rego, w. capoeira angola

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  WALDELOIR REG O  __ __ __ __ h  _____ ____ _____ _____ ____ Capoeira Angola 1968

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Clássico estudo etnográfico sobre a Capoeira Angola

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  • WALDELOIR REGO

    ________ h_______________________

    Capoeira Angola

    1968

  • MESTRE DE CAPOEIRA E DE MUITAS ARTES

    J o rg e A m a d o

    Waldeloir Rego, roo baiano debruado sbre os livros e sbre a vida, comumente apresentado s pessoas de

    -fora-eom--arseguinte frase: ste rapa1/- quem mais entende de candombl, na Bahia. Entende, realmente, muitssimo; as religies afro-brasileiras, o sin- cretismo baiano, so para le fonte constante de observao e estudo e o material que durante anos reuniu, possui e est elaborando vai nos dar, com certeza, aqueles livros definitivos que h muito esperamos sbre sse problema. Nesse mo no h nada de ama- dorstico nem exerce a fcil e simptica vigarice que to fcilmente acompanha a pesquisa e o tratamento de tais assuntos. Nle tudo seriedade e honradez intelectual, no h pressa em seu trabalho nem af de aparecer. Em seu gabinete, quase uma cela monstic, Waldeloir acumula, separa, cataloga e observa o imenso acervo que vai buscar na intimidade mais profunda da vida popular baiana. Dessa vida popular le no apenas observador, parte integrante.

    No Ax Op Afonj, Waldeloir detm um elevado psto, dignidade que lhe outorgou a finada Me Senhora em alta conta o tinha a famosa iyalo- rix. Em alta conta o tm Menininha do Cantois, Olga do Alaketu, mes e pais-de-santo; para Waldeloir no existe porta fechada nesse antigo mistrio, as chaves dos segredos le as possui, tdas.

    Os estudos sbre candombl levaram-no aos demais territrios da vida popular baiana, a todos os detalhes de sua cultura, de sua formao, de sua

    Capoeira Angola Ensaio Scio - Etnogrfico

  • Para osinfinitamenteamigos

    ZLiA A m a d o E MANOEL ABAtJJO

  • IA Vinda dos Escravos

    por demais sabido que durante a Idade Mdia os por- tuguses, assim como outros povos, traficaram escravos, sobretudo negros. H mesmo vagas notcias de uma parada aqui, outra acol, porm a informao mais precisa, principalmente no que diz respeito ao trfico de escravos africanos para o territrio portugus, a fomecid por Azurara. O autor da Crnica do Descobrimento e Conquista da Guin relata a maneira de como An to Gonalves, em 1441, capturou e trouxe para0 Infante D. Henrique os primeiros escravos africanos. Relata tambm o cambalacho de Anto Gonalves com Afonso Go- terres, para importar sses negros do Rio de Ouro, cuja essncia est neste trecho Oo que fremoso aquecimento srya ns que viemos a esta terra por levar carrego de tam fraca mercadorya, acertamos agora em nossa dita de levar os primeiros cativos ante a presena do nosso principel1

    1 Gomes Earrnes de Azurara, Chronica do Descobrimento da Conquista da Guin escrita por mandado de el-rei D. Affonso V, sob a direo scientifica, e segundo as instrues do illustre Infante D. Henrique/Fielmente trasladado do manuscrito original contemporneo, que se conserva na Biblioteca Real de Pariz, e dada pela primeira vez luz por dili- -gftnria. ..Hn di. Cnireira, p.nviado Extraordinrio, e. Ministro Ple- nipotenciario de S. Magestade Fidelissima na corte de Frana/Precedi-

    /

  • Isso foi a brecha para que o esprito de- conquista do portugus o fizesse levantar ncoras, para as terras de frica, em busca de um nvo comrcio, fcil e rendoso, porm humilhante e desumano. A coisa tomou um rumo tal, que dentro em pouco, Lisboa e outras cidades j tinham um cheiro de cidade mulata. Em nossos dias o assunto tem preocupado estudiosos de todos os matizes e nacionalidades, como os lingis-

    "tas^lemesWilh&IflaGiese^CaroHaaMichaelis3 p. nativos, outros como Leite de Vasconcelos4 que, alm de se manifestar sbre o tema, fornece uma bibliografia, em seu livro Etno- grafia Portugusa, atualizada com as notas de Orlando Ribeiro.

    Na poca, a presena de negros em Portugal mexeu com a imaginao potica dos trovadores d Cancioneiro Geral,6 Gil Vicente,6 Cames7 e mui especialmente Garcia de Resende

    'que nasceu por volta de 1470 e morreu em 3 de fevereiro de 1536 e escreveu a sua curiosa Miscanea e trovas do mesmo auctor b- ha variedade de historia, custumes, casos, ir cousas que em tpo actescer, publicada pstumamente em 1554,

    da de uma introduo, e Illustrado com algumas notas, pelo Visconde de Santarem/E seguida dum glossrio das palavras e phrases antiquadas e absoletas. Publicada por J . P. Aillaua, Paris, 1841, pg. 71.2 Wilhelm Giese, Notas sobre a fala dos negros em Lisboa no prinfc- pio do sculo XVI, * Revista Lusitana/Arquivo de estudos filolgicos e etnogrficos relativos a Portugal por Jos Leite de Vasconcelos. Livraria Clssica Editra de A. M. Teixeira & Cia., Lisboa, 1932, vol. XXX, pgs. 251-257.* Carolina Mchalis de Vasconcelos, Notas Vicentinas/Preliminares duma edio critica das obras de Gil Vicente. Notas I a V, incluindo in- tioduo edio fa-similada do Centro de Estudos Historicos de Ma- drid, edio da Revista Ocidente, Lisboa, 1949, pgs. 497-498.4 Jos Leite de Vasconcelos, Etnografia Portugusa/Tentamc de sistematiza o. Volume IV, elaborado segundo os_materiais do autor, ampliados com nova informao por M. Viegas Guerreiro/Notcia introdutria, notas e concluso de Orlando Ribeiro. Imprensa Nacional, Lisboa, 1958, pgs., 38-61,5 Garcia d Resende, Cancioneiro Geral. Nova edio preparada pelo Dr. A. J. Gonalves Guimares, Imprensa Nacional, Coimbra, 1917

    : tpmo V, pgs. 195-199. Carolina Micbalis de Vasconcelos, op. cit., pgs. 497-498.f Lus de Cames, Os Lusadas/Reimpresso fac-similada da verdadeira 1.* edio os Lusadas, de 1572,"precedida duma introduo e

    . seguida dum aparato critico do Professor da Faculdade de Letras, Dr. Jos Maria Rodrigues. Tip. da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1921, canto1, estncia 8.

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    apensa Crnica del-Rei D. Joo II, No decorrer de sua Miscelnea, satirizando sempre, fomece elementos sbre a faanha dos portuguses, nas bandas de frica, os cativos tirados de l para Portugal, seus costumes e outros fatos.

    Na estncia 48, mostra a fria das conquistas:

    Rey & prncipe se vio

    dij a pouco descobrio ha ndia, & ha tomou, como todo ho mdo ouuio, tomando reynos, & terras per muy guerreadas guerras,

    fanhdo toda ha riqueza o soldam & de Veneza,

    sobjugando mares, serras.8

    Nas estncias 53 e 54, comenta a antropofagia dos negros da Guin e Manicgo, que com grafavam antigamente o Congo, descoberto em 1485 por Diogo Co:

    E comeo em Guinee& Manicgo, por teer costuma de se comer hs a outros, como he muy notorio se fazer, cpr homs como gaado escolhidos, bem criados,& matam hos regateiras,& cozidos em caldeiras hos com tambem assados.

    *

    Por muito mais saborosa carne das carnes ha tem, por melhor & mais gostosa,

    8 Garcia de Resende, Miscelnea/e variedade de histrias, costumes, casos, e cousas que em seu tempo aconteceram. Com prefcio e notas deMende$ dos Remdios, Frana -Amado-Editor, oimbra, 1Q17, pg. 20.

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  • Na estncia 134, narra as vitrias de el-rei, sobretudo com os mouros de frica:

    Guerra digna de louuor, de perpetua memria,

    ------------------------de-honra^-fama, de gloria-------------------------tem el rey nosso senhor com muito grande victoria com mouros africanos,& gentios Asianos,Turcos, Rumes, & pagas,& myta paaz c christas inimigo de tirannos.18

    Na estncia 141, fala da converso do maior Rei da Etipia e de Manicongo. Trata-se do rei do Congo, que Mendes dos Remdios,14 citando Cunha Rivara, se refere ao decreto em que o referido rei, alm do ttulo de rei do Congo, Senhor dos Ambundos, passou a intitular-se da Etipia, rei do ajiti- qssimo reino do Congo, Angola, Matamba, Veang, Cunchi, Lulha e Sonso, Senhor dos Ambundos e dos Mutambulos e de muitos outros reinos e senhorios:

    Ho mayor rey de ethiopia, de manicgo chamado, vijmos christa ser tomado,& com elle grande copia de gente de seu reynado: mandou por religiosos,& por frades virtuosos 3 lhe el rey de caa indaua,& elle mesmo prgaua nossa fee a hos duuidosos.15

    Finalmente, nas estncias 257, 258 e 259, narra a calamidade que atingiu Portugal e o norte da frica em 1521, assim

    13 Garcia de Resende, op. cit., pg. 48.1-4 Mendes dos Remdios, in Garcia de Resende, op. cit., pg. 126.16 Garcia de Resende, op. cit., pg. 51.

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    como o fato dsses povos se venderem por comida a ponto de Portugal pensar em tomar Fez:

    Vij que en Africa aqceo ser morte, & fama muy forte :Cauallos, & gado morreo, mmtagente~peresceo, nunca foy tal fome & morte : hos paes hos filhos vendi, duzentos reaes valiam, muitos se vinham fazer christas caa, soo por comer, nos campos, praas morri.

    *

    Ho reyno de Feez ficou c dous ou tres mil cauallos : de Tremecem se formou, laa, & mais longe mandou muita gente a comprallos, que foi tanta perdiam, que nam ficou geeraam, para poderem geerar : nas eguas mandou buscar para fazer criaam.

    Se neste tempo teuera portugal soo que comer, leumente se podera tomar fez, & se ouuera com pouca fora, & poder : mas caa mesmo ent daua tanta fame, que custaua trigo alqueire a cruzado, came, vinho & pescado tudo com penna se achaua.18

    1* Garcia de Resende, op cit., pgs. 89-90.

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  • Com o passar do tempo essa atividade, longe de se extin- guir, tomou um impulso espantoso. Por incrvel que parea, sse comrcio terrvel e desumano teve a mais forte cobertura da Santa Madre Eclsia, alegando para tanto o argumento idiota de que os portugueses tomariam os povos ditos brbaros, adeptos da f de Cristo. Imagine que o papa Eugnio IV, pelas bulas Dudum cum de 31 de julho de 1436, a Rex Reg- num de 8 de setembro de 1436 e a Preclaris tuis de 25 de maio de 1437, renovou a concesso ao rei D. Duarte de tdas as terras que conquistasse na frica, desde que o territrio no pertencesse a prncipe cristo.17 No ficou smente a o esdrxulo privilgio. Remexendo o bulrio portugus, nos arquivos da Trre do Tombo, Calgeras18 encontrou vrias outras, inclusive a mesma bula Rex Regnum, concedida pelo papa Eugnio IV a D. Duarte, porm agora com outro destinatrio, que foi D. Afonso V, com data de 3 de janeiro de 1443. No pontificiado de Nicolau V, D. Afonso V, o Infante D. Henrique e todos os reis de Portugal assim como seus sucessores passariam a donos de tdas as conquistas feitas na frica, com as ilhas nos mares a ela adjacentes, comeando pelos cabos Bojador e No, fazendo pouso na Guin, com tda a sua costa meridional, incorporando a tudo isso as regalias que o crebro humano imaginasse tirar dessas terras e dsses povos. Essa pequena bagatela de oferendas foi concedida pela bula Romanus Pontifex Regni Celestis Claviger de 8 de janeiro de 1454. sses favores eram confirmados por cada papa que ascendia ao pontificado. E nessa matria, o recorde foi batido pelo papa Calixto III com a clebre bula Inter cetera que nobis divina disponente clementia incumbunt peragenda de 13 de maro de 1456, a qual, alm de confirmar tdas as ddivas anteriores, acrescentou a ndia e tudo mais que depois se adquirisse. E o melhor de tudo foi o arremate, de que o descobrimento daquelas partes o no possam fazer seno os reis de Portugal.19 A mesma orientao seguiu Xisto VI, com as bulas Clara devotionis de 21 de agsto de 1471 e Aetemi

    17 Joo Pandi Calgeras, A poltica exterior do Imprio/Tomo Especial da Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. ImprensaNacional, Rio_ de Janeiro, 1927, vol. I. pg. 36. ______

    Joao Pandi calgeras, op. cit., vol. I, pg. 36.19 Joo Pandi Calgeras, op. cit., vol. I, pg. 37.

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    regis clementia per quam reges regnant de 2 1 de junho de 1481. Inocncio VIII valeu-se das bulas Orthodoocae fidei de 18 de fevereiro de 1486 e Dudum cupiens de 17 de agsto de 1491.

    Em meio a tda essa baratinao da Santa S, deve-se fazer justia a alguns papas, que protestaram contra semelhante estado de coisas, como Pio II com a bula de 7 de outubro de 1462, Paulo III em 1537, Urbano VIII com a bula de 22 de abril de 1639, Benedito XIV em 1741, Pio VII em 1814 e finalmente Gregrio XVI, pela bula de 3 de dezembro de 1839, condena e probe a escravido de negros.20

    sse casamento estranho da coroa portugusa com a Mitra, permitiu que os portuguses agissem livremente, em nome de Cristo, Nosso Senhor e da sua santa f, o que para tanto no fizeram cerimnia. No assim que, pouco tempo depois dessas concesses, descobrem a grande colnia da Amrica do Sul. Era a princpio Terra de Santa Cruz, para depois passar a ser colonizada com o nome de Brasil.

    Argumenta-se que a sobrevivncia das primeiras engenho~ cas, o plantio da cana-de-acar, do algodo, do caf e do fumo foram os elementos decisivos, para que a metrpole enviasse para o Brasil os primeiros escravos africanos. Diante disso, vem a pergunta quando chegaram sses primeiros escravos? Vieram de Angola? Trouxeram d l a capoeira, ou inventaram-na no Brasil?

    Infelizmente, o conselheiro Rui Barbosa, por isso ou por aquilo, nos prestou um mau servio, mandando queimar tda documentao referente escravido negra no Brasil, quando Ministro da Fazenda, no govrno discricionrio do generals- simo Deodoro da Fonseca, por uma resoluo que tem o seguinte teor:

    Considerando que a nao brasileira, pelo mais sublime lance de sua evoluo histrica, eliminou do solo da ptria a escravido a instituio funestssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da sociedade, inficionou-lhe a atmosfera moral;

    o_____ ___i Perdigo Malheiio, A S scruvidu no BrasilfEn-saio Histrico-Jurdico-Social. Edies Cultura, So Paulo, 1944, tomo II, pgs. 16-17.

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  • considerando que a Repblica est obrigada a destruir sses vestgios por honra da ptria, e em bomenagem aos nossos deveres de fraternidade e solidaridade para com a grande massa de cidados que pela abolio do elemento servil entraram na comunho brasileira;

    resolve:

    1. Sero requisitados de tdas s tesourarias da Fazenda todos os papis, livros e documentos existentes nas reparties do Ministrio da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrcula de escravos, dos ingnuos, filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenrios, que devero ser sem demora remetidos a esta capital e reunidos em lugar apropriado na recebedoria.

    2. Uma comisso composta dos Srs. Joo Fernandes Clapp, presidente da confederao abolicionista, e do administrador da recebedoria desta capital, dirigir a arrecadao dos referidos livros e papis e proceder queima e destruio imediata dles, o que se far ria casa de mquina da alfndega desta capital, pelo modo que mais conveniente parecer comisso.

    Capital Federal, 15 de dezembro de 1890. Ruy Barbosa.21

    De modo que, por enquanto, se toma. impossvel precisar quando chegaram ao Brasil os primeiros escravos. O que existe muita conjectura em tmo do problema. O Visconde de Prto Seguro, por exemplo, fala de que os escravos vieram ao Brasil nos primrdios da colonizao, indo mais longe, dizendo que na armada de Cabral vieram escravos, argumentando que cada senhor dispunha do seu. Contudo, no nos fomece nenhuma documentao a respeito.22 Fala-se que em 1538 Jorge Lopes Bixorda, arrendatrio de pau-brasil, teria trafi

    21 Marfa Barbosa Vianna, O Neero no Museu Histrico Nacional, in Anais do Museu Histrico Nacional, vol. VIII, 1957, pgs. 84-87.22 Visconde de Prto Seguro, Histria Geral do Brasil/Antes da suaseparao e independncia .de PortugaL Em casa de E. & Laemmert, Riode Janeiro, 2 * lio, s/d., vol. I, pg. 219.

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    cado para a Bahia os primeiros africanos.23 Tem-se notcia de que, em 1539, Duarte Coelho reclamava a D. Joo III o seu pedido de escravos e como no fsse logo atendido, insistia por carta de 27 de abril de 1542.24 Com a fundao da cidade do Salvador e instituio do govrno-geral em 1549, o padre Manoel da Nbrega, que ~veio na comitiva do primeiro gover- nador-geral Tom de Sousa, depois de escrever ao Prepsito do Colgio de-Saate-^Aato em Lisboa-, queixando-se da mis- tura de negros e negras na nova povoao, ressaltando que assim se inoculava no Brasil o fatal cancro da escravatura, fonte de imoralidade e de runa, 25 sse rnesmo reverendo foi um dos primeiros a pedir escravos de Guin a D. Joo III, por carta de 14 de setembro de 1551, para fazerem mantimentos, porque a terra h tam fertil, que facilmente se mantero e vestiro muitos meninos, se tiverem alguns escravos que fao roas de mantimentos e algodoais .26 Ainda em carta de 1 0 de julho de 1552 reclama: Ja tenho escrito sobre os escravos que se tomaro, dos quais hum mOrreo logo, como morrero outros muitos que vinho ja doentes d mar... En toda maneira este anno trago os Padres proviso de El-Rei assi dos escravos... Se El-Rei favorecer este e lhe fizer igreja e casas, e mandar dar os escravos que digo ( me dizem que mando mais escravos a esta terra, de Guin; se assi for podia logo vir proviso para mais tres ou quatro alem dos que a casa tem) . . . 27 Por carta de 2 de setembro de 1557 rejeita os ndios como escravos e insiste na remessa de ngros de Guin: Escravos da terra no nos parece bem t-los por alguns inconvenientes. Destes escravos de Guin manda ele trazer

    23 Afonso de E. Tauny, Subsdio para a histria do trfico africano no Brasil, in Anais do Museu Paulista, Imprensa Oficial do Estado, So Paulo, 1941, tomo X, pg. 32.24 Joo Pandi Calgeras, op. cit., vol. I, pg. 288.

    25 Janurio da Cunha Barbosa, Se a introduo dos escravos no Brasil embaraa a civilizao dos nossos indgenas, dispensando-se-lhes o trabalho, que todo foi confiado a escravos negros. Neste caso qual o prejuzo que sofre a lavoura Brasileira?, in Revista do Instituto Histrico e Ceogrfico do Brasil. Tipografia Universal de Laemmert, Rio de Janeiro, 2.a edio 1856, tomo 1, pg. 164.26 Manoel da Nbrega, Cartas do Brasil e mais escritos ( opera omnia), com introduo e notas histricas e crticas de Serafim Leite. Por ordem da Universidade, Coimbra, 1955, pg. 101. .27 Manoel da Nbrega, op. cit., pgs. 121-123.

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  • muytos terra. Podia-se aver proviso per que dos primeiros que viessem nos desse os que Sua Alteza quisesse, porque huns tres ou quatro, que nos mandou dar certos annos todos so mortos, salvo huma negra que serve esta Casa de lavar roupa, que ainda no o faz muyto bem, excusa-nos muyts trabalhos .28 Finalmente, por carta de 8 de maio de 1558 lamenta: A melhor cousa que se podia dar a este Colgio seria duas duzias de escravos de Guin, machos e femeas, para fazerem mantimentos em abastana para casa, outros andariam em um barco pescando, e estes podiam vir de mistura com os que El-Rei mandasse para o Engenho, porque muitas vezes manda aqui navios carregados deles.29

    Afina], o documento mais antigo, legalizando a importao de escravos para o Brasil, inclusive indicando o local de procedncia o alvar de D. Joo III, de 29 de maro de 1559, permitindo sejam importados escravos de So Tom, o qual transcrevo na ntegra:

    Eu El-Rei fao saber a vs Capito da Ilha de So Tom, e ao meu Feitor e officiaes da dita Ilha que ora sois e ao diante forem, que eu hei por bem e me praz por fazer merc as pessoas que tem feitos engenhos de Assucar nas terras do Brasil, e aos que ao diante se fizerem que elles poo mandar resgatar ao Rio e resgates de cong, e trazer de l para cada hum dos ditos engenhos at cento e vinte pessoas de escravos que o dito meu Feitor bola enviar para trazere escravos, dos quaes pagaro somente o tero posto que pelo regimento e Pro- vizes que h na dita Ilha havio de pagar a metade, e esta merc fao as ditas pessoas que nas ditas partes tem ou tiverem feito ou fizerem engenhos para poderem mandar resgatar e trazerem as ditas cento e vinte pessoas por hua vez somente, e por tanto mando ao dito meu capito e Feitor Officiaes da dita Ilha, que mostrando-lhe as pessoas que os ditos escravos mandarem resgatar ao dito riode congo certido do Feitor e officiaes da caja da ndia, de como elle asim tem engenho-nas ditas- partes lhos----

    28 Manoel da Nbrega, op. cit., pgs. 267-268.29 Manoel da Nbrega, op. cit., pg. 288.

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    deixem mandar resgatar e vir nos ditos navios, e lhe dem para isso licena e lhos despachem qualquer Provizo ou regimento ouvessem de pagar a metade como dito h, e ao dito Feitor e officiaes aa dita Caja da ndia mando que quando lhe for pedida a dita certido se emformem o mais certo que poderem de como a dita pessoa que lhe a tal certido pedir tem engenho feito moente e corrente nas ditas partes, e quantos parceiros so a elle, e se todos so contentes de enviarem pellos ditos escravos, e achando que os tem e que todos esto contentes fao disso asento em hum Livro que para isso haver na dita casa, e lhe mandaro que d fiana dentro de dois annos do dia que lhe for pasada a tal certido traro certido do Governador das partes do Brazil de como levaro os ditos Escravos as ditas terras e ando nos ditos engenhos, ou do capito e feitor da dita Ilha de So Thome de como os no resgataro nem lhe viero ter a dita Ilha e dahy os mandaro as ditas partes. Que no trazendo a dita certido pozero o que monta do dito tero ametade, e primeiro que posem a tal certido vero o Livro e achando que no tem ainda tirado os ditos escravos ou que est por tirar algua parte delles pasaro certido conforme a que acharem que est por cumprir e por esta maneira lhe pasaro a dita certido, e por este e a dita Ilha de So Thom que lhe deixem mandar resgatar e vir os ditos escravos pea maneira sobre dita, e lhos deixem levar para as ditas partes do Brazil sem mais pagarem outros direitos, mando do dito Capito Feitor e Officiaes por virtude dellas darem para se resgatarem os ditos escravos, e quando vierem se por Verba no asento da dita certido de como viero os ditos escravos que se por tal licena mandaro resgatar e se pagou delles o tero e foro levados, e alem dio enviaro o treslado da certido e venha ao Feitor e Officiaes da dita casa da ndia para verem como j tem resgatados os Escravos contiu- dos na certido que lhe pasaro, e elles poro verba no asento que ho de fazer quando pasarein a tal certido

    ----ilf rw rlifny F grravfv: so resgatados no dito tem-po os executaro pelo mais que havio de pagar alem do dito tero, e seno cazo que o trato de Guin e Ilha de

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  • So Thom se arrendem ou se fizer sobre elle contrato, todavia cumprir este Alvar como nelle se contem, o qual quero que valha e tenha fora e vigor como se foce em meu nome, e pasada pela Chansellaria posto que este por ella no passe sem embargo da ordenao em contrario. Alvaro Fernandes o fez em Lisboa a 29 de Maro de l559T~Andre Soares o fezHscrever. 80

    Outro problema ainda sem soluo a origem do local de onde viram realmente os primeiros negros escravos. Os primeiros documentos so lacnicos, falam somente em gentio da Guin, sem mais outro esclarecimento. Sabe-s apenas que a uma vasta rea de terra da Africa, chamavam os portugu- ses de Guin, no se tendo notcia de sua diviso geogrfica e tnica. Essa confuso duro muito tempo. E para se ter uma idia disso, basta lembrar que ainda em 1758, quando era vice-rei do Brasil o Conde dos Arcos, ste ficou bastante confuso ao receber uma ordem da metrpole, no sentido de s permitir a sada de navios para as ilhas de Cabo Verde e portos da Guin, mediante licena especial de . Sua Majestade. Ento, diante dsse aperto, outra coisa no fz seno dirigir a Tom Joaquim da Costa Crte Real um ofcio emitido da Bahia com data de 2 de setembro de 1758, indagando o que significava a palavra Guin. Eis o ofcio, na sua essncia: Em carta de 10 de maro deste prezent anno, me aviza V. Ex., que S. M. atendendo a alguns justos motivos que lhe fo- ro prezentes, h servido que nesta Cidade Se np dem despachos aos navios, que os pretendo para irem delia em direitura aos Portos da Guin e Ilhas de Cabo Verde, sem espcial licena firmada pela real mo do mesmo Senhor.

    A execuo desta ordem me tem posto, em grande duvida, no pelo que pertence s IUias de Cabo Verde, mas porque me no acerto a rezolver quaes so os portos da Guin, que fico sendo exclusivos do commercio dos moradores desta Cidade, que no aprezentarem licena firmada pela Real mo para o poderem freqentar, por-

    80 A, J. de Melo Morais, Bras Histrico 2. srie, 1868. Typografa dos Editores, Rio de Janeiro, 1866, tomo I, pgs. 212-213.

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    que a palavra Guin, no sentido em que tomo alguns authores, comprehende no s as Ilhas de S. Thom, mas tambem muito dos portos da Costa da Mina: exclue porem todos os portos do Reyno da Guin, e como me

    Eersuado que esta nova determinao se no dirige a em- araar a franqueza, com que S. M. tem determinado se

    ------- nontinue -o-eoHMftr&ioda~ Costa,_da Mina, para que euno haja de contravir a nenhuma das suas reaes ordens, especialmente a de 30 de maro de 1756, que determina que a respectiva negociao a posso cultivar todas as pessoas que quizerem no s mesmos portos da Costa da Mina, em que dantes se fazia, mas em todos os de Africa, que fico de dentro como de fra do Cabo da Boa Esperana, parece faz preciso, que com mais alguma distino se me declare quaes so os portos da Guin, para que no hei de conceder as licenas. . . 31

    A respeito dessa confuso em tmo do que seja Guin, Lus Viana Filho32 faz uma tentativa de esclarecimento, aceita com elogios por Maurcio Goulart.33

    Um ponto de vista quase uniforme entre os historiadores, no que concerne hiptese de terem vindo de Angola os primeiros escravos, assim como ser .de l a maior safra de negros importados. Angola era o centro mais importante da poca e atrs dela, querendo tirar-lhe a hegemonia, estava Benguela. Angola foi para o Brasil o que o oxignio para os sres vivos e segundo Taunay,34 em uma consulta de 23 de janeiro de 1657, os conselheiros da rainha regente, viva de D. Joo IV e tambm membros do Conselho da Fazenda diziam que Angola era o nervo das fbricas do Brasil.

    31 Eduardo de Castro e Almeida, Inventrio dos documentos relativos ao Brasil existente no Arquivo de Marinha e Ultramar de Lisboa, organizado pra a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro por Eduardo de Castro e Almeida, tomo I, Bahia, 1613-1762. Oficinas Grficas da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1913; pgs. 285-286.

    Lus Viana Filho, O Negro na Bahia. Prefcio de Gilberto Freyre, Livraria Jos Olmpio Editra, Rio de Janeiro, 1946, pgs. 25-26.88 Mauricio Goulart, Escravido Africana no Brasil (Das origens ex- Uno o trifico), 2. edio, Livraria Martins Editra, So Pauto, 1950, pgs. 185-186.34 Afonso E Taunay, op. cit., pg. 211.

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  • "O abastecimento em Angola era cousa natural. Alm das causas que enumeramos havia ainda outra: era um mercado nvo, abundante, fcil. Para le convergiu o comrcio biano, que, em troca de aguardente, fazendas, miangas, facas, plvora, ia buscar negros, afirma Lus Viana Filho, em O Negro na Bahia.35 Tda essa carreira para os portos de Angola era devido boa qualidade dos escravos, principalmente no que tange submisso, o que no possuam os nags, que eram chegados rebeldia e arruaas. Talvez por essa facilidade que existia no mercado de Angola, associada boa mercadoria, que os historiadores concluem pelo pioneirismo de Angola na remessa de escravos para o Brasil. Na excelente introduo que d edio da Segunda Visitao do Santo Ofcio s Partes do Brasil pelo inquisidor e visitaor o licenciado Marcos Teixeira/Livro das Confisses e Retificaes da Bahia: 1618- 1620, de Eduardo D01iveira Frana e Snia A. Siqueira, refutando Lus Viana Filho que, estudando o que chama de Cielo de Angola, admite, do mesmo modo que Jos Honrio Rodrigues,36 que a superioridade dos negros bantos na Bahia foi no sculo XVI, argumentando que j entre 1575 e 1591 teriam sado nada menos de 50.053 peas para o Brasil e ndias de Castela. A fonte de informao o cronista da poca Abreu e Brito, em "Um inqurito vida administrativa e econmica de Angola e do Brasil.37 Tambm de opinio de que foi de Angola que nos veio a maior parte dos escravos Maurcio Goulart, porm com a ressalva de que isso s se verificou depois do alvar de D. Joo III, de 29 de maro de 1559.38

    35 Lus Viana Filho, op. cit., pg. 50.36 j os Honrio Rodrigues, Brasil e frica: Outro Horizonte, 2.a edio revista e aumentada. Editra Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro, 1964, vol. I, pg. 17.37 Segunda Visitao do Santo Ofcio s Partes do Brasil pelo inqui- sitor e visitador o licenciado Marcos Teixeira/Livro das Confisses eRatificaes da Bahia: 1618-1620. Introduo de Eduardo D01iveira Snia A. Siqueira, in Anais do Museu Paulista, So Paulo, 1963, tomoXVII, pg. 218.38 Maurcio Goulart, op. cit., pg. 185,

    16

    II

    O Termo Capoeira

    O vocbulo capoeira foi registrado pela primeira vez em 1712, por Rafael Bluteau,39 seguido por Moraes em 1813, na segunda e ltima edio que deu em vida de sua obra.40 Aps isso, entrou no terreno da polmica e da investigao etimo- lgica. A primeira proposio que se tem notcia a de Jos de Alencar em 1865, na primeira edio de Iracema, repetida em 1870, em O Gacho41 e sacramentada em 1878, na terceira edio de Iracema. Props Alencar para o vocbulo capoeira o tupi caa-apuam-era, traduzido por ilha de mato j cortado.42 Nao demorou nada, para que em 1880, dois anos depois, Macedo Soares a refutasse com violncia, dizendo que o nosso exmio romancista sabia muito do idioma portugus, pouco do dialeto brasileiro e menos ainda da lngua dos brasis.43 O39 Raphael Bluteau, Vocabulrio Portugus e Latino, Coimbr/No Collegio das Arte da Companhia de Jesus/Ano 1712, vol. II, pg. 129.40 Antonio de Moraes Silva, Diccionario da Lngua Portuguexa/Reco- pilado dos vocabulrios impressos at agora, e nesta segunda edio novamente emmendado e muito accrescentado. Lisboa, na Typographia Lacerdina/Anno de 1813, tomo primeiro, pg. 343.41 Jos de Alencar, O Gacho/Romance Brasileiro. Nova edio, Livraria Gamier, Rio de Janeiro, s/d, pg. 239.42 Jos de Alencar, Iracema/Lenda do Cear, B. L. Gamier, Rio de Janeiro, 3.* edio, 1878, pg. 212. ---------- :-----. .. ------- r,------43 Antnio Joaquim de Macedo Soares, Estudos Lexicogrficos do dialeto brasileiro, in Revista Brasileira, N. Midosi, Editor, Rio de Janeiro, 1880, Primeiro ano, Tomo III, pg. 228.

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  • conselheiro Henrique de Beaurepaire Rohan, tambm Visconde de Beaurepaire Rohan, entre outras centenas de ttulos^ que em 1879 havia proposto o tupi co-puera, significando roa velha, na Revista Brasileira,4* viu-se tambm criticado pela pena de Macedo Soares. Exteriorizando, assim, sua indignao, brada o velho mestre: Vimos ltimamente uma novaetimologia de capoeira, dada pelo Sr. conselheiro Henrique de~ Beaurepaire Rohan, nesta Revista, II, 426, a qual nos no parece aceitvel. Traz S. Ex.a copuera, roa velha; mas no explica como de copuera se fz capura. Nem se podia, seno por exceo, fazer. Tdas. as palavras guaranis que comeam por c, mato, flha, planta, erva, pau, ao passarem para o portugus, guardavam a slaba c, sem corrupo. E no podiam deixar de guardar, por ser parte substancial dos compostos que assim ficaram constitudos como palavras inteiras. E Vice- versa, nas palavras portugusas comeadas por c derivadas do guarani, significando coisa de mato, flha, pau, planta ou erva, o c e o guarani ca. No h exceo, e os exemplos formigam.*5 Gom isso ficou aberta a polmica entre Beaurepaire Rohan e Macedo Soares. Dsse modo, sem perda de tempo, no mesmo ano, porm no volume terceiro da Revista Brasileira, Beaurepaire Rohan, com um artigo intitulado S- bre a etimologia do vocbulo brasileiro capoeira, d a seguinte lio: Na Revista Brasileira d 15 de fevereiro ltimo, sob o ttulo Estudos lexicogrficos d dialeto brasileiro, discute o Sr. Dr Macedo Soares a etimologia e a significao dos vocbulos capo, capoeira, restinga.

    Neste meu ligeiro escrito no me ocupei seno do vocbulo capoeira, atendendo a que a etimologia que dleapresentei no parece aceitvel ao ilustre fil< mos na matria.

    Diz o Sr. Dr. Macedo Soares que Capura, Ca- pora pura e simplesmente o guarani ca-pura, mato que foi, atualmente mato mido que nasceu no lugar do mato virgem que se derrubou.

    44 Henrique de Beaurepaire Rohan, Reforma da Ortografia' Portugusa, in Revista Brasileira, N. Midosi, Editor, Rio de Janeiro, 1879, tomo II, pg. 426.48 Antnio Joaquim de Macedo Soares, op. cit., pg. 228.

    logo. Entre-

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    E mais adiante:Capoeira ou ca-pura significa mato virgem que j

    no , que foi botado abaixo, e em seu lugar nasceu mato fino e raso.

    To defeituosa definio que prova que o Sr. Dr. Macedo Soares ainda no compreendeu bem o sentido genuno do adjetivo pura.

    Pura no pode significar ao mesmo tempo o que foi e o que , o passado e o presente. Pura sempre a expresso do pretrito.

    E se ca-pura significa mato que deixou de existir, seria um verdadeiro contra-senso estender semelhante significao a um acidente florestal .que vive em plena atualidade, bem patente aos olhos e ao alcance de todos.

    Ca-pura no pode portanto ser a etimologia de capoeira. Outra devemos procurar, e a encontraremos, sem a menor dvida, no vocbulo c-pura.

    Se no sentido de roa que deixou de existir tem sse vocbulo uma significao diversa daquela que ligamos a capoeira, todavia fcil reconhecer o motivo da confuso. Atenda-me o Sr. Dr. Macedo Soares.

    Logo que uma roa abandonada, aparece nela uma vegetao expontnea que se desenvolve a ponto de formar um mato. sse o mato de co-pura, que mais tarde se chamou mato de capura como ainda hoje o dizem muitos ncolas, e finalmente por abreviao, capoeira que a expresso mais usual. Essa transformao de copura em capoeira, que to estranha parece ao distinto literato, devida, pura e simplesmente, semelhana dos dois vocbulos, semelhana que facilitou a mudana do o em a. So muitos os casos em que tais substituies se tm operado sem quebra da primitiva significao de um vocbulo. assim que tobatinga se transformou em taba- tinga; tabajara em tobajara; caryboca em coriboca ou curiboca; e finalmente na prpria lngua portugusa devoo em devoo. J v ilustre Sr. Macedo Sares que, por ste lado, o pode haver a menor dificuldade em admitir que a antiga copra seja a capoeira de agora. isto mais simples do que a metamorfose de ru em alu.

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  • Nas relaes vulgares esto de h muito perdidas as tradies etimolgicas de capoeira. Por mato de capoeira ou simplesmente capoeira, entendemos, atualmente todo e qualquer mato de medocre estatura, quer se desenvolva em roas abandonadas, quer substitua a mata virgem que se derrubou, quer emfim cubra terrenos onde no haja vestgios quaisquer nem de roas nem de matas primitivas. So sempre matos mais ou menos enfezados, que alis vo com o tempo adquirindo certas propores, passam ao estado de capoeires, e, dentro de algumas dezenas de anos, acabam por constituir florestas que se confundem perfeitamente com as matas antigas. o que, por exemplo, se observa nas extintas misses jesuticas de Guayra. No sei se me exprimi de modo a convencer o Sr. Dr. Macedo Soares. Em todo caso felcto-me por ter tido a oportunidade de discutir com um literato to estimavel qual sempre o considerei. E para lhe dar mais uma prova do meu interesse pelo trabalho Iexicografico que tem entre mos, acrescentarei que tigura no tem a significao de roa velha. Aquele vocbulo refere-se especialmente ao restolho de um milharal. No Rio de Janeiro lhe chamam palhada, e em certos lugares de Minas Gerais palha. Soltar os animais na palha, na palhada, no restolho ou na tigura uma e a mesma cousa.

    quanto me cumpria dizer.46

    Ao lado dessa polmica, as investigaes prosseguiram e proposies novas surgiram. Ainda no sculo passado se l na Poranduba Amazonense4T a forma caapora, assim como se v o Visconde de Prto Seguro,48 depois de discorrer em tmo das acepes dos vocbulos capo e capoeira, aconselhar se escreva capora.

    46 Henrique de Beaurepaire Rohan, Sbre a etimologia do vocbulo brasileiro capoeira, in Revista Brasileira, N. Midosi Editor, Rio de Janeiro, 1880 Primeiro ano Tomo IH, pgs. 390-392.*7 J. Barbosa Rodrigues, Poranduba Amazonense ou Kochiyma- Uara Porandub 1872/1877, Tipografia de Leuzinger & Filhos, Rio de Ja-

    neiro, 1890, npg-.~79r--------- ----------------- - -----------; - -----------48Visconde ae Prto Seguro, Histria Geral do Brasil/Antes da sua separao e independncia de Portugal. Em casa de E. & Laemmert, Riode Janeiro, 2.a edio, s/d., vol. X, pg. 8.

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    Atualmente so quase unnimes os tupinlogos em aceitarem o timo ca, mato, floresta virgem, mais pura, pretrito nominal que quer dizer o que foi, o que no existe mais, t- mo ste proposto em 1880 por Macedo Soares.49 Portanto, pensando assim, esto Rodolfo Garcia, 60 Stradelli,1 Teodoro Sampaio,52 Tastevin 53 e Friederici que, alm de reconhecer um mesmo timo para o tupi e para a lngua geral, define como Stellen und Strecken ehemaligen Urwaldes, die Wieder mit Jungholz-Neuwuchs besiedelt sind.B4 Afora Montoya que em 1640 props cocera, "chacara vieja dexada ya,85 Beaurepaire Rohan86 props em 1879 a forma co-puera, roa velha, Em nossos dias, pensa assim Frederico Edelweiss que, em nota ao livro de Teodoro Sampaio, O Tupi na Geografia Nacional, refutou o timo corrente, para dizer que essa opinio errnea muito espalhada. apueira vem de kopefa roa abandonada, da qual o mato j tomou conta. A trca do o para a

    49 Antnio Joaquim de Macedo Soares, op.' cit., pg. 228.80 Rodolfo Garcia, Dicionrio-de brasileirismos (peculiaridades pernambucanas), Rio de Janeiro, 1915, pg. 69. Rodolfo Garcia, Nomes geogrficos peculiares ao Brasil, in Revista de Lngua Portugusa/Arquivo de estudos relativos ao idioma e literatura nacionais, dirigida por Laudelina Freire, n. 3 Janeiro, 1920, pg. 164.81 E . Stradelli, Vocabulrio da Lngua Geral Portugus-Nhengatu e Nhengatu-Portugus/Precedidos de um esbo de Gramtica Nhen- gatu-umbn-sua-miri e seguidos de contos em lngua geral nhengtu- poranduua. Rio de Janeiro, 1927, pg. 397.82 Teodoro Sampaio, O tupi na geografia nacional, 4.a edio, Cmara Municipal do Salvador/Introduo e notas de Frederico G. Edelweiss, Salvador, 1955, pg. 107.S3 Constantino Tastevin, Vocabulrio Tupy-Portuguez, in Revista do Museu Paulista, Oficinas do Dirio Oficial, So Paulo, 1922, tomo XIII, pg. 613. Constantino Tastevin, Gramtica da Lngua Tupy, in Revista do Museu Paulista, Oficinas do Dirio Oficial, So Paulo, 1922, tomo XIII, pg. 565.84 Georg Friederici, Amerikanistisches Wrterbuch und Hilfswrter- buch fr den merikanisten, 2. Auflage, Cram, de Gruyter & Co., Harn- burg, 1960, pg. 131.85 Antonio Ruiz de Montoya, Vocabtario y tsoro de la lengua guara- ni, 6 mas bien tupi, en dos partes: I. Vocabulario espanol-gurani (frp1}- 11 im n m g irih in < -(/i N y m ii m as i r r a it ay esmerada que la primera, y con las voces indias en tupi diferente. Fae- sy y Frick, Viena-Maisonneuve y Cie, Pris, 1876, pg. 98.B Henrique de Beaurepaire Rohan, in op. cit., pg. 426.

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  • deve-se influncia da palavra mais corrente ka, mato. Entretanto, o ndio nunca chamaria ao mato nvo de antigo roado ka-pera mato extinto, quando a capoeira , na verdade, um mato renascido.57

    Existe no Brasil uma ave chamada capoeira (Odontopho- rus capueira, Spix), que alm de ser encontrada no Paraguai

    d u m U i i M l l l U lCU U j M u id dA ---- -------- , V1V/ j a u & u u ; I V U U d drais, sul de Gois, sudoeste de Mato Grosso, So Paulo, Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.58 tambm chamada uru, uma espcie de perdiz pequena, anda sempre em bandos, e no cho.89 mencionada freqentemente nas obras dos viajantes, mui especial na do Prncipe de Wied-Neuwied.60 Depois de dizer que o canto da capoeira s ouvido ao amanhecer e ap anoitecer, Macedo Soares, transcrevendo Wap- poeus informa que a referida ave uma pequena perdiz de vo rasteiro, de ps curtos, de corpo cheio, listrado de amarelo escuro, cauda curta e que habita em tdas as matas. Tem um canto singular, que antes um assobio trmulo e contnuo do que canto modulado. tambm caa muito procurada e que se domestica com facilidade.61 No mesmo local, Macedo Soa-

    8? Frederico G. Edelweiss, in Teodoro Sampaio, O Tupi na Geografia Nacional, ed. cit., pg. 107 nota.8 Olivrio M. de Oliveira Pinto, Catlogo das aves do Brasil e lista dos exemplares que as representam no Museu Paulista, in Revista do Museu Paulista, Sq Paulo, tomo XXII, 1938, pgs. 104-105. Carlos Octaviano da C. Vieira, "Nomes vulgares de aves. do Brasil, in Revista do Museu PauUsta, So Paulo, 1936, tomo XX, pg. 452. Hermann von Ihering e Rodolfo von Ihering, A Aves do Brasil ( Catlogo da Fauna Brasileira), ed. Museu Paulista, Tipografia do Dirio Oficial, So Paulo, 1907, vol. I, pg. 18. Rodolfo von Ihering, Dicionrio dos Animais do Brasil, So Paulo, 1940, pgs. 823-825.59 Manuel Aires de. Casal, Corografia Braslica ou Relao Histrica- Geogrfica do Reino do Brasil, Edies Cultura, So Paulo, .1943, tomo II, pg. 122.60 Wied-Neuwied, Viagem ao Brasil. Traduo de Edgar Sssekind de Mendona e Flvio Poppe de Figueiredo, 2.* edio rerundida e anotada por Olivrio Pinto, Companhia Editra Nacional, So Paulo, 1958, pgs. 188, 242, 243, 365.1 Antnio Joaquim de Macedo Soares, Dicionrio Brasileiro da Lngua Portugusa/lncidiro etimolgico critico das palavras e frases que, originrias do Brasil, ou aqui populares, se. no encontram nos dicionrios da lngua portugusa ou nles vm com forma ou significao diferente 1875-1888/Coligido, revisto e completado por seu filho Ju

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    res informa que o canto da capoeira era utilizado atravs do assobio pelos caadores no mato como chama, e os moleques pastres ou vigiadores de gado para chamarem uns aos outros e tambm ao gado. Dessa forma o m oleque ou o escravo que assim procedia era chamado capoeira.

    Ainda com ligaes ave Nascentes que em 1955, na Aevista brasileira de Ftftjfogc,~apresenta-uma-proposio-dife-- rente da que deu luz em 1932, em seu Dicionrio Etimolgico da Lngua Portugusa e em 1943, quando concluiu a redao da ltima ficha do dicionrio que a Academia Brasileira de Letras lhe encomendara. Nascentes ao explicar como o jgo da capoeira se liga ave, informa que o macho da capoeira muito ciumento e por isso trava lutas tremendas com o rival, que ousa entrr em seus domnios. Partindo dessa premissa, explica que Naturalmente, os passos de destreza desta luta, as negaas, foram comparadas com os dstes homens que na luta simulada para divertimento lanavam mo apenas da agilidade.62

    Ao lado do vocbulo genuinamente brasileiro de origem tupi, h o portugus, significando dentre outras coisas csto para guardar capes, j com abonaes clssicas, como a que se segue de Ferno Mendes Pinto, Onde o vocbulo aparece bem caracterizado: E pondo recado & boa vigia no que convinha, nos deixamos estar esperando pela manham; & s duas horas despois da meya noite enxergamos ao Qrizonte do mar ties cusas pretas rentes com a agoa, & chamamos logo o Capito q a este tpo estava no conves deitado encima de ha capoeyra, & lhe mostramos o q[ viamos, o qual tanto q o vio tamb, se determinou muyto depressa, & bradou por tres ou quatro vezes, armas, armas, o que logo se satisfez em muyto breve espao." 63 Da Adolfo Coelho64 derivar o voc-

    lio Rangel de Macedo Soares, Rio de Janeiro, 1954, vol. I, pgs. 106- 107.82 Antenor Nascentes, Trs brasilirismos, in Revista Brasileira de Filologia, Livraria Acadmica, Rio de Janeiro, 1955, vol. I, pg. 20.68 Femam Mendes Pinto, Peregrinao. Nova edio, conforme a de 1614 preparada e organizada por A. J. da Costa PimpSo e Csar Pegado. Portucalense Editra, Prto, 1944, voL II, pg. 33.84 Francisco Adolfo Coelho, Dicionrio Manual Etimolgico da Lngua Portugusa/contendo a significao e prosdia, P . Plantir-Editra, Lisboa, s/d., pg. 204.

    23

    &%

  • bulo de capo mais o sufixo eira, seguido por Corteso.85 Nascentes, no Dicionrio Etimolgico da Lngua Portugusa88 segue as pegadas de Adolfo Coelho, limitando-se a fazer a derivao do vocbulo sem mais nenhuma explicao. Entretanto, j no Dicionrio da Lngua Portugusa, elaborado para a Academia Brasileira de Letras,87 inclui sob a mesma origem, capoeira (jgo) e capoeira o homem que pratica o jgo da capoeira, sem contudo ainda explicar o que determinou o timo.

    Tendo como base capo, do qual Adolfo Coelho tirou o timo de capoeira para o portugus, Beaurepaire Rohan faz o mesmo para o vocbulo capoeira na acepo brasileira, apresentando em defesa de sua opinio a seguinte explicao: Como o exerccio da capoeira, entre dois indivduos que se batem por mero divertimento, se parece um tanto com a briga de galos, no duvido que ste vocbulo tenha sua origem em Capo, do mesmo modo que damos emf portugus o nome de capoeira a qualquer espcie de csto em que se metem galinhas.88 Brasil Gerson, o historiador das ruas do Rio de Janeiro,89 fazendo a histria da rua da Praia de D. Manoel, mais tarde simplesmente rua de D. Manoel, informa que l ficava o nosso grande mercado de aves e que nle nasceu o jgo da capoeira, em virtude das brincadeiras dos escravos que povoavam tda a rua, transportando nas cabeas as suas capoeiras cheias de galinhas. Partindo dessa informao que o pioneiro

    65 A. A. Corteso, S-ubsdios para um Dicionrio Completo (Histrico Etimolgico) da Lneua Portugu&a/compreendendo a etimologia, as principais noes de leis fonticas, muitos elementos de dialetologia e de onomatologia, tanto toponmica como antroponmica, arcasmos, neo- logismos, etc., Frana Amado-Editor, Coimbra, 1901, vol. II, pg. 25 (Aditamento).68 Antenor Nascentes, Dicionrio Etimolgico da Lngua Portugusa com prefcio de W. Meyer-Lbke, Rio de janeiro, 1932, pg. 151.67 Academia Brasileira de Letras, Dicionrio da Lngua Portugusa elaborado por Antenor Nascentes, Departamento de Imprensa Nacional, 1964, tomo I, pg. 386.*^5 Beaurepaire Rohan, Dicionrio de vocbulos brasileiros, Imprensa Nacional, Rio de Janeir, 1889, pgs. 35-36.69 Brasil Gerson, Histria das ruas do Rio de Janeiro, 3.a edio revista e aumentada, Editra Souza, Rio de Janeiro, pg. 31.

    24

    de nossos estudos etimolgicos, o ilustre mestre Antenor Nascentes se escudou para propor nvo timo para o vocbulo capoeira, designando o jgo atlti, assim como o praticante do mesmo. Por carta de 22 de fevereiro de 1966, que tive a honra de receber, Nascentes deixa bem claro o seu pensamento: A etimologia que eu hoje aceito para capoeira a que vem no livro de Brasil Gerson sbre as ruas do Rio de Janeiro.

    Os escravos que traziam capoeiras de galinhas para vender no mercado, enquanto le no se abria, divertiam-se jogando capoeira. Por uma metonmia res pro persona, o nome da coisa passou para a pessoa com ela relacionada.70 Como se v, as proposies divergem umas das outras, fazendo com que no se tenh uma doutrina finnad sbre ste ou aqule timo. Creio que s se pode pensar m nova proposio com o desenvolvimento dos estudos sbre o negro no Brasil, o que, prticamente, est por s fazer. Caso contrrio, estaremos sempre construindo algo sem ter alicerces para plantar, que no caso seria o conhecimento de novos documentos, relativos aonegro.

    O vocbulo capoeira, m suas diversas acepes est espalhado em todo o territrio nacional como no Amazonas,71, Par,72 Maranho,73 Cear,74 Paraba,75 Pernambuco,76 Rio70 Antenor Nascentes, Carta ao autor de 22/2/66 Rio de Janeiro,71 Raimundo de Moraes, O meu dicionrio de cousas da Amaznia, Rio de Janeiro, 1931, vol. I, pg. 108.72 Vicente Chennont de Miranda, Glossrio paraense ou coleo de vocbulos peculiares Amaznia e especialmente ilha de Maraj, Livraria Maranhense, Par, 1905, pg. 21.73 Csar de ugust Marques, "Poranduba Maranhense ou Relao da Provncia do Maranho/Em que se d notcia dos sucessos mais clebres que nela tem acontecido desde o seu descobrimento at o ano de 1820, como tambm ds suas principais produes naturais, etc., com um mapa da mesma provncia e de um dicionrio abreviado da lngua geral do Brasil, in Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasairo, Ti- pografia e Encadernao a vapor de Laemmrt & C., Rio de Janeiro, 1891, tomo LIV Parte I, pag. 141.74 Florival Seraine, Dicionrio de Trmos Populares (registrado no Cear), Organizao Simes Editra, Rio de Janeir, 1958, pg. 60.75 L .F .R . Clerot. Vocabulrio d e Trmos Populares e Grias da Paraba (Estudo de glotologia e semntica paraibanas), 1.* edio, Rio de Ta-

    ngfrn, TflSfl, ppr 34 -3 5 . '7 F. J. Pereira da Costa, "Vocabulrio pernambucano', in Retiit der Instituto Arqueolgico; Histrico e Geogrfico Pernambucano, vol. XXXIV. Pernambuco, 1937, pgs. 190-192.

    25

  • de Janeiro,77 Gois,78 Rio Grande do SuL79 De um modo geral, est registrado em glossrios regionais e especializados, como no de Ciado Ribeiro Lessa, 80 Teschauer, 81 Viotti, 82 Agenor Lopes de Oliveira, 88 Nascentes, 81 Bemardino Jos de Sousa,85 Cascud.o, 86 Plnio Ayrosa,87 Rodolfo Garcia,88 e outros. bom lembrar, aqui, que, dentre os brasileirismos que Alberto Bessa

    que le define como jgo de mos. ps e cabea, praticado por vadios de baixa esfera (gatuno) .89

    77 Antenor Nascentes, O Linguajar Carioca, 2.a edio completamente refundida, da Organizao Simes, Bio de Janeiro, 1943, pg. 188.78 Jos A. Teixeira, Estudos de Dialetologia Portugusa/Linguagem de Gois, Editra Anchieta, So Paulo, 1944, vol. II, IV parte (Glossrio regional).79 Antnio Alvares Pereira Coruja, Coleo de Vocbulos e Frases Usados na Provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul no Brasil, Trubner e Comp., Londres, 1856, pg. 9.80 Ciado Ribeir Lessa, Vocabulrio de Caa/contendo os trmos clssicos portuguses de cinegtic geral, os relativos falcoaria, e os vocbulos e expresses de uso peculiar ao Brasil, Companhia Editra Nacional, So Paulo, 1944, pg. 49.81' Carlos Teschauer, Nvo Vocabulrio Nacional/IU.3, srie das apostilas ao Dicionrio de Vocbulos Brasileiros. Barcellos Bertoso & Cia. Livraria do Globo, Prto Alegre, 1923, pg. 109.82 Manuel Viotti, Nvo Dicionrio da Gria Brasileira, 3.a edio, Livraria Tup, s/d-, pg. 99.84 Agenor Lopes de Oliveira, Toponmia Carioca, ed. Prefeitura do Distrito Federal, s/d., pgs. 115, 181, 259-260.84 Antenor Nascentes, A Gria Brasileira, Livraria Acadmica, Rio de Janeiro, 1953, pg. 33.85 Bemardino Jos de Souza, Dicionrio da Terra e da Gente do Bra- si/Onomstica geral da Geografia Brasileira, 3.a edio, Companhia Editra Nacional, So Paulo, 1961, pg. 87.86 Lus da Cmara Cascudo, Dicionrio do Folclore Brasileiro, 2.a edio revista anotada, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1962, pgs. 181-182.87 Plnio Ayrosa, Trmos Tupis no Portugus do Brasil. Emprsa Grfica da Revista dos Tribunais, So Paulo, 1937, pgs. 105-120.88 Rodolfo Garcia, Dicionrio de Braseirismos (peculiaridades pernambucanas), Rio de Janeiro, 1915, pg. 69. Rodolfo Garcia, "Nomes geogrficos peculiares ao Brasil", in Revista de IAngua Portugusa/Arquivo de estudos relativos ao idioma e literatura nacionais, dirigida por Laudelino Freire, n. 3 janeiro, 1920, pg. 164.89 Alberto Bessa, A Gria Portugusa/Esba de um dicionrio de "calo contendo uma longa cpia, dos trmos e frases empregados na linguagem popular de Portugal e do Brasil, com as respectivas significa-

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    Semnticamente falando, o vocbulo existe nas mais variadas acepes, as quais vo adiante: Capoeira, s .f. Espcie de csto feito de varas, onde se

    guardam capes, galinhas e outras aves. Capoeira, s . f . Local onde fica a criao.Capoeira, s . f . Carruagem velha.90______________ ________Capoeira, s . f . -Tipia.91Capoeira Trmo de fortificao, designando a escavao no

    fundo de um poo sco, guarnecida de um parapeito com seteiras e de um teto de franches, sbre que se deita uma grossa camada de terra.92

    Capoeira, s . . Espcie de csto com que os defensores duma fortaleza resguardam a cabea.93

    Capoeira, s . f . Designa uma pea de moinho.94Capoeira, s .f. Mato que foi cortado.Capoeira, s .f. Lenha que se retira da capoeira, lenha mi

    da.95Capoeira, s . f . Designa uma ave ( Odontophorus capueira,

    Spix), tambm conhecida pelo nome de Uru.Capoeira, s . f . Espcie de jgo atltico.Capoeira au, s . f . Chama-se, no Maranho, a capoeira

    que tem mais de 1 2 anos.

    es colhidas na tradio oral e em documentos, livros e jornais antigose modernos, incluindo muitas palavras ainda no citadas como de gria em dicionrio algum, por Alberto Bessa, com prefcio do ilustre Professor Dr. Theophilo Bfaga, Livraria Central de Goes de Carvalho, Lisboa, 1901, pg. 7.90 F. J. Caldas Aulete, Dicionrio Contemporneo da Lngua Portu-

    fusa/feito sbre um plano inteiramente nvo. Imprensa Nacional, Lis- oa, 1881, pg. 282. Laudelino Freire, Grande e Novssimo Dicionrio da Lngua Portugusa, organizado por Laudelino Freire com a colaborao tcnica do Professor J. L. de Campos, A Noite Editra, Rio de Janeiro, 1941, vol.II, pg. 1.238.91 F. J. Caldas Aulete, op. cit., pg. 282. Laudelino Freire, op. cit., 1941, vol. II, pg. 1.238.92 Raphael Bljiteau, op. cit., 1712, vol. II, pg. 129. Laudelino Freire, op. cit., 1941, vol. II, pg. 1.238.03 Laudelino Freire, op. cit., 1941, vol. II, pag. 1.238.94 A. R. Gonalves Viana, Apostilas aos Dicionrios Portuguses, Livraria Clssica Editra A. M. Teixeira & Cia., Lisboa, 1906, voL I,pg. 229.98 Plinio Ayrosa, op. cit., pg. 12.

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  • Capoeira mirim, s. f . Chama-se, no Maranho, a capoeiraque tem menos de 1 2 anos.

    Capoeira grossa, s . f . Capoeira onde j existem rvoresgrandes e grossas.

    Capoeira rala, s .f. Capoeira que se corta constantemente. Capoeira de machado, s .f. Capoeira de grandes arbustos

    que s pode ser cortada com machado. Em Pernambuco chamado capoeiro de machado .

    Capoeira de foice, s .f. Capoeira que pode ser cortada comfoice.97

    Capoeira, s.m. O que pertence ao jgo da capoeira. Capoeira, s.m. Indivduo desordeiro.Capoeira, s.m. Ladro de galinha.Capoeira, s.m. Espcie de veado existente no Nordeste.98 Capoeira, s.m. Matuto, indivduo na capoeira.99 Capoeiro, s.m. Homem velho e pacato pela idade. Capoeiro, s .m . Capoeira bastante grossa.Capoeirano, s .m . Trmo usado no Recncavo da Bahia

    para designar o habitante em terras de capoeira.100

    Capoeirada, s . f . Conjunto de capoeiras.Capoeiragem, adj. Ato de capoeira.Capoeiroso, adj. Relativo capoeira.101 Capoeirar, v. Burlar intentos, ladinar, enganar.102

    96 Rodolfo Garcia, op. cit., pg. 69.87 Domingos Vieira, Grande Dicionrio Portugus ou Tesouro da Lngua Portugusa, Editres Ernesto Chardron e Bartholomeu H. de Moraes, Prto, 1873, vol. II, pg. 96.98 Gustavo Harroso, Terra d e Sol (Natureza e costumes do Norte), 5.a edio, Livraria So Jos, Rio de Janeiro, 1956, pg. 49.

    Plnio Ayrnsa, np r.it., pg 117._______________________ __100 Bemardino Jos de Souza, op. cit., pgs. 86-87.101 Carlos Teschauer, op. cit., pg. 109.102 Plnio Ayrosa, op. cit., pg. 118.

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    Capoeirar, v. Prender aves em grandes cstos ou capoeiras. Capoeirar, v. Andar pelas capoeiras.Encapoeirar, v. O mesmo que capoeirar.Encapoeirado, adj. Metido na capoeira, escondido na regio

    das capoeiras.Encapoeirado, adj. Terreno j coberto de capoeira.

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  • A Capoeira

    Antes de entrar no estudo da capoeira prpriamente dita, necessrio responder a pergunta anteriormente formulada, indagando se os africanos trouxeram a capoeira da frica, especificamente de Angola, ou inventaram no Brasil.

    Quando examinei o problema do trfico de escravos africanos para o Brasil, falei da dificuldade em se afirmar, com preciso, a data da chegada dos primeiros escravos e a sua procedncia, em virtude da escassez, no momento, de documentos. Entretanto, falei da tendncia dos historiadores e africanistas, tomando como base poucos e raros documentos conhecidos, em se fixarem como sendo de Angola os primeiros negros aqui chegados, assim como ter o grosso de nossos escravos escoado dos portos de So Paulo de Luanda e Bengue- la. Ao lado disso a gente do povo e sobretudo os capoeiras falam todo o tempo em capoeira Angola, mui especialmente quando querem distingui-la da capoeira regional, de que falarei no lugar oportuno. Ora, tudo isso seria um pressuposto pra se aizer que a capoeira veio de Angola, trazida pelos negros de Angola. Mas, mesmo que se tivesse notcia concreta da existncia de tal folguedo por aquelas bandas, ainda no era argumento suficiente. Est documentado, e sabido por todos, que os africanos uma vez livres e os que retornaram s

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    suas ptrias levaram muita coisa do Brasil, coisas no s inventadas por les aqui, como assimiladas do ndio e do portugus. Portanto, no se pode ser dogmtico na gnese das coisas em que constatada a presena africana; pelo contrrio, deve-se andar cm bastante cautela,

    No caso da capoeira, tudo leva a crer seja uma inveno

    afro-brasileiros, tendo em vista uma srie de fatres colhidos em documentos escritos e sobretudo no convvio e dilogo constante com os capoeiras atuais e antigos que ainda vivem na Bahia, embora, em sua maioria, no pratiquem mais a capoeira, devido idade avanada. Em livro recentssimo, Ls da Cmara Cascudo defende a estranha tese de que Existe em Angola a nossa Capoeira nas razes formadoras e , como supunha, uma decorrncia de cerimonial de iniciao, aspecto que perdeu no Brasil.1028, Lamentvelmente, o raciocnio e documentao que passa a desenvolver, para explicar sua proposio, no convencem, devendo-se, portanto, tomar conhecimento da referida tese, com bastante reserva, at que seu autor a elucide com mais desenvoltura e rigorosa documentao, dando o carter cientfico que o problema est a exigir. No tenho documentao precisa para afirmar, com segurana, terem sido os negros de Angola os que inventaram a capoeira ou mais especificamente capoeira Angola, no obstante terem sido les os primeiros negros a aqui chegarem e em maior nmero dentre os escravos importados, e tambm as cantigas, golpes e toques da capoeira falarem sempre em Angola, Luanda, Benguela, quando no intercalados com trmos em lngua bunda. Por outro lado, h tambm a maneira de ser dsses negros, muito propensa aos folguedos, sobretudo dessa espcie. Braz do Amaral,103 dentre outros, afirma que os negros de Angola eram insolentes, loquazes, imaginosos, sem persistncia para o trabalho, porm frteis em recursos e manhas. T inham mania por festa, pelo reluzente e o ornamental. Seu pendor para festa, fertilidade de imaginao e agilidade eram

    102a Lus da Cmara Cascudo, Folclore do Brasil/Pesquisa e Notas. Editra Fundo de Cultura, Brasil-Portugal, 1967, pg. 183.MB Braz do Amara], Os grandes mercados de escravos africanos. As tribos importadas. Sua distrbuiSo regional, tri Fatos da Vida do Brasil, Tipografia Naval, Bahia, 1941, pg. 126.

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  • o suficiente para usarem e abusarem dos folguedos conhecidos e inventarem muitos outros. Alm da sua capacidade de imaginao, buscaram os negros elementos de outros folguedos e de coisas outras do quotidiano para inventarem novos folguedos, como teria sido o caso da capoeira. Para princpio de argumentao, quero citar a capoeira de Mestre Bimba, chamada capoeira regional e tida por todos como uma outra capoeira, distinta da que geralmente se chama capoeira Angola.

    A capoeira uma s, com ginga e determinado nmero de toques e golpes, que servem ae padro a todos os capoeiras, enriquecidos com criaes novas e variaes sutis sbre os elementos matrizes, mas que no os descaracterizam e interferem na sua integridade. Apenas o que houve na capoeira dita regional, foi que o Mestre Bimba a desenvolveu, utilizando elementos j conhecidos dos seus antepassados e enriquecendo com outros a que no lhes foi possvel o acesso. Mesmo assim, os elementos novos introduzidos, so fcilmente reconhecidos e distintos dos tradicionais como o caso dos golpes ligados ou cinturados, provenientes dos elementos de lutas estrangeiras, o que no se verifica nos golpes tradicionais, onde os capoeiras no se ligam e mal se tocam. Portanto, no tem o menor fundamento a afirmativa de Edison Carneiro, em Negros Bantos,10* repetida, vinte anos mais tarde, em A Sabedoria Popular,105 de que h nove modalidades de capoeira, passando em seguida a enumer-las. O que houve foi uma bruta confuso feita por Edison Carneiro, misturando golpes de capoeira com toques de berimbau, chamando a isso modalidades de capoeira. Lastimvel que sse rro vem sendo repetido por quantos o copiam e o mais recente foi Dias Gomes, no texto que escreveu para a gravao de capoeira da Editra Xau, muito embora no diga que copiou ds livros de Edison Carneiro.

    Num dos dilogos que mantive com o Mestre Bimba, perguntei-lhe por que inventou a capoeira regional, ao que me respondeu que achava a capoeira Angola muito fraca, como

    10* Edison Carneiro, Negros Bantos/nptas de etnografia religiosa e de folclore, Uivikzagao Brasileira, S/A. Bdilia, Rio de Janeiro, 1037, pg. 149.105 Edison Carneiro, A Sabedoria Popular, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957, pg. 199.

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    divertimento, educao fsica e ataque e defesa pessoal. Ento indaguei o que utilizou para fazer a que chamou de regional, que considerou forte e capaz de preencher os requisitos que a capoeira Angola no preenche. Respondeu-me que se valeu de golpes de batuque, como banda armada, banda fechada, encruzilhada, rapa, cruze de carreira e ba, assim como detalhes da coreografia de maculel, de folguedos outros e muita coisa que no se lembrava, alm dos golpes de luta greco- romana, jiu-jitsu, jud e a savata, perfazendo um total de 52 golpes. Logo no est fora de propsito a etimologia de capoeira apresentada por Nascentes,108 tomando como base o nome de uma ave chamada capoeira, justificando a sua proposio no fato do macho, ao menor indcio da presena de seu rival, ir de encontro ao mesmo e travar lutas tremendas, lutas essas que foram comparadas com as que simulavam os capoeiras para se divertirem. Eu vou mais adiante, dizendo mesmo que os negros poderiam muito bem ter extrado golpes ou detalhes de golpes, para a inveno do folguedo e que poderia perfeitamente chamar de capoeira a um jgo, em funo de uma ave com sse nome, da qual lhe extrara alguns elementos para a sua inveno.

    Outro fato importante o resultado da enqute que fiz com vrios capoeiras, antigos e modernos, e verifiquei que quase todos les possuem um ou mais golpes ou toques diferentes dos demais, inventados por les prprios, ou ento herdados de seus mestres ou de outros capoeiras de suas ligaes, isso sem falar na interpretao pessoal, embora sutil, que do aos golpes e toques, de um modo geral, e o golpe pessoal que todo capoeira guarda consigo, para ser usado no momento necessrio. O texto descritivo de capoeira mais antigo que se tem notcia o que est nas Festas e Tradies Populares do Brasil de Melo Morais Filho. Pois bem, os golpes a referidos, so, na sua quase totalidade, desconhecidos dos capoeiras da Bahia, como o caso do tronco, raiz, fedegoso, p de panzina, caador, passo a dois e outros,107 golpes sses e muitos que

    106 Antenor Nascentes, Trs braseirismos, in Revista Brasileira de Fnlngin. Livraria Acadmica, Rio de Janeiro, vol. I, pg. 20.10* Melo Morais Filho, Festas e Tradies Populares do Bnuf/Reviso e notas de Luis da Cmara Cascudo, F. Briguiet & Cia., Editres, Rio de Janeiro, 3.a edio, 1946, pg. 448.

  • Melo Morais Filho no teve conhecimento, ou simplesmente no mencionou, mas que foram criaes de capoeiras ou maltas de capoeiras do Rio de Janeiro de seu tempo, extrados da imaginao e de elementos que lhes vinham frente. Segundo fui informado, existiu no Rio de Janeiro um velho mestre de capoeira baiano, conhecido por Sinbzinho (Agenor

    -- !\ ---- T - J - ' 'capoeira, utilizando-se de alguns dos golpes referidos por Melo Morais Filho. Em nossos dias, Lamartine Pereira da Costa, oficial da Marinha e tambm professor de Educao Fsica da referida corporao, e Inezil Penna Marinho, publicando o primeiro Capoeiragem/A arte de defesa pessoal braseira, reeditado em 1962 com o ttulo de Capoeira sem Mestre e o segundo Subsdios para o Estudo da Metodologia do Treinamento da Capoeiragem e mais adiante, Subsdios para a Histria cia Capoeiragem no Brasil,108 por sinal, os primeiros trabalhos que se publicam no gnero. Para a confeco do tra- balho que de carter puramente tcnico, isto , preocupando-se exclusivamente com o aprendizado dos golpes, Lamartine Pereira da Costa encontrou dificuldade no que se refere bibliografia sbre o assunto. Ento, segundo declara no prefcio, resolveu basear-se na tradio oral e no que pde arrancar de velhos capoeiras do Rio de Janeiro e da Bahia e o resultado que catalogou golpes, exceo dos tradicionais, totalmente desconhecidos dos mestres capoeiras da Bahia. H ainda outra coisa importante no desenvolvimento da capoeira

    que dentro das limitaes das regras de jgo, o capoeira tem liberdade de criar, na hora, golpes de ataque e de defesa conforme seja o caso, que nunca foram previstos e sem nome especfico e qe aps o jgo le prprio no se lembra mais do tipo de expediente que improvisou. No jgo da capoeira vai muito de pessoal.

    108 Lamartine Pereira da.Costa, Capoeiragem./A arte da defesa pessoal braseira. Rio. de Jnir, s/d. Lamartine Pereira da Costa, Capoeira sem Mestre, Edies de Ouro, Rio de Janeiro, 1962.~In5zi Penna Marinho, Subsdios para o Estudo da Metodologia do Treinamento da Capoeiragem, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1945. Inezil Penna Marinho, Subsidio para a Histria da Capoeiragem no Brasil, Rio de Janeiro, 1956.

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    Portanto, a minha tese a de que a capoeira foi inventada no Brasil, com uma srie de glpes e toques comuns a todos os que a praticam e que os seus prprios inventores e descendentes, preocupados com o se aperfeioamento, modi- ficaram-na com a introduo de novos toques e golpes, transformando uns, extinguindo outros, associando a isso o fator

    dles e tambm o desenvolvimento social e econmico da comunidade onde se pratica a capoeira. Assim, dos toques e golpes primeiros, de uso de todos os capoeiras, uma boa parte foi esquecida, permanecendo uma pequenssima e uma outra desapareceu em funo, como j disse, do desenvolvimento econmico e social. Como exemplo disso posso citar o toque de berimbau chamado aviso, ainda do conhecimento do capoeira Canjiqunha (Washington Bruno da Silva). Segundo Corre na transmisso oral dos antigos capoeiras, er comum ficar um tocador de berimbau, num otero, onde se divisava tda uma rea enorme, com a finalidade de vigiar a presena do senhor de engenho, capataz ou capito do mato, no encalo dles. Uma vez notada a aproximao dsses inimigos, era dado um aviso, no berimbau, atravs de um toque especial. Como se v, sse toque ainda do conhecimento de alguns capoeiras, desapareceu, em funo da organizao social que se tem hoje. Outro exemplo o toque cavalaria, conhecido de todos os capoeiras da Bahia. sse toque era usado para denunciar a presena do famigerado Esquadro de Cavalaria, que teve o auge de sua atuao contra os candombl ^ e os capoeiras, na administrao do temvel delegado de polcia Pedrito (Pedro de Azevedo Gordilho), no perodo de 1920 a 1927. Alcancei-o na minha fase de garto em total decadncia e hoje desaparecido por completo, restando apenas o toque cavalaria e sua funesta memria, e o delegado Pedrito que entrou para o folclore, nas cantigas de aviso da sua aproximao, em algumas cantigas de capoeira e candombl de caboclo.

    A capoeira foi inventada com a finalidade de divertimento, mas na realidade funcionava como faca de dois gumes. Ao lado do normal e do quotidiano, que era divertir, era luta tambm no momento oportuno. No havia Academias de Capoeira, nem ambiente fechado, premeditadamente preparado para se jogar capoeira. Antigamente havia capoeira, onde ha-

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  • via uma quitanda ou uma venda de cachaa, com um largo bem em frente, propcio ao jgo. A, aos domingos, feriados e dias santos, ou aps o trabalho se reuniam os capoeiras mais famosos, a tagarelarem, bebrem e jogarem capoeira. Contou-me Mestre Bimba, que a cachaa era a animao e os capoeiras, em pleno jgo, pediam-na aos donos das vendas, atravs de toque especial de berimbau, que les j conheciam. Afora isso, as maiores concentraes eram na Estrada da Liberdade, Pau Mido, Cidade de Palha, rua dos Capites, rua do Passo Taboo, Cais Dourado e no Cais do Prto. O Cais Dourado, no fim do sculo passado, se tornou famosssimo pelo excesso de desordens e crimes, que ali se praticavam, sobretudo por ser zona de meretrcio e para l convergirem, alm dos capoeiras, marinheiros, soldados de polcia e delinqentes. Os jornais da poca do conta de como a cidade vivia em sobressalto, pelos acontecimentos ali ocorridos. Assim que se l em 1880 que Por desordeiro foi prso ontem no Cais Dourado o africano liberto Antnio Manoel de Souza.109 Ainda no Cais Dourado mas desta vez um conflito de maiores propores, com a participao de marinheiros, foi assim descrito pelo Jornal de Notcias de 1880:

    Ontem s 9 horas da noite esteve a rua do Cais Dourado em alarma, originado de um grande conflito em que tomaram parte mais de quarenta indivduos de ambos os sexos, armados de facas e garrafas.

    De certo tempo para c tem aquela rua se transformado em um campo de lta incessante, onde, noite e em dias santificados, rola o pau, voa a garrafa como projtil e maneja-se a faca como argumento, ante o qual cedem a razo e o direito.

    Por mais de uma vez temos registrado fatos dignos da mais sria punio, de que so protagonistas marinheiros de m conduta e mulheres para quem a honra um mito, a virtude palavra sem significao; homens e mulhe- res que s procuram os prazeres sensuais, que tripudiam em tmo da garrafa, com as mais desenfreadas bacanles.

    109 Jornal de Notcias, Salvador 2/4/1880, pg. 1.

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    Se de cada vez que fssem presos, quer os marinheiros, q u er suas ninfas, assinassem trmo de bem viver, estamos certos, se corrigiro; mas sofrem apenas uma priso correcional de poucas horas e voltam para o teatro de suas faanhas, convencidos de que a polcia impotente para refre-los.

    Foi to srio o conflito de ontem que para ali correu quase todo o destacamento do Comrcio, que prendeu trinta e duas pessoas, saindo feridas com facadas duas praas.

    A muito custo conseguiu a fra acalmar os nimos, sendo necessrio que o comandante dela ameaasse mandar fazer fogo contra aquela desenfreada gente.

    As duas praas feridas foram medicadas em uma farmcia prxima, procedendo-se ao corpo de delito, e os presos remetidos para a casa de correo.

    Esperamos que o sr. chefe de polcia, em vista da gravidade do caso, obrigue sses desordeiros a assinar trmo de bem viver para serem punidos quando o infringirem, para ver se assim consegue-se desassombrar as pessoas morigeradas que ali residem.110

    Em tudo era notada a presena do capoeira, mui especialmente nas festas populares, onde at hoje comparecem, embora totalmente diferentes de outrora. Em tda festa de largo, profana, religiosa ou profano-religiosa, o capoeira estava sempre dando ar de sua graa. Suas festas mais preferidas eram as de Santa Brbara no mercado do mesmo nome, na Baixa dos Sapateiros, festa da Conceio, cujo local de preferncia era a Rampa do Mercado e adjacncias; festa da Boa Viagem, festa do Bonfim, festa da Ribeira, festa da Barra, to famosa e hoje totalmente extinta; do Rio Vermelho, Carnaval e muitas outras. No havia academias tuiisticamente organizadas. Os capoeiras, com alguns outros companheiros e discpulos rum avam para o local de festa, cm seus instrumentos musicais, inclusive armas para o momento Oportuno e l, com amigos outros que encontravam, faziam a roda e brincavam o tempu que queriam. ---------;____________________ _

    no Jornal de Noticias, Salvador, 9/9/1880, pg. 2.

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  • Um outro aspecto importante o que se refere capoeira em si e suas ligaes com o candombl. De incio, tenho a afirmar que entre a capoeira em si e o candombl existe uma independncia. O jgo da capoeira para ser executado no depende em nada do candombl, como ocorre com o folguedo carnavalesco chamado fox, que para ir s ruas h uma. srie

    cantigas de capoeira se falar em manainga, mandingtteiro, usar-se palavras e composies em lnguas bunda e nag e tambm a capoeira se iniciar com 0 que s capoeiristas chamam de mandinga, nada existe de religioso. O que existe vem por vias indiretas. o capoeira que omorix (filho de santo), como o caso do capoeira Amol (Arnol Conceio) que filho de santo do famoso babalorix (pai de santo) de Cachoeira, conhecido por Enock (Enock Cardoso dos Santos), o qual fz Oxssi (Od) em sua cabea, dando o oruk (nome) de Od Ajayi lcoleji (O caador de Ajayi no pode acordar). Roseno (Manoel Roseno de Santana) raspado e pintado de Omolu pela finada iylorix (me de santo) Ceclia do Bu- nuk (Ceclia Moreira de Brito); Caiara (Antnio da Conceio Morais) feito de Logun Ed por sua me de sangue, Adlia Maria da Conceio. Quando no isso, loy (dono de ttulo honorfico) de uma casa de candombl, parente de me ou pai de santo, ou foi desde criana criado em ambiente de casa de candombl.

    Diante disso, o capoeirista procede com referncia capoeira, como procederia normalmente com outra >coisa, procurando sempre se proteger, por sse caminho, que o que foi introduzido na sua formao. Ento se verifica, constantemente, um comportamento que tinha antigamente, conservando ainda at nossos dias. Assim, a todo instante um capoeira est queimando outro, isto , fazendo eb (feitio) para o seu companheiro, tendo em vista sempre a concorrncia e desavenas resultantes disso. Sem querer exagerar, populao da Bahia, na sua quase totalidade, quando no tem participao ativa nos ambientes de candombl, de vez em quando espia o que est acontecendo ou est por vir. Portanto, no de se admitir que os capoeiras sejam os nicos a starem de fora. Conheo uma srie de ca sos de eb, entre capoeiras, verificados nos dias presentes. O salo de exibies patroci

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    nadas pelo rgo oficial de turismo do municpio do Salvador, de h muito, vem sendo disputadssimo pelos capoeiras, em virtude de um nico fato que o scio-econmico. O capoeira ou as academias de capoeira se sentem promovidos em se exibirem diante de um presidente de repblica, embaixadores, ministros de Estado, nobreza, clero e burguesia, que pela Ba- -foia-passarry jnntapdo-aissa-asvantagens-econmicas que ti- ram no s do contrato que fazem com o referido rgo, para a exibio tambm do dinheiro que se coloca no cho, para ser apanhado cOm a bca, durante o jgo, em golpes espetaculares. Tambm a aludida entidade uma espcie de orculo, onde os que aqui chegam e desejam um grupo de capoeiras par filmagens ou exibies e lhe solicita a indicao. Como se v, da a disputa. J desde administraes anteriores, quem primeiro montou exibio no referido local foi o capoeira Canjiquinha (Washington Bruno da Silva), que de Iansan, sem contudo ser feito, mas descende de avs africanos, com tia e irm mes de santo e em plena atividade litrgica. Pois bem, uma vez montada a sua capoeira, com exibies com dias e horas marcados e tambm sendo o escolhido para as exibies oficiais, comeou ento a queima do ponto, o envio de ebs e a presena de Exu em tdas as exibies, de modo que hora do jgo havia sempre um aborrecimento. Pressentindo o que estava acontecendo, Canjiqui- nha corre sua irm Lili (C ar linda da Silva S) qUe me de santo e pede para olhar, o que foi feito atravs do jgo, que descortinou tudo, indicando o caminho a seguir, por meio de um eb. Com isso se inicia a troc de eb, pois o capoeira que deu como coisa, que eu me reservo declinar seu nome, queria derrub-lo a todo custo. Nesse nterim, estava no preo um outro capoeira, sse feito de santo" e com um irmo pai de santo, que no interior era famoso em transportar em 24 horas. Houve "troca de flhas e Canjiquinha se viu balanado, at que, quando menos esperava, foi-lhe mandado um Exu e fz com que tivesse um atrito srio com o ento diretor do rgo, quase que ambos fazendo usana da fra fsica. Veio a inimizade e a conseqente extino das exibies no local. O capoeira que iniciou a mandinga passou a ser o eleito, no ocupando o salo com as suas exibies porque tinha acade

  • mia no centro da cidade, mas os turistas lhe eram encaminhados e nas exibies oficiais a sua academia era a escolhida. Nesse espao, aquele que derrubou Canjiquinha veio pedir a preferncia do salo, o que foi negado. Com a mudana de administrao e os constantes ebs, Canjiquinha consegue derrubar o que lhe atravessou e volta a assumir o comando daquilo que plantara. Desta vez, contra seu gsto, mas por imposio do rgo, o qual seu inimigo usara para derrub-lo anteriormente. Agora tda cautela pouca, o menor descuido seria engolido. Assim, nas catacumbas da antiga igreja da S, onde funciona o turismo municipal, com o seu respectivo salo para exibies, e em cujo cho jazem os restos mortais dos que andaram pela Bahia nos idos de 1500 a nossos dias, prticas mstco-litrgicas de candombl foram e ainda so executadas, por um e outro capoeira para a derrubada um do outro e o vencedor ocupar o trono szinho. Cansei de observar, vrias vzes, as paredes do salo estarem, a ttulo de decorao, infestadas de ew peregun (flhas de peregun) cruzadas, espada de Ogun num canto, corredeira no outro, pemba, mui discretamente pulverizada, em lugar estratgico, isso sem se falar de pequenos alguidares contendo aca, charuto, farofa de azeite de dend, pipoca e cachaa, hbilmente escondidos nos canteiros do jardim, na parte de cima, logo na porta de entrada. Com isso comeou a perturbao. Exu era o senhor de tudo, estava bem alimentado para cumprir uma tarefa, , portanto tinha que execut-la. A coisa foi tomando corpo at que chegou ao auge, dessa vez vencendo Canjiquinha, derrubando o seu companheiro. Sua irm, me de santo, descobriu tdo e disse o que deveria fazer para dsmanchar o eb que o outro havia feito, porm Canjiquinha recusou, pois vinha h algum tempo trabalhando com Manoel Fiscal (Manoel Anastcio da Silva) que axogun (o que sacrifica animais para os deuses) e tambm capoeira, iniciado pelo famoso e temvel Besouro Cordo de Ouro, concluindo com Mstre Bimba. Relatou-me Manoel Fiscal, em presena de Canjiqui- nha, o que fz pra derrubar o seu adversrio, principalmente _na sede do rgo de turismo, onde havia as exibies. Independente de lavar escadaria da entrada, que d acesso ao salo, com gua de ab, forneceu utr quantidade a Canjiquinha, para salpicar no salo e arredores antes de comear

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    as exibies. Da em diante voltou a reinar a santa paz do Senhor. Informou-me tambm que iria cuidar de Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha), pois haviam queimado o velho e le estava passando uma dos diabos, inclusive o proprietrio do local, onde funciona a sede de sua academia, queria despej-lo. A academia de Mestre Pastinha funciona no Largo do Pelourinho, 19. uma casa antiga junto igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Prtos. Nesse velho casaro funcionou algum tempo uma escola de dana para ensinar a mas e rapazes, que no podiam ir s festinhas familiares, por no saberem danar. Chamava-se Escola de Danas Yara e se rivalizava com muitas outras que sempre proliferaram, desde os velhos tempos na Bahia, como a Escola de Danas Mululu, dirigida pelo Professor Mululu, nome de lngua bunda que quer dizer bisneto, como o conheciam. Funcionava num andar rua Dr. Seabra, 70, prxima esquina da rua 28 de Setembro, antiga rua do Tijolo. Havia tambm o Ginsio de Danas Modernas, dirigido pelo Professor Vicente Marques, sito rua do Saldanha, 3. H quem afirme que essas escolas de danas so reproduo de trs outras que existiram na Bahia, que foram a d Professor Bento Ribeiro, qu durou 52 anos; a do Professor Travessa, mais de 20 anos, e a do Professor Frederico Brito, 22 anos.lloa Aps funcionar a referida escola de danas, passou a ser a sede de uma srie de entidades ligadas direta e indiretamente ao candombl, como o Afox Filhos de Gandhi, a prpria capoeira de Mestre Pastinha, uma poro de entidades ali ensaiavam e algumas ainda ensaiam, para se exibirem no perodo de festas populares. a sede da Federao de Culto Afro-Brasileiro. Por fim, para se ter uma idia do afluxo mstico-litrgico do local, basta dizer que a ex-proprietria, Didi (Adelina Purificao Silva), no incio de 1961 foi raspada e pintada nesse local, por Ok (Maria de Olinda), atual me de santo do Il Iy Nass, ou como mais conhecido, Candombl do Engenho Velho e Casa Branca. Ali, com a presena de ebomins e de oloys do Ax Op Afonj, Ax Iy Mass, Il Oxumar e muitas outras casas de candombl, numa festa muito bela, Didi, ao som dos atah9qiip.s- pertencftntp.s ao Afox Filhos de Gndhi e no salo

    noa A Tarde, Salvador, 12/3/1935, pg. 2.

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  • onde inclusive Pastinha exibe capoeira, gritou, solenemente, ao pipocar de foguetes, palmas, chuvas de flres e gros de arroz, o om k de sua Oxun Oxun Dem.il (Oxun me deu!).O ot (pedra em que se assenta mlsticamente o deus dono da

    Eessoa) de seu santo veio para o Candombl do Engenho Veio, mas o Exu ficou assentado no quintal do prdio, sob o teto de uma casinhola de madeira. Pouco tempo depis de feita veio a falecer e h quem diga a bca pequena, que seu egun (alma) ronda a casa. Portanto, Manoel Fiscal muito tem que trabalhar para proteger a carcaa do velho Pastinha.

    De acontecimentos assim, conheo inmeros, mas que sses so o bastante para se mostrar de que modo so as relaes da capoeira com o candombl.

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    IV

    A Indumentria

    Falar em indumentria de capoeira em trmos de cres e trajes padronizados, identificando um determinado grupo, coisa recentssima, nascida do advento de um turismo culturalmente mal orientado, surgido na Bahia, h pouco, mas j bastante responsvel pela descaracterizo de muitas de nossas tradies.

    Sendo a capoeira, assim como o capoeira considerados coisas marginais, jamais poderia existir algo que fcilmente fsse identificado pela policia, que dormia e acordava no calcanhar dos capoeiras. O que havia era um enquadramento do capoeira no trajar de uma poca e num determinado instante de sua atividade, dentro de um agrupamento social. Fala-se que o capoeira usava uniforme branco, sendo cala de pan- talona, ou seja uma cala folgada com bca de sino cobrindo todo o calcanhar; camisa comprida, por cima das calas3 quase que semelhana de bad; chagrin e leno de esguio de sda, envolto no pescoo, cuja finalidade, segundo me falou Mestre Bimba, era evitar navalhada no pescoo, porque a navalha no corta sda pura, de que eram fabricados sses lenos importados. Essa indumentria no era privativa do capoeira, era um traje comum a todo negro que quisesse us-lo, fsse

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  • ou no capoeira. A ttulo de ilustrao posso citar Tio Joaquim (Joaquim Vieira), que foi um babalorix famoso na Bahia, alm de Wessa Obur, ttulo honorfico no Ax Op Afonj, segundo informao de sua neta Cantulina de Ayr (Cantuli- na Pacheco), usava sse mesmo traje, acrescido de chapu bico de sino e no entanto no me falou e no me consta fsse le capoeira. O leno de esguio de sda de que fala Mestre Bimba no era uso privativo do capoeira. Funcionava como enfeite para proteger o colarinho da camisa contra o suor e a poeira, o que ainda em nossos dias se v em festas de largo, quando o negro brinca, coloca um simples leno de algodo ou uma pequena toalha de rosto entre o pescoo e o colarinho da camisa. Como o capoeira foi um elemento marcante em nossa sociedade, a sua maneira de ser, em seus hbitos e costumes, embora na sua quase totalidade normal como de outro indivduo qualquer, ficou como caracterstica sua. Ao lado dsses detalhes, lyanoel Querino fala do uso de uma "argolinha de ouro na orelha, como insgnia de fra e valentia.111 Isso tambm no era privativo do capoeira. Conheo pessoas bem idosas que ainda alcanaram negros no mais usando argolas mas com a orelha esquerda furada e que no eram capoeiras. Alm do mais, Braz do Amaral se refere ao uso de uma argola minscula na orelha esquerda, como hbito dos negros de Angola, sem contudo especificar que eram capoeiras.113

    Havia grandes capoeiras entre Os ganhadores,entretanto a maneira do traje dsses negros era diferente, como se v em uma fotografia antiga, reproduzida por Manoel Querino,113 trajes sses que ainda vi em alguns que faziam ponto nq incio da Ladeira da Montanha. No Cais do Porto sempre estiveram os mais famosos capoeiras, mas a roupa usual, na sua atividade de trabalho, era cala comum, com bainha arregaada, ps descalos e camisa tipo bad, feita de saco de acar ou farinha do reino, e nas horas de folga do trabalho,

    111 Manoel Querino, A Bahia de Outrora, Prefcio e notas de Frede-~Tfcu Edelweisi, LivTaria Progresso Editra, -Bahia, 1955, pg. 73-

    112 Braz do Amaral, op. cit., pg. 120.113 Manoel Querino, A Raa Africana e os seus Costumes. Livraria Progresso Editra, Bahia, 1955, estampa XVIII.

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    assim se divertiam jogando sua capoeira. Mais tarde essas camisas foram, aos poucos, substitudas pelas camisas de meia.

    Aos domingos, feriados e dias santos, quando todos tinham folga, a aparncia do capoeira era outra. O negro sempre teve preferncia pelo traje branco, da despertar a ateno popular e ser batizado de a msca no leite, quando assim se vestia. No sei se houve nisso influncia do clima tropical, ou certas implicaes de ordem religiosa, como seja o caso de possuir um ttulo honorfico num: candombl, como ogan, por exemplo, e estar obrigado a comparecer com vestes totalmente brancas, ou participar de certas cerimnias, como axx (ritual fnebre), ciclo de festas de Oxal e outras que exigem essa indumentria, rigorosamente branca. O fato que o negro sempre foi amante de um temo branco, assim como sapato e camisa, usando-os preferencialmente nos dias j mencionados, quando se entregava de corpo e alma ao jgo da capoeira. Colocava o leno no pescoo para resguardar o colarinho e jogava com uma perfeio e habilidade tremendas, que no sujava, de modo algum, a domingueira.

    Em nossos dias, a coisa tem outra feio. Mestres capoeiras mantm um grupo de discpulos em tmo de si reunidos, formando agrupamentos chamados Academia> procurando distinguir uma das outras, por meio de camisas de meia coloridas, como se fssem verdadeiros times de futebol. Com uma preocupao eminentemente turstica, escolhem camisas com cres variadas e berrantes, de um mau gsto terrvel, com a finalidade de atrair ateno paxa o grupo, que mais parece um bloco carnavalesco do que um conjunto de mestre e discpulos de capoeira. sse afetamento, para efeito de exibio, para turistas vai desde a indumentria, comportamento pessoal e jgo. Para essa descaracterizao, tem concorrido ativamente a m orientao do rgo oficial de turismo, que alm de prestigiar tda uma espcie de aventura com o nome de Capoeira, auxilia de diversos modos, inclusive financiando essas camisas amacacadas. Lembro-me bem que de certa feita uma determinada Academi de capoeira, dessas improvisadas para se exibir em festas populares mediante subveno oficial ~an fornpfimrntn nnmknB f> sapafns cnm a preocupao de ser fcilmente identificada pelos turistas, as suas vedetes queriam, a todo custo, colocar nmero atrs das camisas que lhes

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  • iam ser concedidas. Como a coisa ficasse demasiado chocante, as referidas camisas foram entregues mediante compromisso de no se colocar os referidos nmeros, semelhana de camisa de jogador de futebol.

    No Rio de Janeiro, onde os capoeiras foram mais audazes e quase abalaram o ministrio de Deodoro, a indumentria a mais diversa possvel. Apesar de Melo Morais Ftlhcnlizer que les usavam calas largas semelhana dos da Bahia, palet desbotado, camisa de cr, gravata de manta e anel corredio, colte sem gola, botinas de bico estreito e revirado e chapu de fltro, apresenta fotografia de capoeira alfaiate e capanga eleitoral, com indumentria totalmente diversa da que descreve e diversa um do outro.114 Em nossos dias, no tenho dados precisos de como se vestem realmente os capoeiras nas academias do Rio de Janeiro.

    114 Melo Morais Filho, Festas e Tradies Populares. do Brasil. Reviso e notas de Lus da Cmara Cascudo, F. Briguiet & Cia., Editres, Rio de Janeiro, 3.a edio, 1946, pgs. 445, 447, 453.

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    V

    O Jgo da Capoeira

    Antigamente, o jgo da capoeira se fazia nos engenhos, no local de trabalho, nas horas vagas e nas ruas e praas pblicas, nos dias de festas, sempre em recinto aberto. Em nossos dias, no h mais engenho; no local de trabalho, como o Cas do Prto, no se jog mais-e nas ruas e praas pblicas do centro s em dias de festa. Joga-se capoeira em recinto fechado em Palcio do Govmo, nas academias, nos sales oficiais, nos clubes particulares e nas ruas e praas pblicas, onde

    1 se realizam festas populares. Espontneamente, independente de qualquer circunstncia, joga-se capoeira em ambiente aberto, na Estrada da Liberdade, Pemambus, Cosme de Farias, Itapu e outros bairros bem afastados do centro da cidade.

    Varia de academia para academia e de capoeirista para capoeirsta, no s o incio do jg como o seu decorrer. Depois de vrias e demoradas observaes, consegui captar uma maneira quase que geral entre os mais antigos e mais famosos capoeiras. Sentados ou de p, tocadores de berimbau, pandeiro e caxixi, formando um grupo; adiante capoeiras em outro agrupamento, seguido do cro e o pblico em volta, vm dois capoeiras, agacham-se em frente dos tocadores e escutam

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  • atentamente o hino da capoeira ou a ladainha como chamam outros, que a louvao dos feitos ou qualidades de capoei- ristas famosos ou um heri qualquer, como o caso da cantiga que se segue, narrando as bravuras do repentista Manoel Riacho:

    Riacho tava cantandoNa cidade de AuQuando apareceu um ngoComo a espece de rubTinha casaca de solaTinha cala de couro cruBeios grossos redrobadoDa grossura de um chineloTinha o lho incravadoOutro lho era amareloConvid RiachoPra can