomé (The Incredulity of Saint Thomas) (1601-02). Neues Palais, Postdam. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Caravaggio_incredulity.jpg.

11– Ludovico Carracci (1555-1619): “A lamentação” (ca. 1582). Metropolitan Museum of Art, New York. In Timeline of Art History. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2000. http://www.metmuseum.org/toah/ho/08/eustn/ho_2000.68.htm. (October 2006).

12 - Caspar David Friedrich (1774-1840): “O Verão” (1807). Fonte: http://commons.wikimedia.org/ wiki/Image:Caspar_David_Friedrich_010.jpg.

13 – Johannes Gumpp (1626-?): Auto-retrato (Self-portrait) (1646). Fonte: http://en.wikipedia.org/ wiki/Image:Johannes_gumpp.jpg.

14 – Jan Vermeer van Delft (1632-1675): The Milkmaid (Het melkmeisje) (1658-1660). The National Art Centre. Fonte: The Yorck Project: 10.000 Meisterwerke der Malerei. DVD-ROM, 2002. ISBN 3936122202. Distributed by DIRECTMEDIA Publishing GmbH: http://en.wikipedia.org/wiki/Image: Jan_Vermeer_van_Delft_021.jpg.

Bibliografia:

Johann Wolfgang Goethe: Farbenlehre. Mit Einleitungen und Kommentaren von Rudolf Steiner. Editores: Gerhard Ott und Heirich O. Proskauer. Stuttgart 1992.___: Faust. Der Tragödie erter Teil. Philipp Reclam: Stuttgart, 1986.___: Zur Morphologie, 1 Bd., 3. Heft, Stuttgart u. Tübingen 1820.Georg Wilhelm Friedrich Hegel: Enzyclopädie der philosophischen Wissenschaften 1830. Zweiter Teil. Die Naturphilosophie. In: Werke in 20 Bänden. Suhrkamp: Frankfurt am Main, 1993.___: Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). Volume II: A Filosofia da Natureza. Trad. J. Noqueira Machado. São Paulo: Loyola, 1997. ___: Cursos de Estética. Volume IV. Trad. M. A. Werle. São Paulo: Edusp, 2002.

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TraduçõesHegel, variantes do fragmento “Die Liebe”

Apresentação e tradução de Joãosinho Beckenkamp 1

RESUMO: Na edição crítica da obra de Hegel, permanece uma lacuna importante no concer-nente a seus textos do período de Frankfurt, ainda não publicados na edição histórico-crítica da academia. Como a edição de Nohl, única referência até hoje, não atende aos critérios editoriais mais atualizados, criou-se uma situação de impasse na investigação do período mencionado. Para tornar clara a extensão do problema, apresenta-se aqui a tradução de um fragmento na edição de Nohl, seguido das duas versões originais do mesmo texto, publicadas por Ch. Jam-me.Palavras-chave: Hegel, Amor, Nohl, Jamme.

ZUSAMMENFASSUNG: In der kritischen Ausgabe von Hegels Werk besteht eine wichtige Lücke bezüglich der Texten aus der Frankfurter Periode, die bis jetzt noch nicht in der historisch-kritis-chen Edition der Rheinisch-Westfälischen Akademie der Wissenschaften erschienen sind. Da die bis heute benutzte Ausgabe von Nohl nicht mehr den gegenwärtigen Standards einer kritischen Edition entspricht, steht die Untersuchung dieser Periode vor einer unumgänglichen Schwieri-gkeit. Um das Ausmass dieser Schwierigkeit dem brasilianischen Publikum sichtbar zu machen, wird hier die Übersetzung des von Nohl so benannten Fragments “Die Liebe” gebracht, nebst zweier Fassungen dieses Fragments, von Ch. Jamme 1982 in den Hegel-Studien mit kritischer Sorgfalt ediert.Schlüssel-Worte: Hegel, Liebe, Nohl, Jamme.

1. Apresentação do material

Na pesquisa voltada para o desenvolvimento juvenil de Hegel, foi possível realizar um significativo avanço desde que se iniciou, no ano de 1968, a edição crítica do conjunto dos textos legados por Hegel. Hoje os pesquisadores interessados no jovem Hegel têm à sua disposição tudo o que sobreviveu de seus escritos, desde o ginásio em Stuttgart até o período de Iena, com uma lamentável exceção: os textos do período de Frankfurt. Esses textos, fundamentais para a compreensão da formação originária das idéias sistemáticas de Hegel, deverão sair no segundo volume da edição crí-tica (GW 2), cuja edição ficou sob a responsabilidade de F. Nicolin.

Até agora, o texto de referência na investigação do período de Frank-furt têm sido os Escritos teológicos juvenis de Hegel, uma seleção dentre os primeiros escritos de Hegel publicada por H. Nohl em 1907. Junto com o trabalho pioneiro de W. Dilthey, cujo livro A história da juventude de Hegel é de 1905, a edição de Nohl marcou profundamente a recepção dos textos juvenis de Hegel. Na linha da filosofia da vida, ainda em voga na passagem para o século XX, formou-se a imagem de um jovem filósofo aberto às ques-tões da vida, ao irracionalismo, à teologia etc., uma imagem que se prestava à contraposição com o sistema fechado e racionalista do Hegel maduro. Essa imagem do jovem Hegel só começou a ser desfeita a partir da edição crítica de seus textos de juventude. Hoje é possível formar uma idéia bem mais realista do desenvolvimento de Hegel em Tübingen, Berna e Iena. Falta só o

1. Doutor em Filosofia pela Unicamp e professor adjunto da UFPel. Submetido em 15 de dezem-bro de 2007 e aprovado para publicação em 17 de março de 2008.

Revista Eletrônica Estudos HegelianosAno 5, nº8, Junho-2008: 57-74

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período de Frankfurt. Ora, no período de Frankfurt ocorre a inflexão essencial no desenvol-vimento do jovem Hegel, aquela que lança os primeiros fundamentos de seu pensamento sistemático – tanto é possível dizer, apesar de toda a precarie-dade do material até hoje disponível. A lacuna que permanece é, portanto, significativa.

Uma contribuição importante para lançar alguma luz sobre o terreno que deverá ser investigado melhor a partir da edição crítica dos escritos do período de Frankfurt (em GW 2) foi feita por Ch. Jamme com a publicação, segundo os critérios editoriais mais atualizados, do material que resultou no fragmento “Die Liebe” na edição de Nohl. O que o trabalho editorial de Ch. Jamme tornou claro é a existência de duas versões substancialmente distintas dos textos daquele período. Nohl fundiu essas versões num texto único sem nenhuma menção de seu procedimento, o que torna o resultado de seu trabalho bastante problemático. Com o intuito de chamar a atenção dos estudiosos de Hegel no Brasil para a situação problemática em que se encontra a investigação de seu desenvolvimento no período de Frankfurt, publico aqui a tradução do material pertinente.

Concebido inicialmente (mas retirado por razões de espaço) como apêndice ao livro O jovem Hegel: Formação de um sistema pós-kantiano, em vias de publicação, o material que se segue consiste na tradução do frag-mento que leva o título “Die Liebe” na edição de Nohl (A), seguida da tradu-ção das duas versões (B1 e B2) encontradas nos manuscritos e publicadas por Ch. Jamme na Hegel-Studien em 1982. Na tradução dessa edição crítica por antecipação do mencionado fragmento, procurei ser o mais fiel possível ao cuidadoso trabalho do editor, preservando todas as suas indicações edi-toriais.

2. Tradução

A) “Die Liebe” (NOHL, p. 378-379)2

2. H. NOHL (ed.). Hegels theologische Jugendschriften, nach den Handschriften der Kgl. Biblio-thek in Berlin. Tübingen, Mohr, 1907.

... a cujo fim, pois, serve todo o restante, nada se encontra em luta com esse, com o mesmo direito; – como, p. ex., Abraão se põe como fim último a si mesmo e sua família, e mais tarde seu povo – ou toda a cristandade, a si mesma – Mas, quanto mais é estendido este todo, quanto mais é reduzido à igualdade da dependência – quando o cosmopolita abrange todo o gênero humano em seu todo – tanto menos recai sobre cada um do domínio sobre os objetos, e do favorecimento do poder reinante; cada um individualmente perde tanto mais em seu valor, em suas exigências, em sua auto-suficiência; sem o orgulho de ser o centro das coisas, o fim do todo coletivo constitui para ele o supremo e despreza a si mesmo, como uma parte tão ínfima quanto todos os indivíduos.

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Uma vez que este amor por causa do morto está cercado apenas de matéria, a matéria lhe é em si indiferente, e sua essência consiste em que o homem é em sua natureza mais íntima um contraposto, auto-suficiente, que tudo lhe é mundo exterior, o qual, portanto, é tão eterno quanto ele mesmo, assim certamente mudam seus objetos, mas eles não lhe faltam jamais; tão cer-to quanto ele é, são eles e sua divindade; daí sua tranqüilidade no caso de perda e seu consolo certo de que a perda lhe será compensada, porque ela lhe pode ser compensada.

Desta maneira, a matéria é para o homem absoluta; mas certamente, se ele mesmo já não fosse, também nada mais seria para ele, e por que ele então teria de ser? É bastante compreensível que ele gostaria de ser; pois fora de sua coleção de restrições, de sua consciência, encontra-se, não a união em si completa e eterna, tão-somente o estéril nada, mas certamente o homem não pode suportar pensar-se nesse nada. Ele é apenas como um contrapos-to; o contraposto é para si reciprocamente condição e condicionado; ele tem de se pensar fora de sua consciência, nenhum determinante sem determina-do, e vice-versa, nenhum é incondicionado, nenhum traz em si a raiz de seu ser, cada qual é apenas relativamente necessário; um é para o outro e, por-tanto, também para si mesmo tão-somente através de um poder estranho; o outro lhe é atribuído através de seu favor e de sua graça; não se encontra em parte alguma um ser independente, a não ser em um estranho, de cujo estranho o homem recebe tudo de presente, e ao qual ele tem de agradecer por si mesmo e pela imortalidade, pela qual suplica com tremor e temor.

Verdadeira união, genuíno amor, somente se dá entre vivos que são iguais em poder, e, portanto, são de todo vivos um para o outro, de nenhum lado mortos um para o outro; o amor exclui toda contraposição, ele não é enten-dimento, cujas relações deixam o múltiplo sempre ainda um múltiplo e cuja unidade ela mesma são contraposições; ele não é razão, a qual simples-mente contrapõe seu determinar ao determinado; ele não é algo limitante, nem algo limitado, não é algo finito; ele é um sentimento[a], mas não um sentimento singular; do sentimento singular, porque apenas uma vida par-cial, não toda a vida, a vida rompe através da dissolução, até a dispersão na multiplicidade dos sentimentos, e para se encontrar neste todo da multipli-cidade; no amor, esse todo não está contido como na soma de muitos parti-culares separados; nele se encontra a própria vida, como uma reduplicação de si mesma, e unidade da mesma; desde a unidade não desenvolvida, a vida percorreu, através da formação, o círculo de uma unidade completa[b] ; à unidade não desenvolvida contrapunha-se a possibilidade da separação e o mundo; no desenvolvimento, a reflexão produzia cada vez mais contrapos-to, o qual era unido no impulso satisfeito, até que ela contrapôs ao homem

[a] no qual, entretanto, não se pode distinguir o que sente e o que é sentido, de maneira tal que esse pudesse ser contraposto àquele, que esse pudesse ser apreendido pelo entendimen-to e tornar-se objeto. Ele é um sentimento do vivo. Como vivos, os amantes são um. Eles só podem se distinguir em vista do mortal. **[NT: as notas aqui referidas por letras minúsculas são do próprio texto de Nohl, que assim já incluía algumas variantes.][b] Esta unidade é vida completa, porque nela foi satisfeita também a reflexão; à unidade não

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a totalidade do próprio homem, até que o amor supera a reflexão em total ausência de objeto, subtrai ao oposto todo o caráter de um estranho, e a vida se encontra a si mesma sem outra carência. No amor o separado ainda é, mas já não como separado – como uno, e o vivo sente o vivo.

Uma vez que o amor é um sentimento do vivo, os amantes só podem dis-tinguir-se na medida em que são mortais, na medida em que pensam esta possibilidade da separação, não como se efetivamente algo estivesse sepa-rado, como se o possível ligado a um ser fosse algo efetivo. Em amantes não há matéria, eles são um único todo vivo; amantes possuem auto-suficiência, e princípio vital próprio significa apenas: eles podem morrer. A planta tem elementos salinos e terrosos que trazem em si leis próprias de sua eficácia, ela é a reflexão de um estranho, o que quer dizer apenas: a planta pode decompor-se. Mas o amor também procura superar essa distinção, essa possibilidade como mera possibilidade, e unir até mesmo o mortal, torná-lo imortal[a]. O separável, enquanto ainda é algo próprio antes da completa união, causa embaraço aos amantes, ele constitui uma espécie de conflito entre a entrega total – o único aniquilamento possível, o aniquilamento do contraposto na união – e a auto-suficiência ainda existente; aquela se sente impedida por essa – o amor se irrita com o ainda separado, com uma pro-priedade; essa irritação do amor com a individualidade é o pudor; ele não é estremecimento do mortal, uma expressão da liberdade de se conservar, de subsistir; num ataque sem amor, um ânimo cheio de amor é ofendido por essa hostilidade mesma, seu pudor torna-se cólera, que agora apenas defende a propriedade, o direito. – Se o pudor não fosse um efeito do amor, que tem a forma da irritação tão-somente sobre o fato de que há algo hostil, mas fosse ele mesmo, segundo sua natureza, algo hostil que quisesse sus-tentar uma propriedade contestável, ter-se-ia de dizer dos tiranos que eles têm o máximo de pudor, assim como de garotas que não entregam seus en-cantos sem dinheiro – ou dos vaidosos que querem cativar por eles. Ambos não amam, sua defesa do mortal é o contrário da irritação com o mesmo – eles lhe atribuem em si um valor, eles são despudorados. Um ânimo puro não se envergonha do amor, mas se envergonha por esse não ser perfeito, ele se repreende por ainda existir um poder, algo hostil que constitui um obstáculo para a perfeição. O pudor somente ocorre pela recordação do cor-po, pela presença pessoal, no sentimento da individualidade – ele não é um temor pelo mortal e próprio, mas perante o mesmo, um temor que, como o amor, diminui o separável e com ele desaparece; pois o amor é mais forte do que o temor e não teme seu temor, mas dele acompanhado supera se-parações, com o receio de encontrar uma contraposição resistente e mesmo firme, o amor é um mútuo dar e receber; temeroso de que seus dons pos-

desenvolvida opunha-se a possibilidade da reflexão, da separação; nessa [unidade desenvol-vida], a unidade e a separação estão unidas, algo vivo que tinha sido contraposto a si mesmo (e se sente agora a si mesmo), mas não tornava esta contraposição absoluta. No amor, o vivo sente o vivo. No amor, portanto, estão resolvidas todas as tarefas, a unilateralidade autodestru-tiva da reflexão, e a contraposição infinita do inconsciente, unidade não desenvolvida.[a] para superar a intuição, na qual ainda se encontra o separado, ele se toca, se apalpa e penetra um no outro

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sam ser desprezados, temeroso de que um contraposto poderia não ceder a seu receber, ele experimenta, se a esperança não o enganou, se ele mesmo se encontra de todo; aquilo que recebe não se torna com isto mais rico do que o outro; certamente enriquece, mas igualmente o outro; da mesma maneira, aquilo que dá não se torna mais pobre; ao dar ao outro, aumentou outro tanto seus próprios tesouros; Julieta em Romeu: quanto mais dou, tanto mais tenho etc. O amor adquire esta riqueza da vida na troca de todos os pensamentos, de todas as multiplicidades da alma, ao procurar infinitas diferenças e achar para si infinitas uniões, voltando-se para toda a multi-plicidade da natureza, a fim de sorver o amor de cada uma de suas vidas. O mais próprio se une no contato, no apalpar, até a inconsciência, a supe-ração da diferença; o mortal abandonou o caráter da separabilidade, e um germe da imortalidade, um germe do que eternamente desenvolve e gera a partir de si , um vivo se fez. O unido já não volta a se separar; a divindade operou, criou – Mas esse unido é apenas um ponto, o germe[a], os amantes nada lhe podem conferir, para que nele se encontrasse um múltiplo, pois na união não foi tratado um contraposto, ela é destituída de toda separação; o próprio recém-gerado tem de ter contraído em si, contraposto e unido em si tudo aquilo pelo qual ele pode ser um múltiplo, ter uma existência. O ger-me se solta cada vez mais na contraposição, e começa, cada etapa de seu desenvolvimento é uma separação, a fim de voltar a ganhar toda a riqueza da vida. E assim é, agora: o unido, os separados e o reunido[b]. Os unidos voltam a se separar, mas na criança a própria união tornou-se inseparável.Essa união do amor é certamente completa[c], mas ela só pode sê-lo[d] até onde o separado é contraposto apenas de tal maneira que um é o amante e o outro o amado, sendo, assim, cada separado[e] um órgão de um vivo; além disto, entretanto, os amantes ainda estão em ligação com muita coisa morta, a cada qual pertencem muitas coisas, quer dizer, encontra-se em relação com contrapostos, os quais ainda são contrapostos, objetos, tam-bém para aquilo mesmo que relaciona; e assim eles ainda são capazes de uma múltipla contraposição na múltipla aquisição e posse de propriedade e direitos[f]. O morto que se encontra sob o poder de um está contraposto a ambos, e a união acerca disso parece poder ocorrer tão-somente ao se sub-metê-lo ao domínio de ambos. O amante que vê o outro na posse de uma propriedade tem de sentir esta particularidade do outro, a qual ele quis, mas não pode ele mesmo suprimir o domínio exclusivo do outro, pois isso seria novamente uma contraposição contra o poder do outro, uma vez que não pode encontrar também uma outra relação ao objeto a não ser a dominação do mesmo; assim ele contraporia uma dominação ao domínio do outro e

[a] torna-se planta, do mais unido ele passa pelo animal até a vida humana – Mas o separável[a] torna-se planta, do mais unido ele passa pelo animal até a vida humana – Mas o separável retorna ao estado da separabilidade; mas os espíritos tornam-se mais unidos do que jamais, e o que ainda era separado de consciência determinada é tudo posto de lado; todos os pontos em que um tinha tocado o outro ou tinha sido por ele tocado, portanto apenas sentido e pensado, são compensados, os espíritos são substituídos. [b] A criança é os próprios pais [c] mas tão-somente entre os próprios amantes [d] enquanto o separado é capaz de uma união no sentimento [e] uma parte de um [f] Neste caso, o mais pobre hesita em receber do mais rico, em pôr-se em igualdade de pos-

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se com ele, porque esse realizou uma ação da contraposição, pôs-se fora do círculo do amor, demonstrou sua auto-suficiência, mas a este temor que sua propriedade desperta o possuidor se antecipa, suspendendo ele mesmo em relação ao amante seu direito da propriedade, que lhe assistiria em relação a qualquer um, presenteando-o. Presentes são renúncias de uma coisa que simplesmente não pode perder o caráter de um objeto; apenas o sentimento do amor, o gozo é comum; o que é meio para o gozo, está morto, é apenas propriedade, e, uma vez que o amor nada faz de parcial, assim ela não pode receber nada que permaneça ainda um meio, uma propriedade mesmo na ocupação, na união da dominação; uma coisa, algo que se encontra fora do sentimento do amor, não pode ser algo em comum, precisamente por ser uma coisa; ou não pertence a nenhum dos amantes, ou a cada um pertence uma certa parte. Comunidade de bens significa o direito de cada um sobre a coisa, ou a participação igual ou a participação indeterminada; ela envolve sempre uma divisão, e na verdade a necessidade dessa divisão, algo particular, propriedade, decerto não o meio passivo do inutilizado, morto, mas a necessária divisão do mesmo no uso; com aquela não separação da propriedade, enquanto não é usada, a comunidade de bens ilude com uma aparência da total supressão dos direitos, mas no fundo é mantido também um direito sobre aquela parte da propriedade que não é consumida imedia-tamente, mas apenas utilizada, só que disso não se fala. Na comunidade de bens as coisas não são propriedade, mas nela está oculto o direito, a propriedade de uma parte das mesmas. De acordo com isso deve-se julgar a maneira usual entre amantes de suspender mutuamente os direitos dos amantes sobre coisas – direito pessoal é excluído do amor já por seu nome como um serviço que lhe é abominável – e de ver isso como uma demonstração do amor.

suprimiria uma relação do outro, sua exclusão de todos; e, se a posse e a propriedade constituem uma parte tão importante do homem, de suas pre-ocupações e pensamentos, assim também os amantes não podem se abster de refletir neste lado de suas relações; e, se o uso já é comum, o direito à posse permaneceria assim indecidido; o pensamento do direito certamente não seria esquecido, porque tudo o que os homens possuem agora tem a forma jurídica da propriedade; mas, se o possuidor também coloca o outro em igual direito de posse, então a comunidade de bens é apenas o direito de ambos sobre a coisa.

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B1) “welchem Zwekke denn alles dient, ...”, primeira versão (Schüler n. 69; novembro de 1797)1

[9 frente]a cujo fim, pois, serve todo o res-tante, nada se encontra em luta com esse, com o mesmo direito; – como, p. ex., Abraão se põe como fim últi-mo a si mesmo e sua família, e mais tarde seu povo – ou toda a cristanda-de, a si mesma – Mas, quanto mais estende este todo, mesmo quando, como cosmopolita, abrange todo o gênero humano em seu todo, tanto menos recai sobre cada um do do-mínio sobre os objetos <deren Spf 2[= de sua criação?]> e do favore-cimento do poder reinante; cada um individualmente perde tanto mais em seu valor, em seus direitos, em sua auto-suficiência; pois seu valor era a participação no domínio, que agora é cada vez mais restrito. E assim ele despreza profundamente, e na verda-de, sem o orgulho de ser o centro das coisas, <ele tem> <o coletivo> o fim do todo coletivo constitui para ele o supremo <,> e despreza a si mesmo <e> bem como todos os indivíduos.Uma vez que a matéria é em si indi-ferente para este amor por causa do morto,e sua essência consiste em que o

1. Cf. Ch. JAMME, “Hegels Frankfurter Frag-ment welchem Zwekke denn”, in: Hegel-Studi-en 17 (1982), p. 11-23. A datação dos escritos juvenis de Hegel, com base sobretudo em sua caligrafia, encontra-se em: G. SCHÜLER. “Zur Chronologie von Hegels Jugendschriften”, in: Hegel-Studien 2 (1963), p. 111-159.2. Seguindo o editor, indicam-se com <> e <<>> as partes riscadas por Hegel (respectiv-amente, riscado e riscado originalmente dentro do riscado posteriormente); com [] indicam-se acréscimos do editor e do tradutor. No caso de partes riscadas com sentido impreciso, deixa-se o original alemão, com eventual hipótese de explicitação.

B2) “welchem Zwekke denn al-les dient, ...”, segunda versão (Schüler n. 84; outono/inverno de 1798/1799)1

[9 frente]a cujo fim, pois, serve todo o res-tante, nada se encontra em luta com esse, com o mesmo direi-to; – como, p. ex., Abraão se põe como fim último a si mesmo e sua família, e mais tarde seu povo – ou toda a cristandade, a si mesma – Mas, quanto mais <é> estendido este todo, quanto mais é reduzido à igualdade da dependência, quan-do o cosmopolita abrange todo o gênero humano em seu todo, tanto menos recai sobre cada um do do-mínio sobre os objetos, e do favo-recimento do poder reinante; cada um individualmente perde tanto mais em seu valor, em suas exi-gências, em sua auto-suficiência; sem o orgulho de ser o centro das coisas, o fim do todo coletivo cons-titui para ele o supremo e despreza a si mesmo, como uma parte tão ínfima quanto todos os indivíduos.Uma vez que este amor por causa do morto está cercado apenas de matéria, <e para ele> a matéria lhe é em si indiferente,e sua essência consiste em que o

1. Cf. Ch. JAMME, “Hegels Frankfurter Frag-ment welchem Zwekke denn”, in: Hegel-Studien 17 (1982), p. 11-23.

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[9 verso]que o homem é em sua natureza mais íntima um contraposto, auto-suficiente, para o qual tudo é mundo exterior, o qual, portanto, é tão pouco quanto ele mesmo, assim certamente mudam seus objetos, mas eles não lhe faltam jamais; tão certo quanto ele é, são eles e sua divindade; daí sua tranqüilidade no caso de perda e seu consolo certo de que a perda lhe será compensada, porque ela lhe pode ser compensada.Desta maneira, a matéria é para o homem absoluta; mas certamente, se ele mesmo já não fosse, também nada mais seria para ele, e por que ele então teria de ser? Ele é apenas como um contraposto, o contraposto é para si reciprocamente condição e condicionado; nem um simplesmente determinante, nem um simplesmente determinado, e vice-versa, nenhum é incondicionado, nenhum traz em si a raiz de seu ser, cada qual é apenas relativamente necessário; um é atri-buído ao outro e, portanto, também a si mesmo tão-somente através <do poder> de um poder estranho

[9 verso]que o homem é em sua natureza mais íntima um contraposto, auto-suficiente, que tudo lhe é mundo exterior, o qual, portanto, é tão pouco quanto ele mesmo, assim certamente mudam seus objetos, mas eles não lhe faltam jamais; tão certo quanto ele é, são eles e sua divindade; daí sua tranqüilida-de no caso de perda e seu consolo certo de que a perda lhe será com-pensada, porque ela lhe pode ser compensada.Desta maneira, a matéria é para o homem absoluta; mas certamente, se ele mesmo já não fosse, tam-bém nada mais seria para ele, e por que ele então teria de ser? É bastante compreensível que ele <quer> gostaria de ser; pois fora <de sua consciência, fora de sua contraposição> de sua coleção de restrições, de sua consciência, en-contra-se <apenas o>, não a união em si completa e eterna, <mas> tão-somente o estéril nada, <e nesse o homem certamente não se pode suportar> mas certamente o homem não pode suportar pensar-se nesse nada. Ele é apenas como um contraposto, o contraposto é para si reciprocamente condição e condicionado; ele tem de se pensar fora de sua consciência, nem algo determinante, nem determinado, e vice-versa, nenhum é incondicio-nado, nenhum traz em si a raiz de seu ser, cada qual é apenas rela-tivamente necessário; um é para o outro e, portanto, também para si mesmo tão-somente através de um poder estranho

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[10 frente]e através de seu favor e de sua gra-ça; não se encontra em parte algu-ma um ser independente, a não ser em um estranho, de cujo estranho o homem recebe tudo de presente, ao qual ele deve a si mesmo e sua imor-talidade, pela qual suplica com tre-mor e temor.Verdadeira união, genuíno amor, so-mente se dá em relação ao vivo; o amor exclui toda contraposição, ele não é entendimento, cujas relações deixam o múltiplo sempre ainda um múltiplo; ele não é razão, a qual sim-plesmente contrapõe seu determinar ao determinado; ele não é algo limi-tante, nem algo limitado, não é algo finito; ele é um sentimento, no qual, entretanto, não se pode distinguir o que sente e o que é sentido, de ma-neira tal que esse pudesse ser con-traposto àquele, que esse pudesse ser apreendido pelo entendimento e tornar-se <um> objeto – ele é um sentimento do vivo. Como vivos, os amantes são um. Eles só podem dis-tinguir-se <em vista de> na medida em que

[10 frente]o outro lhe é atribuído através de seu favor e de sua graça; não se encontra em parte alguma um ser independente, a não ser em um es-tranho, de cujo estranho o homem recebe tudo de presente, e ao qual ele tem de agradecer por si mesmo e pela imortalidade, pela qual supli-ca com tremor e temor.Verdadeira união, genuíno amor, somente se dá entre vivos que são iguais em poder, e, portanto, são de todo vivos um para o outro, de nenhum lado mortos um para o ou-tro; o amor exclui toda contraposi-ção, ele não é entendimento, cujas relações deixam o múltiplo sempre ainda um múltiplo e cuja unidade <é contraposição> ela mesma são contraposições; ele não é razão, a qual simplesmente contrapõe seu determinar ao determinado; ele não é algo limitante, nem algo li-mitado, não é algo finito; ele é um sentimento, mas não um sentimen-to singular; do sentimento singular, <porque <<nenhum>> todo senti-mento> porque <todo sentimento> <é> apenas uma vida parcial, <e> não toda a vida, a vida rompe atra-vés da dissolução, até a dispersão na multiplicidade dos sentimentos, <, e da vida> <devido> <o amor> <<; no amor é>> e para se encon-trar neste todo da multiplicidade; <mas o> no amor, esse todo não está contido como na soma de mui-tos particulares separados; nele <é um e todos> encontra-se a própria vida, <ele> como uma reduplicação de si mesma, e unidade da mesma; desde a unidade não desenvolvida, a vida percorreu, através da forma-ção, o círculo <du> de uma unida-de <total> completa; <esta uni-dade é vida completa, porque nela foi satisfeita também a reflexão; à

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unidade não desenvolvida opunha-se a possibilidade da reflexão, da separação; <aqui> nessa [a saber, na unidade completa ou desenvol-vida], a unidade e a separação es-tão unidas, algo vivo que tinha sido contraposto a si mesmo <e se sen-te <<agora>> a si mesmo>, mas <porque> não tornava esta con-traposição <diferente> absoluta. No <sentimento do> amor, o vivo sente o vivo. No amor, portanto, <está> estão resolvidas todas as tarefas, a unilateralidade autodes-trutiva da reflexão, e a contraposi-ção infinita <da inconsciência> do inconsciente, <da> unidade não desenvolvida.>

[9 verso]<a> à unidade não desenvolvida contrapunha-se a possibilidade da separação e o mundo; no desenvol-vimento, a reflexão produzia cada vez mais contraposto, o qual era unido no impulso satisfeito, até que ela contrapôs ao homem a totalida-de do próprio homem, <a qual> até que o amor supera a reflexão <su-pera> em total ausência de objeto, <d um> subtrai ao oposto todo o caráter de um estranho, e a vida se encontra a si mesma sem outra carência. No amor <é <<tudo>> para todo <<para>> separado> o separado ainda é, mas já não como separado, como uno, e o vivo sente o vivo.

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[10 verso]<do mortal> são mortais, na me-dida em que separação é possível, não enquanto algo está efetiva-mente separado –[Em] Amantes <possuem auto-su-ficiência> não há matéria, eles são um único todo vido; amantes pos-suem auto-suficiência, e princípio vital próprio significa apenas <,>: eles <são mortais> podem morrer <,>. A planta tem elementos sa-linos e terrosos que trazem em si leis próprias de sua eficácia, o que quer dizer apenas: a planta pode decompor-se. <Também o mor-tal> Mas o amor também procuraunir o mortal, torná-lo imortal;<ele se toca e se apalpa, penetra um no outro,> a fim de superar a <B> intuição, na qual <ainda se-parado> se encontra o ainda se-parado, ele se apalpa, penetra um no outro; o <separável> mortal abandonou o caráter da separabi-lidade e tornou-se um vivo. O uni-do já não volta a se separar; a di-vindade operou, criou – Mas esse unido é apenas <Em> um ponto, <vai> <de> <torna-se de> o ger-me se torna planta,

[11 frente]do mais unido ele passa <pelo ani-mal> por algo hostil até a vida hu-mana – <Mas o separável separa> <mas os amantes se dividem disto a separação> Mas o separável re-torna ao estado da separabilidade; mas <esse é> os espíritos tornam-se mais unidos do que jamais, e <es a> <es> <o que ainda era <<ela>> separado de consciên-cia determinada <<ela põe>> é tudo posto de lado> <<todos os pontos da consciência determina-da>> toda consciência, todos os

[10 verso]<Os amantes só podem se distin-guir> Uma vez que o amor é um sen-timento do vivo, os amantes só po-dem se distinguir na medida em que são mortais, na medida em que pen-sam esta possibilidade da separação, não como se efetivamente algo <es-teja> estivesse separado, como se o possível ligado a um ser fosse algo efetivo. Em amantes não há matéria, eles são um único todo vido; amantes possuem auto-suficiência, e princípio vital próprio significa apenas: eles podem morrer.A planta tem elementos salinos e ter-rosos que trazem em si leis próprias de sua eficácia, ela é a reflexão de um estranho, o que quer dizer ape-nas: a planta pode decompor-se. Mas o amor também procura superar essa distinção, essa possibilidade <mes-ma como meramente pensada, não> como mera possibilidade, e unir até mesmo o mortal, torná-lo imortal <, mm [nota do editor: palavra ilegível] superar a possibilidade da separa-ção>.

[11 frente]O separável, enquanto ainda é algo próprio antes da completa união, cau-sa embaraço aos amantes, ele cons-titui uma espécie de conflito entre a entrega total – o único aniquilamento possível, o aniquilamento do contra-posto na união – e a auto-suficiên-cia ainda existente; aquela se sente impedida por essa – o amor se irri-ta com o ainda separado, com uma propriedade; essa irritação do amor com a individualidade é o pudor; ele não é estremecimento do mortal, não [é] uma expressão da liberdade de se

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momentos em que um tinha tocado <sem> o outro ou tinha sido por ele tocado, <portanto> apenas sentido e pensado, <são <<foram>> compen-sados> são substituídos – este sepa-rável, o fato de que antes da comple-ta união ainda há algo próprio, causa embaraço aos amantes <que ainda não se du inteiramente>, ocorre uma espécie de conflito entre a entre-ga total – e a auto-suficiência ainda existente; aquela se sente impedida por essa – o amor <zü> se irrita com o ainda separado, com uma proprie-dade; essa irritação do amor <é> com a individualidade é o pudor; ele não é um estremecimento do mortal, não [é] uma expressão da liberdade de se conservar, <ainda> de subsis-tir; num ataque sem amor, um ânimo amável é ofendido por essa hostili-dade, seu pudor torna-se cólera, que agora apenas defende a propriedade, o direito.

[11 verso]Se o <próprio> pudor <mesmo> não fosse um efeito do amor, que tem a forma da irritação tão-somente sobre o fato de que há algo hostil, mas fos-se ele mesmo, segundo sua natureza <se>, <sua> algo hostil que quisesse sustentar uma propriedade contestá-vel, então os tiranos seriam os mais pudicos, assim como as garotas que não entregam <simplesmente> seus encantos sem dinheiro – ou os vai-dosos que nos querem agradar com eles. – Ambos não amaram, nunca, sua referência ao mortal é o contrário <de> da irritação com <seu> o mes-mo – eles são despudorados. <No amor, o pudor é> Um ânimo puro não se envergonha do amor, mas se en-vergonha por esse não ser perfeito, por ainda existir um poder, algo hos-til que <lhe> constitui um obstáculo

conservar, de subsistir; num ata-que sem amor, um ânimo amável é ofendido por essa hostilidade mes-ma, seu pudor torna-se cólera, que agora apenas defende a proprieda-de, o direito.

[11 verso]Se o pudor não fosse um efeito do amor, que tem a forma da irritação tão-somente sobre o fato de que há algo hostil, mas fosse ele mesmo, segundo sua natureza, algo hostil que quisesse sustentar uma pro-priedade contestável, ter-se-ia de dizer dos tiranos que eles têm o máximo de pudor, assim como de garotas que não entregam seus en-cantos sem dinheiro – ou dos vai-dosos que querem cativar por eles. Ambos não amam, sua defesa do mortal é o contrário da irritação com o mesmo – eles lhe atribuem em si um valor <encontrado> <em si>, <que se encontraria <<em mor-talidade>> nos próprios mortais> eles são despudorados. Um ânimo puro não se envergonha do amor, mas se envergonha por esse não

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ser perfeito, ele se repreende por ainda existir um poder, algo hostil que constitui um obstáculo para a perfeição. – O pudor somente ocor-re pela recordação do corpo, pela presença pessoal, no sentimento da individualidade – ele não é um temor pelo mortal e próprio, mas perante o mesmo, um temor que, como o amor, diminui o separável e com ele desaparece; pois o amor é mais forte do que o temor e não teme seu temor, mas dele acompa-nhado supera separações, com o re-ceio de encontrar uma <separação> contraposição resistente e mesmo firme, o amor é um mútuo dar e re-ceber; temeroso de que seus dons possam ser desprezados, temeroso de que <seu receber possa o sepa-rado> um contraposto poderia não ceder a seu receber, <experimen-tando> ele experimenta, se <sua> a esperança não <se> o enganou, se ele mesmo se encontra de todo; aquilo que recebe não se torna com isto mais rico do que o outro; certa-mente enriquece, mas igualmente o outro; da mesma maneira, aquilo que dá não se torna mais pobre; ao dar ao outro, aumentou outro tan-to seus próprios tesouros; Julieta em Romeu: quanto mais dou, tanto mais tenho etc.

[10 verso]<Dand so> O amor adquire <para si> esta riqueza da vida <ao> na troca de todos os pensamentos <totalmente>, de todas as mul-tiplicidades da alma, ao procurar infinitas diferenças e achar para si <fin [certamente o início de “fin-den”, encontrar]> infinitas uniões, voltando-se para toda a multipli-cidade da natureza, a fim de sor-ver o amor de <sua> cada uma de

para a perfeição. – O pudor somente ocorre <b> pela recordação do cor-po, pela presença pessoal, no senti-mento da individualidade – ele não é um temor pelo mortal, mas perante o mesmo <–>, um temor que, como o amor, <afasta o mesmo> diminui o separável e com ele desaparece; pois o amor é mais forte do que o temor e não teme seu temor.

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suas <E> vidas. O mais próprio se une no contato, no apalpar, até a inconsciência, a superação da dife-rença.o mortal abandonou o caráter da separabilidade, e um germe da imortalidade, um germe do que eternamente desenvolve e gera a partir de si , um vivo se fez. O unido já não volta a se separar; a divindade operou, criou – Mas esse unido é apenas um ponto, os amantes <nada lhe conferem> nada lhe podem conferir, para que <ele> nele <pudesse ser que> se encontrasse um múltiplo, pois na união não foi tratado um <múlti-plo> contraposto, ela é <totalmen-te> destituída de toda separação; <ele> o próprio recém-gerado tem de ter <unido> contraído <nele> em si, contraposto e unido em si tudo aquilo pelo qual ele pode ser um múltiplo, ter uma <determina-da> existência. o germe

[11 frente]se solta cada vez mais na contra-posição, e começa, cada etapa de seu desenvolvimento é uma se-paração, a fim de <ele mesmo> voltar a ganhar <tudo para> toda a riqueza da vida: <Assim é, ago-ra,> E assim é, agora, o unido, os separados e o reunido <tudo> <a própria criança é para os pais união <<em>> de>. Os unidos voltam a se separar, mas na criança a <sua> própria união tornou-se <perma-nente> inseparável.

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[12 frente?] Essa união do amor é certamente completa, mas <ela pode> ela só pode sê-lo até onde <o separado é capaz de uma união no senti-mento> o separado é contraposto apenas de tal maneira que um é o amante e o outro o amado, sen-do, assim, cada separado <uma parte de um> um órgão de um vivo; <pois tão-somente o vivo é capaz> além disto, entretanto, os amantes ainda estão em ligação com muita coisa morta, a cada qual <pertence> pertencem mui-tas coisas, <são> quer dizer, cada qual se encontra em relação com contrapostos, os quais ainda são contrapostos, objetos, também para aquilo mesmo que relacio-na. e assim eles ainda são capa-zes de uma múltipla contraposição na múltipla <posse e aquisição> <aquisição e posse> aquisição e posse de propriedade e direitos – o morto que se encontra sob o poder de um <morto> está con-traposto a ambos, e a união acer-ca disso <poderia> <ocorrer> parece poder ocorrer tão-somen-te ao se submetê-lo ao <poder> domínio de ambos. <O que> O amante <que não> que vê o ou-tro na posse de uma propriedade <tem de sentir-se vexado, mas> tem de sentir esta particularidade do outro, a qual ele quis, mas não pode ele mesmo suprimir o domí-nio exclusivo do outro, pois isso seria novamente uma contrapo-sição, <contra o poder do outro, uma vez que também não pode encontrar uma outra relação ao objeto,>

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[12 verso]<uma vez que não <<poderia>> encontrar também uma outra re-lação ao objeto a não ser a do-minação do mesmo, assim teria de> ele contraporia <sua> uma dominação ao domínio do outro;2 < <<a si mesmo ele pode>> e mesmo assim ele não pode por outro lado <<sentir>> sentir de outra maneira a não ser como <restringido> separado pela se-paração do outro>

2. Como o que se segue, até “... só que disso não se fala”, foi riscado por Hegel, o raciocínio continua mais adiante, a partir de “e suprimiria uma relação...”.

[12 frente]Não obstante a união ser completa no amor, ela o é entre os próprios amantes. O amor é um mútuo dar e receber, mas, ao receber, um dos amantes não se torna mais rico do que o outro; certamente enriquece, mas igualmente o outro; da mesma maneira, aquilo que dá não se tor-na mais pobre; ao dar ao outro, deu igualmente a si mesmo e aumentou seus próprios tesouros; Julieta em Romeu: quanto mais <tenho> dou, tanto mais tenho, <o> etc.Uma vez que <embora> esta união do amor <du> é completa, mas ocorre tão-somente entre os aman-tes, eles são capazes <fora de si> ainda de uma múltipla contraposi-ção, de uma múltipla posse de pro-priedade e direitos – Neste caso, o mais pobre hesita em receber do mais rico, em pôr-se em igualdade de posse com ele, porque esse re-alizou uma ação da contraposição, pôs-se fora do <domínio> círculo do amor <e> demonstrou sua auto-su-ficiência;mas a este temor que <a> sua pro-priedade desperta o possuidor se antecipa, suprimindo logo em rela-ção <amante> ao amante seu direi-to da propriedade, que lhe assistiria em relação a qualquer um; presen-

[12 frente]<mas a este temor que sua pro-priedade desperta o possuidor se antecipa, <demonstrando logo> ab-rogando perante o amante seu direito da propriedade, que lhe assistiria em relação a qual-quer um.

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teia-o.

[12 verso]Presentes são renúncias de uma coisa que <simplesmente> não pode perder o caráter da proprie-dade; apenas o sentimento do amor, o gozo é comum; <uma vez que> o que é meio para o gozo é <uma> apenas propriedade, e, uma vez que o amor nada faz de parcial, assim ela não pode rece-ber nada que permaneça ainda um meio, uma propriedade mes-mo na ocupação; uma <d> coisa, <etwas inso> algo que se encon-tra fora do sentimento do amor, não pode ser algo em comum, precisamente por ser uma coisa; ou não pertence a nenhum dos amantes, ou a cada um pertence uma certa parte. Comunidade de bens significa o direito de cada um sobre <uma> a coisa, ou a <po-breza> participação igual ou a par-ticipação maior ou menor; e inclui <portanto> uma divisão, <algo> particular, direitos, propriedade – De acordo com isso deve-se julgar a maneira usual entre amantes de suspender mutuamente os direi-tos dos amantes sobre coisas (di-reito pessoal é excluído do amor já por seu nome como <algo que lhe é abominável> um serviço que lhe é abominável) e de ver isso como uma demonstração do amor. Transfere-se ao outro <um igual> direito <a seu> que o possuidor de propriedade transferiu ao ou-tro, <mas como o> <Na comuni-dade de bens> a comunidade de bens ilude <por> pelo fato de que <nela> <<como o za>> as coisas não são propriedade, mas nela está oculto o direito, a proprieda-de de uma parte das mesmas.

[12 verso]Presentes são renúncias de uma coi-sa que não pode perder o caráter de um objeto; o que é morto é tão-so-mente propriedade, e, uma vez que o amor nada faz unilateralmente, não pode receber nada que também na ocupação, na união do domínio, ainda permaneça um meio, uma propriedade. Uma coisa, algo que se encontra fora do sentimento do amor, não pode ser algo em comum, precisamente por ser uma coisa; se deve ser algo em comum, então não pertence a nenhum dos amantes ou a cada um pertence uma certa parte. Comunidade de bens significa o direito de cada um sobre a coisa, seja a participação igual, seja a par-ticipação indeterminada; ela sempre pressupõe uma divisão, e na ver-dade a necessidade dessa divisão, pressupõe algo particular, direitos, propriedade, certamente não o meio parado do inutilizado, morto, mas sua necessária divisão no uso; com aquela não separação da proprieda-de <não usada>, a comunidade de bens ilude com uma aparência da total supressão dos direitos, mas no fundo é mantido também um direi-to sobre <a> <uma> aquela parte da propriedade <que propriamente tinha sido pensada como comum, a qual> que não é consumida ime-diatamente, mas apenas utiliza-da, só que disso não se fala.> <O mesmo> e suprimiria uma relação <Aus> <Akt> do outro, sua exclu-são <auf> de todos; e, se a posse e a propriedade constituem uma par-te tão importante de suas preocupa-ções e pensamentos, assim também os amantes <têm de> não podem se abster de refletir neste <esta re-

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lação> lado de suas relações; e, se o uso já é comum, o direito à pos-se <continua> permaneceria assim indecidido; <e, caso a posse desta coisa seja comum, <<assim cada um teria>> o possuidor teria abandona-do seu direito em relação ao outro, de tal maneira> <o direito> o pensa-mento do direito certamente não se-ria esquecido, porque tudo o que os homens possuem agora tem a forma jurídica da propriedade; mas <assim tem>, se o possuidor também colo-ca o outro em igual direito de posse, então a comunidade de bens <signi-fica> é apenas o direito <sobre> de ambos sobre <coisa> a coisa.

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O Fragmento 22 dos Jenaer Sytementwürfe (1803/1804): apresentação e tradução

Erick C. de Lima1

Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar o fragmento 22 dos Esboços de Sistema de Jena, escritos por Hegel entre 1803 e 1804. Este extenso fragmento conclui a filosofia do espí-rito nos referidos esboços. Primeiramente, a intenção é contextualizar o fragmento, tanto com respeito aos escritos anteriores e posteriores de Hegel sobre eticidade, quanto em relação ao próprio encadeamento dos fragmentos precedentes. Para isso, tomou-se como ponto de partida desta contextualização a célebre tese de uma sistemática peculiar, segundo a qual o conceito hegeliano de espírito se constituiria pela dialética não reducionista de consciência teórica e prática, esta compreendida como defrontação da consciência singular tanto ao mundo quanto às outras consciências. Em seguida, procura-se mostrar como Hegel pretende, na verdade, articular esta sistemática peculiar em uma gênese intersubjetiva dos nexos comunitários. A partir desta breve contextualização, apresenta-se, a seguir, uma tradução para o português do mencionado fragmento.

Palavras-chave: Consciência, Reconhecimento, Espírito, Eticidade, G. W. F. Hegel Abstract: This paper aims at presenting fragment 22 of Hegel´s Jena project of system, written between 1803 and 1804. This extensive fragment concludes the part of the project dedicated to the philosophy of spirit. The first task is to contextualize the fragment, not only in relation to Hegel’s earlier and later writings on ethical life, but also within the ensemble of fragments. To begin with I discuss the well-known thesis of a peculiar systematic structure, according to which Hegel´s conception of spirit would be constituted by a non-reducionist dialectic of theo-retical and practical consciousness, the later comprehended not only as oposition of the singu-lar consciousness to the world, but also as its formative process through the relationship with other individuals. Then I argue that Hegel intends, in fact, to articulate this peculiar systematic structure in a intersubjective development of community ties. Finally, I propose a translation of the fragment 22 into portuguese.

Keywords: Consciousness, Recognition, Spirit, Ethical Life, G. W. F. Hegel

Contextualização do Fragmento 22

1. A tese de uma sistemática peculiar

O fragmento 22 é o último dos fragmentos reunidos por H. Kimmerle e K. Düsing sob o título Jenaer Systementwürfe I – Das System der Spekula-tiven Philosophie – Fragmente aus Vorlesungsmanuskripten zur Philosophie der Natur und des Geistes, compilação dos fragmentos oriundos dos ma-nuscritos utilizados por Hegel para a preparação de suas aulas entre 1803 e 1804. Tal reunião consiste em uma edição crítica daquela obra editada anteriormente por G. Lasson, com o título Jenenser Realphilosophie I, pelo qual se tornou conhecida na Hegel-Forschung (ver HEGEL, 1986).

1. Doutor em Filosofia pela Unicamp e pesquisador colaborador da mesma Universidade. Sub-metido em 15 de fevereiro de 2008 e aprovado para publicação em 3 de maio de 2008.

Revista Eletrônica Estudos HegelianosAno 5, nº8, Junho-2008: 75-98

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Tais textos se tornaram mais debatidos na década de 1970, ao te-rem sido retomados mais intensamente no âmbito da pesquisa especializada (principalmente por L. Siep e H. Kimmerle), em parte graças ao ensejo cria-do pela reivindicação de sua sistemática peculiar, proposta por Habermas, a fim de renovar a teoria crítica e o materialismo histórico. A postura teórica de Habermas, além de delimitar as intuições embrionárias de sua teoria da ação comunicativa, acentuou a impressão de que Hegel tenha, com seu comprometimento sistemático da maturidade, abandonado intuições de vas-to alcance, presentes nos textos de Jena.

A respeito principalmente das “potências” constitutivas do espírito no esboço de 1803/1804 (fragmentos 19 a 22), Habermas sustenta que Hegel “pôs como fundamento para o processo de formação do espírito uma sistemática peculiar, que fora depois renunciada.” (HABERMAS, 1974, pp. 786/787) Para Habermas, a diferença fundamental em relação à sistemática definitiva da filosofia hegeliana do espírito está em que, nos Jenaer Syste-mentwürfe, “não é o espírito no movimento absoluto de reflexão de si mes-mo, que se manifesta, dentre outros, também na linguagem, no trabalho e na relação ética, mas antes a conexão dialética de simbolização lingüísti-ca, trabalho e interação que determina o conceito de espírito”(HABERMAS, 1974, p. 786).

É justamente esta conexão dialética entre o trabalho, o reconheci-mento e a mediação lingüística que Habermas acredita ter sido perdida no desenvolvimento subseqüente do sistema, com a substituição da mesma pelo processo de formação auto-reflexiva de um espírito “solitário”, o qual recobra, tanto nas instituições político-jurídicas e sociais, quanto na arte, na religião e na filosofia, apenas os elementos de sua auto-produção. Parado-xalmente, entretanto, Habermas entende que é a relação do espírito a seu outro, plasmada segundo o modelo do reconhecimento de si mesmo, isto é, a transformação da relação ética em célula do sistema, que representa o estopim desta reviravolta (HABERMAS, 1974, p. 787).

A postura interpretativa de Habermas foi, como mencionado, extre-mamente influenciada pela intenção de revisar o materialismo histórico de Marx – e sua tendência à “absolutização” do processo de reprodução mate-rial como elemento sócio-explicativo determinante – através do resgate da “alternativa” hegeliana de aglutinar à “potência do instrumento e do traba-lho”, ao agir instrumental, o valor próprio das relações intersubjetivas e da mediação lingüística como elementos irredutíveis do espírito e, por conse-guinte, momentos imprescindíveis para a formação de identidade estável do eu, para a integração social e para a reprodução cultural2. Apesar das inú-2. Abstraindo da plausibilidade da leitura de Habermas em seu projeto de renovação do mar-xismo, no que tange a Hegel, pode-se dizer que, em primeiro lugar, é extremamente difícil considerar, com base nos Systementwürfe 1803/1804, linguagem, trabalho e interação como momentos de formação do espírito independentes uns dos outros (SCHNÄDELBACH, 2000, p. 157). Entretanto, o fato de que Habermas tenha se aproveitado de uma intuição a partir de sua leitura de Hegel não constitui, por si só, objeção contra sua compreensão do próprio Hegel, e muito menos contra seu projeto intelectual amplamente baseado nesta intuição. Para uma re-lativização da interpretação de Habermas no contexto da recente Hegel-Forschung, (ver WILDT,

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meras críticas3, suscitadas por sua tentativa primeva de oferecer, com base em uma suposta irredutibilidade, colhida nos Systementwürfe 1803/1804 de Hegel, de trabalho e interação, de agir instrumental e agir comunicacional, uma renovação da teoria social de Marx4 – críticas dirigidas tanto no âmbito da Hegel-Forschung, quanto pelos marxianos –, Habermas voltou recente-mente ao tema tão significativo para o direcionamento de seu projeto filosó-fico (HABERMAS, 1999, p. 199).

No contexto da sistematização não reducionista das potências, su-postamente abandonada, o fragmento 22 se apresenta como leitura estraté-gica. O referido fragmento conclui a parte dos esboços referentes à filosofia do espírito, agrupando temas que, na sistemática definitiva, pertencem ao “Espírito Subjetivo”, como o reconhecimento intersubjetivo das consciências singulares e ainda um interessante tratamento dado ao problema da lin-guagem que, ao contrário do que se encontra no posterior desenvolvimento do “Espírito Teórico” na Enciclopédia, sublinha a conexão lingüística entre a razão teórica e os nexos societários formativos da consciência; mas também temas que serão desenvolvidos na filosofia do “Espírito Objetivo”, como a noção de substância ética, uma incipiente teoria da propriedade e do con-ceito jurídico de pessoa, e também pormenores da organização econômico-jurídica e produtiva da sociedade, os quais antecipam a posterior teoria da sociedade civil e seu sistema de dependência omnilateral na satisfação das carências.

Para além de uma sistematização não reducionista – a qual talvez pudesse, ao contrário do que sustenta Habermas, ser problematizada – das potências que formam o “espírito teórico” no fragmento 19 (linguagem e memória), o “espírito prático” no fragmento 20 (trabalho e instrumento) e a interação no fragmento 21 (família), o encadeamento da eticidade abso-luta, no fragmento 22, possui extrema importância ao explicitar, a partir do conceito de reconhecimento, a gênese intersubjetiva da comunidade e da autoconsciência universal. Portanto, a despeito de uma sistematização não

1983, p. 326-333)3. Para uma apreciação da crítica a Habermas a partir dos estudiosos de Marx, veja-se, SCH-MIED-KOWARZIK, 1981. Entretanto, a crítica mais virulenta à posição habermasiana vem do lado dos “hegelianos”. Wildt concorda, de maneira geral, com a tese de Habermas de que a sistemática definitiva da filosofia hegeliana é marcada pela redução dos media do esboço de 1803/1804 a um denominador comum: a forma lógica da auto-reflexão (ver WILDT, 1983, 326; HABERMAS, 1974, pp. 807-809). Wildt também endossa a tese habermasiana de que o caráter irredutível dos media não tem somente um sentido estrutural, mas também um papel dinami-zador do desenvolvimento. A crítica de Wildt diz respeito, sobretudo, à relação entre os media concebida por Habermas no âmbito da conexão estrutural ou pré-societária dos mesmos. Ha-bermas permanece, segundo Wildt, apenas no âmbito impreciso da questão acerca da media-ção entre sujeito e objeto, passando ao largo da questão para ele fundamental: a possibilidade da identidade do eu estar vinculada à conexão entre linguagem, trabalho e reconhecimento.4. A tese da independência de trabalho e interação, enquanto formas de socialização humana não redutíveis uma à outra, implica em que as relações de produção e a superestrutura institu-cional e cultural da sociedade não podem ser apenas reconduzidas a um determinismo ferrenho por parte do trabalho e das forças produtivas. No horizonte da teoria social da “Escola de Frank-furt”, a derivação de todas as formas de opressão a partir da lógica da dominação da natureza por uma razão instrumentalizada seria um programa crítico insuficiente, pois a interação teria de integrar o quadro geral de onde poderia provir a racionalização social.

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reducionista entre consciência teórica, consciência prática e interação, fato é que Hegel propõe uma articulação destas esferas na gênese intersubjetiva do nexo comunitário. Na filosofia do espírito de Jena, Hegel tornou o mode-lo de interação social, assimilado a partir de Fichte (LIMA, 2006, p. 67s), a base para sua teoria social e política, fundamento para a constituição pro-cessual de seu conceito de Volksgeist.

Na verdade, o fato de que as diversas instituições e práticas sociais modernas apareçam aí em uma conexão muito mais viva do que aquela que se deixa ver na Filosofia do Direito, isto é, de que a estrutura social, forma-tiva, econômica e política da comunidade sejam engendradas no processo pelo qual os indivíduos se socializam, é não uma fonte de enorme confusão, mas parte inconteste da riqueza deste material não publicado por Hegel. Tal-vez seja possível, no futuro, esperar por propostas de leitura que estreitem a cooperação entre os pólos da produção hegeliana.

A originalidade comumente atribuída à teoria jenense da eticidade gravita em torno de dois temas relacionados: por um lado, a compreensão da intersubjetividade, desenvolvida como parte integrante de sua filosofia social pela via do conceito de reconhecimento; por outro lado, o tratamento coeso daquilo que, nas Grundlinien, teria sido separado em direito abstrato, moral e eticidade, de maneira que sua conexão interna e interdependência, mais visível em Jena, teria sido perdida e apenas a impressão de uma so-breposição de esferas independentes teria restado. Na esteira da inovadora interpretação fornecida por Ludwig Siep5, para o qual o conceito jenense de reconhecimento conecta ética, política, a moral e direito, propiciando, pela superação da distinção entre filosofia política clássica e moderna, uma renovação da filosofia prática, também Roth interpreta, mais recentemente, a sistemática definitiva da filosofia hegeliana como desvirtuamento desta integração6.

5. A reflexão de Ludwig Siep é o marco que permite superar a predominância da influente inter-pretação feita por Kojève do conceito hegeliano de reconhecimento como centrado na relação entre senhor e escravo (KOJÈVE, 1947). Siep vê a importância do reconhecimento para a filoso-fia prática de Hegel na capacidade de permitir uma renovação da filosofia prática tradicional em bases pós-modernas, pós-liberais e intersubjetivas. Desta maneira, Hegel superaria o quadro conceitual individualista do direito natural moderno, inadequado a uma plena compreensão da liberdade individual em sua necessária mediação intersubjetiva e em sua significação plena-mente positiva. Esta superação teria, de acordo com Siep, o resultado de fornecer uma recon-ciliação entre a tradição aristotélica e a filosofia transcendental (SIEP, 1976).6. Hegel teria chegado a uma teoria da sociedade civil e do estado que, calcada no conceito de reconhecimento, abrangia aspectos jurídico-morais e salientava os momentos conectivos das esferas político-social e jurídico-moral, ao passo que a sistemática definitiva da filosofia do espírito objetivo, tornaria, graças ao obscurecimento do elemento intersubjetivo, os temas de filosofia prática aparentemente independentes uns dos outros (ROTH, 2001, p. 18-19). Espe-cialmente confuso se torna, para Roth, o modo como as diversas esferas do espírito objetivo se relacionam umas às outras, principalmente como direito abstrato e moral devam ser com-preendidos enquanto momentos não-éticos ou pré-éticos a serem “suspensos” na eticidade e conservados nela. Mas Roth critica a visão, defendida por Theunissen, dos capítulos iniciais das Grundlinien apenas como “preâmbulo desconstrutivista” do panorama teórico jurídico-moral pré-hegeliano (THEUNISSEN, 1982): neste caso, não se compreende como Hegel espera que os elementos positivos desenvolvidos neste capítulo possam ser conservados na eticidade e como nexos que lhe são constitutivos.

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2. Eticidade e formação da consciência

Os textos não publicados de Jena vinculam, de fato, a realização social do espírito à socialização ativa dos indivíduos, os quais, ao reconstituírem a partir de sua individualização uma unidade político-estatal, engendram as normas, práticas e instituições que dão corpo à autoconsciência universal e ao espírito do povo. O procedimento hegeliano nestes textos se caracteri-za, sobretudo, pela gênese das relações concretas, costumes e normas que mediatizam a vida social a partir do intercâmbio social dos indivíduos; ao passo que as Grundlinien perseguiriam o processo de efetivação do espírito de uma maneira destacada da práxis social, isto é, como sucessão de figu-ras derivadas exclusivamente da “lógica” do desenvolvimento imanente do espírito universal, compreendido de maneira solitária, de forma que o agir e querer dos indivíduos nada mais constitui do que um pressuposto7. Em face da filosofia de Jena, a submissão da eticidade ao movimento de auto-refle-xão de um einsamer Geist acarreta uma perda de conexão entre as esferas que possa convencer sem a pressuposição da estrutura lógico-especulativa do conceito tardio de espírito.

Entretanto, em face tanto das obras posteriores – como Fenomeno-logia, Enciclopédia e Filosofia do Direito –, quanto das produções anteriores de Hegel sobre ética e política – como o Naturrechtsaufsatz e o System der Sittlichkeit –, a peculiaridade fundamental dos fragmentos que integram os esboços de sistema de 1803/04 é uma íntima relação entre o desenvol-vimento conceitual da eticidade e a teoria da consciência, a tal ponto que a gênese da eticidade absoluta nestes fragmentos pode ser compreendida como uma teoria da formação prático-cognitiva da consciência individual8.

7. Esta interpretação é amplamente apoiada no estudo introdutório feito por Marcos Müller, no qual examina a tese desenvolvida por Theunissen acerca do escamoteamento do momento intersubjetivo na exposição das Grundlinien (veja-se, M. L. MÜLLER, Apresentação: Um roteiro de leitura da Introdução [à Filosofia do Direito]. In: G. W. F. HEGEL, Introdução à Filosofia do Direito, Clássicos da Filosofia: Cadernos de tradução, nº 10, IFCH/UNICAMP, 2005, p. 19-23). Contudo, para Müller, há em Hegel uma direcionamento peculiar do “estatuto supra-individual” do “conceito positivo de direito”. No §29, há uma contraposição entre o “conceito positivo de direito”, vinculado à sua “base substancial supra-individual”, que reúne as condições comuni-tárias da realização da liberdade de todos; e a concepção formalista do direito, que se refere à multiplicidade atomista das vontades individuais em mútua coerção. À “base substancial” se pode relacionar a figura da universalidade imanente às vontades singulares enquanto núcleo normativo de uma “sociabilidade positiva”, um paradigma não limitativo de intersubjetividade, o qual se relaciona com a “sociabilidade negativa” como compaginação de relações não limita-tivas pelas quais a mútua coerção recebe seu sentido social.8. Neste ponto se encontram não somente os elementos mais gerais de nosso desacordo em relação à interpretação de Honneth, baseada em seu conceito aristotelizante de individuali-zação, como também de nossa maior aproximação à interpretação defendida por Habermas (1999). Habermas parece não partilhar da posição de Honneth de que os esboços de sistema de Jena, embora continuem a manter a força de seu viés socializador, sacrifiquem seu nexo individualizante com a adesão à teoria da consciência e o conseqüente afastamento em relação ao ponto de partida aristotélico do System der Sittlichkeit (HABERMAS, 1999), segundo o qual a progressiva intensificação dos laços sócio-integradores possui, como contrapartida, um pro-cesso de individualização e sofisticação da relação a si graças à prévia imersão do indivíduo no estofo originário de relações comunicacionais, que caracteriza a eticidade natural (HONNETH, 1992, 42 e seg). Para Honneth, Hegel teria compensado sua adesão à teoria da consciência com uma renúncia ao intersubjetivismo em sentido forte que residia no recurso ao ponto de partida

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Tal interpretação pode ser corroborada a partir de uma consideração do percurso dos fragmentos 15 a 22, dedicados à filosofia do espírito. A intro-dução da conexão entre eticidade e teoria da consciência os diferencia não somente dos escritos anteriores, mas também das obras de maturidade, na medida em que a forma definitiva da filosofia do espírito se caracteriza pela rígida separação entre espírito subjetivo e objetivo.

A adoção da teoria da consciência como diretriz da filosofia do espíri-to conduz à não pressuposição da eticidade absoluta, como ocorre antes de 1803 (WILDT, 1983, p. 325). A universalidade da consciência é de tal forma inscrita em sua essência de “ser o contrário imediato de si mesma” que o procedimento como um todo ganha o contorno de uma argumentação “re-construtiva” guiada pelo pleno desdobramento da essência da consciência. Neste contexto, cabe ao fragmento 22 descrever a gênese intersubjetiva desta universalidade.

O System der Sittlichkeit se apresenta como a primeira tematização do desenvolvimento conceitual da eticidade (LIMA, 2007, p. 36s). Entretan-to, tal opúsculo ainda não evidencia o vínculo entre a gênese intersubjetiva da eticidade, fundada no conceito de reconhecimento, e a teoria da cons-ciência, que caracteriza o fragmento 22. A partir dos primeiros escritos de Jena, notadamente o Naturrechtsaufsatz e a Differenzschrift, é sugerida, a partir da noção de um Einssein entre universal e singular, a necessidade de uma compreensão da realização institucional gradual da liberdade individual e, por conseguinte, a idéia de um vínculo entre a formação de instituições e a progressiva aquisição, por parte do indivíduo, de uma auto-compreen-são correspondente a níveis desta realização comunitária de sua liberdade (HONNETH, 1992, p. 27).

No System der Sittlichkeit, primeiro esboço do que Hegel entende como uma teoria do desenvolvimento da eticidade, embora o singular, no elemento societário pré-político de seu defrontamento com a natureza como ambiente da satisfação de suas carências mediante o trabalho, seja posto como ponto de partida da “reconstrução” (HEGEL, 2002, p. 5) da eticidade comunitária, Hegel faz uso da pressuposição da eticidade enquanto povo (HEGEL, 2002, pp. 3 e 50). Os fragmentos 15 a 22 dos Jenaer Systemen-twürfe seguem, na medida em que fundamentam a “reconstrução” da co-munidade ética sobre uma teoria da consciência, a tendência de romper com esta pressuposição. Pode-se interpretar esta tendência, que se aprofunda em Jena, como o afastamento gradual em relação ao modelo clássico de eticidade e maior reaproximação com as teorias modernas do direito natu-ral e a moral da autonomia (RIEDEL, 1969), as quais tornam a consciência condição incontornável da realização plena da liberdade. Do ponto de vista de uma teoria do desenvolvimento da eticidade, Hegel tende gradualmen-te à percepção de que o projeto de mediação entre a liberdade moderna e a filosofia política clássica depende de um processo de auto-efetivação da consciência no quadro institucional da consciência universal e que não seja,

“teórico-comunicativo” aristotélico (HONNETH, 1992, 90s.)

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portanto, simplesmente um pressuposto exterior à consciência.

A partir dos esboços escritos em 1803/04, Hegel começa a se afastar da orientação schelliniana de uma concepção de eticidade direcionada pelo conceito de natureza, orientação à qual se conecta também seu aristotelismo da primeira fase em Jena (DÜSING, 1994), e que marca o Naturrechtsauf-satz e o System der Sittlichkeit. Neste sentido, a filosofia prática passa a in-tegrar aquela parte do sistema que constrói o retorno do absoluto enquanto espírito a partir de sua exteriorização na natureza. Com esta prefiguração da apresentação enciclopédica, mas operando ainda com uma vinculação muito íntima entre eticidade e formação da consciência, a filosofia do espírito de 1803/04 se incumbe de construir o desenvolvimento pelo qual a consciência empírica se desdobra em consciência absoluta.

Assim, ainda que Hegel flertasse, antes de 1803, com o princípio fun-damental a ser operacionalizado na teoria da consciência – a inteligência, cuja essência é, enquanto conceito absoluto, passar ao contrário imediato de si, somente o alinhamento entre o movimento da consciência e a gênese do espírito ético de uma comunidade suscita a necessidade de um processo pelo qual a consciência individual faça a experiência de como ela, enquanto totalidade para si, suspende a si mesma na identidade com o espírito do povo. Portanto, o vínculo entre consciência, reconhecimento e gênese da eticidade (SIEP, 1979, p. 180) reside na compreensão do reconhecimento como auto-movimento da consciência individual pelo qual ela passa da sin-gularidade à universalidade, vendo a “aspereza” de sua pretensão à totali-dade sendo gradativamente suspensa até desembocar na união comunitária com outras consciências singulares. Com isso, o movimento da consciência individual em direção ao espírito ético ganha a feição de um desenvolvimen-to dotado de uma necessidade interior, inscrito na estrutura da própria cons-ciência individual. Se a essência da consciência é a unidade dialética de si mesma e de seu outro, a consciência que é espírito absoluto – em 1803/04, idêntico ainda ao espírito de um povo – é unidade desdobrada de sujeito e objeto da qual a filosofia do espírito parte enquanto imediata, mas agora como “espírito ético”, auto-conhecimento do espírito, apresentação real da idéia na unidade absoluta de universal e particular.

Na medida em que “faz preceder à filosofia prática, compreendida enquanto filosofia da eticidade, uma derivação de seu objeto no âmbito da teoria da consciência, uma derivação que não é já componente do sistema da eticidade” (SCHNÄDELBACH, 2000, p. 139), Hegel acaba por tornar pres-cindível a pressuposição do télos do desenvolvimento da eticidade e a con-seqüente exterioridade do método de reconstrução deste movimento. Com a diferenciação categórica entre espírito e natureza (KIMMERLE, 1970, p. 260), Hegel formaliza sua peculiaridade frente aos seus predecessores: que o espírito seja qualitativamente diferente da natureza, eis o ponto comum de Hegel com Kant e Fichte; mas que, todavia, o ponto de partida para o desenvolvimento do espírito pressuponha o ambiente de conexões naturais suspensas no conceito de uma consciência efetiva, eis sua ruptura com os

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mesmos. É na concepção da consciência como simultaneamente universal e individual que reside a suspensão da cisão fichtiana entre consciência pura e empírica (HABERMAS, 1968, p.789s).

O fio condutor do desenvolvimento do espírito em 1803/1804, mar-cado justamente pela ligação originária da consciência individual e da auto-consciência universal do espírito ético – ligação originária cujo meio de des-dobramento será justamente o “termo médio”, o âmbito comum a ambos, ou como diz Hegel, o “meio” (Mitte) entre eles (HEGEL, 1986, p. 219), o re-conhecimento –, prefigura-se na definição da consciência como conceito do espírito (HEGEL, 1986, p. 195). Tal definição, empreendida nos fragmentos 15 a 17, estabelece a intuição fundamental de que os “lados” da consciência, das Bewusstseiende e das, dessen es sich bewusst ist, são imediatamente um e, por isso, constituem a forma da universalidade. Com efeito, o mo-vimento da consciência como espírito é a suspensão da contraposição, do “para si” da infinitude exterior em direção à posição de si neste ser-outro.

Ao contrário do que se dá no System der Sittlichkeit e no Naturre-chtsaufsatz, a unidade ética do povo é tratada aqui como um objeto a ser construído através de um desenvolvimento vinculado à teoria da consci-ência. “Ele existe como objeto (Gegenstand) de sua consciência singular, enquanto um exterior, no qual eles, tal como são nele absolutamente um, desligam-se (sich abscheiden) e são para si. É a unidade universal e o meio absoluto (absolute Mitte) da mesma, e onde eles estão postos idealmente, enquanto suspensos; e este seu estar-suspenso (dies ihr Aufgehobensein) é, ao mesmo tempo, para eles mesmos.” (HEGEL, 1986, p. 188) É esta liga-ção originária entre espírito e consciência que prepara, enquanto distinção entre determinações subjetivas da individualidade efetiva e a organização ou auto-configuração do espírito, a distinção entre espírito subjetivo e obje-tivo (SCHNÄDELBACH, 2000, p. 119).

Neste sentido, o movimento que define a filosofia do espírito em 1803/1804 é o movimento pelo qual a consciência vai apreendendo aquilo de que é consciente como sendo ela mesma, tornando-se, ao término do movimento, realidade absoluta da consciência, o contrário do que ela ime-diatamente é. “Este é o fim, a realidade absoluta da consciência, à qual nós temos de elevar seu conceito. É a totalidade que ela tem enquanto espírito de um povo, o qual é absolutamente a consciência de todos, que eles intuem (anschauen) e que contrapõem a si enquanto consciência, mas, do mesmo modo, conhecem imediatamente sua contraposição, sua singularidade como individualidade nele suspensa, ou sua consciência como um absolutamente universal.”(HEGEL, 1986, p. 190) O desenvolvimento do espírito a partir de sua célula – não a “autoconsciência pura”, mas a unidade imediata de uni-versalidade e singularidade –, coincide com o movimento de auto-suspensão da singularidade, processo cuja característica propriamente filosófico-social, o descentramento da perspectiva individualista da singularidade excluden-te, será realçada pelo reconhecimento. Somente no povo, ao ser suspensa como singular, a atividade consciente adquire existência duradoura, tornan-

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do-se universalidade de uma obra comum (HEGEL, 1986, pp. 187/188).

3. Reconhecimento e intersecção das potências

Em íntima relação com o direcionamento fornecido pela teoria da consciência, o movimento do reconhecimento tem seu necessário desen-cadeamento imediatamente na evolução da consciência segundo as formas assumidas nos media e, de uma maneira remota, na conexão desta evolu-ção com o télos do desenvolvimento da consciência estabelecida na soleira da filosofia do espírito: a consciência universal no espírito de um povo. É no importante fragmento 22 que Hegel estabelece a relação entre os media língua, trabalho e interação com o télos do desenvolvimento da consciência, uma intersecção cujo medium é o próprio movimento do reconhecer. Em termos da teoria da consciência e do estágio de sua evolução alcançado pela potência da família, tal movimento consiste em que “cada um ponha9 a si mesmo na consciência do outro, suspenda a singularidade do outro, ou seja, cada qual ponha em sua consciência o outro como uma singularidade ab-soluta da consciência. Isto é o reconhecer recíproco em geral, e nós vemos como este reconhecer simplesmente como tal, como posição (Setzen) de si, enquanto uma totalidade singular da consciência, pode existir em uma outra totalidade singular da consciência.”(HEGEL, 1986, p. 217)

Com efeito, a grande novidade introduzida por Hegel nos Systemen-twürfe 1803/04 em sua compreensão da luta por reconhecimento em relação ao System der Sittlichkeit, diz respeito à revogação de seu desencadeamento na esfera da eticidade natural de família e a fundamentação do mesmo em uma determinação da consciência, a qual, no fragmento 21, chegando na família à totalidade da consciência prática formal, marca o nítido encapsula-mento do singular em face da universalidade do povo. Ao contrário do prin-cípio aristotélico no System der Sittlichkeit, os esboços de 1803/04 orientam a exposição pela constituição da universalidade ético-jurídica social a partir do conflito dos indivíduos entre si e de suas relações com a natureza, sem recorrer a um estofo intersubjetivo primário de relações de reconhecimento inseridas na própria natureza humana como algo pressuposto (HONNETH, 1992, p. 49-51): tal estofo é, pela primeira vez, parte do desenvolvimento da consciência e, como tal, condição da individualização pressuposta pela luta. Questão que deixamos aqui em aberto é a de se há que se entender aqui que Hegel perca, com isso, a possibilidade de desenvolver o processo de reconhecimento tendo como pano de fundo o estofo originário de uma existência social intersubjetivamente engendrada e que, por conseguinte, abandone o “intersubjetivismo em sentido forte”(HONNETH, 1992, p. 90)10.

Ao contrário de Hobbes, que fundamenta a necessidade de uma luta potencialmente generalizada por poder na necessidade de todos de domi-nar tudo (direito a tudo), ou seja, justamente no fato de que toda posse e poder servem, em última instância, para submeter ou lesar o outro; Hegel

9. Originalmente: põe. Modificação do tradutor. 10. Ver nota 7 acima.

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preserva a figura desta pretensão de totalidade no quadro de sua compreen-são de consciência como o ser-ideal do mundo, mas não admite que a luta possa ter, como em Hobbes, um encaminhamento evasivo que não seja sua necessária radicalização, isto é, que possa se resolver na forma de um pac-to de submissão: na própria estrutura formal da consciência de pretender expandir seu caráter de totalidade intensiva sobre tudo já está prefigurada a necessidade incontornável da luta. Como para Hobbes a morte não é uma necessidade – talvez antes o motivo que suscita uma opção pelo subterfú-gio (WILDT, 1983, p. 337) –, também a luta não é condição positiva para a superação do estado de natureza. Justamente a transformação da luta em condição positiva de suspensão do estado de natureza é o que caracteriza a radicalização do modelo hobbesiano em Hegel pela sua contextualização no processo de constituição recíproca da subjetividade no modelo transcenden-tal do conceito fichtiano de Aufforderung (HONNETH, 1992).11

Seguindo Fichte, Hegel pressupõe que uma “auto-compreensão de-senvolvida e consistente”(WILDT, 1983, p. 339) somente é possível pela experiência de um reconhecimento intersubjetivo. Sendo assim, Hegel atri-bui à consciência singular enquanto totalidade um impulso para o ser-reco-nhecido, uma vontade de ser reconhecida em suas prerrogativas, direitos, peculiaridades e capacidades. Assim, Hegel potencializa, através do caráter positivo da luta para a superação do estado de mútua impenetrabilidade dos singulares enquanto totalidades, a tese fichtiana de que a relação de mútua aprovação contenha a possibilidade de uma auto-constituição da identidade, que torna significativa a vida conjunta dos indivíduos. Com efeito, em uma nítida mediação da filosofia antiga com a teoria fichtiana da intersubjetivi-dade, Hegel passa a compreender que a consciência singular somente pode alcançar sua realidade mais adequada na conexão cultural intersubjetiva-mente partilhada que Hegel denomina de Volksgeist. Portanto, originaria-mente, o impulso, contido na vontade singular, para o ser-reconhecido se refere à compreensão de si mesmo como totalidade, compreensão que se deixa mediar pelo conflito com outro na medida em que este pode estorvá-la (WILDT, 1983, pp. 340/341).

Com a referência do processo à aquisição pela consciência singular de sua mais adequada realidade no espírito do povo, Hegel torna evidente que o pleno desenvolvimento da identidade singular se dá somente na tes-situra da vida comunitária definida pelo mútuo reconhecimento de direitos e deveres (WILDT, 1983, 340). Como para Hegel a consciência somente tem uma existência genuína como reconhecida, só há vida social sob a pressu-posição de um reconhecimento intersubjetivamente partilhado de um tecido normativo comum. Mostrar como uma tal pressuposição reside no próprio movimento da consciência é o sentido primordial da inserção do reconheci-mento na filosofia do espírito em Jena. É neste sentido que, para Hegel, a luta perde todo apelo a um raciocínio hipotético e é desprovida, mesmo, de todo significado social efetivo: trata-se somente da contrapartida necessá-

11. Schnädelbach difere de Honneth acerca da mediação alcançada por Hegel das teses de Hobbes e de Fichte. (SCHNÄDELBACH, 2000, 153)

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ria do estado de sociedade, quando este é mostrado em sua gênese a partir de uma teoria da consciência, isto é, o negativo do mesmo que contém a condição de sua positivação, a experiência da consciência de sua destinação ético-social. A luta propicia, portanto, a “auto-experiência das estruturas da razão prática e das condições interpessoais da identidade do eu.” (WILDT, 1983, p. 342).

Neste sentido, Hegel alcança, com a inserção do processo de reco-nhecimento na gênese do nexo comunitário, um nível diferenciado de argu-mentação em relação à tese contratualista do estado civil como a necessária eliminação de conflitos: na medida em que o reconhecimento se dirige àquela situação em que os indivíduos se deparam, após o rompimento do círculo de proximidade responsável pela formação coesa de sua individualidade, até o ponto do forjamento de uma auto-identidade problemática como totalidade intensiva e excludente, enquanto sustentando uma recíproca exigência por serem a totalidade, o querer ser-reconhecido é ele mesmo o fundamento de conflitos inevitáveis, já que, sob esta perspectiva de uma reivindicação le-vada ao paroxismo, ambas têm necessariamente de se estorvar. Em compa-ração com o argumento contratualista da superação do estado de natureza, Hegel compreende que a constituição dialética da autoconsciência, capaz de ser o contrário imediato de si mesma, implica que a conflituosa socialização de seres livres independentes colapse no seu contrário, isto é, no espírito ético enquanto unidade contraditória de ser e estar-suspenso da totalidade da consciência.

Em uma nota à margem dos manuscritos, Hegel polemiza a tese con-tratualista, quer em sua tradição jusnaturalista, quer em seu registro jusra-cionalista, como o “contrato originário” na perspectiva anti-voluntarista de Kant: “nenhuma composição, nenhum contrato, nenhum contrato originário tácito ou expresso. O singular renunciar a uma parte de sua liberdade, mas toda [ela]. Sua liberdade singular é somente seu egocentrismo (Eigensinn), sua morte.”12 Trata-se de uma crítica mordaz à tese fundamental do con-tratualismo segundo a qual o contrato seria erigido sobre o consentimento de seres humanos plenamente formados, isto é, os quais, em abstração de um exitoso processo de individualização e tomada de consciência de sua liberdade, estariam plenamente aptos a dar seu consentimento a um estado civil. Para Hegel, um “estado civil” pressupõe, no mínimo, a formação da in-dividualidade, não somente seu destacamento na esfera da educação, mas sua recondução a padrões ético-jurídicos e simbólicos de uma aquiescência intersubjetivamente gerada. Neste sentido, não somente a razão pura prá-tica plenamente formada no quadro da racionalidade procedimental em que se baseia o contrato originário, mas também o voluntarismo e decisionismo peculiares ao assentimento arbitrário em submeter-se a uma regulação ci-vil da liberdade, bem como a promessa em permanecer sob tal regulação (HEGEL, 1986, pp. 218/219), são postas em xeque: em suma, para Hegel, o contrato não é possível, pois suas próprias condições de possibilidade não são alcançáveis no estado de natureza (PATTEN, 1999, cap.4).

12. HEGEL, 1986, p. 223, nota, Na margem lateral em cima.

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Finalmente, nos fragmentos de 1803/1804, Hegel compreende niti-damente, em vista do estágio de mútua exclusão deflagrado na luta de vida e morte, a gênese do espírito do povo em duas etapas distintas: primeira-mente, como uma genuína gênese intersubjetiva do Einssein; e somente em um segundo momento, Hegel aborda, a partir desta gênese intersubjetiva, a relação entre singular e universal como uma relação concernente à subs-tância ética (HEGEL, 1986, p. 223). Apesar de diferenças consideráveis, esta dupla direção do movimento é preservada na Fenomenologia, como se pode ver no início do desenvolvimento da “razão ativa” – e, principalmente, no prólogo incluído sob “B. A Efetivação da consciência-de-si racional através de si mesma”(HEGEL, 1970, III, p. 262-269).

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WILLIAMS, R.. Hegel´s Ethics of Recognition. Los Angeles: University of Ca-lifornia Press, 2000.

217 / Fragmento 22É absolutamente necessário...

13É absolutamente necessário que a totalidade, à qual a consciência chegou na família, conheça-se a si mesma, numa outra tal totalidade, [numa outra tal] consciência, como a si mesma. Neste conhecer (Erkennen) cada um é para o outro imediatamente um absolutamente singular. Cada um põe a si mesmo na consciência do outro, suspende (aufhebt) a singularidade do outro, ou seja, cada qual põe em sua consciência o outro como uma singu-laridade absoluta da consciência. Isto é o reconhecer recíproco em geral, e nós vemos como este reconhecer simplesmente como tal, como posição (Setzen) de si, enquanto uma totalidade singular da consciência, pode exis-tir (existieren) em uma (in eine) outra totalidade singular da consciência. O singular é somente uma consciência na medida em que cada singularidade de sua posse e de seu ser (seines Besitzes und seines Seins) aparece ligada à sua inteira essência (Wesen), é acolhida (aufgenommen) em sua indife-rença – na medida em que ele põe como si mesmo cada momento; pois isto é a consciência, o ser-ideal (das Ideellsein) do mundo. A lesão a qual-

13. Em E, o começo do parágrafo (depois riscado) dizia o seguinte: cada forma entre absoluta-mente singulares é uma [forma] indiferente: é da mesma forma indiferente presentear ao outro ou lhe roubar e o abater. E não há nenhum limite entre a menor e a mais alta lesão. O singular é um todo, todo o diferenciável nele está posto nesta inteireza (Ganzheit): ele é sem o surgir do universal. A relação dos singulares uns aos outros é uma relação dos mesmos como todos; pois o universal que surge seria mesmo o findar de sua singularidade. Ao não poderem, desta forma, desmembrar-se em sua relação, então cada negação singular da posse é uma negação de sua totalidade, e, ao mesmo tempo, esta negação tem de aparecer (eintreten).

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quer de suas singularidades é, portanto, infinita, [é] um dano (Beleidigung) absoluto, um dano dele como um todo, um dano de sua honra. E o embate (Kollision) por cada singular é uma luta (Kampf) pelo todo14. A coisa, a determinidade, /218 enquanto valor, enquanto uma coisa, não vem de ma-neira nenhuma ao caso: ela é antes inteiramente nadificada (vernichtet), é totalmente ideal. Trata-se somente disso: que ele está relacionado a mim, que eu sou uma consciência, que ele perdeu sua oposição a mim. Enquanto esta totalidade, ambos, que querem se reconhecer e se saberem reconhe-cidos como esta totalidade de singularidades, entram em cena um em face do outro. E o significado, que eles a si conferem frente ao outro, consiste em que cada um apareça na consciência do outro /219 como um tal que o exclua de toda a extensão de suas singularidades; β) que ele neste seu ex-cluir seja efetivamente totalidade. Isto nenhum deles pode demonstrar ao outro através de palavras, asseguramentos, ameaças ou promessas; pois a linguagem é somente a existência ideal da consciência: mas aqui estão um contra o outro, [seres] efetivos, i.e. [seres] absolutamente contrapostos, absolutamente sendo-para-si, e sua relação (Beziehung) é uma [relação] puramente prática, mesmo uma [relação] efetiva: o meio de seu reconhe-cer tem de ser ele mesmo um [meio] efetivo. Eles têm então de lesar um ao outro. Que cada um, na singularidade de sua existência, ponha-se como totalidade excludente, isto tem de se tornar efetivo. O dano (Beleidigung) é necessário: somente quando eu perturbo o outro em seu ser aparecente, ele é capaz de tornar efetivo seu excluir de um outro, pode ele se apresentar

14. Em E dizia o seguinte até pôr (setzen), (219, linha 38), depois modificado. E aquela colisão tem e deve surgir, pois que o singular como tal seja uma indiferença racional somente pode ser sabido ao ser posta nela cada singularidade de sua posse e de seu ser, relacionando-se [o singular] a ela como um todo. Isto somente pode se mostrar ao empregar ele, por sua con-servação, toda a sua existência, ao não se dividir ele pura e simplesmente. E a prova tem seu término somente com a morte. O aparecimento de um singular contra o outro é um múltiplo ter, o bem (das Gut), o meio exterior. Este é, segundo sua natureza, enquanto um exterior, um universal, e nele os singulares irrelacionados se relacionam uns aos outros. Mas é o bem de um deles; a relação de vários àquele [bem] é uma [relação] negativa, que exclui. Que a rela-ção excludente de um deles àquele seja uma [relação] racional, que ela seja em verdade uma totalidade, é deste reconhecer que se trata na relação dos singulares. Cada um somente pode ser reconhecido pelo outro, na medida em que seu aparecimento múltiplo é nele indiferente, em cada singularidade de sua posse se corrobora como infinita e vinga cada dano até a morte. E este dano tem de surgir, pois a consciência tem de se dirigir a este reconhecer, os singulares têm de fazer dano um ao outro, para tomarem conhecimento (um sich zu erkennen) se eles são racionais. Pois a consciência é essencialmente tal que a totalidade do singular se contra-põe a si e permanece a mesma neste tornar-se-outro (Anderswerden), tal que a totalidade do singular está numa outra consciência e seja a consciência do outro, e nesta [consciência] seja justamente este absoluto permanecer da mesma [totalidade], o qual ela tem para si; ou tal que elas são reconhecidas pelo outro. Mas que minha totalidade, enquanto [totalidade] de um singular, seja, na outra consciência, justamente esta totalidade sendo-para-si – que ela seja reconhecida, respeitada –, isto eu não posso saber a não ser através do aparecimento do agir do outro contra a minha totalidade; e da mesma forma tem o outro que aparecer a mim ele mesmo como uma totalidade, tal como eu o sou. Se eles se comportam negativamente, deixam um ao outro, então nenhum deles apareceu ao outro como totalidade, e também não [apare-ceu] o ser de um na consciência do outro, nem o apresentar (Darstellen), nem o reconhecer. A linguagem, explicações, promessas não são este reconhecimento, pois a linguagem é somente um meio ideal: ela desaparece tal como aparece, não é um reconhecimento que permanece, um reconhecimento real. Este somente pode ser um [reconhecimento] real, ao se pôr cada singular de tal forma como totalidade na consciência do outro,

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como consciência de que este é seu ser, que a singularidade é indiferente, de que este exterior está nele próprio. Em sua posse cada um tem de ser per-turbado de maneira particularmente necessária, pois na posse jaz a contra-dição de que um exterior, um coisa, um universal da terra, de que isto deva estar em poder de um singular, o que vai contra a natureza da coisa como um universal, exterior; e trata-se aqui do universal contra a singularidade imediata da consciência. Através do necessário dano, que deve conduzir ao reconhecer, ambos estão na relação (im Verhältnisse) em que se põem um frente ao outro (gegeneinander) como singularidade absoluta negativa, como totalidade. Ao excluir violentamente o outro e suspender a posse to-mada para si na lesão, cada um lesa, ao mesmo tempo, o outro, nega algo no outro que este pôs como o seu. Cada um tem de afirmar aquilo que foi negado pelo outro como estando em sua totalidade, como algo que não é exterior, suspendendo-o no outro. E na medida em que, neste singular sim-plesmente, cada um afirma sua totalidade como [totalidade] de um singular, então vem ao aparecimento (so kommt es zur Erscheinung) que cada um nega a totalidade do outro. O reconhecer recíproco da totalidade singular de cada um, ao ser esta [totalidade] singular negada, torna-se uma relação negativa da totalidade: cada qual tem de pôr a si mesmo de tal forma en-quanto totalidade na consciência do outro que ele emprega15 contra o outro toda a sua totalidade aparecente, sua vida na conservação de qualquer sin-gularidade,/220 e cada um tem igualmente de se dirigir à morte do outro. Eu somente posso conhecer a mim mesmo como esta totalidade singular na consciência do outro, na medida em que eu me ponho na sua consciência como um tal, que eu seja, no meu excluir, uma totalidade do excluir16 , que eu me dirija à morte dele. Dirigindo-me à sua morte, exponho-me eu mes-mo à morte, eu arrisco minha própria vida, eu cometo a contradição de que-rer afirmar a singularidade do meu ser e da minha posse. E esta afirmação passa ao seu contrário: eu sacrifico toda esta posse e a possibilidade de toda posse e gozo, sacrifico a própria vida. Ao me pôr como totalidade da singu-

15. Em E se seguia (mais tarde sublinhado): afirma-se em sua posse, o significado negativo excludente, como uma totalidade. Ambos corroboram isto somente com sua morte enquanto a totalidade negativa, tanto para si, como em consideração ao outro;16. Em E dizia o seguinte até se dirige para a Morte (Tod geht) (221, linha 11), mais tarde mo-dificado: eu arrisco nisso minha vida, assim como me dirijo à morte; e da mesma maneira o ou-tro somente pode aparecer a mim como totalidade racional, na medida em que ele se põe para mim desta forma, e eu tenho de me revelar assim a ele e de ter precisamente a prova dele. Este reconhecer absoluto contém com isso imediatamente em si mesmo uma contra-dição: ele se suspende a si mesmo somente de maneira infinita (es ist nur unendlich sich selbst aufhebend). A singularidade enquanto totalidade deve ser reconhecida, deve ser tanto para mim, como na consciência do outro. Cada relação (Beziehung) do outro à minha singularidade é ela mesma uma [relação], e, por causa da necessidade do reconhecer, tais relações têm de surgir. Eu me revelo nesta singularidade como totalidade, eu torno a relação imediatamente infinita e, no que concerne ao outro, eu me dirijo à posição de mim nele (und gehe in Ansehung des andern darauf, mich in ihm zu setzen), α) enquanto o suspendendo como totalidade, em direção à sua morte; pois αα) ele tem de me reconhecer, [reconhecer] que eu respeito a vida, tampouco em mim quanto nele, se relacionando ela mesma somente à singularidade; ββ) eu tenho de reconhecer para mim se ele é um ser racional, o qual em sua defesa e ataque chega até a morte, β) a mim mesmo como suprimindo igualmente a totalidade, αα) pois eu tenho de me revelar a ele como sendo eu mesmo totalidade.

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laridade, eu suspendo a mim mesmo enquanto totalidade da singularida-de. Eu quero ser reconhecido nesta extensão da minha existência, em meu ser e minha posse; mas, ao suspender esta existência, eu os transformo, e somente me torno em verdade reconhecido enquanto racional, enquanto totalidade, ao dirigir-me eu mesmo à morte do outro, ao arriscar minha pró-pria vida e esta /221 extensão de minha existência mesma, ao suspender a totalidade da minha singularidade.

Este reconhecer da singularidade da totalidade engendra, portanto, o nada da morte. Cada um tem de conhecer do outro se ele é uma consciência absoluta; α) cada um tem de se pôr numa tal relação frente ao outro, por meio do que isto vem à luz: ele tem de lesá-lo, e cada um somente pode sa-ber do outro se ele é totalidade, ao impeli-lo até a morte. E cada um somen-te se revela, da mesma forma, como totalidade para si, ao se dirigir consigo mesmo para a morte. Se ele em si mesmo se demora nos limites da morte (innerhalb des Todes), se ele se revela ao outro somente como pondo em jogo nisso a perda (Verlust) de uma parte ou de toda a posse, como chaga e não como a vida mesma, então ele é para o outro imediatamente uma não-totalidade, ele é não absolutamente para si, e se torna o escravo do outro. Se ele, nos limites da morte, se demora contíguo ao outro (wenn er an dem andern innerhalb des Todes stehenbleibt) e suspende o conflito antes da morte, então ele nem se revelou como totalidade, nem conheceu o outro como tal.

17Este reconhecer dos singulares é, portanto, absoluta contradição nele mesmo. O reconhecer é somente o ser da consciência enquanto uma totalidade numa outra consciência, mas, ao se tornar efetivo, então ele sus-pende a outra consciência e com isso se suspende o próprio reconhecer: ele não se realiza, mas antes cessa (sondern hört vielmehr auf zu sein, indem es ist) no momento mesmo em que tem lugar. E realmente a consciência é, ao mesmo tempo, somente como um tornar-se-reconhecido por uma outra (ein Anerkanntwerden von einem Andern); e ela é, ao mesmo tempo, somente consciência enquanto um uno numério absoluto, e tem de ser reconhecida como tal, isto é, ela tem de se dirigir à morte do outro e à sua própria, e é somente na efetividade da morte.

Que nós tomamos conhecimento de que o reconhecido somente é

17. A passagem seguinte até si mesmo em si mesmo, (linha 3�) dizia em E (mais tarde mo-dificado): este reconhecer diz respeito, portanto, a se revelar para o outro como totalidade da singularidade, a ver-se desta forma no outro e igualmente este [em si mesmo]. Mas neste realizar (realisieren) a totalidade da singularidade se suspende a si mesma. Ela adquire toda sua posse e põe a lesão, o não-ser-reconhecido (das Nichtanerkanntwerden) de seu excluir, como infinita. Ela se apresenta a si mesma como sustentando (vertretend) cada singularidade com sua inteireza. Mas ela somente pode se apresentar como todo ao se suspender como ente nos singulares, ao sacrificar (hingibt), na defesa de si mesma, sua posse à destruição e a vida como o simples aparecimento que compreende em si todos os lados da totalidade da singulari-dade. Portanto, ela somente pode ser totalidade da singularidade na medida em que renuncia a si mesma como totalidade da singularidade e da mesma forma à outra na qual ela quer ser conhecida. Este reconhecer é absolutamente necessário, seu lado puramente negativo é,

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totalidade, consciência ao se suspender, é agora um conhecer desta própria consciência: ela mesma faz esta reflexão de si mesma em si mesma de que a totalidade singular, ao /222 se conservar como tal [totalidade], quer ser, sacrifica-se a si mesma de maneira absoluta, se suspende e com isso faz o contrário daquilo a que se dirige. Ela mesma somente pode ser como uma [totalidade] suspensa; ela não pode se conservar como uma [totalidade] sendo (als eine seiende), e sim somente como uma [totalidade] posta en-quanto suspensa: com isso ela se põe a si mesma como uma [totalidade] suspensa e somente como uma tal [totalidade] pode ser reconhecida, este imediatamente Uno e o mesmo. Ela é uma [totalidade] que se suspende a si mesma, e é uma [totalidade] reconhecida, a qual é em outra consciência que não ela mesma: ela é com isso consciência absolutamente universal. Este ser do estar-suspenso (Aufgehobensein) da totalidade singular é a tota-lidade como [totalidade] absolutamente universal, como espírito absoluto: é o espírito como consciência absolutamente real. A totalidade singular vê a si mesma enquanto uma [totalidade] ideal, suspensa, e ela não é mais [tota-lidade] singular, e sim é para si mesma este estar-suspenso de si mesma, e ela é somente reconhecida, é somente universal enquanto esta [totalidade] suspensa. A totalidade como singularidade está posta nela mesma enquanto uma [totalidade] meramente possível, não [enquanto] sendo-para-si (nicht fürsichseiende), em seu subsistir somente uma tal [totalidade] que sem-pre está pronta para a morte, que renunciou a si mesma, que certamente é enquanto totalidade singular, como família e na posse e na fruição, mas de tal forma que esta relação (Verhältnis) é para ela mesma uma [relação] ideal e se revela como [relação] que se sacrifica a si mesma. Este ser da consciência, que é enquanto totalidade singular, enquanto uma [totalidade] que abriu mão de si mesma, vê-se justamente nisso a si mesma em outra consciência, é imediatamente ela mesma para si enquanto uma outra cons-ciência, ou seja, ela é em outra consciência somente enquanto esta outra consciência de si mesma (ihrer selbst), i.e como [totalidade] suspensa para si mesma. Dessa maneira ela é reconhecida: em toda outra consciência ela é o que é imediatamente para si mesma, ao ser em uma outra [consciência], uma [totalidade] suspensa, por meio do que a singularidade está salva. Eu sou totalidade absoluta, estando /223 a consciência dos outros enquanto uma totalidade da singularidade em mim somente como uma [consciência] suspensa, mas da mesma forma a minha totalidade da singularidade é uma [totalidade] suspensa no outro. A singularidade é singularidade absoluta, infinitude, contrário imediato de si mesma. [É] a essência do espírito: ter em si, de uma maneira simples, a infinitude, de tal forma que a oposição se suspenda imediatamente. Estas três formas do ser, do suspender e do ser como estar-suspenso (als Aufgehobensein) são postos absolutamente como um. A totalidade singular é, pois as outras totalidades singulares são postas como [totalidades] suspensas: ela [a consciência E.C.L] se põe assim na consciência suspensa do outro, torna-se reconhecida. Nestes sua totalidade é da mesma forma uma [totalidade] suspensa, e, ao se realizar no reconhe-cer, ela está s u s p e n s a: e ela é neste para si mesma como [consciência] suspensa; ela conhece-se a si mesma como um suspensa, pois justamente ela somente é enquanto reconhecida. Como não reconhecida, como não

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[sendo] uma outra consciência que não ela mesma, ela simplesmente não é, seu tornar-se-reconhecida (sein Anerkanntwerden) é sua existência, e ela somente é nesta existência enquanto uma [consciência] suspensa. Esta consciência absoluta é, portanto, um estar-suspenso (ein Aufgehobensein) das consciências enquanto singulares, um estar-suspenso o qual é, ao mes-mo tempo, o movimento eterno do chegar-a-si-mesmo de uma delas na ou-tra (Zu-sich-selbst-Werden eines in einem andern) e do tornar-se-outro em si mesma (Sich-anders-Werden in sich selbt). Ela é uma consciência univer-sal e que persiste, ela não é uma mera forma dos singulares sem substância, mas sim os singulares não são mais: ela é substância absoluta, é espírito de um povo, para o qual a consciência como singular é forma somente para si, a qual se torna imediatamente uma outra, o lado de seu movimento, a eticidade absoluta. O singular como membro de um povo é um ser ético (ein sittliches Wesen), cuja essência [é] a substância viva da eticidade univer-sal, [ao passo que] ela como [consciência] singular, como forma ideal de um ente, [é] apenas como suspensa. O ser (das Sein) da eticidade em sua multiplicidade viva são os costumes do povo18. /224

O espírito absoluto de um povo é o elemento absolutamente univer-sal, o éter que tragou (verschlungen) em si todas as consciências singula-res: a substância única, viva, simples e absoluta. Ele tem de ser igualmente a substância ativa, contrapor-se como consciência e ser o meio aparecente (die erscheinende Mitte) dos contrapostos, aquilo em que eles são igual-mente um – na medida em que nele eles se contrapõem e contra ele são ativos, seu Uno nadificante (ihr vernichtendes Eins), cuja atividade contra eles é sua própria atividade, assim como sua atividade contra o mesmo [é] a atividade do espírito. O espírito do povo tem de se tornar eternamente o b r a19 , ou seja, ele é somente como um eterno tornar-se espírito (als ein ewiges Werden zum Geiste). Ele fez a si mesmo obra ao ter sido posta nele atividade, que com isso [é] [atividade] contra ele. E esta atividade contra ele é imediatamente o suspender de si mesma. Este tornar-se-outro de si mesmo (dies Anderswerden seiner selbst) consiste em que ele se relacione, enquanto passivo, a si mesmo enquanto ativo, [que ele] enquanto povo ativo, um ser consciente de si em geral (ein sich Bewußtseindes überhaupt), passe ao produto, o igual-a-si-mesmo (das Sichselbstgleiche). E, ao ser esta obra comunitária de todos a obra de todos eles enquanto seres conscien-tes (als Bewußtseiender), então nele eles chegam a ser como um exterior (werden sie sich als ein Äußeres darin). Mas este exterior é o seu ato, ele é apenas aquilo que eles fizeram dele, ele são eles mesmos como ativos, suspensos. E nessa exterioridade deles mesmos, em seu ser enquanto [ser] de suspensos, como meio, eles vêem a si mesmos como Um povo20 , e esta sua obra é, portanto, seu próprio espírito mesmo. Eles o produzem, mas 18. Na margem lateral em cima: nenhuma composição, nenhum contrato, nenhum contrato ori-ginário tácito ou expresso. O singular renunciar a uma parte de sua liberdade, mas toda [ela]. Sua liberdade singular é somente seu egocentrismo (Eigensinn), sua morte.19. Em E se seguia (depois modificado): Enquanto consciência absoluta é ele somente na me-dida em que ele se torna um outro e, neste tornar-se outro (Anderswerden), é imediatamente ele mesmo.20. Em E se seguia (depois modificado): a razão em geral existe somente em sua obra: ela vem-a-ser somente em seu produto, vê a si mesma como um outro e como ela mesma.

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eles o reverenciam como um sendo-para-si (als ein Fürsichseindes). E ele é para si mesmo, pois a atividade deles, por meio do que eles o engendram, é o suspender deles próprios, ao que eles se dirigem, é o espírito universal sendo-para-si.

Sua vida é um expirar e inspirar, seu dispersar (sein Auseinander-gehen), entra, como ativa, em contraposição a si mesma como passiva. Ele se torna um, uma unidade do ativo e passivo, a obra, mas nesta obra /225 o passivo e o ativo estão eles mesmos suspensos. Ele é o absolutamente uni-versal, ele é somente obra ao ser a oposição do ativo e do passivo. Mas, ao estar o ativo como tal em face do passivo, então o ativo e o passivo deixam de ser uma oposição, e há somente o absolutamente universal, a oposição somente como absoluto desaparecer de si mesma. Tem de ter verdade [a idéia de] que os singulares põem sua totalidade singular como uma [totali-dade] ideal, não [sendo] uma fraude de todos contra o todo. A obra ética do povo é o estar-vivo (das Lebendigsein) do espírito universal, ele [é] como espírito ser-um ideal deles, enquanto obra [é] o meio deles – a circulação (Kreislauf) do [espírito] que se distancia da obra como uma [obra] morta e que, como ativos, singulares se põem; e esta [obra] enquanto universal, igualmente suspendem nela imediatamente somente a si mesmos, e são para si uma atividade suspensa, [uma] singularidade suspensa21.

O devir absoluto desta idéia de espírito a partir de sua natureza inor-gânica, [devir] do espírito ético22 (des sittlichen Geistes) é a necessidade de seu agir na totalidade de sua obra. Ele é, enquanto espírito absolutamente ético, essencialmente como o infinito, negativo, o suspender da natureza, na qual ele se tornou somente um outro, o pôr da mesma como de si mesmo e, em seguida, o absoluto desfrutar de si mesmo ao tê-la re-acolhido adentro de si.

A primeira é sua obra negativa, seu estar-direcionado (Gerichtet-sein) contra o aparecimento do outro que não o que ele mesmo é, ou seja, sua natureza inorgânica. Entretanto, a natureza inorgânica do espírito ético não é aquilo que nós denominamos natureza em geral [, a saber]: a natu-reza como ser-outro do espírito, i. é como um subsistente na totalidade dos momentos. Esta [natureza] está na consciência em geral, na linguagem, posta como uma [natureza] suspensa a partir da memória e do instrumen-

to, e este estar-posto da natureza, enquanto suspenso, o espírito em sua ne-gatividade, é a absoluta totalidade da consciência enquanto [absoluta tota-lidade] da singularidade, ou seja, a família; e, em sua realidade, [a mesma] enquanto possuindo um patrimônio familiar (Familiengut). Esta totalidade é o ser-posto negativo da natureza, e o espírito ele mesmo [é] somente diferente (different), relacionando-se a um contraposto, e sua totalidade

21. N do T. Reproduzimos aqui o original desta passagem de difícil tradução. Der Kreislauf des sich vom Werk als einem Toten abscheiden und als Tätige, einzelne sich setzen, und es als allgemeines Werk, ebenso unmittelbar nur sich darin aufheben, und sich nur einen aufgehobne Tätigkeit, aufgehobne Einzelheit sein.22. Em E estava (depois modificado): a absoluta organização do espírito ético.

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[é] a realização (Realisierung) desta consciência diferente./226 Mas esta totalidade é a [totalidade] que, libertada da sua relação diferente, da sua existência na natureza, tem de se tornar um espírito absolutamente positi-vo, um [espírito] absolutamente universal; e a família como tal, a realidade da singularidade, é a natureza inorgânica do espírito, a qual tem de se pôr a si mesma como uma [natureza] suspensa, tem de se elevar à potência do universal. Nós consideramos primeiramente como ela é enquanto subsisten-te, mas designada com o caráter da universalidade.

I. As potências que vieram anteriormente são, em geral, ideais: so-mente num povo elas são como existentes. A linguagem é somente como linguagem de um povo, da mesma forma entendimento e razão. Somente como obra de um povo a linguagem é a existência ideal do espírito, na qual ele exprime o que ele é segundo sua essência e em seu ser. Ela é um univer-sal, em si reconhecido, que ecoa da mesma maneira na consciência de todos. Cada consciência falante se torna nela uma outra consciência. Da mesma maneira, segundo seu conteúdo, somente num povo, ela se torna linguagem verdadeira, exprimir o que cada um quer dizer. Bárbaros não sabem dizer o que desejam, dizem somente a metade ou exatamente o contrário do que querem dizer. Somente em um povo existe aquilo – já posto como suspenso, presente (vorhanden) como consciência universal, ideal – que a memória, o tornar-se linguagem (das Werden zur Sprache), torna primeiramente ideal. A linguagem é, segundo sua essência, presente para si mesma, natureza posta idealmente, e ela é como que mera forma, ela é um mero falar, uma exterioridade. Ela não é um produzir, mas a simples forma do tornar-exterior (die bloße Form des Äußerlichemachens) o que já foi produzido, como isto tem de ser falado, o formal da pura atividade, o devir imediato do ser-inte-rior em seu contrário (das unmittelbare Werden des Innerlichsein zu seinem Gegenteile), em um exterior. A formação (Bildung) do mundo em linguagem está em si presente (ist an sich vorhanden). Tal como o devir da razão e do entendimento, ela recai na educação, ela existe para a consciência que de-vém (für das werdende Bewußtsein) enquanto mundo ideal, enquanto sua natureza inorgânica; e ela [a consciência que devém E.C.L.] não tem de se destacar desta maneira da natureza, mas sim de encontrar para a idealidade da mesma a realidade, de procurar para a linguagem o significado, que está no ser. Este é da mesma maneira para a mesma [consciência], ele perma-nece somente como que a /227 atividade formal do relacionar dos mesmos, que já são, uns aos outros.

A linguagem é, portanto, reconstruída de tal maneira em um povo, que ela é, enquanto o nadificar ideal do exterior, ela mesma um exterior, o qual tem de ser nadificado, suspenso, a fim de se tornar linguagem signifi-cante (um zur bedeutenden Sprache zu werden), tornar-se aquilo o que ela é em si, segundo seu conceito. Portanto, ela é no povo como um outro algo morto que não ela mesma, tornando-se totalidade ao ser suspensa enquan-to um exterior e ao chegar a seu conceito (zu ihrem Begriff wird).

B. O trabalho e a posse tornam-se, no povo, da mesma maneira,

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algo outro que não o que são em seu conceito. O trabalho concerne para si à carência do singular como tal, assim com a posse é pura e simplesmente a [posse] de um singular. O trabalho se torna, em sua singularidade, ele mesmo um [trabalho] universal tal como [se torna] a posse.

I. O trabalho, que se dirigia à carência de um singular, nele se torna α) o trabalho de um singular, β) mesmo quando se dirige somente à sua carência, um [trabalho] universal.

α) Para o trabalhar (für das Arbeiten) como tal está igualmente pre-sente agora a exigência: ele quer ser reconhecido, ter a forma da universa-lidade. Ele é um modo universal (es ist eine allgemeine Weise), uma regra de todo trabalho, que é algo sendo-para-si, aparece como um exterior, como natureza inorgânica e tem de ser aprendido. Mas este universal é para o trabalho a essência verdadeira, e a inabilidade natural tem de se superar (überwinden) no aprendizado do universal. O trabalho não é um instinto, mas uma racionalidade (eine Vernünftigkeit), que no povo se faz um uni-versal e está, por isso, contraposta à singularidade do indivíduo, que deve ser ultrapassada (sich überwinden muß). E o trabalhar, justamente por isso, não é como instinto, mas está presente no modo do espírito, segundo o qual ele, enquanto atividade subjetiva do singular, tornou-se, apesar disso, um outro, uma regra universal; e primeiramente a habilidade do singular vem a ser através deste processo de aprendizado e retorna a si através do tornar-se-outro (Anderswerden) de si mesma.

23O reconhecer do trabalho e da habilidade (Geschicklichkeit) atra-vessa /228 mesmo a circulação no universal, a qual ele possui no singular pelo aprender. Contra a habilidade universal se põe o singular como um particular, se aparta disso e se faz mais habilidoso que os outros, inventa instrumentos mais apropriados (tauglichere Werkzeuge). No entanto, o que, em sua habilidade particular, é um verdadeiramente universal, é a invenção de um universal, e os outros o aprendem, suprimem sua particularidade e ela se torna imediatamente patrimônio universal (allgemeines Gut).

O instrumento como tal aparta do ser humano seu aniquilamento material, mas permanece nisso seu [aniquilar] formal, permanece sua ati-vidade, a qual é dirigida a um morto: e, na verdade, sua atividade é essen-cialmente o matar (das Töten) do mesmo, removê-lo para fora de seu nexo vivo (es aus seinem lebendigen Zusammenhange herauszureißen), pô-lo como um [algo] a ser aniquilado (als ein zu Vernichtendes), como um tal. Na máquina o ser humano suspende mesmo esta sua atividade formal e a deixa trabalhar inteiramente para ele. No entanto, qualquer fraude que ele comete contra a natureza e com a qual ele se mantém fixado (stehen bleibt) nos limites da singularidade dela, vinga-se contra ele próprio. O que ele dela obtém, quanto mais ele a subjuga, tanto mais aviltado se torna ele próprio. Ao permitir que a natureza seja trabalhada por diversas máquinas, ele não 23. Antes disso estava em E (depois riscado): β) o instrumento, no qual o ser humano põe, em seu aniquilar da natureza, sua razão enquanto uma [razão] suspensa, mantendo-a afastada de si, transforma-se em máquina. Em geral atravessa

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suprime a necessidade do seu trabalhar, e sim somente o posterga, afas-ta-o da natureza e, de uma maneira não viva, volta-se não a ela enquanto [natureza] viva, mas antes esta vivacidade negativa se evade; e o trabalhar que ainda lhe resta se torna maquinal (maschinenmäßiger). Ele a esmorece somente para o todo, mas não para o singular, e antes a intensifica: pois quanto mais maquinal se torna o trabalho, tanto menos valor tem ele, e tanto mais tem ele, desta maneira, de trabalhar.

γ. Na verdade, seu trabalho é, enquanto trabalhar de um singular por suas carências, ao mesmo tempo, um [trabalho] universal, ideal: ele bem consegue satisfazer suas carências com ele, mas não com este [algo] determinado que é elaborado por ele (nicht mit diesem bestimmten von ihm Bearbeiteten): se ele satisfaz suas carências, torna-se ele um outro que não o que ele /229 é. O ser humano não elabora (erarbeitet) a si o que precisa, ou antes, ele não precisa mais do que ele a si elabora, e sim, ao invés da efetividade da satisfação de suas carências, isto se torna somente a possibilidade desta satisfação. Seu trabalho se torna um [trabalho] formal, abstrato, universal, um [trabalho] singular. Ele se limita ao trabalho por uma de suas carências e troca por esse [trabalho] o que é necessário para suas outras carências. Seu trabalho é, para a carência – para a abstração de uma carência –, como um universal [que] não é sua carência, e a satisfação da totalidade de suas carências é o trabalho de todos. Entre o alcance das ca-rências do singular e sua atividade [para satisfazê-la] (seine Tätigkeit dafür) se insere o trabalho do povo inteiro; e o trabalho de cada um é, com res-peito ao seu conteúdo, um [trabalho] universal para as carências de todos, assim como para a adequabilidade (Angemessenheit) à satisfação de todas as suas carências, isto é, ele tem um valor. Seu trabalho e sua posse não são o que são para ele, mas sim o que eles são para todos. A satisfação das carências é uma dependência universal de todos uns dos outros. Desaparece para cada um toda segurança e certeza de que seu trabalhar enquanto [tra-balhar] singular seja imediatamente conforme as suas carências. Enquanto singular com carências (als ein einzelnes Bedürftiges), ele se torna um uni-versal. Através da singularização (Vereinzelung) dos trabalhos, a habilidade de cada um para este trabalho é imediatamente maior. Todas as relações da natureza à singularidade do ser humano recaem mais sob seu domínio, o conforto aumenta. Esta universalidade à qual a carência singular e o traba-lho, a adequabilidade à mesma, são elevados, é uma universalidade formal. A consciência dela não é uma absolutidade (eine Absolutheit), onde esta relação se nadificaria: dirige-se a suspender esta singularidade, a libertar o trabalhador (den Arbeitenden) de sua dependência da natureza. A carência e o trabalho se elevam à forma da consciência, eles se tornam mais simples, mas sua simplicidade é a [simplicidade] formalmente universal, abstrata, o desagregar (das Auseinanderlegen) do concreto, o qual se torna, neste seu desagregar, a infinitude empírica das singularidades. E, submetendo assim a si a natureza desta maneira formal e falsa, o indivíduo apenas intensifica sua dependência em relação a ela.α) A singularização /230 do trabalho aumenta a quantidade de [elementos] elaborados. Em uma manufatura inglesa, 18 pessoas trabalham em um alfinete. Cada qual exerce apenas uma parte

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particular do trabalho e somente ela. Um singular não poderia talvez fazer sequer 20, sequer 1. Aquele trabalho dos 18, distribuído entre 10 pessoas, produzem 4000 por dia. Mas, com o trabalho destes 10, se eles trabalhassem em 18, resultariam 48000. Entretanto, na mesma proporção em que a quan-tidade produzida, cai o valor do trabalho. β) O trabalho se torna tanto mais absolutamente morto, ele se torna trabalho maquinal (Maschinenarbeit), e a habilidade do singular tanto mais infinitamente limitada, e a consciência dos trabalhadores da fábrica é rebaixada ao último embotamento (Stumpfheit); γ) e a conexão da espécie singular de trabalho com a inteira massa infinita de carências [se torna] incomensurável e uma dependência cega, de tal maneira que uma operação remota (entfernte Operation) freqüentemente causa repentinamente obstáculo ao trabalho de toda uma classe de seres humanos – os quais satisfariam com isso suas carências – tornando-o [o seu trabalho] supérfluo e sem valor (unbrauchbar); δ) assim como a assimilação da natureza se torna uma comodidade maior pelo antecipar dos membros intermediários, da mesma maneira estes níveis de assimilação [se tornam] divisíveis ao infinito, e a quantidade de comodidades as faz novamente, tal como antes, absolutamente desconfortáveis.

Estes múltiplos trabalhos das carências enquanto coisas têm igual-mente de realizar seu conceito, sua abstração. Seu conceito universal tem de ser uma coisa da mesma maneira como elas, [uma coisa] que, no entan-to, represente, enquanto universal, a todas. O dinheiro é este conceito ma-terial e existente, a forma da unidade ou da possibilidade de todas as coisas da carência.

A carência e o trabalho, elevado a esta universalidade, forma, assim, para si mesmo, num grande povo, um sistema monstruoso de comunidade (Gemeinschaftlichkeit) e de mútua dependência, uma vida do [que é] mor-to, que se movimenta (a)dentro de si mesma, que, em seu movimento, se move cegamente e de maneira elementar de cá para lá, e que, como um animal selvagem, necessita de uma contínua e rigorosa dominação e domes-ticação.

γ. Esta atividade do trabalhar e da carência, enquanto o movimento do mesmo, tem igualmente seu lado em repouso (seine ruhende Seite) na /231 posse. Em sua singularidade, a posse se torna igualmente, na totalida-de de um povo, uma [posse] universal; ela permanece posse deste singular, mas, na medida em que ele é posto assim [como singular] pela consciência universal, ou seja, na medida em que nesta todos possuem o seu, isto é, ela se torna propriedade. Seu excluir se torna um tal que todos excluem comunitariamente todo outro igualmente, e na posse determinada todos têm igualmente sua posse, ou seja, que o possuir do singular é o possuir de todos. Na posse, há a contradição de que uma coisa enquanto coisa é um universal e, apesar disso, deve ser somente uma posse singular. Esta contra-dição é suspensa por consciência, ao ser esta posta em si como o contrário de si mesma: ela é como [consciência] reconhecida, a posse singular e uni-versal ao mesmo tempo, uma vez que, nesta posse singular, todos possuem.

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A segurança de minha posse é a segurança da posse de todos, na minha propriedade todos têm sua propriedade, minha posse adquiriu a forma da consciência: é determinado como minha posse, mas, enquanto propriedade, não é relacionado a mim somente, mas universalmente [relacionado].

Assim como, na potência anterior, o trabalho e a carência se singula-rizaram de maneira absoluta, da mesma forma se singulariza a propriedade nesta potência. A singularização é o pôr (das Setzen) do concreto no univer-sal. Suas diferenças (Unterschiede), as quais ele detém nele mesmo como na identidade dos contrapostos, separam-se umas das outras e se tornam para si, como abstrações. A totalidade da singularidade, que estava, na ex-tensão do seu existir – naquilo de que ela se apoderou – , inteiramente em cada singular, é como [totalidade] suspensa [da singularidade] somente no todo do povo; e o singular da carência e da posse recai na natureza de sua singularidade, a consciência como totalidade do singular era o ser-um de si mesmo e de sua exterioridade, de sua posse. Ao se separarem ambos um do outro, então o singular cessa de ter a honra que pôs essência deles em cada singular24. Nesta singularização, separam-se um do outro imediatamente (fallen unmittelbar ... auseinander) o que se relaciona imediatamente a ele enquanto organização e a constitui – o que é denominado sua pessoa – [,por um lado]; e /232 [por outro] o que aparece a ela exteriormente como coisa (Sache), já que, para a honra, esta diferenciação não está presente, a qual se põe em cada relação, em cada posse como todo.

24. Em E estava, no lugar de em cada singular (depois modificado): a qual na perda singular

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REH: NORMAS DE SUBMISSÃO – Versão resumida

1. A REH publica artigos, traduções, etc., em torno de Hegel e a filosofia especulativa em geral e o Sistema de Hegel e seu desenvolvimento em par-ticular;

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7. Citações de obras de Hegel (numeradas por parágrafos e já vertidas para a Língua portuguesa), no corpo do texto, deverão ser referenciadas [de acordo com suas características próprias] – sem acréscimos adicionais – conforme o exemplo: (FE, § 394), onde: (a) “FE” é a abreviatura para a Fenomenologia do Espírito; (b) “§ 394” refere-se ao parágrafo; quando for o caso, sugere-se o acréscimo da página, de onde, em “FE, § 394, p. 276”, (c) “p. 276” dizer respeito à página à qual a citação ou referência está vinculada

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(no caso, a segunda edição da versão de Paulo Meneses);

8. No caso de obras como as Linhas fundamentais da Filosofia do Direito (FD) e a Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio de 1830 (E.), sugere-se ainda o uso de ‘A’ para as anotações de Hegel e ‘Ad’ para os aden-dos de seus discípulos;

9. No caso das obras de Hegel (em alemão) ainda não vertidas ao Português (sejam paragrafadas ou não), mesmo quando também se faça uso das ver-sões portuguesas ou em outras línguas, sugere-se a manutenção das iniciais do título no original [por exemplo, ‘WdL’ para a Wissenschaft der Logik], seguidas das páginas da edição (ou das edições) utilizada(s);

10. Citações de obras clássicas sem tradução brasileira ou citadas preferen-cialmente conforme o original ou tradução em língua diversa do português do Brasil, deverão estar de acordo com as convenções internacionais de pra-xe na área [exemplo: ‘PhdE’ para Phénoménologie de l’Esprit) ou indicadas em nota;

11. Citações no corpo do texto deverão ser indicadas apenas com (SOBRE-NOME DO AUTOR, data e página) ou (SIGLA DA OBRA, parágrafo – se para-grafada – e página); qualquer acréscimo deverá ser feito em nota, conforme as respectivas normas.

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