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Regina SchöpkeRegina SchöpkeRegina SchöpkeRegina Schöpke
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Há quem diga que a miséria e a ignorância são as
causas mais profundas da violência e da crueldadehumanas, mas não é verdade. A miséria e a ignorância já
são, na verdade, consequências diretas da crueldade do
homem. É, portanto, exatamente o inverso do que se pensa
e propaga. Digamos que, sem dúvida alguma, a miséria e a
ignorância produzem ainda mais violência e crueldade,
mas, no fundo delas, está o desprezo pelas vidas, a
insensibilidade dos homens diante do sofrimento alheio,
está a frieza da nossa espécie. Afinal, quem seria capaz de
esbanjar milhões em futilidades ou viver exibindo seus
bens se lhe doesse de verdade o sofrimento de um outro
que passa fome e necessidade? Ou, mais do que isso, quem
exploraria os outros, sem dar a mínima para a sua
existência, senão seres que atingiram tal frieza e
insensibilidade? É assustador o quanto o homem pode ser
monstruoso, sem se dar conta disso.
É claro que não temos dúvida de que a humanidade
é capaz de grandes demonstrações de grandeza, deempatia, de solidariedade, de bondade e sensibilidade
(muitos são os exemplos que não nos permitem esquecer
que podemos ser seres magnânimos e superiores – e
superior aqui não quer dizer estar além de outros seres
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vivos; mas, sim, superior com relação a nós mesmos, com
relação ao que nos tornamos). Mas a questão é: porque,sendo dotados de todas estas potencialidades, vivemos
mergulhados em guerras, ódios, crueldades? A resposta é
simples, embora nem por isso a compreensão desta nossa
condição seja fácil. Nós fizemos um corte profundo com a
vida; nós nos enclausuramos, nos tornamos seres
solipsistas, nós criamos um mundo-próprio, que se põe em
guerra contra a natureza, o que, no fim das contas, é uma
guerra contra nós mesmos, uma guerra contra a natureza
que nos habita, contra a vida que é a mesma em todos nós,
do menor ao maior dos seres.
Apesar de todas as nossas virtuais possibilidades,
que seriam, de fato, inúmeras, as sociedades humanas
fundaram seus alicerces em valores contrários à vida, e é
por isso que quanto mais se clama pela vida, quanto mais a
buscamos desenfreadamente em diversões e alegrias
ilusórias, mais nos afastamos dela, porque, já na origem do
homem, do homem que vive em cultura, ou seja, já naorigem de nossa organização como homem, a vida em nós
começou a ser esmagada em nome da nossa proteção e
segurança. Tornamo-nos reféns de nosso próprio medo da
vida. É assim que toda a vida se tornou uma ameaça para
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nós. Nós perdemos, como já dissemos outras vezes (ao citar
Nietzsche) nossa saudável razão natural; uma razão quenos ensinava os limites de nossa espécie, que nos dotava de
freios e de uma lógica muito mais real, porque mais
concreta e vital, do que nossas abstratas ideias
megalômanas. Mas disso já falamos. O que não falamos,
com muita clareza, é que os fundamentos da crueldade são
sociais. Não existem seres perversos em si, que nasçam
perversos. Também não existem seres que nasçam bons, no
sentido religioso do termo. Mas é certo que trazemos em
nós virtualidades que podem e devem ser trabalhadas para
que possamos criar um campo social realmente satisfatório
para todos os homens e para os outros seres vivos
igualmente (que também têm o direito de viver em paz e
livres, mesmo porque a escravidão não é natural e muito
menos justificável por qualquer argumento racional e
justo).
Isso quer dizer que, no fundo, é na base de nossa
constituição como seres sociais que se esconde a nossaprópria crueldade; é porque as sociedades têm feito dos
homens meios para que alguns poucos triunfem sobre a
maioria; meios para institucionalizar a exploração; meios
para que alguns usufruam de outros impiedosamente, que,
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por fim, são gerados os autômatos sociais, nós mesmos –
pelo menos enquanto não tomamos consciência destacegueira e não tomamos nas mãos nossas próprias vidas e
a reinventamos. E reinventar a própria vida não significa
fazer um corte com o social, não significa viver à parte do
mundo. Significa recriar novas bases para si mesmo, bases
mais verdadeiramente humanas e vitais, algo que sirva de
exemplo para o próprio campo social. Algo que ponha em
movimento exatamente o que está estagnado em nós: a
própria vida. O indivíduo é mais forte do que se pensa. É
nele que começa a mudança. É o exemplo de uns poucos
que fazem eco e transformam o social. Não foi assim com a
abolição da escravidão humana e com tantos outros
movimentos? Quando se age e não apenas se fala, se
imprime na carne o ideal. A justiça, por exemplo, deixa de
ser um ideal e se torna real quando um homem é capaz de
ser justo. São os exemplos que ensinam de verdade e não
as palavras.
Todo dia, afinal, escutamos barbaridades: criançasde três anos que são jogadas em rios, famílias assassinadas,
animais maltratados e barbarizados; quantas histórias de
crueldades ouvimos e nos mantemos alheios, como se fosse
normal. Mas o que nos faz acreditar que é normal esta
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psicopatia social, esta monstruosidade em um ser que é
capaz de amar, que é capaz de salvar vidas, que é capaz dese solidarizar com o sofrimento do outro? É fácil sermos
maniqueístas e apenas separar o joio do trigo. É fácil dizer
que existem os maus e os bons. Mas isto também não é
verdade. Ou, pelo menos, esconde o principal. Esconde que
os homens têm sido triturados desde o início, que as vidas
são destruídas já no berço, por nossos valores insensatos,
por uma crueldade e frieza que foram inscritas com ferro e
fogo no homem, mas que, ainda assim, estão longe de ser
algo natural ou inexorável. Precisamos enfrentar o fato de
que o social tem criado monstros, homens sem alma, sem
sentimentos, para servirem a ideais sujos de ganância,
exploração e servidão. A produção de homens dóceis,
como dizia Foucault, que não reagem, que vivem
mecanicamente, repetindo o que aprenderam como
máquinas sem pensamento, é a finalidade do tirano, como
já dizia Espinosa. A produção de homens fracos, sem
vontade própria, que obedecem cegamente e que, portanto,matam também cegamente: assim tem caminhado a
humanidade... Mas quando deixaremos de ser autômatos e
nos tornaremos seres humanos de verdade?
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PS: Ofereço este texto em memória de todas as vidas
perdidas e destroçadas pela crueldade, e também emmemória da minha gatinha, que se despediu da vida com a
mesma coragem com que entrou nela.
Regina Schöpke