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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    VALERIA PORTUGAL

    MTODO DE PRIMEIRA PESSOA COMO COMPONENTE NA INVESTIGAO CIENTFICA DA CONSCINCIA HUMANA

    RIO DE JANEIRO

    2010

  • UFRJ

    Valeria Portugal

    MTODO DE PRIMEIRA PESSOA COMO COMPONENTE NA INVESTIGAO CIENTFICA DA CONSCINCIA HUMANA

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria das Cincias e das Tcnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Histria das Cincias e das Tcnicas e Epistemologia.

    Orientador: Luiz Pinguelli Rosa Co-orientador: Jean Faber Ferreira de Abreu

    Rio de Janeiro Agosto de 2010

  • Valeria Portugal

    MTODO DE PRIMEIRA PESSOA COMO COMPONENTE NA INVESTIGAO CIENTFICA DA CONSCINCIA HUMANA

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Histria das Cincias e das Tcnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Histria das Cincias e das Tcnicas e Epistemologia.

    Aprovada em 18/08/2010

    ______________________________________

    Prof. Luiz Pinguelli Rosa, DSc., UFRJ

    ______________________________________

    Jean Faber Ferreira de Abreu, DSc., IINN-ELS

    ______________________________________

    Prof. Ricardo Kubrusly, PhD., UFRJ

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador, Prof. Luiz Pinguelli Rosa, por ter aceitado me orientar nessa empreitada rumo a se desvendar uma conscincia mais ampla, cujas sugestes me auxiliaram a desenvolver uma viso mais abrangente.

    Ao meu co-orientador Jean Faber, tanto por me inspirar a fazer o mestrado pelo HCTE, quanto por todas as dicas para tornar meu trabalho consistente e atual, mesmo longa distncia.

    Ao coordenador do HCTE, Prof. Ricardo Kubrusly, por encantar a cincia com poesia.

    Ao Prof. Srgio Exel, cujas aulas na disciplina de Cognio e Computao me inspiraram a refletir sobre o assunto e escolher o tema do meu trabalho.

    Aos professores da Banca Examinadora por terem aceito o convite e assim prestigiarem o meu trabalho engrandecendo-o com suas sugestes.

    Ftima e Daniela, secretrias do Prof. Pinguelli, sempre solcitas e dispostas a encontrar um horrio na agenda dele para marcar reunies de orientao.

    Aos meus colegas, orientandos do Prof. Pinguelli, Nlson, Antnio, Elaine e Patrcia, com quem tive a oportunidade de ter discusses profcuas e elucidativas sobre filosofia da mente.

    Ao Prof. Carlos Koehler por toda a sua dedicao ao departamento fazendo com que ele se torne cada vez melhor.

    Aos professores do HCTE por estarem imbudos de enfrentar o desafio de estarem num programa interdisciplinar.

    Ao meu irmo Renato, professor e pesquisador do LNCC, que me apresentou o Jean Faber, seu aluno de doutorado, o que me levou a iniciar o processo de Mestrado.

    s minhas irms, Virginia, Denise e Cristina, e meus irmos, por estarem l. Aos meus pais, pelo amor e apoio incondicionais e pelo estmulo constante para a busca de crescimento.

  • RESUMO

    PORTUGAL, Valeria. Mtodo de primeira pessoa como componente na investigao cientfica da conscincia humana. Dissertao (Mestrado em Histria das Cincias e das Tcnicas e Epistemologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

    Ainda permanecem obscuras no estudo cientfico da conscincia humana as correlaes que podem ser estabelecidas entre o processamento neurofisiolgico e os aspectos subjetivos oriundos da experincia perceptiva do indivduo. As tcnicas utilizadas pelo mtodo cientfico privilegiam os achados objetivos por uma perspectiva de terceira pessoa e tentam explicar a mente atravs dos processos biolgicos fazendo medies com o aparato tecnolgico adequado. O estudo da conscincia abrange, no entanto, alm dos aspectos fsicos, os estados qualitativos subjetivos oriundos da experincia. Como o contedo da atividade cerebral no pode ser acessado por um observador externo, torna-se necessrio um mtodo que inclua uma perspectiva de primeira pessoa. Neste trabalho ressalta-se a importncia do uso de uma metodologia de primeira pessoa de forma sistematizada para que os dados fenomenolgicos obtidos atravs de relatos subjetivos sejam consistentes e vlidos para troca intersubjetiva e objetiva. Com o propsito de apresentar um mtodo que complemente o estudo cientfico da conscincia humana na busca de melhor compreender a relao entre funcionamento cerebral e qualidades subjetivas oriundas da experincia, este trabalho se ampara nos conceitos filosficos da fenomenologia e no programa de pesquisa cientfica proposto pela neurofenomenologia. Esse programa sugere como prtica de treinamento para tornar os sujeitos mais sensveis prpria experincia o uso da tcnica da meditao advinda de tradies contemplativas orientais.

    Palavras-chave: conscincia, intersubjetividade, meditao, mtodo de primeira pessoa, neurofenomenologia

  • ABSTRACT

    PORTUGAL, Valeria. Mtodo de primeira pessoa como componente na investigao cientfica da conscincia humana. Dissertao (Mestrado em Histria das Cincias e das Tcnicas e Epistemologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

    The relationship that can be established between the neurophysiologic process and the subjective aspects of experience remains unclear in the scientific study of human consciousness. The scientific method uses objective techniques from a third person point of view that explains the human mind as a biological process through measurements from technological equipment. Nevertheless the study of consciousness includes also the subjective qualitative aspects that come from experience, not only the physical aspects of the brain. The content of brain activity cannot be accessed by an external observer, making it a necessity the use of a method that includes a first person point of view. This work shows the relevance of the use of a first person method in a systemized way so that the subjective accounts are consistent and valid for intersubjective and objective exchange. With the purpose of presenting a method that complements the scientific study of human consciousness to better understand the relationship between brain functioning and subjective qualities of experience, this work considers the philosophical concepts of phenomenology and the program of scientific research known as neurophenomenology. This program suggests meditation as a practice to improve the sensibility of subjects to their own experience. Meditation as a technique comes from oriental contemplative traditions.

    Key-words: consciousness, intersubjectivity, meditation, first person method, neurophenomenology

  • SUMRIO

    GLOSSRIO ........................................................................................ 07

    1. INTRODUO ..................................................................................... 09

    2. INTERSUBJETIVIDADE NO ESTUDO DA CONSCINCIA HUMANA E VALIDAO DE DADOS SUBJETIVOS .......................................... 15

    2.1 PERSPECTIVAS NO ESTUDO DA CONSCINCIA HUMANA ............ 15

    2.2 DADOS SUBJETIVOS E INTERSUBJETIVIDADE ............................... 26

    3. LIMITAES DO MTODO CIENTFICO PARA A INVESTIGAO DA CONSCINCIA E AS METODOLOGIAS DE PRIMEIRA PESSOA ...40

    3.1 ABORDAGEM DOS MTODOS DE TERCEIRA PESSOA PARA A INVESTIGAO DA CONSCINCIA HUMANA ..................................40

    3.2 POR QUE UTILIZAR UM MTODO DE PRIMEIRA PESSOA PARA O ESTUDO DA CONSCINCIA HUMANA? ..................................45

    3.3 PROCEDIMENTOS INERENTES AOS MTODOS DE PRIMEIRA PESSOA ...........................................................................54

    4. A TCNICA DA MEDITAO PROPOSTA PELA NEURO- FENOMENOLOGIA COMO MTODO DE PRIMEIRA PESSOA ............70

    4.1 NEUROFENOMENOLOGIA ....................................................................74

    4.2 A MEDITAO DA ATENO/CONSCINCIA .......................................82

    5. CONCLUSO ..........................................................................................91

    REFERNCIAS .......................................................................................95

  • GLOSSRIO

    Conscincia: qualidade presente em alguns seres vivos relacionada forma como o indivduo se comporta no ambiente, acordado, dormindo, sonhando ou meditando, e experincia pela qual ele passa, momento aps o qual o indivduo pode ficar ciente das qualidades subbjetivas que acompanham a experincia; Percepo que o sujeito tem de sua prpria existncia no mundo

    Corpo: corpo observado como objeto que pode ser analisado cientificamente

    Corpo vivido: corpo que vive do incio ao fim e sustenta o ato da percepo, imbudo das experincias que o indivduo sofre

    Cognio: faculdade para o processamento de informao que est relacionada ao aprendizado e ao conhecimento

    Estados mentais; estados advindos de processos realizados pela mente

    Experincia: (1) parte da cognio acessada por uma perspectiva subjetiva ou de primeira pessoa; (2) no contexto da metodologia cientfica, tambm pode se referir ao ensaio realizado para verificao de hipteses

    Fenomenologia: movimento filosfico que se relaciona reflexo abstrata e anlise das estruturas da conscincia e aos fenmenos que existem conforme observados atravs de atos da conscincia

    Incorporado: termo que significa que os aspectos mentais possuem correlao com os fsicos e que se transformam mutuamente a partir de uma ao sobre o ambiente

    Intersubjetividade: capacidade de se perceber os estados subjetivos de outro sujeito

  • Mente: qualidade de alguns seres vivos que inclui processos cognitivos conscientes e inconscientes e permite a expresso de atributos como pensamento, memria, percepo, emoo, sentimento, ateno, razo, vontade, imaginao e outros

    Meditao: prtica disciplinada utilizada (neste contexto) como mtodo de treinamento da ateno para aumentar a sensibilidade do indivduo s qualidades subjetivas da experincia

    Neurofenomenologia: programa de pesquisa em cincias cognitivas que relaciona mtodos de estudos neurofisiolgicos com mtodos que utilizam os relatos subjetivos dos sujeitos pesquisados

    Subjetividae: capacidade de sentir o que interior ao sujeito

    Qualia: palavra latina referente qualidade abstrada como uma essncia universal. Conceito conhecido nos estudos da filosofia da mente como aspecto qualitativo das experincias humanas.

  • 1 INTRODUO

    Trata-se de um desafio para a cincia naturalista explicar a existncia e o funcionamento da conscincia humana tanto em termos da atividade cerebral quanto de mecanismos causais que correlacionem os processos neurofisiolgicos experincia subjetiva do indivduo. As relaes entre o sistema fsico e suas propriedades subjetivas permanecem obscuras.

    O termo conscincia pode ser entendido como uma forma como o indivduo se comporta no ambiente, estar acordado, dormindo, sonhando ou meditando, que envolve atributos mentais como percepo, memria e ateno. Alm deste aspecto comportamental, no entanto, a conscincia tambm inclui a experincia, que parte da cognio acessada por uma perspectiva subjetiva, ou de primeira pessoa.

    A abordagem de aspectos subjetivos da conscincia supe a existncia de estados qualitativos, cuja verificao objetiva pode ser improvvel. No entanto, mesmo por uma perspectiva no reducionista, de no se considerar que as atividades mentais possam ser reduzidas s atividades cerebrais, j que no existem condies causais suficientes, tais estados qualitativos podem ser relacionados a estados fsicos do crebro que devem ser identificados empiricamente por mtodos de terceira pessoa.

    A correlao entre atividade cerebral e experincia consciente pode ser estabelecida pelas semelhanas entre os relatos feitos por sujeitos durante uma atividade cognitiva e a observao da atividade cerebral feita por neurocientistas com o uso adequado do aparato tecnolgico, como o eletroencefalograma e a ressonncia magntica funcional. Esta tecnologia, embora permita observar as conexes neurais e estabelecer concluses a respeito do funcionamento cerebral, no possibilita a obteno do contedo da atividade neural, ou seja, no permite que o observador externo tenha acesso aos pensamentos do sujeito sendo observado.

    Relatos de primeira pessoa tornam-se relevantes para o estudo da conscincia humana quando se pretende inserir a perspectiva de estados subjetivos qualitativos. A introduo do nvel pessoal nas cincias cognitivas, no entanto, deve prover dados consistentes e confiveis. Este nvel pessoal deve consistir de relatos de primeira pessoa de experincias especficas e contextualizadas e no de casos

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    imaginados. Explorar relatos de primeira pessoa em seu nvel de detalhamento requer o uso de um mtodo que os relacione com dados neurais.

    Mtodos de treinamento para tornar os sujeitos mais sensveis prpria experincia para que possam fornecer relatos vlidos e compatveis com os dados obtidos por mtodos de terceira pessoa existem na psicologia, na fenomenologia e nas tradies contemplativas orientais. Prticas disciplinadas permitem que os sujeitos desenvolvam uma ateno mais focada para seu mundo subjetivo interior, como acontece pela prtica da meditao oriunda de tradies contemplativas.

    O objetivo deste trabalho ressaltar a importncia de um mtodo de primeira pessoa para um estudo abrangente da conscincia humana. Para tanto se torna necessrio responder a questo se o mtodo de primeira pessoa escolhido agrega valor ao mtodo cientfico e como se torna possvel a utilizao de um mtodo de primeira pessoa de forma sistematizada que produza os resultados almejados. Estes resultados consistem em correlacionar os dados fenomenolgicos oriundos de descries de qualidades subjetivas com dados neurofisiolgicos da atividade cerebral de sujeitos expostos a um determinado experimento.

    Para responder a primeira parte da questo anterior, observa-se que as tcnicas utilizadas pelo mtodo cientfico tentam explicar a mente pela descrio dos processos fsicos no crebro. Torna-se relevante, portanto, propor o uso de um mtodo complementar que considere o nvel funcional da mente, incluindo seus aspectos subjetivos, pois quando o objeto de estudo consiste no prprio ser humano, esses aspectos devem ser considerados essenciais.

    Para fornecer uma metodologia sistematizada de primeira pessoa, este trabalho se prope a descrever os procedimentos inerentes a este tipo de mtodo verificando as dificuldades relativas averiguao de aspectos abstratos, como o caso das qualidades subjetivas, e as vantagens de seu uso perante as limitaes encontradas pelos mtodos de terceira pessoa no estudo da conscincia. Evidncias experimentais desta abordagem podem ser obtidas nos trabalhos de pesquisadores, como Francisco Varela, que seguem o programa de pesquisa em neurocincias denominado neurofenomenologia, cujo objetivo consiste em correlacionar dados neurofisiolgicos obtidos atravs de aparelhos de medida adequados com dados fenomenolgicos a partir de relatos das qualidades subjetivas que o sujeito percebe durante a experincia pela qual ele passa. Os dados biocomportamentais obtidos por um mtodo de terceira pessoa e os

  • 11

    fenomenolgicos obtidos por relatos de primeira pessoa estabelecem restries recprocas que definem os limites da correspondncia entre os dados obtidos pelos dois mtodos que devem complementar um ao outro e no concorrer entre si. Quando se obtm algum dado expressivo atravs dos aparelhos de medida de uma atividade cerebral relevante que poderia corresponder emergncia de uma qualidade subjetiva que no foi relatada pelo sujeito, o pesquisador confronta o indivduo com a experincia que pode ter passado despercebida. De forma contrria, quando o sujeito relata alguma percepo subjetiva que no apresenta correspondncia na anlise da atividade cerebral, o pesquisador busca averiguar novas possibilidades de funcionamento neurofisiolgico que corresponda ao relato da qualidade subjetiva percebida.

    Os relatos subjetivos proporcionam um aspecto da experincia que no pode ser obtido atravs de mtodos que utilizem a observao de terceira pessoa - o contedo da atividade cerebral. Para se obter relatos de contedos subjetivos que sejam confiveis e apresentem validade para anlise objetiva e intersubjetiva torna-se necessrio o uso de uma metodologia que treine o sujeito tanto para refinar e manter sua ateno nas qualidades subjetivas que a experincia pela qual ela passa suscita, quanto para que tenha auto-regulao de suas emoes. A tcnica proposta pela neurofenomenologia para alcanar este fim consiste na meditao, prtica oriunda de tradies contemplativas orientais. A meditao torna o seu praticante mais sensvel ao seu mundo interior e menos inclinado a sucumbir s oscilaes emocionais provocadas pelo mundo externo, deixando-o mais apto a prover relatos fidedignos de sua percepo interior do que um indivduo no treinado.

    Inicia-se o segundo captulo do trabalho com a discusso de algumas perspectivas na abordagem do estudo da conscincia. Pelo vis da cincia naturalista, defendido por Searle e Churchland, ente outros, o estgio atual de desenvolvimento dos estudos neurocientficos no bastante para explicar o assunto, mas o avano das pesquisas propiciar um entendimento adequado. Pela perspectiva fisicalista, os fenmenos fsicos do crebro seriam suficientes para explicar os estados mentais. Outras abordagens consideram, entretanto, que os processos fsicos no so suficientes para explicar a emergncia dos estados cognitivos, pois no conseguem abranger o esclarecimento do nvel funcional da mente. Conforme o conceito que se confere ao termo e a linha escolhida para sua

  • 12

    comprovao, adota-se um mtodo adequado para investig-lo. A abordagem fisicalista privilegia o uso de mtodos de terceira pessoa, nos quais um observador externo pesquisa os eventos neurais de um indivduo. Quando se insere, no entanto, a averiguao dos aspectos subjetivos da experincia no estudo cientfico da conscincia, torna-se indicada a adoo de uma metodologia complementar que considere esses fenmenos, ou seja, que possua perspectiva de primeira pessoa,

    Para que possam ser enquadrados em um estudo cientfico reconhecido, os relatos subjetivos precisam ser aceitos pela comunidade na qual o indivduo se insere como possveis e consistentes, ou seja, precisam ter validade intersubjetiva. A condio humana proporciona aspectos privados da experincia, que no podem ser descritos ou compartilhados com outras pessoas, como ocorre no caso de alucinaes. Outros fenmenos subjetivos, no entanto, como o estado emocional suscitado em decorrncia de um evento ou a ateno conferida a algum objeto, podem ser compartilhados com outras pessoas. Uma das explicaes conferidas validao intersubjetiva de fenmenos subjetivos se encontra na fenomenologia de Husserl atravs do conceito de empatia, abordado no segundo captulo do trabalho. Para Husserl existe uma realidade independente, embora sejam consideradas as perspectivas do indivduo e as semelhanas entre os sujeitos. A relao com o outro s pode ocorrer atravs da mediao da conscincia, que se efetiva empaticamente dadas as similaridades entre o eu e o outro. J para Merleau-Ponty, tambm considerado nesse captulo, o mundo se constitui intersubjetivamente pela interao eu-outro-ambiente e a relao entre os sujeitos acontece atravs da percepo. O conceito de corpo vivido ganha destaque, isto , aufere-se valor experincia para a constituio do indivduo enquanto ser presente no mundo. As relaes entre o sujeito e o outro e entre o sujeito e o ambiente propiciam a formao do indivduo e o reconhecimento de um outro sujeito como semelhante a si mesmo, permitindo as trocas intersubjetivas.

    Considerada e averiguada a possibilidade de se validar intersubjetivamente os dados subjetivos obtidos atravs de relatos, deve-se especificar a razo do uso de um mtodo de primeira pessoa no estudo da conscincia humana compreendendo-se os limites do mtodo cientfico, que utiliza uma abordagem de terceira pessoa. O terceiro capitulo se dedica a esclarecer os limites de um mtodo de terceira pessoa para o estudo de um objeto que envolve qualidades subjetivas e

  • 13

    a explicar a proposta dos mtodos de primeira pessoa para o estudo da conscincia humana.

    Os mtodos que consideram a mensurao de estados neurais na investigao da conscincia apresentam limites tanto pelo uso de aparelhos de medida quanto pela incapacidade de esclarecer o nvel funcional da mente atravs de observaes de terceira pessoa. Um dos aparelhos privilegiados para medies em seres humanos o eletroencefalograma que capta sinais contnuos emitidos por uma populao de neurnios a nvel cortical, sendo que o sinal percebido pode sofrer interferncias ou rudos de outras reas do crebro. Alm disso, a leitura que se pode fazer destes sinais no inclui o contedo da atividade cerebral, que s pode ser acessada pela perspectiva de primeira pessoa.

    Contudo, para se incluir um mtodo de primeira pessoa de forma a complementar a investigao cientfica da conscincia, preciso avaliar os procedimentos necessrios para sua implementao. A primeira destas etapas consiste em fazer com que o sujeito volte a ateno para si mesmo de modo a se conectar com seus estados subjetivos qualitativos e perceber de que forma eles se tornam conscientes. Na Fenomenologia a forma proposta para se obter uma descoberta intuitiva pode ser explicada pelas etapas da reduo fenomenolgica. Voltar o olhar para o interior, retirando a ateno que se coloca habitualmente em objetos externos, e focar no processo que gera a experincia possibilitam uma abertura de espao para que algo novo seja gerado. Mtodos de primeira pessoa propiciam um treinamento disciplinado para os sujeitos reconhecerem aspectos importantes de sua experincia ao voltar sua ateno para o modo como ela acontece, que de outro modo no perceberiam.

    Aps se entender o que so mtodos de primeira pessoa e como eles fornecem uma possibilidade de interiorizao e conexo com os aspectos mentais abstratos, no captulo quatro apresentada uma tcnica especfica proposta pela neurofenomenologia qualificada como mtodo de primeira pessoa, a tcnica da meditao.

    A proposta de se usar a meditao para o treinamento da ateno se baseia no fato dela ser uma prtica que considera a observao da experincia uma experincia em si. Sua prtica continuada pode modificar a estrutura cerebral do indivduo, assim como o aprendizado de uma habilidade o faz. Para o objetivo de se apresentar um mtodo que torne o sujeito mais sensvel sua percepo interior,

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    isto no um empecilho, pois a prtica no uma forma de condicionamento, mas de aperfeioamento da qualidade observadora. Em decorrncia do fato da meditao ser uma experincia, conseguir explic-la conceitual e teoricamente pode surgir como desafio neste trabalho. Contudo, parece ser positivo para a cincia moderna acrescentar sua metodologia um outro procedimento, cujos resultados descritos pelos pesquisadores da neurofenomenologia apresentam vantagens no estudo de funes subjetivas.

    O propsito aqui no consiste em discutir a possibilidade ou o modo como qualidades subjetivas derivam de um substrato fsico. Este assunto ainda controverso na literatura cientfica e filosfica atual, assim como tambm parece ser controverso o conceito de alguns dos termos relacionados ao assunto, como mente e conscincia. Portanto um outro desafio deste trabalho pode ser o uso destes termos sem demonstrar uma posio dualista ou reducionista nem trivializada. O contedo descrito no trabalho sugere que mente no uma substncia em si independente do corpo e nem algo que possa ser reduzido atividade cerebral. Provavelmente uma emergncia da atividade cerebral sem se reduzir a um substrato neural mnimo que possa explic-la. Ao longo do texto, quando se faz referncia mente especificamente ou ao corpo, no deve ser entendida como a existncia de uma mente sem corpo, ou a de um corpo sem mente. As referncias feitas ficam melhor entendidas como qualidades que possam ser consideradas mentais, como pensamentos, estados emocionais ou funes cognitivas (mesmo que tais qualidades possuam sua correspondncia fisiolgica), e caractersticas que sejam corporais, como estados fisiolgicos, posturas e comportamentos (mesmo que essas caractersticas estejam relacionadas a pensamentos e emoes).

    O trabalho manifesta sua relevncia ao apresentar de forma sistematizada, provendo uma possvel atuao experimental, um mtodo que complemente o estudo cientfico da conscincia humana na busca de melhor compreender a relao do funcionamento cerebral com as qualidades subjetivas oriundas da experincia. Nesse contexto, a tcnica sugerida, a meditao, por ser em si uma experincia, aumenta a sensibilidade do sujeito para perceber seu estado interno e tambm amplia o entendimento que o indivduo tem de si e do mundo, sendo, portanto, ela mesma, uma tcnica que pode auxiliar o esclarecimento de conscincia, qualificando o seu significado como a percepo que o sujeito tem de sua existncia no mundo.

  • 2 INTERSUBJETIVIDADE NO ESTUDO DA CONSCINCIA HUMANA E VALIDAO DE DADOS SUBJETIVOS

    2.1 PERSPECTIVAS NO ESTUDO DA CONSCINCIA HUMANA

    Devido s dificuldades encontradas nas investigaes da conscincia humana, busca-se entend-la sob diversos aspectos. Cada perspectiva de pesquisa utiliza seu prprio vis de definio e mensurao. De maneira geral, existem vises distintas que podem ser agrupadas. Um desses grupos considera que todos os processos mentais, incluindo a conscincia, sejam uma substncia ontologicamente distinta, com existncia prpria, que pode ou no ser medida. Outro grupo considera que a conscincia pode ser reduzida a determinados fenmenos fsicos que acontecem no corpo e, portanto, sua mensurao estaria diretamente relacionada medio desses fenmenos fsicos. Outro vis de estudo da conscincia considera que existe sua relao com fenmenos fsicos, mas que ela no pode ser reduzida a eles. Conscincia seria uma emergncia desses fenmenos, mas sem a existncia de um substrato fsico mnimo que pudesse explic-la. A partir dessas perspectivas existem metodologias adequadas de investigao. Os mtodos de terceira pessoa so aqueles que consideram um observador externo ao experimento e que utilizam aparelhos especficos para medir os fenmenos naturais, como, por exemplo, o eletroencefalograma para medir o potencial eltrico de um grupo de neurnios ativados por um estmulo. Ao no se considerar a conscincia redutvel aos fenmenos fsicos e inserindo-se os aspectos subjetivos da experincia humana como fator relevante para seu entendimento, o uso de mtodos de primeira pessoa pode agregar valor aos mtodos convencionais de terceira pessoa. Mtodos de primeira pessoa so prticas disciplinadas que possuem o objetivo de treinar os indivduos para que eles se tornem mais sensveis percepo dos aspectos subjetivos da sua experincia. Os indivduos treinados podem prover relatos subjetivos que devem ser correlacionados aos dados objetivos obtidos com os mtodos de terceira pessoa.

    Pretende-se pesquisar e buscar sentido para o conceito de subjetividade oriundo dos estudos da mente humana, enfatizando a importncia da experincia para as relaes do indivduo com o ambiente, pois a partir dela surgem os estados

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    qualitativos de acesso subjetivo da vida mental. Procura-se um motivo pelo qual o uso de um mtodo de primeira pessoa seja relevante, e mesmo necessrio, para o estudo da conscincia humana. O uso de um mtodo de primeira pessoa aborda obrigatoriamente a experincia subjetiva do indivduo sendo pesquisado, portanto a subjetividade uma questo que precisa ser discutida ao longo do texto. Para tornar os dados subjetivos coletados com a metodologia de primeira pessoa vlidos em um procedimento cientfico seria preciso torn-los tanto compatveis com os dados objetivamente mensurveis no programa de pesquisa, que poderiam ser obtidos por um mtodo de terceira pessoa, algum tipo de medio dos aspectos cerebrais, quanto conciliveis com informaes intersubjetivas, admitindo-se a existncia e a semelhana de um outro sujeito. A capacidade de atribuir estados mentais aos outros e a si prprio ficou conhecido como Teoria da Mente, termo cunhado por Premack e Woodruff em 1978 por estudos feitos em macacos. Essa capacidade seria uma das caractersticas que permitiria a ao social do ser humano, mas constituir-se-ia num modelo terico que infere que a compreenso interpessoal envolve a construo de uma teoria sobre a mente de outra pessoa. Esse modelo parece refletir a dificuldade de se lidar com os aspectos mentais abstratos inerentes ao ser humano. Mas se, por um lado, fazer inferncias sobre o que outras pessoas pensam e sentem deve partir de um modelo terico prprio, que parece assumir a existncia de estados mentais independentes de uma fisiologia corporal, como sustenta a teoria da mente, por outro, perceber empaticamente seus pensamentos e sentimentos poderia ser entendido como ver o outro sujeito como suscetvel de passar por experincias semelhantes. Ou seja, por esta perspectiva, considera-se os aspectos subjetivos possuidores de uma relao direta com os fisiolgicos, embora no necessariamente reduzidos a eles, e que a sua existncia possui correlao com a experincia pela qual o indivduo passa e portanto passvel de uma verificao intersubjetiva.

    Embora no seja o ponto principal tratar do conceito e do significado de conscincia humana, faz-se necessrio abordar as diferentes concepes sobre o assunto, pois cada uma traz suas prprias dificuldades e permite que se enverede por determinadas linhas de pesquisa e entendimento. Lidar com a conscincia como objeto de estudo supe uma determinada conceituao do termo e uma metodologia de investigao conforme o vis da pesquisa, sendo que este assunto comporta abordagens paralelas. Uma delas visa a compreenso da mente, da conscincia e

  • 17

    da inteligncia humana amparando-se em investigaes e nos avanos nas reas da biologia, da psicologia e da neurologia, alm de se ligar filosofia da mente. Outra abordagem se refere ao desenvolvimento dos computadores e s perspectivas da inteligncia artificial, especialmente quanto possibilidade de robs adquirirem conscincia, visando o futuro da tecnologia da computao. Considerando os diferentes contextos, onde em cada um o significado de conscincia pode apresentar mais detalhamento, de forma geral pode-se conceituar o termo como sendo uma faculdade que permite ao ser humano reconhecer a sua existncia e a sua relao com o ambiente e que abrange qualidades como memria, cognio, percepo dos estmulos sensoriais, entre outras.

    Quanto s abordagens que buscam a compreenso da mente, se, por um lado, existe a possibilidade de definir e entender conscincia como uma propriedade da natureza, ou seja, um atributo com existncia prpria, independente de qualquer conexo fsica, por outro a proposta seria explic-la em termos puramente fsicos, at mesmo tentando reduzi-la ao funcionamento biolgico. A primeira perspectiva encontra a dificuldade de prover meios testveis que possam avalizar a definio proposta, pois, por se tratar de um conceito abstrato, no existe a possibilidade de medir os aspectos mentais diretamente com a tecnologia disponvel. Os mtodos utilizados para explicar a mente, nesse nvel, se baseiam em argumentaes filosficas ou averiguao do comportamento sem relacion-lo atividade cerebral. A segunda, no outro extremo, no comprova o nvel funcional da mente. Por esse vis reducionista considera-se que o estado mental esteja identificado com o biolgico, sendo indiferenciado um do outro. Os mtodos privilegiados para a investigao dessa abordagem so de terceira pessoa e desconsideram ou consideram em escala de pouca importncia os aspectos subjetivos do comportamento humano.

    As teorias fsicas da conscincia propem explic-la em termos de eventos neurais que ocorrem no crebro, seja a nvel biolgico, seja pelo estudo dos circuitos neurais, ou at mesmo a nvel quntico. Como exemplo de teoria quntica para explicar os aspectos mentais, o fsico Roger Penrose considera que o fenmeno gerador da conscincia est em um nvel microscpico numa escala menor do que a do neurnio. Ele conjetura que o controle se d no esqueleto celular constitudo de microtbulos. Os nmeros na estrutura dos microtubos decorrem do conjunto de nmeros qunticos que definem os estados possveis dos eltrons em um nvel de

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    energia. O nvel microscpico, abaixo do nvel neuronal, encontra-se na fronteira entre as fsicas quntica e clssica, de onde Penrose conjetura uma nova teoria fsica no algortmica da reduo dos estados qunticos. Por no ser algortmica impediria a imitao do crebro em computadores.

    O anestesiologista Stuart Hameroff prope em conjunto com Penrose o que chamam de reduo orquestrada dos estados qunticos superpostos no crebro, estendendo o conceito de reduo objetiva sugerido por Penrose. A reduo orquestrada seria peculiar ao crebro relacionando-se conscincia e seria causada por um mecanismo fsico gravitacional. Estas descries qunticas no possuem confirmaes experimentais.

    O objetivo de Penrose consiste na pesquisa do universo material acessvel ao mtodo cientfico. Ele trabalha com pesquisas no nvel quntico para explicar a dinmica dos processos cerebrais responsveis pela produo da conscincia. Para ele, no entanto, falta um ingrediente na descrio do mundo pela cincia atual, pois no h teoria fsica nem biolgica que explique a conscincia ou a inteligncia humana. Apesar de utilizar a mecnica quntica para propor a no computabilidade da mente humana, ele argumenta que a teoria ainda incompleta, por isso prope sua juno com a teoria geral da gravitao para uma possvel explicao para o aparecimento da conscincia a partir de interaes qunticas nos microtbulos neuronais (HAMEROFF e PENROSE, 1996).

    Na rea da computao a questo se um computador poderia ter uma mente como a humana encontra respostas divergentes. A Inteligncia Artificial Forte, que prega que todo o pensamento reduz-se computao e o sentimento de conscincia pode ser produzido atravs da computao apropriada (PENROSE, 1998), encontra partidrios como o filsofo Daniel Dennett, que faz uma analogia do crebro com um computador de processamento paralelo, identificando-o com as redes neuronais na computao. O prprio Penrose descarta essa possibilidade e considera que as atividades fsicas do crebro que produzem a conscincia no podem ser simuladas, pois no so algortmicas. O filsofo John Searle, com sua filosofia do naturalismo biolgico, afirma que a mente no pode ser reduzida s atividades de um computador (Inteligncia Artificial Fraca). Ele define conscincia como uma caracterstica biolgica de crebros de seres humanos causada por processos neurobiolgicos, sendo parte da ordem biolgica natural tanto quanto a digesto, mas no sabe como os crebros causam conscincia e admite que ainda

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    no existe uma teoria adequada da neurofisiologia da conscincia. Ao se considerar a conscincia causada por fenmenos biolgicos, seria possvel produzi-la atravs da reproduo das capacidades causais do crebro. De acordo com essa viso, o crebro causa e sustenta a conscincia e suficiente, mas tambm necessrio, para produzi-la. Para haver a emergncia da conscincia humana, todas as particularidades das relaes e interaes biofsicas do crebro so fundamentais, no bastando uma simulao incompleta dessas relaes artificialmente, no sendo possvel um computador criar conscincia ao simular o crebro, pois no possui a mesma estrutura biolgica e fsica dele. Sua concluso tambm se baseia no fato de programas de computador serem apenas sintticos (lidam com smbolos e regras) enquanto a mente tem uma capacidade semntica (atribui valores e significado aos smbolos). Considere, por exemplo, a capacidade perceptiva visual humana. Imagine a situao de olhar para o cu num dia lmpido e ensolarado e notar o azul intenso. A fisiologia da viso explica o mecanismo fsico, com o qual se pode fazer uma analogia com o processamento sinttico do computador, atravs do qual o ser humano consegue ver o azul. Contudo associado a esse mecanismo existe um estado mental de se perceber a cor que possui um aspecto qualitativo de cunho subjetivo, que pode ser distinto para cada indivduo. Ou seja, cada sujeito atribui seu prprio significado e valor experincia de perceber uma cor. Como seria olhar para o mesmo cu e v-lo coberto de nuvens cinzas? Ao se focar a ateno nesses aspectos que diferenciam uma experincia da outra se percebe os aspectos qualitativos de acesso subjetivo das experincias. Este aspecto qualitativo das experincias humanas conhecido nos estudos da filosofia da mente sob o conceito de qualia. Os estados mentais que parecem possuir qualia so as experincias perceptivas, as sensaes corporais, os sentimentos que acompanham os estados emocionais e os humores. Talvez possa se incluir tambm nessa lista a experincia de pensar sobre algo, como, por exemplo, pensar sobre uma experincia e ter o entendimento dela. Atravs das experincias o indivduo estabelece suas inter-relaes com o ambiente, contudo a capacidade semntica da mente de atribuir significado a elas insere nos mtodos de terceira pessoa de investigao da conscincia uma dificuldade referente ao modo de definir e medir suas qualidades abstratas.

    Na fenomenologia, um mtodo filosfico de estudo da mente, existe a definio de conscincia fenomenolgica (phenomenal consciousness), relacionada

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    experincia: sensaes, emoes, ouvir sons, perceber cores, e outros, que gera no indivduo qualidades subjetivas, ou qualia. Existe tambm a definio de conscincia de acesso (access consciousness), entendida como o fenmeno pelo qual as informaes mentais se tornam acessveis para relato verbal.

    Divergindo da posio de Searle, do reducionismo biolgico e do vis dualista de se considerar a conscincia como propriedade da natureza, outras abordagens no estudo da conscincia afirmam que os aspectos mentais esto relacionados diretamente com os estados cerebrais, mas estes no so suficientes para causar os processos mentais subjetivos. Pesquisadores na rea de neurofenomenologia consideram que a conscincia seja uma propriedade emergente da fisiologia cerebral, mas que no existe um substrato neural mnimo que possa explic-la. Uma explanao no reducionista traz o novo desafio de estabelecer previses testveis entre a experincia no nvel da conscincia e os processos fsicos no sistema biolgico cerebral. Nesse contexto torna-se necessrio um mtodo que considere o acesso aos aspectos subjetivos da vida mental pela perspectiva de primeira pessoa, j que um observador externo no pode ter acesso aos estados mentais de outro sujeito, e correlacione os dados subjetivos com aqueles obtidos pelos mtodos de terceira pessoa que investigam os aspectos neurais. Para que esses dados subjetivos possam ser validados importante sua verificao intersubjetiva e, a exemplo do vis fenomenolgico, tambm atribuir a emergncia da conscincia s inter-relaes dinmicas entre um sujeito e outro, no a confinando aos circuitos cerebrais. Neste aspecto as experincias do indivduo ganham destaque para operar as transformaes sobre si mesmo e sobre o ambiente, e elas trazem como atributos indissociveis as qualidades subjetivas que as acompanham. O uso de um mtodo de primeira pessoa, por essa perspectiva, parece ser interessante para valorizar os relatos subjetivos provenientes da experincia humana, complementando os mtodos de terceira pessoa que utilizam aparelhos de medida para verificar os aspectos neurais. Assim busca-se estabelecer as relaes entre aspectos subjetivos e neurais, sem entender a conscincia como uma propriedade independente e nem consider-la passvel de ser reduzida aos substratos fsicos.

    Ao se considerar os aspectos subjetivos fatores relevantes para o estudo e para a compreenso da conscincia, parece oportuno tratar do conceito de subjetividade, que pode ser definida de diferentes formas. Em primeiro lugar

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    subjetividade pode significar uma capacidade de sentir o que interior ao sujeito. Neste sentido a experincia torna-se essencial, sendo constitutiva da prpria subjetividade. A experincia percebida por um determinado ponto de vista interno ao sujeito, que define sua subjetividade. Indivduos diferentes podem passar por experincias semelhantes que cada um vai viver e perceber por sua prpria perspectiva, que caracteriza seu ponto de vista subjetivo. Trata-se de um aspecto relacional e interdependente do indivduo com o ambiente e com ele mesmo. O mundo mesmo no tem ponto de vista, mas meu acesso ao mundo atravs de meus estados conscientes se d sempre em perspectiva, sempre a partir de meu ponto de vista (SEARLE, 1997). Em segundo lugar, como legado cartesiano, a subjetividade independente de toda realidade externa a ela. Significa um local prprio de experincia, isolado e autnomo.

    Um dos problemas no estudo da mente consiste na relao entre subjetivo e objetivo, no que se refere maneira pela qual fatos objetivos no crebro geram o mundo mental subjetivo. Esta dificuldade pode ter suas razes no perodo da revoluo cientfica, tanto pela concepo dualista originada nesta poca, quanto pelo estabelecimento do mtodo cientfico como alicerce da pesquisa da cincia.

    O desenvolvimento da cincia moderna pode ser considerado como tendo se iniciado historicamente no sculo XVII e um dos marcos desse desenvolvimento foi a supresso da conscincia como objeto de estudo da cincia por Descartes. Pela viso dualista cartesiana, o mundo encontra-se dividido de dois modos: o observador est separado daquilo que ele observa (o observado); e os fenmenos fsicos objetivos no mundo externo ou no crebro esto separados dos fenmenos psicolgicos subjetivos e privados na mente. A questo central do que considerado o dualismo cartesiano consiste na interao causal da mente imaterial e do corpo material, enquanto substncias ontologicamente distintas. Eventos mentais causam eventos fsicos e, de forma recproca, eventos fsicos causam eventos mentais. O problema saber como a mente imaterial causa alguma coisa no corpo material.

    Caso no se considere a mente e a subjetividade como possveis objetos de estudo pelo mtodo de averiguao cientfica, as metodologias de terceira pessoa tornam-se privilegiadas no processo de pesquisa, onde o observador um ente externo ao objeto de estudo. A metodologia cientfica busca aspectos mensurveis e objetivos para validao de suas teorias, por isso os meios empregados para obter a incluso da mente nesta forma de averiguao tentam defini-la como objeto ou

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    como derivao direta dos processos biofsicos. Tratar a mente como aspecto abstrato traz seus desafios de medio e de validao. Manter-se no paradigma dualista racionalista intensifica a dificuldade de olhar para o assunto por novas perspectivas. Sem tentar responder a questo do efeito causal de gerao de mente por matria, a idia de correlacionar os estados mentais e neurais em um estudo integrado de relatos subjetivos e medies dos processos cerebrais considera tanto o entendimento de mente como aspecto abstrato relacionado experincia quanto os substratos fsicos passveis de mensurao e que suportam a emergncia da conscincia.

    Separar a mente do corpo e no considerar a conscincia como objeto de estudo pertencente ao mundo natural foi til no sculo XVII porque permitiu aos cientistas concentrarem-se nos fenmenos que eram mensurveis, objetivos e livres de intencionalidade. Buscar um novo entendimento para o assunto relativo interao mente-corpo pode requerer uma redefinio dos conceitos, outra forma de estud-lo ou o uso de metodologias diferentes, e um novo modo de se lidar com a questo inclui o estudo da subjetividade nas pesquisas dos aspectos mentais humanos.

    Como seria incluir a subjetividade nos estudos da mente? Este um problema que precisa ser abordado no estudo da conscincia e pode ser caracterizado como de tipo epistemolgico. Pois para incluir a subjetividade numa metodologia cientfica seria preciso valid-la tornando seu conhecimento objetivo. Como obter conhecimento objetivo das experincias subjetivas?

    Os processos mentais possuem uma caracterstica peculiar no percebida em outros fenmenos naturais, a qual se denomina subjetividade. Esta caracterstica particular da conscincia torna seu estudo desafiador aos mtodos convencionais de terceira pessoa da pesquisa cientfica. Enquanto juzos objetivos podem ser acessados igualmente por qualquer observador, os processos mentais com seus juzos subjetivos no podem. Eles possuem uma existncia de primeira pessoa e, portanto, a relao do sujeito com seus prprios processos mentais no a mesma do que com estados mentais de outras pessoas.

    Um dos modelos utilizados para explicar como se observa o mundo consiste na criao de imagens mentais das entidades objetivas descrevendo-as conforme a concepo de mundo explicado pela cincia, como partculas que compem sistemas que podem interagir entre si compondo objetos ou integrando eventos. No

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    entanto, no se pode criar uma imagem mental da prpria subjetividade. Como fazer para observ-la, ento? Max Velmans (1999) considera que o modelo em que o sujeito responde ao estmulo tendo uma experincia subjetiva descreve incorretamente a fenomenologia da conscincia e sugere um modelo alternativo, o modelo reflexivo, do modo como os eventos do mundo so experimentados pelo sujeito.

    O modelo reflexivo aceita que existe realmente um estmulo fsico no ambiente que a experincia dele representa, ou seja, o estmulo a causa neurofisiolgica da percepo. De acordo com esse modelo no dualista o sujeito no tem uma experincia do estmulo na sua cabea (criao de imagem mental), ele simplesmente tem a percepo do estmulo no ambiente. Ao olhar para um vaso, o indivduo no cria uma impresso mental causada pela percepo do vaso, embora ocorra a sua representao neural e a ativao dos correlatos neurofisiolgicos da conscincia do objeto. Acredita-se que o que um sujeito experimenta seja muito similar ao que outro observador experimenta, considerando que seus aparelhos biolgicos responsveis pela percepo do estmulo sejam semelhantes. Suas descries, por outro lado, podem ser distintas devido s diferentes sensaes, ou seja, a interpretao que cada um d sua percepo depende de valores prprios a cada sujeito. A inferncia de que sujeitos diferentes possam ter experincias semelhantes pode suscitar crticas como a do zumbi filosfico, um ser hipottico desprovido de conscincia e subjetividade que poderia imitar o comportamento de um ser humano mesmo sem sentir o estmulo. Por exemplo, ao sofrer um estmulo doloroso, mesmo sem sentir dor, o zumbi pode retirar a parte afetada e emitir um som que indique a sensao de dor. Ou, com referncia viso do vaso, o zumbi poderia descrev-lo, situao j prevista pelo modelo reflexivo que considera a possibilidade de descries diferentes pelos indivduos. Essa crtica corrobora com as dificuldades que acompanham os processos de mensurao e validao dos aspectos abstratos. No entanto o modelo reflexivo de Velmans no sugere que a semelhana das experincias ocorra pela anlise do comportamento e sim pela similaridade dos aparelhos neurofisiolgicos, tanto que possvel julgar que os comportamentos sejam distintos mesmo que as experincias sejam semelhantes. Embora permanea o desafio de comprovar a semelhana das experincias em indivduos diferentes, assunto que pode ser abordado mais detalhadamente em conjunto com o tema intersubjetividade, a

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    proposta do modelo reflexivo seria sugerir que imagens mentais no so criadas no processo de percepo de estmulos fsicos, e que caso houvesse esse processo de criao ele seria privado e no acessvel a outros observadores. Pelo modelo de Velmans o fenmeno fsico causado pelo objeto seria a prpria experincia do objeto e, portanto, observvel por outro indivduo.

    Considera-se, em geral, que as experincias sejam privativas e subjetivas, enquanto os fenmenos fsicos so pblicos e objetivos. Um observador externo no pode acessar a conscincia de outra pessoa nem a subjetividade dela. O que ele observa o comportamento consciente da pessoa, sua estrutura e o ambiente onde ela interage e, ainda, as relaes entre esses aspectos. No entanto, pelo modelo reflexivo de Velmans no h diferena fenomenolgica entre fenmenos fsicos e a experincia dele. Quando se volta a ateno para o mundo externo, os fenmenos fsicos so simplesmente a experincia que se tem deles. Assim, de certa forma os fenmenos fsicos so privativos e subjetivos como outras coisas que se experimenta, j que cada indivduo vive em seu prprio mundo fenomenolgico privativo. Um indivduo no tem acesso ao objeto fenomenolgico do outro. Mas a no diferenciao entre fenmenos e experincia permite que observadores diferentes possam compartilhar a mesma observao. Em contraposio, justamente a no distino entre a observao e a coisa observada quando se trata de subjetividade consciente que torna impossvel a observao dos prprios eventos internos. O modelo da viso pressupe uma diferenciao entre o objeto visto e a viso deste objeto (modelo dualista, segundo o modelo reflexivo de Velmans). Mas na observao interna no h separao entre a percepo e a coisa percebida. Isto quer dizer que o modelo padro de observao, a introspeco, no funciona para a subjetividade consciente. Seria preciso um mtodo, ento, que considerasse a distino entre o contedo de um ato mental e o processo atravs do qual esse contedo aparece, como prope a meditao da ateno/conscincia, tcnica utilizada pela neurofenomenologia, como componente da metodologia de primeira pessoa desenvolvida.

    Apesar da subjetividade ser uma existncia de primeira pessoa, para Searle no existe a possibilidade de observ-la (formar uma imagem para ela) como parte da viso de mundo existente. Por outro lado, para Velmans, possvel transformar as experincias subjetivas em conhecimento objetivo. Apesar de existir apenas acesso privativo aos fenmenos experimentados ou observados individualmente,

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    pode haver acesso pblico s entidades e eventos que servem de estmulo para os fenmenos. E se os aparelhos perceptivos e cognitivos de diferentes observadores forem similares, pode-se assumir que suas experincias de dado estmulo sejam semelhantes. Deste modo, fenmenos experimentados podem ser pblicos por serem similares ou por compartilharem experincias privativas.

    Cada observao exige o envolvimento de um observador consciente que perceba de acordo com sua perspectiva o objeto observado. A viso de mundo depende do modelo adotado. De acordo com o modelo reflexivo no existe diferena fenomenolgica entre observaes e experincias. Cada observao resulta da interao de um observador com algo observado, sendo nica e dependente do observador. Se as condies de observao puderem ser padronizadas, uma observao pode ser repetida dentro de uma comunidade de observadores, estabelecendo um padro de intersubjetividade por comum acordo. Assim funciona o mtodo emprico: ao testar suas teorias, os cientistas estabelecem critrios de intersubjetividade e repetibilidade e outros, sugerindo que os fenmenos fsicos observados so os eventos que os cientistas experimentam. Embora as metodologias utilizadas para a investigao de eventos fsicos se diferenciem das utilizadas para os eventos mentais, os critrios epistemolgicos aplicados para a investigao cientfica podem ser os mesmos. Para Velmans (1999), se o mtodo emprico for destitudo da perspectiva dualista, ele pode ser aplicado tanto para as cincias naturais quanto para a cincia da conscincia, pois sua base se constitui por seguir determinados procedimentos cuja observao ou experincia produziro determinados resultados. No entanto, o desenvolvimento do aparato tecnolgico decorrente das pesquisas cientficas um fator que certifica a relao direta entre teoria e seu controle sobre a natureza dentro dos limites especificados, e, no caso dos estudos dos aspectos mentais, no existe um construto que garanta uma relao direta entre estado mental e sua atuao sobre a natureza.

    Portanto mesmo que o modelo reflexivo sugira a possibilidade de comprovao intersubjetiva, sua utilizao para a investigao dos estados mentais no esclarece a questo de sua validao frente a valores objetivos. Mesmo para o uso de metodologias de primeira pessoa para o estudo da conscincia humana existem divergncias. Para Searle, por exemplo, que acredita que o crebro seja suficiente para causar os estados mentais, no existe a possibilidade de se observar a subjetividade e, portanto, no seria possvel o uso de mtodos de primeira pessoa

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    para pesquis-la. No se pode atingir a realidade da conscincia da forma que, utilizando a conscincia, se pode atingir a realidade de outros fenmenos (SEARLE, 1997). Portanto as controvrsias para o seu uso giram em torno de como se define conscincia, das proposies de como medi-la e dos meios utilizados para a investigao cientfica da mente.

    O entendimento de mente como uma substncia natural independente de fatores fsicos, como considera o dualismo ortodoxo, apresenta dificuldades de comprovao e validao frente a dados objetivos, fazendo com que a discusso permanea no terreno reflexivo e filosfico. O reducionismo biolgico, que considera que os estados mentais sejam indiferenciados dos fenmenos fsicos que os causam, acredita que os avanos dos estudos neurocientficos possam trazer o entendimento de conscincia. Os mtodos de primeira pessoa podem complementar os mtodos de terceira pessoa no estudo cientfico da conscincia humana considerando-se que os estados mentais sejam uma emergncia dos fenmenos fsicos, mas que estes no so suficientes para ger-los nem para explic-los. Falta, portanto, o acesso ao ingrediente que se refere aos aspectos subjetivos qualitativos destes estados mentais, que surgem como decorrncia da experincia do indivduo. O acesso aos estados subjetivos ocorre por uma perspectiva de primeira pessoa e, para tornar o relato deles vlido num estudo cientfico, torna-se preciso fazer sua verificao intersubjetiva, ou seja, mostrar sua correspondncia perante outros sujeitos, e compar-lo aos dados objetivos.

    2.2 DADOS SUBJETIVOS E INTERSUBJETIVIDADE

    O termo hard problem da conscincia, formulado por David Chalmers, se refere ao difcil problema de explicar por que as pessoas tm experincias fenomenolgicas qualitativas, ou qualia, como as sensaes corporais, como a dor, ou os sentimentos, como alegria e tristeza, ou ainda os humores, estar deprimido ou de mau-humor. Por outro lado, a explicao da habilidade de discriminao, de integrao de informaes, relato de estados mentais, foco de ateno e outros so considerados como easy problems, ou problemas fceis. Problemas fceis so fceis porque o que necessrio para sua soluo especificar um mecanismo que possa realizar a funo. Ou seja, as solues propostas, independentes de sua

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    complexidade, so consistentes com a concepo materialista de fenmenos mentais, j que, em geral, podem ser relacionadas diretamente com funes neurofisiolgicas. Os problemas fceis se relacionam com a explicao de habilidades e funes cognitivas. J o problema difcil no se trata de um problema relacionado com a realizao de uma funo. Os problemas difceis so distintos porque eles persistem mesmo quando o funcionamento de todas as funes relevantes foi explicado (CHALMERS, 1995).

    Mesmo aps a explicao da realizao das funes cognitivas e comportamentais como a percepo sensorial, a categorizao e o relato de estados mentais, ainda permanece a questo do porqu a realizao destas funes acompanhada pela experincia, isto , mesmo que se entenda neurofisiologicamente como um estmulo doloroso processado, permanece a questo de se entender porque existe o sentimento de dor, o que corresponde conscincia central definida por Damsio. Para Chalmers essa uma questo fundamental no problema da conscincia. Existe uma lacuna explicativa (explanatory gap) entre funo e experincia. Os mtodos utilizados para a explicao da realizao das funes cognitivas no so suficientes para explicar a experincia, termo usado no sentido de aspecto subjetivo que acompanha o processamento das funes mentais.

    A conscincia central ou sentir o sentimento aquilo que emerge quando o organismo detecta que a representao de seu estado corporal se modificou. O organismo tem uma percepo consciente do sentimento. Este processo decorre de relaes temporais de certos estados neurais associados aos estados emocionais e ao sentimento. A emoo descrita como uma reao neural inconsciente a um estmulo. A atividade neural decorrente do estado emocional opera modificaes no corpo que podem ser observadas externamente. O sentimento descrito como a apreenso ainda inconsciente deste estado corporal e, finalmente, a percepo da modificao do estado corporal de antes para depois do estmulo propicia o sentir o sentimento (DAMASIO, 2000). Esta explicao mostra como o organismo detecta uma representao neural antes do estmulo, outra depois do estmulo, compara as duas e percebe a diferena. Mas ela ainda no esclarece o que o sentimento, nem por que a deteco da modificao do estado corporal precisa ser acompanhada pelo sentir o sentimento.

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    Patrcia Churchland (1996) critica a diviso de Chalmers que considera o estudo da conscincia como hard problem. Para ela no compreender totalmente o fenmeno da manifestao da conscincia se deve ao fato do estudo neurocientfico ainda se encontrar em seus primrdios. Importante seria fazer a pergunta correta que buscasse entender o processo e prosseguir com a pesquisa cientfica. Mas a questo se as neurocincias seriam suficientes para responder como a conscincia se manifesta, noo que parece ter o apoio de Churchland, de Searle e de Damasio. Os embates em torno deste assunto existem provavelmente devido s diferentes formas de se definir o que mente e de entender como ela funciona. Prope-se aqui apresentar um modelo que considere tanto a fenomenologia das experincias subjetivas quanto a neurobiologia da conscincia de forma integrada, pois o seu uso sugere a possibilidade de correlacionar empiricamente aspectos mentais abstratos com os fenmenos fsicos que os suportam e assim ampliar o entendimento de conscincia.

    Para que essa correlao possa seguir procedimentos especficos que sejam verificveis, seria importante tornar os dados subjetivos vlidos no estudo cientfico da mente atravs de uma averiguao intersubjetiva, ou seja, fazer com que fosse possvel apurar se as sensaes de um sujeito podem ser sentidas por um outro sujeito. Como no possvel a transferncia direta de dados de uma mente para outra, pelo menos no com a tecnologia atual, talvez apenas por uma outra concepo de transmisso de dados mentais, essa discusso pode ser estendida ao campo fenomenolgico. A comunicao crebro-a-crebro permitiria que o pensamento de um indivduo fosse transmitido diretamente para o crebro de outra pessoa e captado em sua ntegra. No caso de humanos, como no podem ser usados mtodos invasivos, ou seja, no se pode inserir diretamente um dispositivo dentro de seu crebro e conect-lo a outro, seria preciso captar os sinais gerados pelo pensamento atravs de eletrodos, obter um sistema que decodificasse esses sinais, retransmitisse para o crebro de outra pessoa e ela decodificasse a informao enviada. Especulaes parte, preciso averiguar a possibilidade de uma comunicao intersubjetiva atravs das teorias existentes.

    Pode-se entender intersubjetividade de trs formas. Pode ser entendida como a ateno que mais de um indivduo confere a objetos de referncia comum quando compartilham uma conversa, ou seja, vrios indivduos que possuem valores comuns por pertencerem a uma comunidade estabelecem critrios intersubjetivos na

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    observao dos objetos. Num jogo, por exemplo, a ateno que os jogadores colocam sobre as cartas diferenciada da que os espectadores colocam. O significado das cartas, dos gestos, dos smbolos do jogo entre os jogadores possui critrios percebidos e entendidos entre eles que fogem do conhecimento dos no jogadores. Outro significado o de comunho interpessoal entre sujeitos que mutuamente esto sintonizados em seus estados emocionais e em suas respectivas expresses (COELHO Jr. 2003). Este ltimo significado faz uma inferncia possibilidade de se compartilhar os estados subjetivos abstratos como sendo uma faculdade humana percebida, mas que no pode ser verificada objetivamente.

    Intersubjetividade pode ser tambm uma capacidade de inferir sobre intenes e sentimentos dos outros, envolvendo uma possibilidade de conexo com os estados mentais de outros sujeitos. Este significado est relacionado ao conceito de empatia, que tambm pode ser referido teoria da mente, que a capacidade da pessoa deduzir o que a outra est pensando ou sentindo. Por exemplo, algum com um cigarro na boca pergunta outra pessoa se ela tem fsforo e a pessoa oferece um isqueiro, ou seja, ela fez uma inferncia de que o indivduo queria fumar e no tinha nada para acender o cigarro, embora ele no tivesse dito explicitamente o que queria.

    O primeiro significado pode ser verificado no modelo proposto por Velmans, onde toda observao, embora seja necessariamente subjetiva por advir da perspectiva individual de um dado observador, pode se tornar intersubjetiva quando compartilhada com outro observador que pertena a uma mesma comunidade, no sentido de possuir linguagem comum, estruturas cognitivas e treinamento comuns. Ou seja, pertencer a um domnio comum de conhecimento. Domnio de conhecimento pode ser definido como o domnio de aes aceitas como legtimas em determinado campo da prtica de vida de um observador. Um domnio de ao, por sua vez, se constitui por um critrio de validao de suas explicaes empregado pelo observador (MATURANA, 1996). Observadores que empregam o mesmo critrio de validao para suas explicaes operam em domnios cognitivos que se intersectam. Os jogos, as cincias, as religies, as doutrinas polticas, os sistemas filosficos constituem diferentes domnios onde os observadores operam e de onde retiram suas explicaes, determinando domnios de aes e, portanto, de conhecimento, distintos. Para Husserl, acreditar que algum que se parea e se comporte de forma semelhante ao prprio sujeito deva perceber as coisas de um

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    modo relacionado a si prprio de maneira similar a do sujeito em questo, como se um pudesse perceber as coisas de uma perspectiva semelhante a do outro, uma crena fundamental que permite a experincia intersubjetiva. Por isso mais fcil perceber o que o outro est pensando ou sentindo caso ele seja conhecido. Alguns aspectos, no entanto, ultrapassam as barreiras culturais e as diferenas entre os idiomas, como por exemplo, a capacidade de sentir amor. Esta crena permite que se possa atribuir atos intencionais (possuidores de propsito) ao outro de maneira imediata, sem a necessidade de fazer alguma inferncia, denotando, portanto, uma crena de base do sistema de padro de crenas, baseadas nas quais as atitudes tomadas fazem sentido e podem ser justificadas. Thompson (1999) define este tipo de interao como empatia sensual, por advir dos sentidos. Para este tipo de empatia ser possvel o corpo de um determinado indivduo e o do outro precisam ser similares, j que o corpo do outro percebido pelo sujeito como sendo animado por campos de sensao prprios. Talvez seja possvel dois seres diferentes terem empatia entre si, mas quanto mais distintos forem os sistemas biolgicos, mais difcil deve ser perceber o que o outro sente. possvel um homem acreditar que um co sinta dor ao ser chutado pelo dono e que talvez at mesmo fique triste. Mas muito difcil depreender que uma planta sinta algo ao ser arrancada da terra.

    As formas intersubjetivas de comunicao podem ser valorizadas em diversas teorias, como na psicologia e na fenomenologia, que assumem a relevncia da alteridade na constituio do sujeito, ou seja, a importncia da existncia de um outro indivduo, e da relao com ele, para que o sujeito se desenvolva e organize seus pensamentos e comportamentos. Assim como a experincia constitutiva da subjetividade, pois a partir da experincia ocorre a emergncia de estados subjetivos, a relao com o outro organizadora do entendimento do indivduo sobre si e sobre o ambiente. Como o foco neste momento considerar que a experincia subjetiva de um determinado sujeito possa ser de alguma forma compartilhada com outro para que os dados subjetivos possam ser utilizados dentro de uma metodologia que possa valid-los, o interesse se desvia da linha psicolgica e da psicanaltica, mantendo-se alinhado com a viso da filosofia fenomenolgica.

    Na tradio fenomenolgica existe na formao do Eu um Outro. A questo seria se possvel perceber realmente o que o outro Eu sente. Supe-se que sim, j que a comunicao ocorre entre um Eu e Outro, sendo que o Outro percebido como semelhante ao Eu.

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    O problema de se forjar uma comunicao entre os extremos eu e outro pode ser considerado fruto da distncia estabelecida por Descartes entre conscincia e mundo objetivo, entre res cogitans e res extensa. H uma tentativa de superao da dualidade eu-outro, e tambm sujeito-objeto, atravs da concepo husserliana de uma conscincia intencional. S se pode conhecer o outro de forma mediada, ou seja, por meio da conscincia de um sujeito, que j no mais uma conscincia fechada em si, mas sim uma conscincia-de-algo, aberta ao mundo conscincia intencional. Torna-se necessria essa mediao para que o outro aparea. Como presena imediata existe apenas a conscincia de si prprio. O outro s existe no sentido da conscincia intencional como experincia do sujeito, ou seja, o indivduo s percebe o outro atravs de uma ao, o ato de se relacionar com ele atravs de uma inteno. O mundo que cada um vivencia sempre o seu prprio mundo, embora intencionalmente dirigido a um outro objeto ou a uma outra conscincia. Mas a conscincia individual continua a ter prevalncia na tarefa de conhecimento sobre o mundo e sobre os outros. Husserl introduziu uma perspectiva de superao da distncia entre sujeito e objeto, mantendo-se, no entanto, em uma tradio cartesiana de autocentramento.

    A tradio fenomenolgica prope ainda uma segunda possibilidade de soluo para o problema epistemolgico: conceber a intersubjetividade como constituda a partir de experincias de compartilhamento da realidade, ou seja, as inter-relaes do indivduo com o ambiente, incluindo as relaes com outro sujeito, efetuam transformaes tanto sobre o indivduo quanto sobre o ambiente, e indivduos diferentes compartilham essa mesma possibilidade de atuao sobre a realidade. Aqui ganham relevo as noes de corpo vivido, percepo e co-construo da realidade, j que, para haver a possibilidade de trocas intersubjetivas, o indivduo deve passar por experincias, atravs das quais o sujeito constitui sua perspectiva de ver o mundo que possibilita que ele perceba em outro sujeito a existncia de estados internos similares por ter passado por experincias semelhantes. A co-construo da realidade ocorre pois na interao com o ambiente o indivduo se transforma e opera transformaes sua volta. Esta abordagem compreende uma interao conjunta de um mundo e uma mente com base numa histria de aes diversas realizadas pelo ser no mundo. A concepo desses termos apresenta um afastamento das filosofias representacionais, j que estas consideram a perspectiva de representaes simblicas do mundo fsico objetivo.

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    Pela abordagem representacional sujeito e mundo so dois entes pr-existentes. A relao cognitiva se assenta na representao de caractersticas ambientais extrnsecas e independentes do sujeito cognitivo.

    A experincia intersubjetiva exerce um papel fundamental tanto na constituio do indivduo como sujeitos existindo objetivamente, quanto como sujeitos que sofrem uma experincia em relao ao mundo objetivo (HUSSERL, 1982). Do ponto de vista de primeira pessoa a experincia intersubjetiva uma experincia emptica que ocorre no curso da atribuio consciente de atos intencionais a outros sujeitos, momento em que um indivduo se coloca no lugar do outro. O sistema de crenas que um indivduo possui confere a ele suas justificativas para suas atitudes dirias em relao a ele mesmo, ao mundo objetivo e aos outros. A auto-imagem que o sujeito cria de si como uma pessoa com aspectos psicolgicos e fsicos no mundo objetivo advm das prticas determinadas por esse sistema. preciso tambm identificar o outro corporalmente, com seu prprio ponto de vista, para se atribuir atos intencionais a ele. A partir da perspectiva de cada sujeito, o outro indivduo aparece como um objeto fsico, que pode ser identificado como um corpo humano com vida capaz de sofrer experincias, critrio que se aplica tanto ao prprio indivduo quanto aos outros. Um sujeito permanece exposto ao outro e pode sempre assumir a perspectiva do outro, mesmo que diferente, como sendo sua prpria.

    Poder-se-ia verificar ento que o corpo do outro seria parecido com o prprio enquanto ele continuar manifestando comportamentos esperados de um corpo humano vivo. Mas o grande desafio para o entendimento (aceitao da intersubjetividade) seria aceitar essa possvel transferncia de sensaes, j que o corpo do outro pela perspectiva de um sujeito s pode ser acessado pelo lado externo, enquanto o seu prprio possui interioridade. Ser que as semelhanas seriam suficientes para a transferncia?

    Ao investigar a possibilidade de um indivduo ter a experincia de um outro, Husserl refere-se ao que denomina de "esfera prpria ou primordial (COELHO Jr., 2003). Com isso, Husserl busca ressaltar que o outro no surge nessa esfera de originalidade, ou seja, existe uma fronteira que define o indivduo como tal e o separa do ambiente e dos outros. Se o outro pudesse adentrar essa fronteira, o prprio outro seria acessvel de forma direta e, desse modo, o eu e o outro seriam o mesmo. O que pertence a essa esfera original apenas a experincia que se tem

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    do outro - as experincias de empatia. O outro outro porque suas vivncias no podem pertencer a um sujeito de forma original, ou seja, dentro das fronteiras definidas pela esfera de originalidade cabem o que define o indivduo como ele prprio e as experincias de relao que ele tem com o ambiente e com o outro sujeito. O outro se manifesta como outro porque ele no pode ter as experincias a partir da esfera de originalidade de um indivduo que no seja ele prprio.

    Enquanto Husserl defende a mediao da conscincia para se conhecer o outro, Maurice Merleau-Ponty, outro expoente da filosofia fenomenolgica, considera fundamental correlacionar o conceito de intersubjetividade com o de percepo. Seu entendimento de percepo engloba todas as modalidades perceptivas e suas inter-relaes. Percepo compreendida como um processo de origem, enraizada na relao dialtica do organismo e seu ambiente, que concebe tanto o sujeito quanto o objeto da percepo (MERLEAU-PONTY, 1964). Neste sentido a percepo no apenas uma experincia dos objetos, mas uma conexo com eles. Ou seja, a percepo ocorre pela perspectiva de um sujeito, que tem seu corpo como ponto de referncia, mas sempre em relao a algum outro indivduo.

    Existe uma correspondncia entre movimentos corporais e aspecto perceptivo que mostra que qualquer movimento ou mudana de posio provoca uma mudana em como as coisas aparecem, ou seja, a posio de um indivduo influencia sua perspectiva de percepo, para um sujeito deitado, os que esto de p podem parecer mais altos do que so quando ele prprio se levanta. Toda percepo cinestesicamente motivada, portanto o espao do corpo imbudo de experincia em conjunto com o ambiente abrange uma gama de situaes cujos contornos so ativados pelo corpo.

    Embora o homem possa ser identificado corporalmente como objeto, no se assemelha a qualquer outro objeto inanimado, pois se conecta aos outros objetos atravs da conscincia. Intersubjetividade seria uma tentativa de entender que um indivduo tanto sujeito quanto objeto, onde o sujeito o seu corpo e sua situao que atua no mundo por algum tipo de intercmbio.

    Pela perspectiva atuacionista ou interacional de Francisco Varela (2003), neurocientista cognitivo que deu prosseguimento neurofenomenologia e permitiu um entendimento mais amplo dela, torna-se relevante distinguir o corpo vivido do corpo objetivo, distino essa que oriunda dos trabalhos de Husserl e Merleau-Ponty. O corpo objetivo o corpo observado como objeto que pode ser

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    cientificamente analisado; o corpo vivido o corpo que vive do incio ao fim e sustenta o ato da percepo (THOMPSON, 1999). No h oposio nesta definio, pois o corpo vivido o prprio organismo humano, deve-se considerar apenas uma mudana de perspectiva. Atravs dessas definies existe a busca de superao do dualismo entre corpo e mente, pois, embora o corpo objetivo (corpo) possa ser identificado como objeto, enquanto estiver imbudo de vida possuir estados mentais. O corpo vivido, por sua vez, cuja constituio bsica o prprio corpo objetivo, considera tanto os aspectos fisiolgicos quanto os subjetivos para poder ancorar a percepo. Esta concepo fundamenta o entendimento de conscincia humana pela viso atuacionista, qual seja um modo relacional de ser da pessoa incorporada inserida em seu ambiente e no mundo social humano. A conscincia humana individual emerge das inter-relaes dinmicas do eu e do outro, , portanto, inerentemente intersubjetiva (THOMPSON, 1999).

    H uma possibilidade de ultrapassar a distino subjetivo/objetivo se aquilo que o indivduo expressa oralmente for igualado forma como ele interage corporalmente nas situaes. Interao significa o campo de conexo onde a percepo possvel. Merleau-Ponty oscila entre aceitar a experincia subjetiva como um aspecto da intersubjetividade e considerar as suposies de que subjetividade seja um atributo individual interno. Ele busca enfatizar a conexo com o outro, mais do que a forma exterior discreta de cada sujeito perante o outro (MADISON, 2001).

    O mundo percebido o mundo das inter-relaes entre corpos e coisas e entre corpos e outros corpos. Desse prisma, no concebvel uma assim chamada "realidade objetiva" que pudesse emergir como independente do sujeito, do mesmo modo que o sujeito no tem como ser pensado como independente de outros. Merleau-Ponty formula que intersubjetividade consiste em uma experincia perceptiva comum, uma co-percepo. Ou seja, pela viso atuacionista de Varela e pela perspectiva de Merleau-Ponty, o indivduo se forma e se transforma atravs de sua atuao no mundo. A realidade vai se constituindo atravs dessa interdependncia de relaes.

    Para Husserl, embora possa existir uma realidade objetiva, o mundo espao-temporal constitudo intersubjetivamente. Para ele, para que algum possa se colocar no lugar do outro e simular sua perspectiva sobre o mundo em torno, preciso assumir que este mundo seja coincidente com o seu prprio, embora os

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    aspectos com os quais o outro sujeito representa o mundo sejam diferentes, pois depende de sua prpria perspectiva. Logo se pode pressupor que os objetos espao-temporais formando o mundo de algum devem existir independentemente de sua perspectiva subjetiva e de suas experincias particulares, mas devem ser concebidos como parte de uma realidade objetiva. No entanto, o mundo objetivo constitudo pela experincia intersubjetiva no deve ser considerado completamente independente dos aspectos atravs dos quais o sujeito representa o mundo. Outra condio para a possibilidade da experincia intersubjetiva a suposio de que o outro sujeito estrutura o mundo em objetos da mesma maneira que o indivduo faz. Mesmo considerando a existncia de uma realidade objetiva independente do sujeito, ainda assim so as inter-relaes dinmicas entre os indivduos e entre sujeito e ambiente que operam as transformaes e permitem as trocas intersubjetivas.

    O corpo vivido encontra-se entrelaado com o ambiente e com o outro no mundo humano interpessoal. Embora se possa estar ciente de vrias instncias que acometem o corpo em determinado momento, a muitas outras o corpo no est atento, como, por exemplo, ao fluxo de sangue que circula atravs dele. A esta instncia, os fenomenologistas denominam corpo ausente disponvel e constitui uma estrutura invarivel da experincia incorporada. Este corpo no modo ausente disponvel sustenta o sentido da existncia de um eu de forma pr-pessoal, isto , anterior ao momento em que o sujeito percebe a si mesmo como indivduo imbudo de percepo. Ele est l, disposio, mas num modo diverso daquele experimentado conscientemente que parece pertencer ao eu. O senso de identidade pessoal possui relao direta com a percepo do espao. As coisas so experimentadas como estando localizadas em relao ao prprio sujeito que as experimenta. E o corpo que experimenta o mundo no pode estar presente inteiramente como um objeto; ele existe permanecendo ausentemente disponvel. Portanto o corpo vivido no nem sujeito nem objeto. Junto com o ambiente ao qual ele responde forma uma estrutura unitria que emerge por interao recproca, descrito por Varela, Thompson, e Rosch (2003) como acoplamento estrutural. Para eles comportamento adaptativo consiste na interao contnua entre o sistema nervoso, o corpo e o ambiente, cada um com sua dinmica extremamente complexa.

    Os achados do neurocientista Rizzolatti (apud Thompson, 1999) encontram-se em desacordo com a viso tradicional das cincias cognitivas que afirmam que as

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    percepes so construdas de informaes sensitivas elementares atravs de uma srie de representaes progressivamente mais complexas. Para ele, em contraste, seus achados marcam a importncia das reas motoras e das vias moto-sensoriais para a construo do objeto e da percepo espacial e a artificialidade de se construir divisrias rgidas entre as representaes motoras e sensoriais.

    Na experincia humana o corpo vivido e o mundo se entrelaam de acordo com a dinmica interpessoal do eu e do outro. As crianas imitam os gestos faciais de outra pessoa antes mesmo de adquirir uma imagem visual delas mesmas. A idia para o funcionamento deste esquema advm do uso de sua ateno proprioceptiva de seus prprios movimentos faciais (no visveis) para copiar o que ela v na face da outra pessoa. Este esquema une as modalidades perceptivas visual e proprioceptiva uma com a outra e com processos motores de ao. A trajetria desta dinmica interpessoal no se d de dentro para fora, ou seja, a criana no se experimenta primeiro proprioceptivamente e depois transfere o senso de eu externamente para reconhecer o outro como sendo igual a ela. No h necessidade de transferncia porque o esquema j intersubjetivo. O esquema corporal, trabalhando sistematicamente com ateno proprioceptiva, opera como um self proprioceptivo que j se encontra acoplado com o outro (GALLAGHER & MELTZOFF apud Thompson, 1999). A estrutura intersubjetiva do eu e do outro se torna cada vez mais cognitiva conforme a criana se desenvolve.

    Como a presena perceptiva do corpo ocorre com ele sendo ausentemente disponvel, o corpo emerge como o seu prprio no atravs do sentido de toque, mas atravs de apresentao afetiva. O afeto um tipo de ponte entre o pr-pessoal e o pessoal e entre o eu e o outro. O afeto opera antes da conscincia, o indivduo afetivamente motivado e orientado antes que ele se torne consciente, e emerge pessoalmente nos sentimentos e emoes corporais. Ele torna o corpo vivido pertencente ao prprio indivduo enquanto conecta um ao outro.

    Finalizando os comentrios a respeito do ltimo significado de intersubjetividade citado anteriormente, o conceito de empatia discutido na fenomenologia pode prover uma fundamentao filosfica para a validao intersubjetiva dos dados subjetivos, embora a teoria da mente conjeture que cada indivduo s possa provar a existncia de sua prpria mente j que no tem acesso direto mente de outra pessoa. Empatia o modo bsico de cognio no qual possvel apreender as experincias dos outros. Na fenomenologia a empatia

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    entendida como um tipo direto de experincia distinta da percepo sensorial. Pela percepo apreende-se as coisas do mundo, pela empatia apreende-se experincias diferentes da do prprio indivduo. Ambas so experincias diretas, assim como a percepo sensorial fornece a coisa propriamente dita, no uma representao da coisa, a empatia fornece a experincia de outro e no sua representao. Empatia um tipo de experincia direta na qual apreendemos diretamente a experincia de outra pessoa sem passarmos pela experincia ns prprios (THOMPSON, 1999).

    Quando algum v uma outra pessoa, percebe seu corpo no apenas como algo fsico, mas como um corpo vivido como o seu, Portanto, empatia no se trata apenas de apreender as experincias dos outros, mas, mais fundamentalmente, se trata da experincia do outro como sendo similar deste algum.

    O outro percebido como sendo outro centro de orientao do mundo. A experincia do espao e o senso de identidade prprio de um indivduo esto unidos. O espao percebido sempre a partir de uma determinada pessoa. Perceber o outro como tendo seu prprio espao a partir do qual ele se orienta perceber que ele possui um espao definido por seus prprios movimentos corporais. Perceber o outro como sendo senciente e capaz de seus prprios movimentos corporais faz com que exista um aqui para ele, o que no faria sentido se ele fosse um objeto inanimado. A empatia, neste nvel de percepo, fornece uma perspectiva na qual o centro de orientao de um indivduo se torna um entre outros centros de orientao, e torna possvel um campo intersubjetivo onde no existe um nico centro de orientao.

    Assim como a percepo do outro se d empaticamente, a apreenso do sentido do prprio corpo, um corpo vivido e no apenas um corpo fsico, acontece sabendo-se que o outro percebe o sujeito empaticamente a partir de seu prprio centro de orientao. Sendo assim, a prpria constituio do eu intersubjetiva. O corpo do outro tambm percebido como sendo animado por sentimentos de vida e expressivo de experincias.

    Alm da empatia sensual, citada anteriormente, entendida como o corpo do outro como similar ao do sujeito, possuindo sensaes prprias, outro tipo de empatia seria a reiterada, definida como a pessoa se vendo pela perspectiva do outro. Isto , a pessoa no apenas tem a experincia de si prpria como um ser senciente de dentro, ela tem a experincia dela prpria como reconhecidamente

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    senciente de fora, ou seja, pela perspectiva do outro. Portanto o senso de identidade inseparvel do reconhecimento pelo outro e da habilidade de perceber este reconhecimento na empatia. A empatia reiterada tambm torna possvel a auto-refelxo em que o indivduo se imagina pelo lado de fora, ou seja, imaginar-se vendo como sendo visto por outra pessoa.

    Estes pontos consideram no apenas o nvel bsico de sencincia, mas tambm nveis psicolgicos mais altos. Isto , avaliar a percepo interna conjuga deparar-se com a prpria personalidade, ou seja, ver o outro de determinada forma e saber que o outro v o sujeito de seu modo particular. Sem a empatia reiterada envolvendo o reconhecimento do outro, uma pessoa no poderia se perceber como indivduo em seu sentido mais amplo, o de uma pessoa no mundo intersubjetivo. A validao dos dados subjetivos pela possibilidade de compreend-los como intersubjetivos pode ser assim resumida: Uma das razes que a conscincia humana no uma esfera subjetiva privativa que a conscincia de si prprio como um indivduo incorporado alcanada em empatia reiterada com o outro (THOMPSON, 1999).

    A validao intersubjetiva to fugaz quanto a verificao dos estados subjetivos, por se tratar tambm de um aspecto abstrato. No entanto, seja por inferncia, seja por empatia, ou por comunho de valores, a busca de se conferir um relato subjetivo com outro indivduo traz a perspectiva de se compartilhar as experincias, enquanto os fenmenos privativos permanecem sem possibilidade de troca. Os modelos existentes para o estudo da mente podem apresentar divergncias no modo de defini-la e de investigar os meios para confirmar a definio proposta, mas no negam a existncia de estados subjetivos. Os relatos de primeira pessoa fornecem um vis importante referente ao acesso experincia perceptiva, mas no se trata de considerar de modo isolado aquilo que acontece dentro do sujeito. O acesso s realidades interna e externa ocorre atravs de relatos, sendo, portanto, necessrio estabelecer metodologias que possam utilizar essas informaes, tornando-as compatveis com os dados neurofisiolgicos obtidos por medio adequada. Pela abordagem que considera que os estados mentais possuem tanto uma correspondncia com os substratos neurais quanto com a vida subjetiva, ater-se apenas a um dos dois lados da questo seria insuficiente para o seu entendimento. O exame cuidadoso dos componentes dos relatos, para evitar eventuais redundncias por pretensa familiaridade, e sua exposio verificao

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    objetiva, como uma garantia do processo de validao intersubjetiva, devem fazer parte da metodologia aplicada.

    A proposta de metodologias de primeira pessoa se refere ao lado introspectivo, como relato das experincias humanas de domnio subjetivo, em que pesa o processo de autoconhecimento como mediao. Contudo pretende-se cercar os procedimentos com objetividade para prover um tratamento cientifico para a validao intersubjetiva, com o estabelecimento dessas metodologias.

    Mesmo que permaneam as dificuldades para definir e mensurar os aspectos abstratos da experincia humana, a proposta de valid-los frente a dados objetivos por procedimentos especficos confere a possibilidade de verificao da teoria, portanto colocando-a prova.

    Como as tcnicas de medio da atividade cerebral apresentam limites para explicar os estados mentais, j que observaes de terceira pessoa no podem acessar o contedo da atividade neural, utilizar um outro mtodo que considere a perspectiva de primeira pessoa poderia ser relevante para se compreender os aspectos subjetivos e a conscincia humana.

  • 3. LIMITAES DO MTODO CIENTFICO PARA A INVESTIGAO DA CONSCINCIA E AS METODOLOGIAS DE PRIMEIRA PESSOA

    3.1 ABORDAGEM DOS MTODOS DE TERCEIRA PESSOA PARA A INVESTIGAO DA CONSCINCIA HUMANA

    A abordagem de terceira pessoa para o estudo da conscincia humana se ampara em investigaes empricas da atividade cerebral e do comportamento, baseando-se na observao de estados neurais. Assim busca-se explicar os estados cognitivos que acompanham o comportamento humano como estados fisiolgicos do crebro. Algumas das tcnicas privilegiadas para o estudo da atividade cerebral em seres humanos so o eletroencefalograma (EEG) e a ressonncia magntica funcional (RMF).

    A eletroencefalografia consiste no registro de atividade eltrica sobre o escalpo produzida pelo disparo de neurnios do crebro. O registro corresponde atividade causada por potenciais ps-sinpticos de neurnios presentes no crtex cerebral. Como o potencial eltrico gerado por um neurnio muito pequeno para ser captado, a atividade registrada pelo EEG corresponde atividade sincrnica de milhares de neurnios. De forma resumida, existem dois tipos de sinais no crebro, spikes, que so sinais neuronais discretos, e LFP (local field potential), que so sinais contnuos gerados por uma populao de neurnios ativados que produzem um campo. O LFP pode ser um marcador de sincronicidade neural. Com o eletroencefalograma mede-se sinal do tipo LFP cortical. A atividade eletroencefalogrfica mostra oscilaes em uma variada gama de freqncias, que se encontram associadas a diferentes estados do funcionamento cerebral, como, por exemplo, indicando o estado de alerta e os diferentes estgios do sono. As oscilaes, por representarem a atividade sincronizada de um grupo de neurnios, indicam regies do crebro com as quais uma atividade cognitiva possa estar relacionada, embora a aquisio de sinais pelo EEG possa apresentar rudos captados de outras partes do crebro. A frequncia alfa, por exemplo, que indica uma oscilao de 8 a 12 hertz, medida nas regies posteriores da cabea, pode estar relacionada com um estado de relaxamento ou de reflexo.

    A ressonncia magntica funcional mede a mudana de fluxo sanguneo relacionada atividade neural. Quando a atividade das clulas neurais aumenta,

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    seu consumo de energia aumenta provocando um maior aporte sanguneo para a regio. A tcnica de RMF indica, portanto, a correlao de regies cerebrais e aumento de volume sanguineo no local devido a um aumento da atividade neural provocada por uma atividade sendo executada pelo indivduo. Quando o indivduo v uma imagem, por exemplo, seu crtex visual, localizado no lobo occipital encontra-se ativado.

    Estas tcnicas perm