regime diferenciado de contrataÇÕes e o poder...

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REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES E O PODER REGULAMENTAR DOS ESTADOS: UM OUTRO OLHAR SOBRE A CATEDRAL Thiago Cardoso Araújo * 1. Introdução: Excurso histórico; 2. Ainda e sempre a questão das normas gerais em licitações e contratos; 3. Regulamentação do RDC em âmbito local: veículo necessário e espaço para inovações; 4. Estudo de caso: habilitação no RDC em âmbito federal e local; 5. Conclusão 1. INTRODUÇÃO: EXCURSO HISTÓRICO Com a edição da Lei nº 8.666/93, normal geral do regime de licitações no Brasil, consolidou-se o arco final de um movimento, que, à míngua de melhor terminologia, pode ser denominado de “esvaziamento da discricionariedade” do gestor público quanto às contratações públicas. Editava-se, a fim de atender ao clamor público pela moralidade, em meio à conjuntura da CPI dos “anões do orçamento”, o mais radical instrumento legal nesta vertente 1 . Verdadeira “lei- manual de instruções”, eminentemente voltada para o controle dos procedimentos em detrimento dos resultados. Na mesma época, retroalimentando a tendência, constata-se também a ascensão institucional do Ministério Público e o crescimento das atribuições e poderes dos Tribunais de Contas 2 , iniciada com a promulgação da Constituição. * Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Público (UERJ). Doutorando em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ). 1 Fazendo a mesma correlação: “Jogo de perde-perde”, coluna de Tereza Cruvinel, Correio Braziliense, publicado em 28.04.2012. 2 O termo “ascensão institucional” é tomado de empréstimo de Luís Roberto Barroso, aplicado, pelo autor, ao Judiciário. Veja-se BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Disponível na internet em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2011/11/Direito-e- pol%C3%ADtica-no-Brasil-contempor%C3%A2neo_Lu%C3%ADs-Roberto-Barroso1.pdf , acesso em 20.08.2012. 1

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REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES E O PODER

REGULAMENTAR DOS ESTADOS: UM OUTRO OLHAR SOBRE A

CATEDRAL

Thiago Cardoso Araújo*

1. Introdução: Excurso histórico; 2. Ainda e sempre a questão das normas

gerais em licitações e contratos; 3. Regulamentação do RDC em âmbito local:

veículo necessário e espaço para inovações; 4. Estudo de caso: habilitação no

RDC em âmbito federal e local; 5. Conclusão

1. INTRODUÇÃO: EXCURSO HISTÓRICO

Com a edição da Lei nº 8.666/93, normal geral do regime de licitações no Brasil,

consolidou-se o arco final de um movimento, que, à míngua de melhor terminologia, pode ser

denominado de “esvaziamento da discricionariedade” do gestor público quanto às contratações

públicas.

Editava-se, a fim de atender ao clamor público pela moralidade, em meio à conjuntura

da CPI dos “anões do orçamento”, o mais radical instrumento legal nesta vertente1. Verdadeira “lei-

manual de instruções”, eminentemente voltada para o controle dos procedimentos em detrimento dos

resultados. Na mesma época, retroalimentando a tendência, constata-se também a ascensão

institucional do Ministério Público e o crescimento das atribuições e poderes dos Tribunais de

Contas2, iniciada com a promulgação da Constituição.

* Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Público (UERJ). Doutorando em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ). 1 Fazendo a mesma correlação: “Jogo de perde-perde”, coluna de Tereza Cruvinel, Correio Braziliense, publicado em 28.04.2012. 2O termo “ascensão institucional” é tomado de empréstimo de Luís Roberto Barroso, aplicado, pelo autor, ao Judiciário. Veja-se BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Disponível na internet em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2011/11/Direito-e-pol%C3%ADtica-no-Brasil-contempor%C3%A2neo_Lu%C3%ADs-Roberto-Barroso1.pdf, acesso em 20.08.2012.

1

Nada obstante ter sido a Lei nº 8.666/93 editada com a esperança de funcionar como

um obstáculo à malversação de recursos e um instrumento de promoção da eficiência das

contratações públicas3, exatos 20 anos depois, a realidade mostra que essa esperança não se

concretizou na prática4.

Pior: fala-se mesmo em regime de licitações “corruptocêntrico”5.

A partir deste quadro, verifica-se que não foram poucas as tentativas de mitigar as

exigências do Estatuto Geral de Licitações. Ao longo dos anos, constata-se a utilização de duas

estratégias: (i) a ampliação do rol das hipóteses de dispensa de licitação6; e (ii) a edição, em paralelo,

de novos diplomas normativos específicos, que afastam a aplicação da Lei n° 8.666/93 para algumas

situações particulares.

Em relação à segunda técnica, é mesmo legítimo falar-se, nos moldes de expressão

adotada no processo de reforma do sistema civilístico brasileiro, na criação de microssistemas de

licitações adotados para atender a especificidades de cada marco regulatório em diversos setores de

infraestrutura7.

E, além destas, a regulamentação, sempre polêmica8, do parágrafo único do art. 175

da CRFB/88, que fundamentou a edição do Decreto n° 2.475/98 e da Portaria Normativa n° 935/09

do Ministério da Defesa, que criaram o regime de licitação e contratação, respectivamente, no âmbito

da Petrobras e da Infraero.

Além desses regimes excepcionais, foi criada uma nova modalidade de licitação,

denominada pregão, introduzida no ordenamento brasileiro por meio da Medida Provisória 2.026, de

3Fazendo-se a análise da literatura específica à época, é possível chegar à ilação de que, naquele quadro, os estudiosos associavam a corrupção como causa principal da ineficiência das contratações públicas. 4RIBEIRO, Romiro. A lenta evolução da gestão de obras públicas no Brasil, in E-Legis, Brasília, nº 8, p. 82-103, p. 93. 5MOTTA, Alexandre Ribeiro. O Combate ao Desperdício no Gasto Público: Uma reflexão baseada na comparação entre os sistemas de compra privado, público federal norte-americano e brasileiro. Tese de Mestrado do Instituto de Economia da UNICAMP. Campinas. 2010. Mimeografado. 6Apenas com propósito exemplificativo, percebe-se que os incisos XXI, XXIII, XXIV, XXV, XXIX e XXX, sem prejuízo de outros foram acrescidos por leis posteriores à Lei n° 8.666/93. 7No caso, arrola-se a Lei Geral de Telecomunicações; procedimento específico aplicável para as parcerias público-privadas; rito particular aplicável às concessões; licitações reguladas pela agência nacional de petróleo. Respectivamente: art. 22 da Lei 9.472/97, art. 1º da Lei 11.079/04; art. 14 da Lei 8.987/95; art. 7º da Lei 9.478/97 8Até hoje o tema não foi pacificado perante os órgãos de controle, como ilustra o acórdão do TCU n° 008.914, que, de modo explícito, determina que “a Petrobras deve aplicar os ditames da Lei nº 8.666/93 em seus procedimentos licitatórios, (...) especialmente tendo em mente que esta Corte decidiu pela inconstitucionalidade do Decreto 2.745/98 e do art. 67 da Lei nº 9.478/97, tornando-se, pois, obrigatória a utilização da Lei das Licitações como norte para seus negócios que envolvam a contratação de terceiros”.

2

2000, válida inicialmente apenas para a União Federal e, depois, ampliada para todos os entes

federativos com a edição da Lei. 10.520/02. Esta ampliação foi motivada pelo êxito e pela rápida

aceitação do pregão, já que, neste ínterim, não foram poucos os Estados e Municípios que, mesmo

sob o risco de incorrerem em vício de inconstitucionalidade, valeram-se desta modalidade licitatória,

por meio da edição de diplomas próprios ou mesmo por aplicação direta das normas postas pela

União.

Considerando toda essa disciplina normativa elencada acima, não é exagero dizer que

existe, na verdade, um retorno do pêndulo, vislumbrando-se um novo movimento.

Movimento este de fuga da Lei nº 8.666/93.

Esse pêndulo, segundo André Janjácomo Rosilho, ilustra um embate entre “modelos

legais minimalistas” versus “modelos legais maximalistas” das contratações públicas. Nesta ótica,

segundo o referido autor, existem duas perguntas a serem formuladas:

Como deve ser o modelo legal das licitações públicas? De que forma

as regras jurídicas podem contribuir para a construção de um bom sistema de contratações públicas? A estas perguntas, os maximalistas responderiam afirmando (...) que a lei deveria ser minuciosa, detalhista e abrangente, devendo ser capaz de cercar a discricionariedade da administração pública. Os minimalistas, por outro lado, responderiam afirmando que um bom modelo legal seria aquele que fosse capaz de (...) gravar suas diretrizes fundamentais. (...) As decisões pontuais sobre as contratações públicas deveriam ser tomadas noutro âmbito, que não o legal9.

O movimento de fuga do modelo rígido e formalista trazido pela Lei nº 8.666/93

parece ter chegado ao seu ápice com a edição da Medida Provisória n.º 527, que instituiu o Regime

Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), convertida posteriormente na Lei n° 12.462, de 05 de

agosto de 2011.

Desde antes de ser positivado10, o RDC chamara a atenção dos publicistas. Não eram

poucos os motivos para isso.

9ROSILHO, André Janjácomo. Op. Cit. p. 84. 10Veja-se que a edição da MP n° 527/11 não foi a primeira tentativa de criação do RDC. O regime também fora tratado pela MP 489/10. Mais tarde, ainda naquele ano, o assunto voltou aos debates legislativos por meio da inclusão do tema na MP 503/10. Por fim, em 2011, artigos que disciplinavam o RDC foram introduzidos na MP 521/11, que dispunha sobre as atividades do médico-residente e prorrogava o pagamento da Gratificação de Representação de Gabinete e da Gratificação Temporária para os servidores ou empregados requisitados pela Advocacia-Geral da União.

3

A uma, pela conjuntura política de maciço investimento público em infraestrutura

subjacente, animada pela proximidade da Copa do Mundo, em 2014, e Olimpíadas, em 2016, na qual

o RDC foi visto como o meio jurídico de extinguir os “gargalos” no setor.

A duas, por consolidar institutos e soluções jurídicas já positivadas de modo esparso

pela legislação ou ainda correspondentes à prática jurisprudencial, muitas delas contrárias à Lei n°

8.666/93.

Um terceiro motivo merece especial atenção. Muito embora inicialmente dirigido às

obras necessárias à Copa do Mundo e às Olimpíadas (aí incluídas as obras e serviços destinadas a

aeroportos próximos das sedes destes eventos como já exposto acima), em realidade, o RDC parece

ser um “balão de ensaio”11 para a reforma da Lei Geral de Licitações.

Esta afirmação pode ser corroborada por dois argumentos.

O primeiro deles é que, desde sua redação original, a Lei n° 12.462/2011 contém

dispositivos que claramente não se aplicam às contratações necessárias para a realização dos eventos

de grande porte que se aproximam, a exemplo do critério de julgamento de maior oferta, típico de

alienações de bens públicos dominicais, e da previsão do contrato de performance, vocacionado para

estruturas já prontas.

O segundo é que, mesmo antes da conclusão das primeiras obras licitadas pelo RDC,

suas hipóteses de cabimento foram consideravelmente ampliadas, passando a contemplar, dentre

outras, ações integrantes do PAC, obras e serviços de engenharia no âmbito do SUS, em rol cada vez

crescente.

Assim, valendo-se da linguagem hiperbólica compartilhada entre aqueles que, de um

lado se ufanavam da novidade e, de outro, aqueles que, no espectro oposto, viam no RDC um

retrocesso no que se refere à observância da moralidade pública, pode-se afirmar que o advento do

regime diferenciado de contratações provocou uma mudança de paradigma12.

11A expressão é Benjamin Zymler, presidente do TCU, in http://licitacao.uol.com.br/notdescricao.asp?cod=4340. Acesso em 25.08.2012. 12Sobre o termo, remete-se para KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas, 7a ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. Para uma crítica à banalização do termo, especialmente no Direito, MENDONÇA, José Vicente Santos de.

4

Nestes momentos, comuns em tempos de adoção de novos códigos ou revisão de leis

de grande importância no dia-a-dia dos operadores do Direito, junto com os primeiros livros sobre o

tema, é comum a emergência de vigorosos embates ideológicos sobre a pertinência das inovações e o

papel legado às leis já existentes, especialmente quando estas condicionam toda uma ótica sobre o

tema13.

Com o RDC, não foi diferente. Fazendo uma interpretação do quadro, mostra-se

profundamente acertada a constatação feita por Vanice Regina Lírio do Valle, no sentido de que,

nestas situações, polarizam-se duas posturas sobre os avanços no tema:

“(...) a comunidade dos operadores do direito pode desempenhar um

relevante papel no sucesso – ou fracasso – da referida norma jurídica, assumindo uma posição construtiva, que conduza a sua interpretação ao melhor resultado possível para a Administração Pública e aqueles a quem ela serve; ou pode assumir uma posição defensiva, arriscando a se por como verdadeiro fator de bloqueio às providências que os compromissos internacionais assumidos pelo país estão a reclamar14.”

Essa tendência defensiva, que via nos institutos trazidos pela nova lei um reprovável

escape à concepção de um procedimento previamente desenhado pelo Legislativo e imposto ao

gestor - juízo este, no mais das vezes, feito com olhos acostumados à realidade da Lei no 8.666/93 -,

fomentou o ajuizamento de duas ADIs perante o STF15 , em que se pleiteia a total declaração de

inconstitucionalidade do RDC16.

Neoconstitucionalismo e valores jurídicos: uma proposta de substituição de paradigma. 2005. 187 f. Dissertação (Mestrado em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 13Temos como exemplo de ampla discussão política e acadêmica os novos anteprojetos do Código de Processo Civil, PL 8.046/2010 e o do Código Comercial, PL 1.572/2011. 14Se é legítimo valer-se dos constructos feitos por Thomas Kuhn, poder-se-ia até mesmo, falar-se em momentos de “crise da ciência normal”. Para uma aplicação dos conceitos do físico ao Direito, leia-se AYMORÉ, Débora. Direito e Paradigmas científicos: uma discussão epistemológica do Direito pela Perspectiva de Thomas Kuhn. Disponível na internet em http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/Anais/Debora%20Aymore_A%20Crise%20do%20Positivismo%20Juridico.pdf. Acesso em 25.08.2012. 15ADI 4645 e 4655, ajuizada a primeira pelos partidos políticos PSDB, DEM e PPS; e a segunda pelo Procurador Geral da República. 16Percebe-se, especialmente após a leitura da petição inicial da ADI 4655, ajuizada pelo Procurador-Geral da República, que o parâmetro de constitucionalidade parece repousar no afastamento dos ditames da Lei Geral de Licitações. Oportuno, então, a lembrança do fenômeno da interpretação retrospectiva, criada por Barbosa Moreira e lembrada por Luís Roberto Barroso, por meio da qual “põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de interpretação... em que o olhar do intérprete dirige-se antes ao passado do que ao presente, e a imagem que ele capta é menos a representação da realidade que uma sombra fantasmagórica” (Apud BARROSO, Luis

5

Não foi esse o único golpe sofrido pelo novo regime. Também os primeiros editais

que fizeram a opção expressa pela adoção do RDC foram impugnados pelo Tribunal de Contas da

União17 e pelo Ministério Público18. Muito embora nenhum ponto vital do RDC tenha sido atingido

pelos órgãos de controle referidos, dois anos após a edição da Lei no 12.462/11, não se pode dizer

que o RDC, até o momento, já deu provas, valendo-se do campo semântico abordado, de ser a

“engenharia jurídica” a possibilitar maior celeridade e eficiência19 nas contratações públicas.

Aliás, em reforço dessa conclusão, atente-se que, até o momento, o STF não iniciou o

julgamento das referidas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, elevando a insegurança jurídica em

torno do novo regime.

Tais fatos parecem não sensibilizar o governo federal, que avança numa marcha de

esvaziamento da Lei no 8.666/93, tida por inadequada para atender ao ritmo atual de investimento

público20 e à urgência na entrega de obras de infraestrutura, dada a proximidade dos eventos

mundiais a serem recepcionados no país.

Assim, sem que houvesse real comprovação empírica das vantagens do RDC21, nota-

se um certo efeito expansivo quanto à possibilidade de sua aplicação. Comprovando a assertiva, tem-

se a Lei no 12.688/2012, que passou a admitir, a partir da criação de um novo inciso IV ao art. 4o da

Lei no 12.462/11, a utilização do regime para as “ações integrantes do Programa de Aceleração do

Roberto. Dez anos da Constituição de 1988 (foi bom para você também?). In: RTDP, 20/39, 1998.). De fato, nesta situação, o objetivo mostra-se um tanto distinto. Em vez de fazer com que o RDC “se amoldasse” à Lei no 8.666/93, preferiu-se retirá-la do ordenamento jurídico. 17Ver Acórdão TCU nº 1.036/2012, Plenário, Rel. Min. Valmir Campelo, DOU de 10.05.2012, Informativo nº 104, período de 16 a 20.04.2012 e Acórdão TCU nº 1.324/2012, Plenário, Rel. Min. Valmir Campelo, DOU de 06.06.2012, Informativo nº 108, período de 28.05 a 1º.06.2012. Nos dois acórdão, a questão debatida versou sobre a necessidade de que a obra contratada por meio do RDC seja terminada até a Copa do Mundo de 2014. 18O Ministério Público Federal ajuizou a Ação Civil Pública nº 11413.89.2012.4.01.3600 na qual impugnava a construção do Veículo Leve sobre Trilhos em Cuiabá. Naquela ação, também a adoção do RDC foi questionada. Tal como se deu no âmbito do TCU, aventou-se a ilegalidade da escolha uma vez que dificilmente a obra seria concluída até a Copa do Mundo em 2014, na ótica do Parquet. 19 A observação deve ser tomada cum grano salis. Em relação à celeridade, a experiência de DNIT e INFRAERO, decorrido mais de um ano da aplicação reiterada do RDC, apontam pela concretização do objetivo. No caso do DNIT, aponta-se que o prazo médio das licitações (comparando-se o RDC com a modalidade concorrência trazida pela Lei n° 8.666/93) caiu de 285 dias para 89. No âmbito da INFRAERO, a redução foi da ordem de 160 para 75 dias. Ver Revista Convergência Digital, “Governo diz que RDC já reduziu prazo de licitações”. Disponível em http://convergenciadigital.uol.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=33477&sid=10#.Uh-2W5JJP4s, acesso em 22.08.2013. 20Comunicado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) do Governo Federal, nº 126 de 29 de dezembro de 2011: “a taxa de investimento público alcançou o maior patamar do período pós-real no ano de 2010”. 21 Presume-se que as primeiras entregas das obras realizadas sob o regime de contratação integrada permitirão, em comparação com os modelos contratuais utilizados anteriormente, constituirão o real “teste”do êxito do RDC.

6

Crescimento”. Uma vez que essas ações são indicadas por meio de Decreto (por todos, veja-se, o

Decreto no 7.745, de 05 de junho de 2012, que discrimina ações do PAC), aventa-se que, muito em

breve, a Lei no 8.666/93 deixará de receber o epíteto de Lei Geral de Licitações22.

Além disso, as Leis no 12.722/2012 e 12.745/2012, ao acrescentarem o parágrafo

terceiro e o inciso V ao art. 4o da Lei no 12.462/2011, tornaram o RDC aplicável para obras e

serviços de engenharia no âmbito dos sistemas públicos de ensino e do SUS. Posteriormente, a Lei no

12.833/2013, por meio da inclusão do art. 63-A na Lei no 12.462/2011, estendeu o cabimento do

RDC para as contratações de obras, serviços de engenharia e técnicos especializados que visem à

modernização, construção, ampliação ou reforma de aeródromos públicos.

Por fim, a nova Lei dos Portos, Lei 12.815/13, trouxe a possibilidade de aplicação

subsidiária do RDC, além da previsão específica da utilização do RDC nas contratações e serviços no

âmbito do Programa Nacional de Dragagem Portuária e Hidroviária II (art. 54, §4º). Ademais, o

Decreto 8.033/13, que veio regulamentá-la, previu em seu artigo 5º, a aplicação do RDC nas

licitações para concessões e para o arrendamento de bem público destinado à atividade portuária.

A não mais poder, resta cada vez mais claro o intuito do governo federal, na expressão

utilizada por Vera Monteiro, de “sangrar a 8.66623.”

Diante dessa tendência de ampliação das hipóteses de utilização do RDC, mostra-se

pertinente o abandono de uma postura entrincheirada, de resistência com cores ideológicas ao RDC.

Leva-se a sério o cânone interpretativo da presunção de constitucionalidade das leis, em desprestígio

nos dias atuais24. Propugna-se a adoção de uma lógica construtiva, parafraseando Vanice do Valle,

tomando-se o novo regime como objeto de estudo numa análise desapaixonada e sem parti pris sobre

o tema.

O presente trabalho não tem por objetivo abordar de modo crítico-descritivo cada

instituto “novidadeiro” contemplado no RDC. O momento não é este. Primeiramente é necessário

estudar a possibilidade de introdução de seus institutos nos ordenamentos jurídicos estaduais, de

modo que possam surtir eficácia apta a produzir resultados. Assim sendo, uma análise concreta se

22 O tema será melhor explorado posteriormente. 23 A expressão foi utilizada em palestra proferida na ENAP, em Brasília, no dia 26.10.2012. 24Postura partilhada por Carlos Ari Sundfeld. In: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: Malheiros, 2012.

7

dará somente com o tempo e com a efetiva aplicação de seus dispositivos normativos pelo

administrador público.

Como o sobredito momento cinge-se ao estudo de sua regulamentação, preferimos

adotar “um outro olhar sobre a catedral”25, passando ao largo de reproduzir os comentários de

obras26 que analisam os pormenores dos institutos do RDC, optando por ressaltar, deste modo, a

mudança de visão trazida pela lei e ainda a possibilidade de edição de um decreto estadual ou

municipal sobre o tema.

Desta feita, a proposta do artigo será evidenciar que não somente os Estados e

Municípios podem disciplinar o RDC, como também, o que será melhor explicado, poderão afastar-

se, em certa medida, do modelo regulamentador federal, a fim de ampliar as potencialidades

previstas na Lei 12.462/2011 com o fito de maximizar a eficiência dos novos instrumentos ali

previstos.

2. AINDA E SEMPRE A QUESTÃO DAS NORMAS GERAIS EM LICITAÇÕES E

CONTRATOS

Inovações legislativas no campo das licitações e contratações públicas sempre trazem

à tona o tema da repartição de competências entre os três níveis da Federação e, a reboque, a sempre

difícil questão envolvendo a distinção entre normas gerais e específicas.

Ao contrário de outras experiências de organização federativa ao redor do mundo, o

Brasil não se constituiu a partir da unificação de parcialidades regionais. A experiência brasileira,

muito pelo contrário, é a da construção da unidade nacional mediante decisiva concentração política

no Rio de Janeiro e progressiva supressão das fontes regionais concorrentes – obra dos constituintes

25Expressão metafórica utilizada pelo jurista norte-americano Guido Calabresi inspirado na série de quadros do pintor impressionista Monet explorando diversos parâmetros de luzes e matizes revelados pela Catedral de Rouen na França. Calabresi salienta que, na análise de conseqüências econômicas de processos judiciais complexos, essa é apenas uma das mais variadas formas de se enxergar o problema sem descartar as outras. In: CALABRESI, Guido; MELAMED, Douglas. Property Rules, Liability Rules, and Inalienability: One view of the Cathedral. Harvard Law Review, April 1972, Volume 85, Number 6. P. 1089-1128. 26Dentre outras obras: RIBEIRO, Mauricio Portugal. PRADO, Lucas Navarro. PINTO JUNIOR, Mario Engler. Regime Diferenciado de Contratação. Licitação de Infraestrutura para Copa do Mundo e Olimpíadas. São Paulo: Atlas, 2010. E também: JUSTEN FILHO, Marçal. PEREIRA, Cesar Guimarães. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas. Comentários à Lei 12.462 e ao Decreto nº 7.581. Minas Gerais: Fórum. 2011; JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários ao RDC. São Paulo: Dialética, 2013; ZYMLER, Benjamin; DIOS, Laureano Canabarro. REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO. Editora Fórum: Minas Gerais. 2013.

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de 1823 e do gênio político de José Bonifácio de Andrada e Silva27 que, certamente, diante do

exemplo da América espanhola, anteviu o risco da dissolução da unidade territorial brasileira.

A Carta de 1891 rompe com o modelo até então adotado de Estado Unitário,

concedendo uma autonomia até bastante considerável para os Estados-Membros. Contudo, a partir da

Constituição de 1934, o que se observa é um retorno do pêndulo em direção a um modelo de

federalismo muito mais centralizador, com grande concentração de competências administrativas e

legislativas nas mãos da União Federal, tendência seguida por todos os textos constitucionais que se

sucederam ao longo dos anos.

Diferentemente, a Constituição de 1988 procurou romper com essa dinâmica. A idéia

foi valorizar as instâncias regionais e, inclusive, locais, como forma de descentralizar o exercício do

poder e permitir uma maior proximidade entre a cidadania e as respectivas esferas governamentais.

As principais medidas adotadas nesse sentido foram: (i) a emergência dos municípios como entes

federativos com personalidade jurídica própria; (ii) a repartição de competências legislativas e

administrativas; e (iii) a repartição de receitas tributárias.

Uma das áreas nas quais o constituinte anteviu a possibilidade de operar essa

descentralização de competências foi justamente na de licitações e contratações públicas. Nesse

sentido, o art. 22, XXVII da Carta de 1988 dispõe o seguinte:

“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(...)

XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as

modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da

União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI,

e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173,

§ 1°, III; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”

A técnica utilizada pelo constituinte é pouco usual e, em certo sentido, parece ser

errática: o art. 22 da Constituição de 1988 trata, ao contrário do que faz crer o inciso XXVII, da

competência legislativa privativa da União, de modo que o tema das licitações e contratações

27SOUSA, Octávio Tarquínio de. História dos Fundadores do Império. Rio de Janeiro: José Olympio. 1972.

9

públicas, a comportar a concorrência legislativa dos vários entes federativos, poderia ser tratado no

art. 24 que, este sim, regulamenta tais tipos de matéria.

Entretanto, há uma explicação para que tal prerrogativa – a de formular normas gerais

em licitações, ainda que passíveis de complementação por outros entes federativos – ali se inserisse.

Indica o §3o do art. 24 da CRFB/88 que, à míngua de legislação federal, terão os Estados

competência legislativa plena. Assim sendo, disciplinar que a edição de parâmetros gerais compete

exclusivamente à União, muito mais do que reforçar a prerrogativa deste ente federativo, serviu para

eliminar qualquer possibilidade de que cada Estado pudesse adotar um modelo próprio de legislação

sobre licitações.

De qualquer modo, a menção assim feita não causou maiores prejuízos. Muito embora

o dispositivo citado deixe clara uma certa feição “imperialista”, ao mesmo tempo impõe limites à

competência legislativa da União, no que diz respeito às licitações e contratações públicas, que

deverá cingir-se apenas, para fins de observância obrigatória dos demais entes da Federação, à edição

de normas gerais. A questão fica ainda mais clara se levarmos em conta a dicção dos §§ 1º e 2º, do

art. 24 da Carta de 88 que, consoante se vê, confirma a interpretação do art. 22, XXVII:

“Art. 24 (...)

(...)

§ 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União

limitar-se-á a estabelecer normas gerais.

§ 2º - A competência da União para legislar sobre normas gerais não

exclui a competência suplementar dos Estados.”

Neste ponto, mostra-se importante mencionar relevante posicionamento de Marçal

Justen Filho acerca da reserva de competência local para editar normas específicas. Segundo o autor,

a competência legislativa sobre o tema das licitações e contratos administrativos não é privativa da

União e, com argumentação proficiente, o doutrinador encontra guarida para sua tese no próprio art.

22: caso a competência para disciplinar o tema em tela fosse exclusiva da União, o inciso XXVII não

faria alusão a “normas gerais” e teria adotado cláusulas similares às previstas para o Direito Civil,

10

Penal, Comercial, constantes do inciso I, as quais permitem ao ente central dispor sobre todos os

caracteres dos referidos ramos do Direito28.

Nada obstante o posicionamento exposto, parece que o constituinte claramente deixou

a questão da repartição da competência legislativa, no que toca ao tema das licitações e contratações

públicas, equacionada da seguinte forma: a competência da União nessa matéria, de observância

cogente por todos os demais entes federativos, limita-se à edição de normas gerais; os Estados e

Municípios, por sua vez, possuem competência legislativa para suplementar as normas gerais

editadas pela União, de acordo com as especificidades regionais ou locais de cada ente29.

Vera Monteiro, partilhando do entendimento, chega a afirmar que o ordenamento

reconhece um restrito campo de competência federal em matéria de licitações quanto à edição de

normas gerais e, ademais, menciona que o princípio federativo enaltece as competências legislativas

estaduais e municipais. Mais que frisar o caráter “centralista”, dá ênfase ao potencial legiferante dos

outros entes federativos. Para isso, ancora-se no art. 18 da Constituição, que consagra a autonomia

administrativa de cada ente federativo, e no fato de as licitações serem matéria ínsita à organização

da Administração Pública e, portanto, própria de cada pessoa política30.

A princípio, a construção teórica seria suficiente para solucionar a questão. Contudo,

de nada adianta a mecânica desenvolvida pelo constituinte neste ponto se não for possível esclarecer,

com um mínimo de segurança, o que são normas gerais. É disso que se passa a tratar a seguir.

Como visto acima, a questão das normas gerais não é bizantina – sem que se saiba o

que são normas gerais toda a sistemática da competência concorrente cai por terra, pois esta depende

quase que exclusivamente da definição desse termo. Sem o esclarecimento do significado da

expressão “normas gerais” não é possível, de acordo com desenho constitucional, definir o campo

em que cada entidade federativa atua.

Na verdade, são dois os motivos centrais que justificam o estudo desse problema: (i)

evitar os conflitos de competência; e (ii) criar parâmetros que sirvam para a supressão do

ordenamento jurídico o vício da inconstitucionalidade nesses casos.

28JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Editora Dialética: São Paulo. 2011. P. 16. 29A Constituição vai mais além ainda, garantindo aos Estados e Municípios competência legislativa plena na falta da norma geral da União. É o que determina o § 3º, do art. 24: “§ 3º - Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades”. E, advindo a lei federal de normas gerais, esta suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrária. Palavras do § 4º do mesmo artigo: “A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”. 30SCARPINELLA, Vera Monteiro. Licitação na modalidade pregão. Malheiros: São Paulo. 2003. p. 68

11

Como ensina Ferraz Júnior, a abrangência do conteúdo de normas gerais federais deve

ser definida mediante análise do seu conteúdo finalístico, com vistas a identificar o “interesse

prevalecente na organização federativa” brasileira, que é voltado a um federalismo do tipo

cooperativo, exigindo a colaboração dos entes federativos, conferindo menor importância à

separação e independência recíproca entre eles.

Nesse sentido, “toda matéria que extravase o interesse circunscrito de uma unidade

(estadual, em face da União; municipal, em face do Estado) ou porque o interesse é comum (todos

tem o mesmo interesse), ou porque envolve tipologias, conceituações que, se particularizadas num

âmbito autônomo, engendrariam conflitos ou dificuldades no intercâmbio nacional, constitui matéria

de norma geral”31.

A distinção entre normas gerais e especiais, no contexto das competências

concorrentes, não possui um referencial semântico definido aprioristicamente, sendo certo que os

respectivos conflitos só podem ser solucionados “caso a caso”, mediante aplicação dos princípios

hermenêuticos e constitucionais32.

Sem embargo da sofisticação do raciocínio, a solução não se mostra apta a estabelecer

um procedimento, seja por meio da criação de um procedimento, tampouco pelo fornecimento de

balizas para a aferição do que seria uma norma geral ou especial.

Nesta conjuntura, para que melhor se supere a dificuldade apontada, é imprescindível

que se destaque a distinção entre normas de natureza nacional e normas de caráter federal.

As normas nacionais são aquelas editadas pela União Federal no plano de sua

competência para estabelecer normas gerais sobre assuntos de competência legislativa concorrente.

Dessa forma, devem ser seguidas por todos os entes quando da elaboração de suas próprias normas

específicas.

Em artigo sobre o tema, Diogo de Figueiredo Moreira Neto propõe o seguinte

conceito final de normas gerais:

“Chegamos, assim, em síntese, a que normas gerais são declarações

principiológicas que cabe à União editar, no uso de sua competência concorrente

31FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Normas gerais e competência concorrente: uma exegese do artigo 24 da Constituição Federal. Revista Trimestral de Direito Público. 1994, nº 7, p.19.. 32KRELL, Andreas Joachim. A constitucionalidade da regulamentação da Lei de Consórcios Públicos (nº 11.107/05) por decreto presidencial. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro: nº 5, janeiro a março de 2007.

12

limitada, restrita ao estabelecimento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos, que deverão ser respeitadas pelos Estados-Membros na feitura das suas respectivas legislações, através de normas específicas e particularizantes que as detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e imediatamente, às relações e situações concretas a que se destinam, em seus respectivos âmbitos políticos”.33(grifos nossos)

Por outro lado, as normas federais também emanam da União, mas no âmbito de sua

competência para editar normas específicas, aplicáveis apenas à própria União Federal.

Nas conclusões do já citado artigo de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o ilustre

professor diz o seguinte acerca da diferença exegética entre normas gerais e especiais:

“1º - a União está limitada à edição de diretrizes nacionais que se

dirigem precipuamente aos legisladores estaduais, para os quais são cogentes, direta e imediatamente eficazes; 2º - as normas específicas baixadas pela União, juntamente com as normas gerais ou os aspectos específicos por acaso nestas contidas, não têm aplicação aos Estados-Membros, considerando-se normas particularizantes federais, dirigidas ao Governo Federal”. (grifos nossos)

Em atenção às elucubrações dos doutrinadores supramencionados, resta claro que a principal

característica das normas nacionais é a generalidade de suas disposições, ao passo que as normas federais são percebidas

devido à sua especialidade, vinculando tão-somente a União.

Em sede de licitações e contratações administrativas, a definição das normas gerais

passa pela identificação de uma regra estruturante denominada “núcleo de certeza positiva”, a qual,

em prestígio à segurança e uniformidade, deve vincular obrigatoriamente todos os entes federados no

que tange aos seguintes aspectos34:

a) Requisitos mínimos necessários e indispensáveis à validade da contratação

administrativa;

b) Hipóteses de obrigatoriedade e de não obrigatoriedade de licitação;

c) Requisitos de participação em licitação;

d) Modalidades de licitação;

e) Tipos de licitação;

f) Regime jurídico da contratação administrativa.

33MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competência Concorrente Limitada – o problema da conceituação das normas gerais. Revista de Informação Legislativa. Brasília: ano 25, nº 100, outubro a dezembro de 1988 34JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Editora Dialética: São Paulo. 2011. P. 16.

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No que tange especificamente ao Regime Diferenciado de Contratações, Márcio

Cammarosano, Augusto Neves dal Pozzo e Rafael Valim, em obra que trata dos aspectos

fundamentais do RDC, problematizam a questão nos seguintes termos:

“A Lei Federal nº 12.462 se qualifica como norma geral ou norma

especial? Está em harmonia, pois, com o art. 22, XXVII, da Constituição da República? Para responder a esse vital questionamento há uma premissa a ser solvida, qual seja: lei geral e lei especial são expressões sinônimas de norma geral e norma especial? (...) Segundo o magistério de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello se uma lei se volve a todos os indivíduos é uma lei geral; se, pelo contrário tem âmbito restrito a determinadas situações, qualifica-se como lei especial. Aquele professor qualificava a lei pelo seu conteúdo; lei em sentido material, portanto, se revela como um plexo de normas jurídicas.

(...) Como se qualifica a Lei Federal nº 12.462 no que se refere ao Regime Diferenciado de Contratações?É lei especial e norma especial”. (grifos nossos)35

Pelo exposto, fica evidente que tanto a Lei Federal nº 12.462/2011 quanto o Decreto Federal nº

7.581/2011 se caracterizam por trazer um aspecto dúplice, contendo normas nacionais e normas federais, ou seja, normas

gerais e normas específicas, de modo que as primeiras se estendem a todos os entes, enquanto que as segundas

restringem-se à União Federal.

Assim sendo, fica clara existência de espaço para regulamentação por parte dos demais entes da

Federação quando da edição de suas normas específicas sobre o RDC, tendo em vista que são obrigados a seguir apenas

as normas de caráter geral da Lei Federal nº 12.462/2011 e do Decreto Federal nº 7.581/2011.

A existência de normas de caráter geral não só na Lei Federal nº 12.462/20 como também no Decreto

Federal nº 7.581/2011 pode ser, também, explicada por um outro prisma. É que, principalmente após a chamada

“Reforma Administrativa”, introduzida pela EC 19/98, e o advento da chamada “Administração Pública Consensual”,

diversas matérias vêm sendo retiradas do domínio exclusivo do Poder Legislativo, cuja morosidade não se coaduna com

as necessidades cada vez mais urgentes e complexas das relações socioeconômicas.

Verifica-se, assim, uma migração do domaine de la loi para o domaine de

l’ordenance, isto é, uma mudança do epicentro de emanação de normas jurídicas da lei em sentido

estrito para o Direito como um todo, comportando também os princípios, tanto os expressamente

positivados quanto os implícitos, e os atos infralegais, editados sempre em conformidade à

Constituição.

Nesta seara, na medida em que o poder estatal deve responder de forma mais eficaz

aos avanços técnicos e científicos, justifica-se uma maior margem de decisão e atuação do Poder

35CAMMAROSANO, Márcio. DAL POZZO, Augusto Neves. VALIM, Rafael. Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC. Lei nº 12.462/11; Decreto nº 7.581/2011. Aspectos Fundamentais. Fórum: Minas Gerais. p. 23/26

14

Executivo: diversas questões são repassadas ao poder regulamentar, que também possui legitimidade

para veicular normas de caráter geral, não se voltando apenas ao cumprimento por aqueles

pertencentes a sua própria esfera organizacional.

Em sintonia com o entendimento de que decretos federais podem conter normas

gerais, isto é, extensivas a entes não integrantes da Administração Pública federal, veja-se a lição de

Andreas Joachim Krell:

Na verdade, não é só a lei que inova: “na maioria das hipóteses, não

se pode executar sem que se crie algo de novo, algo que acrescente”, o que significa

que o decreto regulamentar pode, em certa medida, também ampliar e completar a

lei “segundo o seu espírito e o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos que a própria

lei, expressa ou implicitamente, outorga à esfera regulamentar” (...) Na feição de um

regulamento de execução haverá sempre- ressalvando-se as hipóteses de reserva de

lei formal (absoluta) – maiores ou menores espaços para uma atuação criativa,

sendo que este pode até conter “norma, desde que não contrarie a ordem legal

vigente e seja necessária à plena execução do diploma regulamentado ”

(...) Como regulamentos estatais gerais e abstratos dos órgãos de

Governo e da Administração, eles representam – igualmente às leis formais – fontes

jurídicas, das quais emana o Direito universalmente vinculativo, tanto para o

cidadão quanto para o administrador e o juiz. (grifos nossos)36

Repelidos todos os questionamentos acerca da possibilidade de a União editar normas gerais em

licitações e contratos administrativos e, mais do que isso, definido os limites e formas das normas nacionais, resta

investigar até onde e como poderão os outros entes federativos normatizar o tema.

3. REGULAMENTAÇÃO DO RDC EM ÂMBITO LOCAL: VEÍCULO NECESSÁRIO E

ESPAÇO PARA INOVAÇÕES

Examinada a possibilidade de regulamentação própria, resta agora saber como, diante

da existência da referida Lei Federal nº 12.462/2011, os Estados e Municípios poderiam veicular sua

autonomia político-administrativa com relação ao regime diferenciado de contratações públicas.

36 KRELL, Andreas Joachim. A constitucionalidade da regulamentação da lei de consórcios públicos(Lei nº 11.107/05) por decreto presidencial – Revista de Direito de Estado n.5. pp. 387, 388, 390

15

Será necessário que tal se dê por meio de lei em sentido formal? Ou bastaria a edição

de um decreto do Governador ou do Prefeito? Num primeiro momento, poder-se-ia pensar na edição

de lei nesse sentido, ou seja, tratando da regulamentação, em âmbito local, do RDC.

Embora possível, necessário considerar os precedentes em sentido contrário. Quando

da edição da Lei Federal nº 10.520/2002, a chamada “Lei Geral do Pregão”, diversos entes da

Federação optaram por não editar leis que a regulamentassem, expedindo diretamente decretos com

vistas a disciplinar as questões locais atinentes à nova modalidade de licitação.

Esta prática não é inédita na doutrina. De acordo com Vera Monteiro37, “Estados,

Distrito Federal e Municípios podem pretender estabelecer outros direitos e obrigações, além dos

previstos na Lei 10.520, para a modalidade pregão”. Prosseguindo, defende a autora que a iniciativa

não implica a necessidade de edição de lei formal. Assim:

“O chefe do Executivo pode editar um decreto regulamentador para

a Administração, assim como também podem fazê-lo os chefes do Judiciário e

Legislativo, através de normativa própria. Cada um dos Poderes pode editar norma

complementadora para os fins de adequar a norma geral às competências locais,

sendo que o maior mérito de decretos e resoluções neste sentido é a uniformidade de

condutas por eles produzida.”

Poder-se-ia objetar que a edição de decreto, no âmbito da União, regulamentando a

norma geral do pregão – ou qualquer outra – impediria o exercício, pelo Estado, de qualquer tipo de

competência legislativa nessa seara.

Contudo, não é isso o que ocorre. Como já sustentado no item anterior, tanto a Lei

Federal nº 12.462/2011 quanto o Decreto Federal nº 7.581/2011 veiculam normas de caráter geral,

aplicáveis a todos os entes da Federação; e de caráter específico, aplicáveis apenas à União38.

Desse modo, se os diplomas supracitados apresentam normas gerais sobre o RDC,

nada impede que os Estados e Municípios, no exercício de sua autonomia político-administrativa,

37SCARPINELLA, Vera Monteiro. Licitação na modalidade pregão. Malheiros: São Paulo. 2003. p. 176 38 Aqui, discordamos da posição defendida por Vera Monteiro de que os decretos editados pela União somente podem conter normas de caráter específico, aplicáveis tão-somente a ela própria. Segundo o pensamento da autora, os decretos federais regulamentadores da norma geral do pregão “têm incidência obrigatória apenas para os órgãos da Administração direta e indireta da órbita federal”, uma vez que, para Monteiro, o que é geral em matéria de licitações e contratações públicas decorre da competência legislativa da União, e não regulamentar.

16

editem normas de caráter específico, segundo seu talante, considerando as especificidades advindas

de seu ambiente.

Mais do que isso: as normas específicas editadas pelos entes da Federação visam a

regulamentar as normas de caráter geral editadas pela União no exercício de sua competência

privativa para estabelecer normas gerais em matéria de licitações e contratos administrativos. Não se

trata, assim, de regulamentação local de uma lei federal, mas, sim, de uma lei nacional, aplicável

imediata e diretamente a todos os entes.

Nada obsta, portanto, que esta disciplina em âmbito estadual e municipal seja feita

diretamente por meio de decreto, sem necessidade de edição de lei local prévia, tendo em vista que,

nesse caso, o decreto regulamentará normas de caráter nacional e nelas encontrará seu fundamento

imediato de validade, de modo que não seria a hipótese de decreto autônomo.

Saliente-se, porém, que, como o Decreto Federal nº 7.581/2011 é deveras minudente,

há espaço, na linha do exposto acima, para que Estados e Municípios editem normas de conteúdo

similar (mera reprodução)39, e também, normas que vão contra os comandos federais específicos do

Decreto Federal – entretanto, jamais normas que contrariem os comandos gerais nem da Lei nº

12.462/2011 nem do decreto em tela.

Em verdade, a regulamentação poderá ser o campo de modelagem normativa para o

estabelecimento de “melhores práticas” em matéria de contratações públicas, ao lado da

padronização de instrumentos convocatórios e das minutas de contratos, o que permite a consecução

de resultados pautados no princípio da eficiência, atentando-se para as peculiaridades de cada

unidade federativa.

Nesse sentido, vale destacar que a Lei nº 12.462/2011, nada dispôs sobre a

necessidade de audiência pública, o que já era exigido pelo artigo 39 da Lei 8.666/93 nos casos de

licitações com valor superior a R$15.000.000,00. No atual momento, no auge da administração

39 Veja-se que a própria redação de determinados dispositivos do Decreto Federal apontam, mais que uma possibilidade, uma real necessidade de regulamentação em sentido diverso. Por todos, veja-se a redação do artigo 109 do Decreto 7.581/2011: Art. 109. O Catálogo Eletrônico de Padronização é o sistema informatizado destinado à padronização de bens, serviços e obras a serem adquiridos ou contratados pela administração pública. Parágrafo único. O Catálogo Eletrônico de Padronização será gerenciado de forma centralizada pela Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Ora, não parece ser possível que órgão de Ministério Federal faça as vezes de gestor central para todos os entes federativos, devendo ser o dispositivo colmatado para atender às peculiaridades locais.

17

consensual, participativa, mostra-se recomendável incluir nos regulamentos locais uma previsão para

a audiência pública obrigatória em licitações acima de determinado valor40.

Todavia, o que a praxe tem mostrado é que a ampla maioria dos entes da Federação

prefere, em uma linha de raciocínio conservadora, replicar, tanto quanto seja possível, o modelo

federal, apenas adequando-o pontualmente à organização administrativa estadual e municipal. Isso é

feito no intuito de se evitar questionamentos futuros pelos órgãos de controle já no início da

regulamentação do RDC em âmbito estadual – o que, evidentemente, é algo indesejável –

considerando ser o direito deferente aos modelos existentes, como confirma a prática dogmática

calcada numa espécie de redundância mitigada41.

Além disso, há de se ter em mente que muitas licitações realizadas por Estados e

Municípios envolvem o repasse de verbas federais, inclusive em sintonia com o modelo de

federalismo cooperativo adotado pela Constituição de 1988. Assim, revela-se também um exercício

de prudência a atitude de replicar, na maior medida possível, o modelo federal, a fim de evitar

atrasos nos projetos em virtude de possíveis desentendimentos com os órgãos de controle federais,

não só os externos, como o Ministério Público e o Tribunal de Contas, mas também os internos,

como a Controladoria Geral da União e o Ministério responsável pelo repasse da verba.

Um exemplo concreto que ilustra a deferência dos Estados e Municípios em relação

aos ditames estabelecidos pela União: constata-se a dependência, por parte destes entes, de recursos

federais para a implementação das obras do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – uma

das hipóteses legais autorizativas para a aplicação do RDC. Uma possível hipótese explicativa do

fenômeno remonta ao próprio modelo federativo adotado pela Constituição, sobretudo no que tange

à repartição de competências tributárias, acaba por concentrar muitas receitas em poder da União e,

por conseguinte, em muitos casos os entes federativos não possuem recursos próprios para

concretizar suas políticas públicas.

Dessa forma, a fim de viabilizarem a consecução das obras de infraestrutura do PAC,

Estados e Municípios acabam por celebrar instrumentos com vistas ao repasse de verbas federais

para a execução de projetos de maior vulto, mas estas avenças impõem como condição à

40 Especialmente a se levar em consideração o caráter velado de progressivo abandono da Lei no 8.666/93 pelo RDC. De maneira reversa, caso haja o apego às hipóteses iniciais de utilização do RDC – o atendimento aos eventos mega-esportivos, a implementação da praxe participativa resta em xeque, uma vez que, forçosamente, dilate-se o procedimento, demandando-se maior prazo para o transcurso da licitação. 41MENDONÇA, José Vicente Santos de. A Responsabilidade do Parecerista Público em Quatro Standards. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro. 2009. Vol. 64. p.179

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transferência dos recursos a observância das normas federais em matéria de licitações e contratações

públicas – veja-se, por exemplo, o art.16 do Decreto Federal nº 7.983/201342, que indica parâmetros

para a realização de orçamentos de referência em obras públicas.

Nesse contexto, apesar de juridicamente possível que Estados e Municípios inovem ao

regulamentar as normas gerais editadas pela União na matéria do Regime Diferenciado de

Contratações, a preocupação – até bastante pertinente – com eventuais questionamentos por parte das

instâncias de controle faz com que não haja muito incentivo para que esta autonomia seja exercitada

na prática. Em muitos casos, como visto acima, a própria União tolhe os demais entes federativos de

exercer seu espaço para inovação, exigindo a aplicação de normas federais em matéria de licitações e

contratações públicas para que seja possível o repasse de recursos do governo central para a

execução de grandes projetos.

Exemplo disso é o artigo 42, §4º, III do Decreto Federal nº 7.983/2013, dispositivo

que limita as alterações contratuais na empreitada por preço global ou na empreitada integral para

dez por cento do valor total do contrato43, enquanto nas execuções por preço unitário o limite é de

25% (art. 65, §2º, da Lei nº 8.666/93). Em tese, os regulamentos estaduais e municipais podem não

aplicar tal limitação aos aditivos na empreitada global, uma vez que tal regulamento não exorbitaria

o conteúdo da lei, que nada dispõe sobre esses limites. Contudo, na prática, essa dependência dos

recursos da União limita a autonomia dos entes federativos de dispor de forma diversa à prevista no

Decreto Federal.

A título ilustrativo, na seara das parceiras público-privadas, o Município de

Ariquemes, Estado de Rondônia, inovou ao regulamentar o instituto em âmbito local, editando lei

que prevê nova modalidade de PPP para a execução de obras públicas. Não se insere no escopo deste

42 Art. 16. Para a realização de transferências a Estados, Distrito Federal e Municípios, os órgãos e entidades da administração pública federal somente poderão celebrar convênios, contratos de repasse, termos de compromisso ou instrumentos congêneres que contenham cláusula que obrigue o beneficiário ao cumprimento das normas deste Decreto nas licitações que realizar para a contratação de obras ou serviços de engenharia com os recursos transferidos. § 1o A comprovação do cumprimento do disposto no caput será realizada mediante declaração do representante legal do órgão ou entidade responsável pela licitação, que deverá ser encaminhada ao órgão ou entidade concedente após a homologação da licitação. § 2o A documentação de que trata o § 1o será encaminhada à instituição financeira mandatária, quando houver. 43 Art. 42. Nas licitações de obras e serviços de engenharia, a economicidade da proposta será aferida com base nos custos globais e unitários. § 4o No caso de adoção do regime de empreitada por preço global ou de empreitada integral, serão observadas as seguintes condições: III - as alterações contratuais sob alegação de falhas ou omissões em qualquer das peças, orçamentos, plantas, especificações, memoriais ou estudos técnicos preliminares do projeto básico não poderão ultrapassar, no seu conjunto, dez por cento do valor total do contrato.

19

trabalho analisar se a novidade pode ou não ser considerada constitucional, mas é certo que o

Procurador Geral da República ajuizou a ADPF nº 282 (ainda pendente de julgamento) em face desta

lei local ao argumento de que o Município teria extrapolado sua competência legislativa em matéria

de contratações públicas44.

Especificamente no que se refere ao RDC, o Estado de Santa Catarina valeu-se de sua

competência legislativa para estender a aplicação deste regime às licitações realizadas no âmbito do

Programa Pacto por Santa Catarina, que visa a estimular o desenvolvimento local. Até onde pudemos

verificar, a recente Lei Estadual nº 16.020, de 06 de junho de 2013, ainda não foi objeto de

impugnações, mas a experiência do Município de Ariquemes em matéria de PPPs parece sugerir que

a lei catarinense não estará imune a críticas, especialmente se o citado Pacto contemplar objetos que

não sejam coincidentes com o PAC ou com as outra hipóteses de aplicação do RDC previstas na lei

federal45.

Já o Estado do Rio de Janeiro, além de ter regulamentado o RDC apenas por meio do

Decreto Estadual nº 43.937/2012, também inovou nesta disciplina – ainda que em menor escala do

que Santa Catarina –, ao estabelecer que as minutas de editais e contratos serão elaboradas pela

Procuradoria Geral do Estado – por força de dicção da Lei Complementar Estadual no 15/1980, e não

pela comissão de licitação, como prevê o art. 7º, I do Decreto Federal nº 7.581/2011.

4. ESTUDO DE CASO: HABILITAÇÃO NO RDC EM ÂMBITO FEDERAL E LOCAL

A disciplina da habilitação, trazida no artigo 14 da Lei Federal, envolve algumas

pequenas inovações, já que remete ao disposto nos artigos 27 a 33 da Lei nº 8.666/1993 apenas no

que couber. O objetivo do legislador foi trazer maior estabilidade e segurança nesta fase, visto que a

remissão expressa à Lei Geral de Licitações permite a aplicação da jurisprudência consolidada ao

44 Para maiores informações, vide: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=243122. Acesso em 28.07.2013. 45 O que, de fato, parece ter acontecido, especialmente se as obras na área de segurança não tiverem sido contempladas pelo PAC. Veja-se: justifica-se a pressa. Há que providenciar atalhos no labirinto burocrático, que emperra a execução de obras de vital necessidade e máxima urgência para a sociedade. O secretário estadual do Planejamento, que também é o coordenador do Pacto, Murilo Flores, informa que as obras referentes à segurança pública, principalmente em presídios, terão prioridade para a contratação pelo RDC. (...) Anote-se que o RDC federal não abrange área da segurança, daí a necessidade da lei estadual. O pacto por SC e o Regime Diferenciado. Diário Catarinense, 02.05.2013 Disponível em http://www.clippingexpress.com.br/ce2/?a=noticia&nv=IHjR7Yz1xMiOaVSWoxvdOg&printPreview=1, acesso em 25.08.2013.

20

novo regime; no entanto, tudo indica que o emprego da expressão “no que couber” comprova a

possibilidade de um regramento mais rígido por meio dos regulamentos estaduais e municipais.

Não é o objetivo do presente trabalho esgotar os requisitos de habilitação no RDC,

mas apenas demonstrar a existência desse espaço de conformação à realidade local no âmbito do

Regime Diferenciado de Contratação e investigar quais seriam os seus limites.

O estabelecimento de requisitos gravosos de habilitação é considerado restritivo da

competitividade, já que alguns agentes do mercado estariam, de antemão, impossibilitados de efetuar

determinada contratação com a Administração. Essa exclusão será considerada lícita quando

necessária para afastar aqueles sem condições de cumprir adequadamente o objeto a ser contratado.

Será ilícita quando exacerbada ou quando for demasiadamente permissiva. Por isso, o inciso XXI do

artigo 37 da CF, dispõe que somente serão permitidas as “exigências de qualificação técnica e

econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.

Com isso, a delimitação dos requisitos de habilitação “estritamente necessários” é

uma das tarefas mais árduas dos responsáveis pelas contratações públicas. O conhecimento do

mercado, o conhecimento empírico e o acompanhamento jurisprudencial são essenciais para

encontrar tais limites46.

A elevação do nível de exigências dos requisitos de habilitação reduz a insegurança da

Administração relativamente à idoneidade do sujeito contratado. Ou seja, quanto mais rígidos os

requisitos de habilitação, menor o risco de selecionar um licitante inidôneo. Por outro lado, o

aumento do nível de exigência dos requisitos de habilitação produz a redução do número de

possíveis participantes.

Com base nisso, é necessário encontrar um ponto de equilíbrio entre a amplitude da

competição e garantia da idoneidade do licitante, sendo inválidos os requisitos que violarem a

exigência de equilíbrio47.

Para determinar esse ponto de equilíbrio, cabe a utilização da técnica da

proporcionalidade. Primeiro, deve-se verificar a adequação do requisito adotado, ou seja, estabelecer

as necessidades a serem atingidas, identificando a viabilidade de seu atingimento por meio dos

requisitos escolhidos. Posteriormente, deve-se verificar a necessidade da exigência, sendo inválida a

46ZYMLER, Benjamin; DIOS, Laureano Canabarro. REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO. Editora Fórum: Minas Gerais. 2013. 47JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários ao RDC. Editora Dialética: São Paulo. 2013. P. 268.

21

solução, se o resultado pretendido puder ser atingido mediante uma solução menos rigorosa. E por

último, cabe verificar se o rigor da exigência satisfaz tanto a realização dos interesses da

Administração quanto a promoção da competição da forma mais ampla possível.

E nunca é demais salientar que tal análise integra o gênero “contexto-dependente”, ou

seja, variará de acordo com as condições existentes no caso concreto.

No ponto, é de se destacar que uma das novidades – talvez a principal - trazida pela

Lei Federal nº 12.462/2011 é a contratação integrada, que permite a combinação de prestações de

natureza distinta, abrangendo, ao mesmo tempo, a realização de obra pública ou a prestação de

serviços de engenharia, com a confecção dos respectivos projetos básico e executivo.

Com isso, a lei viabiliza que a Administração Pública inicie a licitação com estudos

que possuam detalhamento menor que o projeto básico, permitindo que a mesma empresa que

elabore o projeto básico execute a obra.

Ao transferir a obrigação de realizar o projeto básico para o concessionário, este

também assume o risco de operação e manutenção da infraestrutura. Se o concessionário subinvestir

na obra, terá que arcar com as consequências, assumindo os riscos de novos investimentos e da

operação e manutenção para atingir os indicadores de serviço estipulados no contrato48.

Até mesmo porque, no caso, o recurso aos pleitos para que a Administração Pública

majore a remuneração da obra, a serem, se aceitos, formalizados por meio de termos aditivos,

encontram-se taxativamente limitados às hipóteses pelo art. 9o , §4o da Lei no 12.462/201149

Em face dessa maior atribuição de riscos ao contratado, a Administração Pública deve

se cercar de maiores garantias, uma vez que um dos objetivos intrínsecos às licitações é atribuir o

objeto ao particular capaz de executar a obra da forma mais satisfatória possível, sendo uma robusta

situação-econômica um indício para garantir essa aptidão.

48RIBEIRO, Mauricio Portugal. PRADO, Lucas Navarro. PINTO JUNIOR, Mario Engler. Regime Diferenciado de Contratação. Licitação de Infraestrutura para Copa do Mundo e Olimpíadas. São Paulo: Atlas, 2011. P. 45. 49 Art. 9o (...): § 4o Nas hipóteses em que for adotada a contratação integrada, é vedada a celebração de termos aditivos aos contratos firmados, exceto nos seguintes casos: I - para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro decorrente de caso fortuito ou força maior; e II - por necessidade de alteração do projeto ou das especificações para melhor adequação técnica aos objetivos da contratação, a pedido da administração pública, desde que não decorrentes de erros ou omissões por parte do contratado, observados os limites previstos no § 1o do art. 65 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993.

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O supracitado artigo 14 da Lei Federal do RDC, como dito, remete, no que couber, à

disciplina dos artigos 27 a 33 da Lei nº 8.666. O artigo 31 da Lei Geral de Licitações estabelece

limites quanto à qualificação econômico-financeira do licitante no momento da habilitação.

A jurisprudência do TCU é firme no sentido de exigir o estrito cumprimento da

documentação necessária à demonstração da qualificação econômico-financeira dos licitantes (art.31

lei 8.666/93). Neste sentido, encontra-se uma miríade de julgados que vedam: a cumulação de

garantias e exigência de capital social mínimo (o que violaria os §§2º e 3º); a exigência de capital

social mínimo ou patrimônio líquido superior a 10% do valor da contratação; o estabelecimento de

limite máximo para o grau de endividamento sem prévia justificação nos autos e em desacordo com a

realidade do mercado; a exigência de índices contábeis sem justificativa, em violação ao §5º, etc.

Entretanto, a contratação integrada possui uma série de peculiaridades em relação às

contratações regidas pela Lei nº 8.666/1993, na medida em que o mesmo particular será responsável

pela elaboração do projeto básico e pela execução da obra.

Mais que isso: a Lei no 8.666/93 disciplina modalidades contratuais nas quais a

Administração assume maior risco pelo projeto, especialmente a se perpetuar uma mentalidade

própria da “doutrina tradicional do equilíbrio econômico-financeiro50”. Nestes casos, há alguma

racionalidade em se “exigir menos” do contratado – é que, na eventualidade de modificações que

incrementem o preço da obra, poderá a Administração arcar com tais despesas adicionais. Pelos

motivos expostos, não se está diante das mesmas características na contratação integrada.

Regime de execução este que certamente possui vantagens, tendo em vista que gera

fortes incentivos para que o contratado elabore projetos que sejam o mais completos e detalhados

possíveis, já que quaisquer atrasos ou imprevistos na obra repercutirão negativamente para ele

próprio; contudo traz mais riscos. Seja pela menor ingerência que terá sobre a elaboração do projeto

– o que gera uma maior sujeição à qualidade da atividade desempenhada pelo particular. Seja ainda

pela impossibilidade de, diante de fatos supervenientes não remontáveis às hipóteses do art. 9o, §4o

50 O tema desafia o âmbito do presente estudo, mas em suma, poder-se-ia resumi-lo em uma única tese: todo e qualquer evento imprevisível ou previsível, mas de consequências imprevisíveis ensejaria, em favor do particular, um direito ao reequilíbrio do contrato, constituindo-se a outra “face da moeda”em relação à prerrogativa de a Administração poder alterar unilateralmente do contrato. A grande questão é que a praxe parece tornar cada vez menos rígidos os limites destes fatos, confundindo qualquer fato superveniente ao contrato com fato imprevisível. A questão é melhor desenvolvida em PEREZ, Marcos Augusto. O risco nos contratos de concessões de serviços públicos. Belo Horizonte, Ed. Forum: 2006 e RIBEIRO, Mauricio Portugal. Concessões e PPPs: Melhores práticas em licitações e contratos. São Paulo: Ed. Atlas, 2011.

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da Lei do RDC, restar impossibilitada a formulação termos aditivos, o que, caso o particular não

possua uma higidez financeira, poderá redundar no malogro da obra.

Nesse contexto, é fundamental para o sucesso da contratação integrada que o vencedor

da licitação seja comprovadamente capaz de realizar um projeto básico de qualidade e executá-lo de

forma eficiente. E o principal mecanismo para garantir a aptidão do contratado é justamente levar a

sério as exigências de qualificação econômico-financeira dos licitantes.

Indo além, tendo em vista essa necessidade de maiores garantias do contratado,

consideramos salutar que os entes federativos, ao regulamentar o RDC em suas esferas de governo,

tenham a possibilidade de aumentar as exigências referentes à qualificação econômico-financeira do

contratado. Entendemos a medida possível – e até mesmo desejável – uma vez que a própria Lei

Federal estabelece que a aplicação dos dispositivos da Lei nº 8.666/1993 relativos à qualificação dos

licitantes será feita no que couber e, no caso de contratação integrada, as próprias características

deste novo instituto trazido pela Lei nº 12.462/2011 justificam um maior rigor na habilitação dos

licitantes com vistas a assegurar a efetiva capacidade técnica do contratado em executar o objeto da

avença com qualidade e eficiência.

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5. CONCLUSÃO

Ante o exposto, é possível se chegar às seguintes conclusões:

1) Tomando por base a competência da União em editar normas de caráter gerais, de

observância obrigatória pelos demais entes federativos, haveria espaço para edição de normas

estaduais de caráter especial, adequadas às necessidades e às particularidades de cada ente da

federação.

2) A regulamentação do RDC por Estados e Municípios pode ser feita diretamente por decreto,

sem que se mostre necessária a edição de lei local sobre a matéria, na medida em que o

decreto local seria responsável por regulamentar as disposições de caráter geral – e, portanto,

nacional – contidas na Lei nº 12.462/2011 e no Decreto nº 7.581/2011, não se tratando, pois,

de regulamento autônomo.

3) Na prática, os entes federativos preferem adotar uma postura deferente à legislação federal, a

fim de mitigar o risco de eventuais questionamentos de sua legislação local, o que poderia

atrasar projetos importantes para o desenvolvimento do país e a realização dos eventos de

grande porte que se aproximam.

4) Existe a possibilidade de os membros da Federação ampliarem os requisitos para a

habilitação de licitantes no seu regramento específico sobre o RDC, já que esta deve ser

considerada uma norma de caráter especial e suscetível às peculiaridades dos mercados

locais.

5) Essa elevação, contudo, deve se pautar num equilíbrio entre a amplitude da competição e

garantia da idoneidade do licitante, cabendo a utilização da técnica da proporcionalidade para

encontrar esse ponto ótimo e fundamentar a necessidade dessas exigências sem que se

caracterize uma restrição excessiva à competitividade do certame.

6) Na contratação integrada, as exigências da qualificação econômica do contratado também

podem ser elevadas pela regulamentação do ente, já que essa modalidade envolve maiores

riscos para a Administração Pública e, por isso, os limites dos artigos 29 a 33 da Lei nº

8.666/93 não parecem suficientes para assegurar a aptidão do contratado nesse caso. Além

disso, a Lei nº 12.462/2011 estabelece que as regras da Lei nº 8.666/1993 acerca da

habilitação dos licitantes somente devem ser aplicada “no que couber” ao regime do RDC.

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Após estas breves conclusões, resta evidente que o presente trabalho não pretende, de

forma alguma, esgotar o tema do RDC e as polêmicas envolvendo sua aplicação no Brasil. Nosso

mote principal, aqui, é relativamente simples: mostrar que há espaço para que os entes de Federação

inovem na regulamentação do Regime Diferenciado de Contratações, sujeitando-se apenas à

observância obrigatória das normas de caráter geral contidas na Lei Federal nº 12.462/2011 e no

Decreto Federal nº 7.581/201.

Aqui, em síntese, reside a um só tempo, a força e a fragilidade do argumento. Em

relação ao ponto mais criticável da exposição, admite-se que o postulado neste artigo, de fato,

mostra-se hipótese, ainda que esquecida em tempos de avanço do ímpeto legislativo nacional – em

detrimento da positivação de normas federais: sempre que houver permissivo para que outros entes

federativos possam fazê-lo, podem editar normas diferentes daquelas postas pela União.

Ressalvando-se, no presente caso, a necessidade de observância da disciplina geral.

Contudo, a se considerar a abrangência da regulamentação dada pelo Decreto n°

7.581/11, aqui tomado meramente como parâmetro, este ponto, em realidade, mostra-se o mais

relevante. A questão da habilitação, ora tratada, constitui-se, de fato, em apenas um exemplo da

possibilidade do desatrelamento do modelo federal.

Parafraseando Guido Calebresi ao comentar sua obra sobre a responsabilidade civil,

vinte e cinco anos após sua edição, a vantagem de novos olhares sobre a catedral é justamente essa:

ser uma via de abordar um fenômeno sob uma ótica diversa e assim, “leaves room for others”51.

Este o objetivo último: abrir espaço para que outras contribuições venham se somar,

viabilizando desenhos institucionais de regras licitatórias, valendo-se do RDC, mais adequadas e

eficientes.

51 CALABRESI, Guido. Remarks: the simple virtues of the cathedral. The Yale Law Journal, Vol. 106, n° 7 (May, 1997), pp. 2201-2207, p. 2202.

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