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REFORMA PROTESTANTE: UM RESUMO DOS PRINCIPAIS MOVIMENTOS José Carlos Ribeiro da Silva Profa. Msc. Carolina dos Anjos Nunes de Oliveira Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Licenciatura em História (HID 0290) História Antiga 28/11/2013 RESUMO Há de se afirmar, e de forma categórica, que o tema central de toda a Reforma Protestante do século XVI é o da liberdade. Portanto, diante de tal constatação, torna-se imperativo conhecer um pouco sobre a Reforma, como movimento fundamentalmente “religioso”, porém, com profundas conseqüências sociais, institucionais, políticas, econômicas e culturais. O propósito do estudo em foco é lançar um olhar histórico-analítico sobre o período da Reforma Protestante, considerando seu pano de fundo, de forma bastante concisa, especificamente suas bases e condições políticas, econômicas, culturais, sociais e religiosas através dos principais expoentes da reforma: os pré-reformadores, os reformadores propriamente ditos e os movimentos (contrarreforma, luteranismo, calvinismo e anglicanismo).

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Há de se afirmar, e de forma categórica, que o tema central de toda a Reforma Protestante do século XVI é o da liberdade. Portanto, diante de tal constatação, torna-se imperativo conhecer um pouco sobre a Reforma, como movimento fundamentalmente “religioso”, porém, com profundas consequências sociais, institucionais, políticas, econômicas e culturais. O propósito do estudo em foco é lançar um olhar histórico-analítico sobre o período da Reforma Protestante, considerando seu pano de fundo, de forma bastante concisa, especificamente suas bases e condições políticas, econômicas, culturais, sociais e religiosas através dos principais expoentes da reforma: os pré-reformadores, os reformadores propriamente ditos e os movimentos (contrarreforma, luteranismo, calvinismo e anglicanismo).

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REFORMA PROTESTANTE: UM RESUMO DOS PRINCIPAIS

MOVIMENTOS

José Carlos Ribeiro da SilvaProfa. Msc. Carolina dos Anjos Nunes de Oliveira

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVILicenciatura em História (HID 0290) História Antiga

28/11/2013

RESUMO

Há de se afirmar, e de forma categórica, que o tema central de toda a Reforma Protestante do século XVI é o da liberdade. Portanto, diante de tal constatação, torna-se imperativo conhecer um pouco sobre a Reforma, como movimento fundamentalmente “religioso”, porém, com profundas conseqüências sociais, institucionais, políticas, econômicas e culturais. O propósito do estudo em foco é lançar um olhar histórico-analítico sobre o período da Reforma Protestante, considerando seu pano de fundo, de forma bastante concisa, especificamente suas bases e condições políticas, econômicas, culturais, sociais e religiosas através dos principais expoentes da reforma: os pré-reformadores, os reformadores propriamente ditos e os movimentos (contrarreforma, luteranismo, calvinismo e anglicanismo).

Palavras-chave: reforma protestante, contrarreforma, luteranismo, calvinismo, anglicanismo.

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1 INTRODUÇÃO

A História nos conta que os seguidores do cristianismo nem sempre

formaram um grupo coeso e harmônico. O século XI se viu com a separação

entre Igreja católica do Ocidente (com sede em Roma) e a Igreja católica do

Oriente (com sede em Constantinopla). Esta última ficou sendo conhecida

como Igreja Ortodoxa e a primeira como Igreja Católica Romana. No século

XVI, na Europa Ocidental, ocorreu outro rompimento da cristandade, e este

episódio ficou sendo conhecido como Reforma Protestante.

Durante a Idade Média1, os povos europeus cristãos reconheciam a

Igreja Católica2 como a única autoridade espiritual existente, não havendo

salvação da alma fora dela. A Igreja vinha concentrando, ao longo dos anos,

um imenso poder, não apenas espiritual, mas também material e político. Seus

altos mandatários, o papa, os cardeais e os bispos, estavam mais preocupados

em exercer esse poder, em aumentar seus domínios e sua influência, do que

em oferecer conforto espiritual às populações. Estas se viam, sem nenhuma

assistência por parte do clero, ocupado em servir à nobreza nas capelas

senhoriais.

Os imperadores, tentando sempre obter mais poder político e

econômico, viviam em permanente conflito com os papas. A Igreja mantinha o

controle de imensas extensões de terra e de outros bens. Isso era o motivo

para os príncipes tentarem retirar este controle. No final da Idade Média, esse

quadro foi agravando a angústia, provocada por diversos acontecimentos

catastróficos, como guerras, a peste e a fome. Uma situação que levara toda a

esperança do povo, como nunca havia acontecido.

Na Europa do século XVI, era generalizada a necessidade de se

encontrar algum apoio firme num mundo que parecia estar se desfazendo, que

muitos afirmavam estar perto do fim. Essa situação foi acalmada com a venda

de indulgências promovida pela igreja. No entanto, essa era uma atitude um

tanto quanto vergonhosa. A Igreja, além de vender indulgências,

comercializava também qualquer objeto que tivesse um suposto valor religioso,

1 Período histórico que, segundo o ponto de vista europeu, abrange do século V da era cristã até a queda de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, em 1453.2 Instituição religiosa de intensa presença social, política e cultural.

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essas atitudes levaram a Igreja Católica se tornar cada vez mais

desacreditada.

Entretanto, como uma solução interna surge os místicos. Segundo

Cairns (2008, p. 224) “os místicos tentaram tornar pessoal a religião”. Todavia

os precursores e/ou pré-reformadores bíblicos e nacionalistas, como Wycliffe,

Huss, Savanarola e Gansdorf dedicaram-se em tentar fazer com que a Igreja

voltasse ao ideal representado pelo Novo Testamento (CAIRNS, 2008, p. 224).

Surgem então nesse contexto, nesta situação caótica, num Império

Alemão descentralizado, dominado por muitos príncipes e com grande parte de

seu território pertencente à Igreja, um movimento de caráter religioso, cultural e

político conhecido como Reforma.

Martinho Lutero3, membro da Igreja Católica de Roma4, inconformado

com o vil comércio das coisas espirituais e angustiado com a salvação da sua

própria alma, acende o estopim de um conflito dividindo a unidade cristã que

prevalecera por toda a Idade Média.

2 OS TERMOS “REFORMA” E “PROTESTANTE”

Para termos um conhecimento claro, coeso e elementar do que

realmente foi a Reforma Protestante do século XVI, será preciso entender os

vocábulos “reforma” e “protestante”.

2.1 O TERMO REFORMA

O sentido que às vezes são dados ao termo Reforma são parcialmente

condicionados pela visão do historiador. O historiador católico entende a

reforma como uma revolta de protestantes contra a Igreja universal. Já os

historiadores protestantes compreendem a reforma como uma busca aos

padrões do Novo Testamento. Do ponto de vista do historiador secular, a

interpretação da reforma, recai apenas como um movimento revolucionário.

3 Teólogo alemão (1483-1546). Iniciador da Reforma e “fundador” da Igreja Luterana.4 Igreja Católica do Ocidente, sediada na cidade de Roma.

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Segundo Cairns (2008, p. 250) ao considerar a “Reforma a partir de uma

perspectiva da política ou de uma administração eclesiástica, ela pode ser tida

como uma revolta contra a autoridade da igreja romana e o papa”. Mesmo que

possamos admitir que a reforma tivesse um caráter revolucionário, não se

afirma categoricamente que a “verdadeira” igreja restringisse apenas a Roma.

Portanto, não é fácil definir o termo “Reforma” se for considerado apenas como

um movimento religioso.

Nos dias hodiernos a palavra tem referência a qualquer mudança. O

termo tem um sentido de melhoria. Como a Igreja se corrompeu durante o

século XI, perdendo seus valores, os reformadores tinham uma missão, mas

não de melhoria, e, sim de levar novamente a Igreja a “pureza” original do

Cristianismo. Desta forma, reforma era o “retorno a forma original”, dantes

praticada pela Igreja Primitiva, ou seja, uma tentativa de poder recriar a religião

nos fundamentos doutrinários originais do Cristianismo, podendo, portanto,

transformar o clero, os adeptos e a relação entre ambos.

2.2 O TERMO PROTESTANTE

O vocábulo às vezes trás uma confusão. A interpretação popular é de

que se trata de um movimento de protesto contra a Igreja Católica (na

Alemanha). Todavia, a interpretação possa em parte está certa, na realidade a

palavra em si, não se dá diretamente por um protesto contra o catolicismo.

A palavra surgiu em conseqüência da segunda Dieta de Speyer (Spira),5

em 1529, que votou pelo fim à tolerância ao movimento luterano na Alemanha.

Seis príncipes alemães e quatorze cidades protestaram em defesa da liberdade

de consciência e dos direitos das minorias religiosas. Neste caso o termo

“protestante” vem deste protesto

5 A Dieta de Speyer (Spira) fora uma assembléia dos príncipes e líderes germânicos. Nessa assembléia ficou decidido que todo o Império Germânico deveria adotar como religião o catolicismo romano. Diante disso, em 20 de Abril, os que discordavam da dieta, escreveram uma Carta de Protesto, pela qual ficaram conhecidos como “protestantes”. Não exatamente por discordarem do catolicismo (ainda que discordando), mas por discordarem de que todo o Império deveria se sujeitar a tal religião. Protestante na realidade não é uma expressão de ataque, mas de defesa.

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3 O CONHECIMENTO E OS PRECURSORES OU PRÉ-REFORMADORES

Os precursores e/ou pré-reformadores estavam situados dentro de uma

cosmovisão ainda medievalista. O mundo medieval vivia uma profunda

inquietação e transição. Uma fase de bastante efervescência de ideias, fatos

históricos, movimentos sociais, políticos, religiosos e econômicos irá constituir

o pano de fundo da transformação que a modernidade fixou no modo de vida.

Segundo Gonzalez (1986, p. 11) houve pelo menos mais cinco fatores que

foram de grande importância (além dos já citados acima) para a transição de

um período feudal para o moderno: “a instabilidade política, o fim das cruzadas,

o crescimento populacional, o declínio da agricultura e a peste negra

(bubônica)”.6 Toda esta crise foi combustível para a emergência de movimentos

reformadores. Uma questão que facilitou o surgimento de surtos oposicionistas

ou reformadores foi a descentralização do poder da Igreja. A descentralização

da Igreja é devida ao cativeiro babilônico.7

Tillich (2007, p. 146) discorre que a primeira série de problemas que se

pode discutir, “são as três principais atitudes teológicas: escolasticismo,

misticismo e biblicismo”. A escolástica fora determinante no período de toda

Idade Média, pois tratava da explicação metodológica da doutrina cristã. O

pensamento revolucionário dos pré-reformadores advém do conhecimento

teológico escolástico. É no período da Escolástica8 que se percebeu o princípio

da ruptura da unidade teológica medieval. De acordo com Siepierski9, “a

teologia, neoplatônica e continuísta, cedeu espaço para o neoplatonismo e

aristotelismo devido à contribuição bizantina. Com relação ao conhecimento

crescente da filosofia neoplatônica e aristotélica tornaram-se acessível pelo

6 A peste foi descrita na introdução do Decamerão, de Giovanni Boccaccio (1313-1375), onde serviu de pretexto para um grupo de dez florentinos, isolados no campo, se distrair contando histórias que criticavam os costumes e as instituições da época. A epidemia gerou, também, a lenda do flautista mágico que, com o encantamento de sua música, salvou a cidade de Hamelin dos ratos portadores do bacilo transmissor.7 O cativeiro babilônico foi a existência de um Papa na cidade de Avignon, sendo o primeiro sinal mais claro e desgastante da política ideológica da Igreja Medieval. Porém, mais tarde, houve o Grande Cisma, com a coexistência de dois Papas, um em Roma e o outro em Avignon.8 Escolástica ou escolasticismo vem de scholasticus, termo de origem latina, cujo significado é “que pertence à escola”, “que é instruído”. Etimologicamente o termo se refere à escola. Na verdade foi um método empregado nas universidades entre os séculos X e XVI, no qual consistia no pensamento crítico.9 SIEPIERSKI, P. Protestantismo e Pós-Modernidade. (In: MARASCHIN, Jaci. Teologia sob limite) Op.cit., p. 145.

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auxílio de releituras de Averróis, Avicena e Maimônides, através de traduções

diretas do latim. Para Hägglund (2003, p.151) isso “contribuiu

significativamente para o desenvolvimento doutrinário da escolástica”.

A problemática do pensamento filosófico-teológico medieval pairava

entre o conhecimento e a fé. Até onde a fé detinha a razão? Outra questão

também importante era a distinção entre o universal e o particular. O

aristotelismo e neoplatonismo da escolástica se fez distinguindo nominalismo

de realismo. Störing (2009, p. 201) destaca “que estes dois ponto de vista

estão de certa forma, num primeiro momento, bruscamente contrapostos”. Para

ele:

Uma das direções, aquela que, perante o particular, concede ao universal a elevada realidade, é chamada de realismo. Para a outra somente as coisas isoladas são reais; os conceitos gerais não existem para ela na realidade, mas somente no nosso intelecto, eles são apenas nomes, por isso essa linha é chamada de nominalismo (idem, grifo nosso).

A diferenciação que há entre nominalismo e realismo possuem uma

importância bastante considerável para o entendimento da teologia medieval.

De acordo com McGrath (2005) a diferença entre essas duas correntes de

pensamento, pode ser descrita da seguinte forma:

Considere duas pedras brancas. O realismo afirma que há um conceito universal de “brancura” que essas duas pedras incorporam. Essa duas pedras brancas, em particular, possuem a característica universal da “brancura”. Embora as pedras brancas existam no tempo e no espaço, o conceito universal de “brancura” existe em plano metafísico distinto. O nominalismo, por outro lado, afirma que o conceito universal de “brancura” é desnecessário e, em vez disso, argumenta que devemos nos concentrar em particulares. Ou seja, essas duas pedras brancas existem – e não há qualquer necessidade de apelar para algum “conceito universal de brancura” (2005, p. 71-72, op., cit.).

Vejamos, portanto, mais um exemplo:

Pense em Sócrates. Ele é ser humano e, portanto, um exemplo de humanidade. Pense também em Platão e Aristóteles. Da mesma forma, são seres humanos e exemplos de humanidade [...]. O realismo alega que a ideia de abstrata de “humanidade” possui uma existência própria. Ela é o conceito universal; os indivíduos – como Sócrates, Platão e Aristóteles – são exemplos particulares desse conceito universal. Portanto, a característica comum da humanidade, que une esse três indivíduos, possui existência autônoma e real (idem, p. 72, op., cit., grifo nosso).

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O maior expoente da escolástica neste período foi São Tomás de Aquino

(1224/5 – 1274) sua teoria reafirmava que a fé e a razão, nãos são apenas

distintas, todavia, forma um todo necessário para se conhecer a Deus. Aquino

tomava partido do realismo moderado e afirmava não ser possível uma

correlação plena entre as ideias e a realidade.

Surge Duns Escoto (1265 – 1308), fazendo uma releitura de Tomás de

Aquino, e no qual influenciou todo o período dos pré-reformadores, afirmando

ser Deus o objeto da teologia; e a filosofia consistia apenas em ontologia pura

e simplesmente. Por isso o conhecimento de Deus mediante a filosofia só pode

ser limitado e o ser humano não pode ter nenhum conhecimento das

substâncias imateriais, como Deus e os anjos. Deus é a forma pura, e as

demais coisas são materiais.10 A missão do conhecimento é conhecer a

singularidade, pois esta é o que realmente existe. O conhecimento começa

com a experimentação.

Os Pré-reformadores estavam tomados pelos pensamentos da

escolástica, pela nova cosmovisão teológica disseminada por Tomás de

Aquino, gestada e concebida a partir de um duplo foco: da revelação e da

reflexão autônoma, sob a ótica da fé cristã e do pensamento de Aristóteles.

Assim, os pré-reformadores seguiram, em grande parte, as tendências

teológicas do seu tempo.

3.1 OS PRECURSSORES OU PRÉ-REFORMADORES

A tensão que houve entre nominalismo, realismo tomista e o misticismo,

é fundamental para poder compreender o surgimento e pensamento dos

precursores da reforma. Quem são eles afinal? São pensadores cristãos de

transição. Pois as necessidades de mudanças profundas na Igreja vinham

sendo anunciada, porque a igreja estava em situação de desprestígio. Eles

surgiram quando o cenário social, político, econômico e religioso tinham

contribuído para manifestações de insatisfação com a Igreja da época e, muitas

vezes, com o apoio do estado, para divulgar suas posições teológicas, com

consequências diretas na vida eclesial e social. Nesta ótica, o que aconteceu

10 GOMIDE, F. M. Exemplos do Jugo de Aristóteles na filosofia e na ciência. Reflexão (PUCCAMP), n. 64-65. 1996, pp. 154-185, op., cit.

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foi a então união da piedade com a prática, acasionando o exercício da crítica,

filha da liberdade.

3.1.1 John Wycliff

John Wycliff (1324/328-1384) nasceu em Hipswell, Yorshire, Inglaterra.

Estudou na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Foi o apoiador dos

movimentos camponeses do século XVI na Inglaterra. Ele propunha o retorno a

uma Igreja pura, pobre e defensora de uma economia coletiva. Foi contra a

existência de propriedades da Igreja. Suas críticas marcaram seus discípulos,

sobretudo porque ela era contra a venda de indulgências.11

Wycliff defendia também, a idéia de que o rei deveria ser considerado

pecador, porque não propusera reformas nas quais protegessem as

comunidades rurais contra os interesses externos, propiciados pelo capitalismo

nascente e a urbanização. Wycliff cria que a Bíblia é a única lei da Igreja; e que

é o conjunto dos eleitos cuja cabeça é Cristo (KLEIN, 2007, p. 182). Ele

também não admitia a doutrina da substanciação. Lutou de várias formas para

dar ao povo a Bíblia em inglês.

3.1.2 John Huss

John Huss (1369/73-1415) foi adepto dos pensamentos de Wycliff.

Nasceu Husinecz, na Boêmia. Recebeu o grau de bacharel em Teologia na

Universidade de Praga em 1394 e em 1396 o de Artes. Ordenado sacerdote

em 1401, continuou a lecionar na Universidade de Praga. Em 1402 torna-se

reitor desta Universidade. Neste mesmo ano como pregador da capela de

Belém, conquista muitos seguidores através de seus sermões.

As preleções de Huss contaram com a simpatia do arcebispo Zbynek

(1403 – 1411), porém, suas críticas a organização clerical, transformaram a

simpatia em oposição. No ano de 1409, no final do Concílio de Pisa, o

arcebispo Zbynek apoiou o papa Alexandre V (1409 – 1410), a quem “se

queixou das propagações das ideias de Wycliff na Boêmia” (WALKER, 1963, p.

11 Venda pública de documentos e relíquias que garantiam aos seus possuidores o perdão dos pecados cometidos. Esse meio era utilizado pela Igreja para obter lucro.

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379 apud KLEIN, 2007, p. 183). John Huss fez protesto, porém, acabou sendo

excomungado pelo arcebispo Zbynek em 1410. A excomunhão do precursor da

reforma causou um tumulto geral. Huss tornou-se herói nacional, recebendo

apoio do rei Venceslau. Ele lançou seus ataques contra o governa da Igreja, o

ensino e os dogmas, denunciando as práticas não espirituais do clero. Para ele

os altos dignitários da Igreja não passavam de “príncipes”, verdadeiros

detentores terrestres.

3.1.3 Jerônimo Savonarola

Jerônimo Savonarola viveu no século XV, mas esteve à frente de seu

tempo. Nasceu em 1452, em Ferrara (GONZALEZ, 1986, p, 157). Recebeu

educação rígida pelo avô. Savonarola ouviu um sermão, em 1474, em Faenza,

que o impactou tremendamente, mudando definitivamente a direção de sua

história. Em seguida, entrou para o convento de São Domingo, onde recebeu

sua formação religiosa. Sua erudição bíblica era incomparável no seu tempo,

assim como sua tremenda capacidade oratória. De sua extraordinária

capacidade intelectual, foi mandado a Florença, porém, seus sermões não

agradaram tanto os florentinos. Foi, então, para Bologna, obtendo a função de

mestre de estudos.

Wycliff e Huss foram estigmatizados de hereges por terem colocado a

Bíblia como o primeiro padrão de autoridade. Savonarola, por outro lado,

interessava-se na reforma da Igreja em Florença (CAIRNS, 2008, p. 228).

Savonarola procurou reformar o Estado e a Igreja na cidade, todavia, sua

prédica contra a vida desregrada do papa provocou sua morte por

enforcamento.

3.1.4 Wessel Gansdorf

Wessel Gansdorf nasceu em Groningen por volta do ano 1419. Ele pode

“ser considerado um precursor da Reforma ou mesmo pré-reformador” (KLEIN,

2007, p. 187). Foi professor em Erfurt. Segundo Durant (s/d, p. 276) Gansdorf

“pregava a predestinação e a eleição pela graça divina, rejeitava as

indulgências, os sacramentos e as orações aos santos, duvidava da confissão,

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da absolvição e do purgatório”. Fazia da Bíblia a única regra de fé, e fazia da fé

a única fonte da salvação. Durant (idem) enfatiza ainda que Wessel chegou a

declarar: “Desprezo o papa, a Igreja e os concílios, e venero somente a

Cristo”; foi condenado pela Inquisição, retratou-se e morreu na prisão em 1481.

4 A REFORMA PROTESTANTE

Qual era realmente a situação da Igreja na Alemanha na juventude de

Lutero? Moralmente, a Igreja estava em decadência? Estava mais preocupada

com as questões políticas e econômicas do que com as questões religiosas?

A Reforma Protestante representou a grande transformação religiosa da

época moderna. Porém, teve suas consequências nas áreas da economia,

social, cultural e política. Pois, o desenvolvimento comercial e urbano criou

uma nova realidade econômica. Muito dos dogmas da Igreja, que condenavam,

por exemplo, a usura, os juros e o lucro, criavam obstáculos ao

desenvolvimento das novas atividades, voltadas principalmente para o capital.

A crise do feudalismo também foi fator importante para a reforma.

Geraram grandes tensões e conflitos sociais, como as revoltas camponesas

contra a opressão da nobreza. Esses conflitos e tensões, portanto, acabaram

por envolver a igreja, porque ela era a guardiã, a responsável, por justificar e

controlar ideologicamente as principais camadas sociais.

Na área política as monarquias tinham grande interesse em reduzir o

poder da igreja. Isso porque uma convulsão religiosa daria a elas (monarquias)

oportunidade de confiscar os bens eclesiásticos. Desta forma, as mudanças

sociais, econômicas e políticas criaram o ambiente ideal para a Reforma,

entretanto, não se pode dar a esse movimento explicações puramente

materiais ou econômicas.

O que se evidenciava era o descompasso entre as necessidades

espirituais dos fiéis e a atuação da hierarquia do clero. O sujeito que vivia no

século XVI era, sobretudo um crente em Deus, submisso aos dogmas

difundidos pela Igreja. Vale lembrar que, com o surgimento da imprensa12, as

Bíblias foram se multiplicando, pois, a circulação e propagação de ideias

12 Com a invenção da imprensa por Gutenber, as máquinas impressoras contribuíram para divulgar textos que, até então, ficavam restritos a um reduzido número de pessoas.

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ampliaram a consciência religiosa dos fiéis, suas exigências em relação ao

clero e seu poder de crítica. O Renascimento também favoreceu ao

pensamento da Reforma. Pois, humanista como o inglês Erasmo de Roterdã

(1466-1536), passaram a condenar a ignorância e a imoralidade do clero e a

pompa do culto; em oposição, pregavam uma religião mais simples, mais de

acordo com os preceitos e espírito do Evangelho.

Roterdã com uma crítica satírica da sociedade de sua época ataca as

deformações da Igreja Católica e do clero. Outro humanista que atacou

também a igreja e o clero foi seu amigo, Thomas Morus (1478-1535). Morus na

sua obra Utopia (lugar que não existe) projetou a existência de um Estado

ideal, organizado de forma comunitária, e imaginou uma sociedade em que os

homens viveriam em harmonia, livres dos males da guerra e da intolerância

religiosa. Essa sociedade ideal era uma forma de oposição aos abusos que

estavam ocorrendo na Inglaterra.

Os humanistas compreenderam o rumo que os reformadores estavam

tomando e, nalguns casos, apoiaram os reformadores, todavia, seu principal

desejo, contudo, era ganhar a emancipação de toda espécie de limitações

intelectuais e políticas.

Neste período de tanta efervescência a Igreja Católica Romana,

instituição religiosa que deveria atender as necessidades espirituais dos povos

europeus, no final da Idade Média estava por demais ocupadas em ampliar seu

poder econômico e político e pouco voltadas para as necessidades dos fiéis.

Embora de existisse dentro da Igreja tentativas de alterar esse estado de

caótico, buscando reformar os costumes, combater a corrupção e retomar as

preocupações com o mundo espiritual, o alcance de qualquer transformação

até o início do século XV foi muito limitado. Não se conseguiu muito progresso,

a situação continuava inerte.

A falta de sensibilidade com que a Igreja encarou esse momento

delicado revelou-se no comércio realizado com relíquias e indulgências.

Calculava-se quantos anos de perdão das penas do Purgatório era possível se

obter com a posse de determinada peça de vestuário de um santo ou com o

valor da doação feita para o tesouro da Igreja. A venda e a cobrança das

indulgências, no Império Alemão, serviam para amortizar os empréstimos feitos

pelo papa junto aos bancos. O próprio bispo de Brandemburgo realizava a

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cobrança. O conflito entre a igreja e aqueles que necessitavam de sua

assistência aumentava, pois somente para os que podiam pagar o preço

exigido pela Igreja era garantida a salvação da alma. Isso causava uma grande

revolta nos que não podiam pagar e, “salvar a alma”.

Adicionava-se a isso, também, o comportamento escandaloso do clero,

que vivia em total desacordo com os ensinamentos cristãos que pregava.

Todas as manifestações contra a Igreja eram perseguidas e punidas

severamente. Esses manifestantes e desistentes eram na maioria das vezes

chamados de hereges e por isso punido com a morte na fogueira. Apesar

disso, as heresias fizeram-se presentes durante toda a Idade Média,

combatendo os dogmas e ritos da Igreja, minando o poder desta.

Havia uma clara e evidente necessidade de se promover uma reforma

na Igreja e na sociedade, em suas mais variadas áreas.

McGrath destaca o seguinte:

A Igreja ocidental parecia estar exaurida pelas demandas da Idade Média, que tinha visto o poder político da Igreja e, especialmente, do papado, alcançar níveis jamais conhecidos anteriormente. As engrenagens administrativa, legal, financeira e diplomática da Igreja estavam bem lubrificadas e trabalhando com eficiência. Certamente, é verdade que os papas da Renascença exerceram sua autoridade durante um período de decadência moral, de conspiração financeira e de poder político tremendamente mal-sucedido, que severamente desafiava a credibilidade da Igreja como guia moral e espiritual. Ainda assim, como instituição, a Igreja na Europa ocidental dava claros sinais de solidez e permanência. Entretanto, havia os sinais de exaustão, de decadência (McGRATH, 2004, p. 19 grifo nosso).

Sem dúvida alguma que uma das mais graves crises, no período que

antecedeu a Reforma, foi de cunho eminentemente religioso. Pairava, no

coração do povo, uma total insegurança quanto à salvação. A fé, ensinada pela

Igreja, não estava suprindo tal carência.

Na verdade, era como se a Igreja houvesse perdido seu senso de

direção. Sua prática não era mais tão verossímil quanto seu discurso. Portanto,

a Reforma Protestante carregava em si o embrião das grandes transformações,

não apenas religiosas, mas culturais, sociais, políticas e econômicas. A

Reforma Protestante foi fortemente apoiada pelos príncipes alemães, que

desejavam romper, com o Imperador Carlos V, e a Igreja Católica.

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4.1 LUTERO: O ESTOPIM DA REFORMA

Martinho Lutero (1483- 1546) nasceu em Eisleben, cidade que fica a

lesta da Alemanha. Filho de Hans e Margaretha Luder. Em 1505 ingressou no

mosteiro agostiniano de Erfurt.

Em 1505 o Papa Júlio II (1503-1513) confiou a Bramante, uma grande

empresa, a construção de uma nova Igreja de São Pedro em Roma (KLEIN,

2007, p. 191). Klein (idem) afirma que na Idade Média surge o “costume de

promover obras de interesse comum por meio de concessão de indulgências”.

Dentro dessa tradição,13 Júlio II, 1507, e seu sucessor Leão X (1513-1521), em

1514, promulgaram uma “indulgência” plenária a toda a cristandade. O papa

Leão X autorizou a concessão de indulgências àqueles que doassem dinheiro

para reformar a Basílica de São Pedro, em Roma. Em Wittenberg, a venda

desses papéis passou a ser feita pelo dominicano John Tetzel.

No ano de 1510, Lutero viajou a Roma, sede da Igreja católica. Ficou

encantado com tanta beleza que a cidade proporcionava. Mas a tristeza e a

decepção abateram sua alma. Regressou a Alemanha profundamente

decepcionado devido ao ambiente de corrupção e avareza do clero. Entre 1511

e 1513, Lutero aprofundou-se nos estudos religiosos e madureceu novas ideias

teológicas. Durante os anos de 1512 a 1517, suas ideias religiosas foram-se

afastando das doutrinas oficiais da Igreja. Segundo Durant (s/d, p. 289),

“Lutero, principiava falar em “nossa teologia”, em oposição a que era ensinada

em Erfurt”. Ele atribuiu a corrupção do mundo ao clero. Foi numa leitura da

Bíblia, precisamente na Epístola de São Paulo direcionada aos romanos no

capítulo 1 e versículo 17, que encontrou a frase que lhe pareceu de importância

fundamental e que mudaria sua vida e de toda Europa: “O justo viverá (salvará)

por fé”. Ao interpretar esta mensagem, pode concluir que o homem, corrompido

em razão do “pecado original”, só poderia salvar-se pela fé em Deus. Para

Lutero era a fé e não as obras, que seria o único instrumento de salvação,

graças á misericórdia divina.

No ano de 1517, o monge alemão Martinho Lutero, passou a defender a

fé como elemento principal para a salvação do indivíduo. Foi, portanto, “ao

13 O costume da venda de indulgências.

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14

meio-dia do dia 31 de outubro de 1517, que Lutero afixou as 95 teses14 na

porta principal da igreja do castelo de Wittenberg” (Durant, s/d, p. 286). Com as

95 teses estavam lançado às bases do que viria a ser uma nova prática cristã.

Vejamos algumas das teses de Lutero:

21 – Por isto, estão em erro os pregadores de indulgências que dizem ficar um homem livre de todas as penas mediante as indulgências do Papa.27 – Os que afirmam que uma alma voa diretamente para fora (do purgatório) quando uma moeda soa na caixa das coletas, estão pregando uma invenção de homens.45 – Deve-se ensinar aos cristãos que um homem que vê um irmão em necessidade e passa a seu lado para dar o seu dinheiro na compra dos padrões, merece não a indulgência do Papa, mas a indignação de Deus.82 – Esses perguntam: Por que o Papa não esvazia o purgatório por um santíssimo ato de amor e das grandes necessidades das almas; isto não seria a mais justa das causas visto que ele resgata um número infinito de almas por causa do sórdido dinheiro dado para a edificação de uma basílica que é uma causa bem trivial?15

A partir daí, iniciava-se uma longa discussão entre Lutero e as

autoridades católicas, na qual terminou com a decretação de sua

excomunhão,16 em 1520. Em contra partida, Lutero para demonstrar seu

desprezo em relação à Igreja católica, queimou em praça pública a bula papal

Exsurge domine, que o condenava.

A nobreza e a alta burguesia deu apoio a Lutero que divulgou suas

ideias doutrinárias pelo norte da Europa. Entre os principais pontos da doutrina

luterana, firmados na Confissão de Augsburgo (1530), estavam em destaque:

somente a fé em Deus salva as pessoas, a Bíblia é a única fonte realmente

confiável para a fé, o batismo e a eucaristia são os dois únicos sacramentos, o

culto aos santos e a infalibilidade do papa não têm fundamento e qualquer

membro da Igreja pode se casar. Estavam assim firmados os dogmas que iriam

dar origem ao que se conhece hoje como Luteranismo.

Vale ressaltar que um dos pontos básicos das ideias do luteranismo é a

livre interpretação das Escrituras (Bíblia), o que possibilitou o surgimento de

novas tendências religiosas, na qual se consubstanciaram em novas religiões,

como o calvinismo e o anglicanismo.14 Os historiadores discutem se a s famosas 95 teses de Lutero foram afixadas na porta da igreja de Wittenberg ou se teriam sido enviadas ao arcebispo Alberto, da Mongúncia. 15 Lutero e a Reforma: 480 anos depois das 95 teses, uma avaliação dos seus aspectos teológicos, filosóficos, políticos, sociais e econômicos – São Paulo: Editora Mackenzie (Série colóquios, v. 1), 2000, op., cit. p. 29, 30, 32, 35.16 Expulsão da Igreja.

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15

4.2 A REFORMA CALVINISTA OU CALVINISMO

A Reforma na França teve como figura central e importantíssima, o

humanista francês Jean Cauvin ou João Calvino (1509-1564), convertido ao

protestantismo, começou a publicar estudos sistemáticos sobre a nova religião.

Calvino foi um asceta que dedicou sua vida à Reforma, procedendo, muitas

vezes, de maneira restrita.

4.2.1 João Calvino: Vida

João Calvino nasceu, em 10 de julho de 1509, em Noyon, França

(KLEIN, 2007, DURANT, s/d, FERREIRA, 1985). Seus pais chamavam-se

Gerard Cauvin e Jeanne de La Franc.17 Os pais de Calvino, era um casal

distinto e ilustre e bem relacionado, religiosa, social e politicamente. Seu pai,

Gerard era secretário do bispo.18 Reservou uma renda de um benefício

eclesiástico para a educação de Calvino (CAIRNS, p. 278).

Segundo McGrath (2005, p. 103) a “educação de Calvino se deu na

Universidade de Paris, aonde o pensamento escolástico tinha grande

influência, depois se transferiu para Universidade de Orleans, mas

humanistas”. Klein destaca o seguinte a cerca de Calvino:

Em 1533, teve que abandonar Paris devido às perseguições por defender a fé “evangélica” (reformada). Passou por Estrasburgo, mas fixou em Basiléia, até 1536. Neste mesmo ano, passando por Genebra, o reformador Guillaume Farel (1489-1565) pressionou-o, sob ameaça de maldição, a permanecer na cidade para colaborar na Reforma. Em 1538, Calvino foi, portanto, expulso de Genebra, por causa de divergências com as autoridades municipais (KLEIN, 2007, p. 211 grifo nosso).

Segundo o autor supracitado, Farel precisava de alguém mais

capacitado para propagar as ideias reformadas. Nessa viagem que Calvino fez

a Genebra, se encontrou com Farel, onde lhe foi solicitado ajuda, Calvino

recusou, (pois sua vida estava ligada a vida de estudioso e escritor de teologia)

Farel então lhe disse que se ele não ficasse Deus o amaldiçoaria. Calvino com

17 Sua mãe morreu quando ele era jovem ainda (DURANT, s/d, p. 383).18 O pai de Calvino secretariava o bispo Charles de Hangest (1501-1525), mas também exercia a função de procurador-fiscal do condado do bispo.

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16

bastante temor acabou ficando. João Calvino e Guillaume Farel trabalharam

juntos até serem exilados em 1538.

4.2.2 João Calvino: Teologia

João Calvino era um exímio erudito. Escreveu vários comentários da

Bíblia, todavia, a Christiane Religionis Institutio19 (As Instituição da Religião

Cristã) foi sua obra magna, na qual ele defendia que os seres humanos

estavam predestinados ao céu ou ao inferno, isto é, alguns indivíduos eram

escolhidos e/ou eleitas por Deus para herdarem a salvação, enquanto outras

seriam condenadas a perdição eterna.

Theodoro Beza, primeiro biógrafo de João Calvino, diz que ele “nasceu

para escrever, pois, escreveu doente, em meio às lutas, no leito, até altas

horas da noite, mesmo estando muito doente” (FERREIRA, 1985, p. 140). A

Bíblia para Calvino é o ponto de partida de sua estrutura teológica. O Antigo

Testamento e o Novo Testamento na visão teologal de Calvino falam do

mesmo Deus, isto porque, não é possível estabelecer uma diferença essencial

entre as partes da Bíblia. Sem a Bíblia o ser humano tem uma ideia falsa de

Deus. Só sabemos alguma coisa sobre Deus, aquilo que Ele quis nos revelar

através das Escrituras. O sinal da graça para Calvino é a fé, e, pela mesma

obtemos a salvação.

O aspecto teológico do calvinismo está em santificar o trabalho, a

poupança, a usura e o lucro, ao transformá-los em sinal da graça de Deus.20 O

crente calvinista não só tinha convicção de que Deus estava ao seu lado,

trabalhando por ele contra os inimigos, como também de que realizava os

desígnios de Deus.

4.3 A REFORMA ANGLICANA OU ANGLICANISMO

Discorrer sobre a reforma na Inglaterra ou como surgiu o anglicanismo

(Igreja Anglicana) em poucas páginas pode-nos forçar a cometer alguns erros.

Considerando-se que o assunto envolve muitos detalhes históricos bem

19 Escrita a partir dos dogmas do Credo Apostólico.20 A pobreza deixou de ser uma recomendação divina, e a riqueza passou a ser considerada uma das formas de o fiel sentir-se um dos eleitos (escolhidos).

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17

minuciosos. Acontece que estamos apenas fazendo um resumo dos aspectos

que envolvem a reforma. Por isso não iremos aprofundar o assunto.

Na Inglaterra, o processo de Reforma teve aspectos bastante diferentes

do que nas demais regiões da Europa Ocidental. Segundo Cairns (2008, p.

295):

“os ensinos de John Wycliff, que fora organizados pelos lolardos21, jamais haviam sido aniquilados, seus ensinos tinham circulado nos lares das pessoas mais humildes da Inglaterra através de um movimento secreto durante o século XV [...] Davam muita ênfase à autoridade da Bíblia e a uma necessidade de uma comunhão pessoal com Cristo ressurgiram com a realização da reforma política, durante as primeiras décadas do século XVI”.

A reforma na Inglaterra esteve a cargo do então rei Henrique VIII.22

Segundo o autor supracitado, os motivos do rei eram de cunho totalmente

político e não teológico. Este soberano inglês recebera do Papa Leão X o título

de Defensor da Fé, por fazer aliança com o clero no combate aos seguidores

de Lutero e Calvino. Todavia, uma série de questões o levou a romper com a

Igreja Católica e fundar uma nova Igreja de cunho especificamente nacional: a

Igreja Anglicana.

Mas, quais foram então os motivos que levaram a isso? Um dos

principais motivos para a ruptura entre o rei e o clero católico era o poder

político. O outro motivo era o casamento de Henrique VIII com Catarina de

Aragão, viúva de seu irmão Artur.

Para que o rei mantivesse poder absoluto23 na Inglaterra, seria preciso

limitar a grande influência política e econômica do papado dentro do país.

Embora, a Igreja católica tinha o domínio do comércio de relíquias sagradas e

proprietária de grandes extensões de terras, os nobres ingleses, precisavam

apoiar o rei, a fim de enfraquecer o poder das autoridades da Igreja.

Ao que concerne a sua vida pessoal/emocional (matrimônio) o rei

Henrique VIII tentou “anular seu casamento em 1526, para contrair novo

matrimônio com Ana Bolena” (KLEIN, 2007, p. 223). Para isso o rei alegou que

21 Termo pejorativo que seus inimigos aplicavam para eles, e que se deriva de uma palavra holandesa que quer dizer “murmuradores”.22 Reinou de 1509 a 1547. Era um soberano elegante, generoso, forte, culto, conhecedor de teologia e de bom músico; falava latim, francês e espanhol tão bem quanto o inglês. Gostava de caça. Arco e tênis, esportes que o ajudaram a se tornar mais popular do que tinha sido seu parcimonioso pai, Henrique VII.23 Ver na História o período chamado absolutismo.

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18

seu casamento era inválido. Ele se valeu de uma passagem bíblica no livro de

Levítico,24 alegando grau de parentesco com Catarina, sendo ela casada com

seu irmão, ele a consideraria sua irmã, e, assim, configuraria um incesto na

família.

A anulação do casamento foi pedida porque, não tendo sucessores

masculinos com a princesa espanhola, o rei Henrique VIII temia que, em caso

de sua morte, o trono inglês passasse para o controle da Espanha. Este temor

era compartilhado por toda nação, que apoiou seu rei, diante da negativa do

pape em conceder-lhe o divórcio.

Enfim, Henrique VIII conseguiu obter do clero inglês a anulação de seu

casamento com Catarina de Aragão e casou-se secretamente com Ana

Bolena25 em janeiro de 1533. O papa por sua vez intimidou o rei,

excomungando-o. O rei não cedeu à pressão papal e em 1534 decretou o Ato

de Supremacia, lei pela qual Henrique VIII “se tornava o único chefe supremo

da Igreja da Inglaterra” (CAIRNS, 2008, p. 298).

No fundo, o casamento era somente um álibi que fora utilizado pelo rei

Henrique VIII, pois o rompimento com Roma não trouxe modificações na

doutrina e nem na forma de utilização dos cultos. Os bens que a Igreja tinha,

agora era propriedade do Estado.

Ocorreram houve na Inglaterra com a morte de Henrique VIII, diversas

lutas religiosas. No período em que reinou Eduardo VI tentaram implantar o

calvinismo. No governo de Maria Tudor, filha de Catarina de Aragão, por sua

vez, procurou-se restabelecer o comando religioso católico. Foi então no

reinado da rainha Elizabeth I (1558-1603),26 o Anglicanismo firmou-se como

religião dominante e oficial na Inglaterra. A rainha Elizabeth I renovou o direito

de soberania real sobre a Igreja e fixou os fundamentos doutrinários e da

liturgia anglicana na Lei dos 39 Artigos, em 1563.

24 “A nudez da mulher de teu irmão não descobrirás; é a nudez de teu irmão” (BÍBLIA, A. T. Levítico, 18:16). Segundo Durant (s/d, p. 450) há uma passagem da Bíblia (Lv 20: 21) que proibia tal casamento, “Se um homem tomar a mulher de seu irmão, imundícia é [...] ficarão sem filhos”. Em outro texto dispunha o contrário (Dt 25:5) “Se irmãos morarem juntos, e um deles morrer sem filhos, então a mulher do que morreu não se casará com outro estranho, fora da família; seu cunhado a tomará e a receberá por mulher” [...]25 Uma dama da corte.26 A rainha Elizabeth I era filha de Ana Bolena com Henrique VIII.

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19

5 A CONTRARREFORMA OU A REFORMA CATÓLICA

Com o aparecimento das igrejas protestantes no século XVI houve

reação imediata da Santa Sé, que somente a partir de então começou a tomar

medidas mais efetivas para reafirmar os princípios fundamentais da moral

católica. Essa reação ficou conhecida como contrarreforma ou reforma católica.

Segundo Cairns (2008, p. 316) a Espanha

“tornou-se então, a nação líder na obra da Contrarreforma, isso, porque nacionalismo e religião tinham se associado para unificar e consolidar o Estado espanhol e expulsar os mouros mulçumanos e os judeus”.

Cairns ainda destaca que “com o casamento de Isabel de Castela com

Fernando de Aragão em 1469, ambos fervorosamente religiosos, a Espanha se

mantém unida e leal a Roma” (idem, p. 317). A Espanha tem um papel

importantíssimo na questão da reação católica diante do avanço do

protestantismo. Ela foi à organizadora da Inquisição em 1480 e se firmando

como órgão de extermínio dos hereges, sob a liderança de Tomás de

Torquemada.

A reação católica ou contrarreforma foi impulsionada pela Ordem dos

jesuítas, pelo Concílio de Trento e pela a Inquisição.

5.1 A ORDEM DOS JESUÍTAS

Entre as primeiras medidas em conter o protestantismo estava a criação

da Companhia de Jesus (Ordem dos jesuítas) em 1534, fundada pelo espanhol

Santo Inácio de Loyola (1491-1556). Klein (2007, p. 231-232) afirma que a

Companhia de Jesus27 tinha como visão “a promoção da mentalidade cristã, a

propagação da fé por pregação, exercícios espirituais, catequese cristã e obras

de caridade”, Cairns (2008, p. 318) ressalta que os objetivos principais estavam

“na educação, o combate a heresia e as missões estrangeiras”, porém, o autor

não destaca que a pregação teve papel fundamental, pois através desta,

grande parte da Alemanha fora reconquistada para a Igreja de Roma.

27 A ordem controla até hoje as instituições educacionais mais importantes da Igreja Católica.

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20

Além de atuar na Europa entre os protestantes, os jesuítas espalharam-

se pelo mundo no rastro das Grandes Navegações, estando presentes tanto na

América como no Extremo Oriente. Na América, portanto, dedicaram-se à

catequese de povos indígenas, podendo assim, impedir a difusão do

protestantismo.

5.2 O CONCÍLIO DE TRENTO

O Concílio de Trento foi outra medida importante da contrarreforma. No

ano de 1545, o papa Paulo III convocou um concílio,28 reunido na cidade de

Trento, na península Itálica, que teve seu término em 4 de dezembro de 1563.

Sua realização teve três fases distintas com 25 sessões. Klein (idem, p. 232)

nos diz que a primeira fase foi de “dezembro de 1545 a fevereiro de 1548; a

fase segunda, de setembro de 1551 a setembro de 1552 e a última fase de

janeiro de 1562 a dezembro de 1563”.

Ao final dos debates, o Concílio:

Reafirmou o poder do papa, manteve os sete sacramentos e a proibição do casamento para clérigos. Propôs a criação de seminários para a formação de padres. Organizou o Índex, uma lista de livros que os fiéis não poderiam ler, por ser considerada perniciosa a fé. Muitas vezes esses livros eram queimados em grandes fogueiras. Reativou o Tribunal do Santo Ofício (a Inquisição) com o objetivo de vigiar, julgar e punir qualquer pessoa acusada de heresia. Somente a Vulgata, tradução latina da Bíblia, era suficiente para qualquer discussão dogmática, que a tradição tinha uma autoridade paralela à das Escrituras (DURANT, s/d, p. 781-786; KLEIN, 2007, p. 232; CAIRNS, 2008, p. 319-321; GONZALEZ, 1983, p. 199).

As orientações do Concílio de Trento guiaram os católicos de todo o

mundo durante quatrocentos anos.

5.3 A INQUISIÇÃO

O Tribunal do Santo Ofício apesar de existir durante a Idade Média

obteve maior destaque no início da Idade Moderna. O tribunal combatia

protestantes, judeus, mulçumanos e hereges em nome da ortodoxia, constituía-

se também uma fonte de renda para o papado e reis da Península Ibérica, os

28 Reunião de autoridades da Igreja presidida ou sancionada pelo papa, para discutir questões relacionadas, ligadas à fé, à doutrina ou aos costumes eclesiásticos.

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21

reis por sua vez utilizavam-se da Inquisição para poder perseguir os inimigos

políticos.

A Inquisição instaurava-se por uma denúncia contra o sujeito que era

suspeito de crime contra a fé. Quem denunciava, ficava com a metade dos

bens do acusado e a Inquisição com a outra metade. Utilizava-se de torturas e

do costumes medieval dos francos – o julgamento de Deus.29 A pena máxima

na Inquisição era a morte na fogueira, onde o corpo era queimado para

purificar e salvar a alma do condenado.

A solenidade dos condenados era realizada Através dos Autos da Fé,

nos domingo ou dias santos. Na procissão aqueles que eram condenados a

morte, caminhavam de vestes brancas com seu crime escrito nas vestes e

carregava a tocha que acenderiam a fogueira. A multidão zombava-se e se

divertia com o sofrimento alheio.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

29 Este julgamento consistia na ideia de que Deus protegia o inocente. Se alguém fosse queimado, torturado ou andasse sobre brasas e não sentisse dor, era, portanto, considerado inocente, por que Deus o estava protegendo-o

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22

Neste resumo podemos fazer um incursão de cunho histórico sobre à

Reforma do Século XVI e o Movimento propriamente dito, que foi muito além

das fronteiras religiosas, tendo repercussões na vida política, social, econômica

e cultural, bem como fornecendo caminhos para a segunda geração de

reformadores, que foi o caso de João Calvino.

A Reforma Protestante do Século XVI nasceu na Alemanha, com o

grande reformador Martinho Lutero (1517). Mas, no contexto na Reforma,

surgiu o que chamamos de Movimento Reformado, na Suíça, num primeiro

momento com Ulrich Zwinglio30 e, mais tarde, com João Calvino, em Zurique e

Genebra, respectivamente.

Poucos movimentos religiosos surgiram e se estabeleceram com tanta

rapidez quanto a Reforma Protestante. Em trinta anos estava definida a divisão

entre católicos e protestantes tais como ela existe até hoje.

A Reforma provocou uma série de guerras religiosas, mas também

acarretou uma liberdade econômica maior para os países, que se livraram da

excessiva centralização e da dependência em relação a Roma, possibilitando

melhores condições para o desenvolvimento do novo sistema econômico que

surgia, o capitalismo. Para a Igreja Católica, a Reforma Protestante teve o

efeito de acelerar e desenvolver a Reforma Católica, já iniciada anteriormente.

Foi somente a comoção causada pelo cisma protestante que obrigou

Roma a reconsiderar a sua teologia, a clarificar sua doutrina e a revalorizar o

sacerdote e os sacramentos.

Lutero, Calvino e todos os reformadores estavam convictos da

irremediável decadência da Igreja de Roma, no que se enganaram totalmente.

Seu ressurgimento constituiu uma surpresa extraordinária. De qualquer

modo, as duas Reformas contrárias corresponderam a um mesmo despertar da

consciência cristã. Nada na Reforma foi conquistado ou construído com

facilidade. Na verdade, quebrar paradigmas sempre exigiu grandes esforços.

Lamentavelmente a Reforma provocou muitas baixas entre católicos e

protestantes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

30 Para não ficar muito extenso o resumo sobre a Reforma, deixamos de falar sobre o reformador Zwinglio e sua trajetória na Suíça.

Page 23: Reforma protestante   um resumo dos principais movimentos

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