regina schöpke [=] nós, os autômatos sociais

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8/13/2019 Regina Schöpke [=] Nós, os autômatos sociais http://slidepdf.com/reader/full/regina-schoepke-nos-os-automatos-sociais 1/7 Regina Schöpke Regina Schöpke Regina Schöpke Regina Schöpke N N ó ó s ,  , o o s a a u u t t ô ô m m a a t t o o s s s o o c c i i a a i i s s . . . . . .  o o u u  o o s s  f f u u n n d d a a m m e e n n t t o o s s  s s o o c c i i a a i i s s  d d a a  c c r r u u e e l l d d a a d d e e  

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Regina SchöpkeRegina SchöpkeRegina SchöpkeRegina Schöpke 

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Há quem diga que a miséria e a ignorância são as

causas mais profundas da violência e da crueldadehumanas, mas não é verdade. A miséria e a ignorância já

são, na verdade, consequências diretas da crueldade do

homem. É, portanto, exatamente o inverso do que se pensa

e propaga. Digamos que, sem dúvida alguma, a miséria e a

ignorância produzem ainda mais violência e crueldade,

mas, no fundo delas, está o desprezo pelas vidas, a

insensibilidade dos homens diante do sofrimento alheio,

está a frieza da nossa espécie. Afinal, quem seria capaz de

esbanjar milhões em futilidades ou viver exibindo seus

bens se lhe doesse de verdade o sofrimento de um outro

que passa fome e necessidade? Ou, mais do que isso, quem

exploraria os outros, sem dar a mínima para a sua

existência, senão seres que atingiram tal frieza e

insensibilidade? É assustador o quanto o homem pode ser

monstruoso, sem se dar conta disso.

É claro que não temos dúvida de que a humanidade

é capaz de grandes demonstrações de grandeza, deempatia, de solidariedade, de bondade e sensibilidade

(muitos são os exemplos que não nos permitem esquecer

que podemos ser seres magnânimos e superiores – e

superior aqui não quer dizer estar além de outros seres

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vivos; mas, sim, superior com relação a nós mesmos, com

relação ao que nos tornamos). Mas a questão é: porque,sendo dotados de todas estas potencialidades, vivemos

mergulhados em guerras, ódios, crueldades? A resposta é

simples, embora nem por isso a compreensão desta nossa

condição seja fácil. Nós fizemos um corte profundo com a

vida; nós nos enclausuramos, nos tornamos seres

solipsistas, nós criamos um mundo-próprio, que se põe em

guerra contra a natureza, o que, no fim das contas, é uma

guerra contra nós mesmos, uma guerra contra a natureza

que nos habita, contra a vida que é a mesma em todos nós,

do menor ao maior dos seres.

Apesar de todas as nossas virtuais possibilidades,

que seriam, de fato, inúmeras, as sociedades humanas

fundaram seus alicerces em valores contrários à vida, e é

por isso que quanto mais se clama pela vida, quanto mais a

buscamos desenfreadamente em diversões e alegrias

ilusórias, mais nos afastamos dela, porque, já na origem do

homem, do homem que vive em cultura, ou seja, já naorigem de nossa organização como homem, a vida em nós

começou a ser esmagada em nome da nossa proteção e

segurança. Tornamo-nos reféns de nosso próprio medo da

vida. É assim que toda a vida se tornou uma ameaça para

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nós. Nós perdemos, como já dissemos outras vezes (ao citar

Nietzsche) nossa saudável razão natural; uma razão quenos ensinava os limites de nossa espécie, que nos dotava de

freios e de uma lógica muito mais real, porque mais

concreta e vital, do que nossas abstratas ideias

megalômanas. Mas disso já falamos. O que não falamos,

com muita clareza, é que os fundamentos da crueldade são

sociais. Não existem seres perversos em si, que nasçam

perversos. Também não existem seres que nasçam bons, no

sentido religioso do termo. Mas é certo que trazemos em

nós virtualidades que podem e devem ser trabalhadas para

que possamos criar um campo social realmente satisfatório

para todos os homens e para os outros seres vivos

igualmente (que também têm o direito de viver em paz e

livres, mesmo porque a escravidão não é natural e muito

menos justificável por qualquer argumento racional e

 justo).

Isso quer dizer que, no fundo, é na base de nossa

constituição como seres sociais que se esconde a nossaprópria crueldade; é porque as sociedades têm feito dos

homens meios para que alguns poucos triunfem sobre a

maioria; meios para institucionalizar a exploração; meios

para que alguns usufruam de outros impiedosamente, que,

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por fim, são gerados os autômatos sociais, nós mesmos –

pelo menos enquanto não tomamos consciência destacegueira e não tomamos nas mãos nossas próprias vidas e

a reinventamos. E reinventar a própria vida não significa

fazer um corte com o social, não significa viver à parte do

mundo. Significa recriar novas bases para si mesmo, bases

mais verdadeiramente humanas e vitais, algo que sirva de

exemplo para o próprio campo social. Algo que ponha em

movimento exatamente o que está estagnado em nós: a

própria vida. O indivíduo é mais forte do que se pensa. É

nele que começa a mudança. É o exemplo de uns poucos

que fazem eco e transformam o social. Não foi assim com a

abolição da escravidão humana e com tantos outros

movimentos? Quando se age e não apenas se fala, se

imprime na carne o ideal. A justiça, por exemplo, deixa de

ser um ideal e se torna real quando um homem é capaz de

ser justo. São os exemplos que ensinam de verdade e não

as palavras.

Todo dia, afinal, escutamos barbaridades: criançasde três anos que são jogadas em rios, famílias assassinadas,

animais maltratados e barbarizados; quantas histórias de

crueldades ouvimos e nos mantemos alheios, como se fosse

normal. Mas o que nos faz acreditar que é normal esta

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psicopatia social, esta monstruosidade em um ser que é

capaz de amar, que é capaz de salvar vidas, que é capaz dese solidarizar com o sofrimento do outro? É fácil sermos

maniqueístas e apenas separar o joio do trigo. É fácil dizer

que existem os maus e os bons. Mas isto também não é

verdade. Ou, pelo menos, esconde o principal. Esconde que

os homens têm sido triturados desde o início, que as vidas

são destruídas já no berço, por nossos valores insensatos,

por uma crueldade e frieza que foram inscritas com ferro e

fogo no homem, mas que, ainda assim, estão longe de ser

algo natural ou inexorável. Precisamos enfrentar o fato de

que o social tem criado monstros, homens sem alma, sem

sentimentos, para servirem a ideais sujos de ganância,

exploração e servidão. A produção de homens dóceis,

como dizia Foucault, que não reagem, que vivem

mecanicamente, repetindo o que aprenderam como

máquinas sem pensamento, é a finalidade do tirano, como

 já dizia Espinosa. A produção de homens fracos, sem

vontade própria, que obedecem cegamente e que, portanto,matam também cegamente: assim tem caminhado a

humanidade... Mas quando deixaremos de ser autômatos e

nos tornaremos seres humanos de verdade?

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PS: Ofereço este texto em memória de todas as vidas

perdidas e destroçadas pela crueldade, e também emmemória da minha gatinha, que se despediu da vida com a

mesma coragem com que entrou nela.

Regina Schöpke