reflexos das normas internacionais de contabilidade no direito

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GLAYDSON FERREIRA CARDOSO Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito Tributário Brasileiro A Questão dos Tributos com a Exigibilidade Suspensa e a Base de cálculo da CSLL Artigo apresentado à Faculdade de Direito Milton Campos, Nova Lima/MG, na disciplina Estágio de Docência, como exigência parcial para a conclusão do curso de Pós-Graduação stricto sensu - Mestrado em Direito Empresarial. FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS NOVA LIMA - MG 2011

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Page 1: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

GLAYDSON FERREIRA CARDOSO

Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito Tributário Brasileiro

A Questão dos Tributos com a Exigibilidade Suspensa e

a Base de cálculo da CSLL

Artigo apresentado à Faculdade de Direito

Milton Campos, Nova Lima/MG, na

disciplina Estágio de Docência, como

exigência parcial para a conclusão do curso

de Pós-Graduação stricto sensu - Mestrado

em Direito Empresarial.

FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS

NOVA LIMA - MG

2011

Page 2: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

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RESUMO

RESUMO: O objetivo deste estudo é a análise da receptividade das

normas internacionais de contabilidade pelo ordenamento jurídico brasileiro,

bem como a compreensão dos reflexos dessas mudanças para fins das

apurações dos tributos em destaque, tudo em consonância com os princípios

estabelecidos pela Constituição de 1988 e com o Código Tributário Nacional –

CTN. As normas brasileiras deveriam tornar as demonstrações contábeis

integradas a um panorama internacional de prestação de informações. Um dos

princípios essenciais na convergência das normas contábeis brasileiras para as

internacionais está na maior aplicação da subjetividade na interpretação dos

fatos registráveis. O resultado é a busca da aplicação a partir do conhecimento

da essência econômica sobre a forma jurídica da qual se revestiu o ato.

PALAVRAS-CHAVE: Normas Internacionais de Contabilidade, Direito

Tributário, Lei 11.638/2007, Essência econômica sobre a forma jurídica.

ABSTRACT: This study aims to examine the receptivity of international

accounting standards by the Brazilian legal system, as well as understand the

consequences of these changes for the tabulations of some tributes, all in line

with the principles established by the 1988 Constitution and with the National

Tax Code - CTN. Not only the Brazilian rules but also all the financial

statements should reflect the international way of reporting. The most important

point of the convergence of international accounting standards with the Brazilian

legal system is the possibility of largest application of subjectivity in the

interpretation of registrable facts. The result is the pursuit of the application of

economic substance and essence over legal form of which the act is coated.

KEYWORDS: International Accounting Standards, Tax Law, Law

11.638/2007, Economic substance and essence over Legal Form

Page 3: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

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1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA

Não é de hoje que se discute a necessidade de modernização da Lei

das Sociedades por Ações (Lei n. 6.404/76), tendo em vista o interesse em

torná-la melhor adaptada à prestação de dados aos mais variados usuários de

demonstrações financeiras. Em decorrência dessa modernização normativa, as

normas brasileiras deveriam tornar as demonstrações contábeis integradas a

um panorama internacional de prestação de informações.

O primeiro passo para alinhar normas e práticas contábeis brasileiras

com as internacionais foi dado com a apreciação, pela Câmara dos Deputados,

do Projeto de Lei n. 3.741/2000. Mencionado Projeto tratava especificamente

da parte da Lei das Sociedades por Ações, pertinente a assuntos contábeis.

Aquele Projeto de Lei deu origem à Lei n. 11.638, de 28 de dezembro de 2007,

a qual se tornou um marco divisor da matéria no ordenamento brasileiro.

As mudanças oriundas da Lei n. 11.638/2007 buscaram a direta

aproximação das normas contábeis brasileiras com aquelas adotadas nos

mercados internacionais, padronizando a análise de dados e a comparabilidade

entre as companhias que observem os mesmos princípios.

No período compreendido entre a elaboração do Projeto de Lei n.

3.741/2000 e a sua formalização na Lei n. 11.638/2007, diversas adaptações

foram iniciadas para criar uma estrutura capaz de absorver as mudanças

planejadas. Assim, em outubro de 2005 foi criado o Comitê de

Pronunciamentos Contábeis (CPC), o qual contou com o apoio do Conselho

Federal de Contabilidade (CFC), Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA),

Associação Brasileira das Empresas de Capital Aberto (ABRASCA), Instituto

dos Auditores Independentes do Brasil (IBRACON), Associação dos Analistas e

Profissionais de Investimento (APIMEC) e Fundação Instituto de Pesquisas

Contábeis, Atuariais e Financeiras (FIPECAFI). Ademais, a Comissão de

Valores Mobiliários (CVM) passou a emitir seus pronunciamentos em conjunto

Page 4: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

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com o CPC. Também o Banco Central do Brasil (BACEN) e a Superintendência

de Seguros Privados (SUSEP) demonstraram o apoio à elaboração das

demonstrações financeiras de conformidade com os padrões internacionais.

Logo, pela adesão dos mais diversos entes listados acima, verifica-se que as

adaptações às Normas Internacionais de Relatórios Financeiros (International

Financial Reporting Standards – IFRS), também conhecidas como Normas

Internacionais de Contabilidade – IAS, eram necessárias e inevitáveis.

Diversas mudanças decorrentes deste processo de convergência já

foram iniciadas, dando origem a pronunciamentos do CPC adotados pela CVM.

No processo de convergência, verifica-se que o sistema contábil brasileiro está

baseado em normas definidas, enquanto o IFRS se orienta por princípios.

Assim, ocorre clara mudança na análise dos eventos, BUSCANDO CONHECER MAIS A “ESSÊNCIA SOBRE A FORMA”, CONSIDERANDO MAIS A SUBSTÂNCIA ECONÔMICA DA OPERAÇÃO PARA QUE A MESMA SEJA CORRETAMENTE ENTENDIDA E APLICADA.

Ao pretender aplicar na matéria contábil a ‘essência sobre a forma’,

tem-se como efeito imediato a alteração do registro contábil de diversos fatos

incorridos pelas empresas. Por seu turno, uma vez que as apurações fiscais

partem das receitas e despesas para determinação da base de cálculo dos

tributos apurados diretamente sobre a receita ou o lucro (Contribuição ao

Programa de Integração Social – PIS, a Contribuição para Financiamento da

Seguridade Social – COFINS, Imposto de Renda da Pessoa Jurídica – IRPJ e

Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL), a alteração do

entendimento contábil e seu registro podem trazer mudanças significativas nas

bases de cálculo fiscais.

Assim, o objetivo deste estudo é a análise dos reflexos das normas

internacionais de contabilidade no ordenamento jurídico brasileiro e a aplicação

da idéia de sobrepor a “essência sobre a forma”, advinda dos preceitos

contábeis internacionais, em consonância com a mesma tendência verificada

em diversas matérias no campo do Direito Tributário. Em sintese, será avaliado

Page 5: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

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se a introdução dos conceitos do IFRS – basicamente a aplicação da essência

sobre a forma – pode interferir na avaliação de matérias tributárias.

Para facilitar a visualização do tema, no âmbito do presente estudo

será avaliada a questão relativa ao tratamento fiscal das despesas com tributos

com a exigibilidade suspensa na base de cálculo da CSLL, ou seja, se estes se

referem a meras provisões como em algumas vezes tenta sustentar o fisco ou

se, em verdade, representam obrigações legais, que devem seguir outro

regramento para fins seu tratamento fiscal.

2. DA MATÉRIA TRIBUTÁRIA SOB ANÁLISE – A QUESTÃO DOS TRIBUTOS COM A EXIGIBILIDADE SUSPENSA E A FORMAÇÃO DA BASE DE CÁLCULO DA CSLL

Como já conhecido, não raro a Receita Federal do Brasil questiona o

procedimento de contribuintes que, no entendimento da autoridade fiscal,

teriam promovido redução indevida da base de cálculo da Contribuição Social

sobre o Lucro Líquido – CSLL por força das despesas com tributos que estejam

com sua exigibilidade suspensa. Tal discussão, aliás, tem se estendido na

esfera administrativa e, quase sempre nesta esfera, sem sucesso pelos

contribuintes. Veja-se, como exemplo, a seguinte Ementa do Conselho de

Contribuintes do Ministério da Fazenda (atual CARF), que decidiu a questão da

seguinte forma:

“CSLL – PROVISÕES NÃO DEDUTÍVEIS – TRIBUTOS

COM EXIGIBILIDADE SUSPENSA – Por configurar uma

situação de solução indefinida, que poderá resultar em

efeitos futuros favoráveis ou desfavoráveis à pessoa jurídica,

os tributos ou contribuições cuja exigibilidade estiver suspensa nos termos do art. 151 do Código Tributário

Nacional, são indedutíveis para efeito de determinação da base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro

Page 6: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

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Líquido, POR TRADUZIR-SE EM NÍTIDO CARÁTER DE PROVISÃO.

” (1º CCMF – 1ª Câmara; Acórdão nº 101-95.727; Rel. Valmir

Sandri; data da sessão 20/09/2006). (Destaques não

constam no original)

Como se pode constatar da ementa transcrita, a alegação do

Fisco federal de que as importâncias relativas a tributos com exigibilidade

suspensa devem ser adicionadas à base de cálculo da CSLL pauta-se no entendimento de que aquelas despesas possuem natureza de PROVISÃO,

a qual, nos termos da legislação vigente, é indedutível para fins de apuração do

referido tributo. Considerando que guardassem a natureza de provisão, sua

indedutibilidade para fins da CSLL estaria prevista no art. 13 da Lei n. 9.249/95,

abaixo reproduzido:

Art. 13. Para efeito de apuração do lucro real e da base de cálculo da contribuição social sobre o lucro líquido, são vedadas as seguintes deduções, independentemente do

disposto no art. 47 da Lei nº 4.506, de 30 de novembro de 1964:

I – de qualquer provisão, exceto as constituídas para o

pagamento de férias de empregados e de décimo terceiro salário,

a de que trata o art. 43 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995,

com as alterações da Lei nº 9.065, de 20 de junho de 1995, e as

provisões técnicas das companhias de seguro e de capitalização,

bem como das entidades de previdência privada, cuja constituição

é exigida pela legislação especial a elas aplicável;

Lado outro, a legislação em vigor traz dispositivo específico para determinar o tratamento fiscal das despesas com tributos com a exigibilidade suspensa, qual seja, o art. 41 da Lei n. 8.981/95, ainda em

vigor. Tal dispositivo, contudo, encontra-se em capítulo destinado

especificamente à “determinação do lucro real”que, como sabido, é base de

cálculo para o IRPJ. Veja-se o dispositivo:

Page 7: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

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SUBSEÇÃO I

Das Alterações na Apuração do Lucro Real

Art. 41. Os tributos e contribuições são dedutíveis, na determinação do lucro real, segundo o regime de competência.

§ 1º O disposto neste artigo não se aplica aos tributos e contribuições cuja exigibilidade esteja suspensa, nos termos

dos incisos II a IV do art. 151 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de

1966, haja ou não depósito judicial.

Deste modo, enquanto o fisco defende que os tributos com a

exigibilidade suspensa se referem a PROVISÕES, os contribuintes tentam

demonstrar que se referem a OBRIGAÇÕES LEGAIS, de natureza totalmente

distinta das provisões. Tal distinção determina qual o dispositivo da legislação

em vigor deve ser aplicado: se entendido que se tratam de provisões, seriam

indedutíveis para fins da CSLL e do IRPJ (art. 13 da Lei n. 9.249/95); lado

outro, se confirmada sua natureza de obrigação legal, inexistiria previsão legal

para exigir sua indedutibilidade na base de cálculo da CSLL, mas somente para

fins do IRPJ (art. 41 da Lei n. 8.981/95).

O questionamento à posição fiscal anteriormente exposta baseia-

se na seguinte argumentação: (a) ausência de previsão legal que determine a

adição das despesas correspondentes a tributos com exigibilidade suspensa à

base de incidência da CSLL; uma vez que (b) tais despesas, ao contrário do

sustentado pelo Fisco federal, não possuem natureza de provisão, restando

afastada qualquer fundamentação legal sob a qual se possa basear a vedação

de sua dedutibilidade da base de cálculo da mencionada contribuição.

Ou seja: é essencial, para definir o adequado tratamento fiscal

que deve ser dado à matéria, saber se os tributos com a exigibilidade suspensa

têm a natureza de mera provisão ou de uma obrigação legal. Assim,

considerando que o preceito básico das normas internacionais de contabilidade

Page 8: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

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está direcionado à busca da essência dos fatos registrados contabilmente e

que esta padronização está em fase final de implementação no Brasil, este

estudo busca verificar se as inserções decorrentes do modelo IFRS podem

auxiliar a definição da natureza daquele registro contábil (tributos com a

exigibilidade suspensa) e, com isso, na adequada capitulação pela legislação

que rege a base de cálculo da CSLL.

3. A QUESTÃO DA ESSÊNCIA SOBRE A FORMA

Como dito anteriormente, um dos princípios essenciais na

convergência das normas contábeis brasileiras para as internacionais está na

maior aplicação da subjetividade na interpretação dos fatos registráveis. O

resultado é a busca da aplicação a partir do conhecimento da essência

econômica sobre a forma jurídica da qual se revestiu o ato.

Este tema, contudo, antes de ser uma barreira para a correlação entre

a contabilidade e o direito tributário brasileiro, é mais um elemento de

conectividade entre as duas áreas do conhecimento. Vê-se que, há algum

tempo, basicamente desde que se iniciaram debates mais longos acerca da

aplicação de normas antielisivas no Brasil, uma tendência de se buscar a

essência do ato ou negócio jurídico para validá-lo e conhecer seus efeitos. E a

aplicação deste princípio tem encontrado apoio em grande parte da doutrina e

na jurisprudência.

Diante disso, torna-se relevante avaliar o acolhimento do princípio da

essência sobre a forma na questão da contabilidade e no direito tributário. O

objetivo, aqui, é identificar um ponto de convergência entre as duas áreas e, a

partir daí, traçar um possível caminho de interpretação das controvérsias

surgidas no direito tributário em decorrência da aplicação do IFRS.

3.1 A Essência Econômica sobre a Forma Jurídica na Contabilidade e no Direito Tributário

Page 9: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

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É sabido que desde os tempos das expansões comerciais até hoje, o

ato de registrar numericamente os dados buscou o conhecimento da real grandeza patrimonial, sempre o mais próximo possível da realidade.

No âmbito do conhecimento da realidade dos fatos, interessa avaliar a

origem da padronização das normas de contabilidade, com a criação do Comitê

de Pronunciamentos Contábeis Internacionais (International Accounting

Standards Comittee – IASC), em 1973. À época da criação do IASC, grande

parte dos países envolvidos faziam parte do “Common Law System”: Austrália,

Canadá, Estados Unidos e Reino Unido / Irlanda. Em decorrência, as normas

internacionais sofreram forte influência do referido sistema, trazendo maior

flexibilidade de interpretação, uma vez que são normas essencialmente

baseadas em princípios, nas quais prevalece a essência sob a forma.

Ao longo da cronologia do IFRS, é possível identificar o surgimento das

dificuldades de implementação dessas normas em virtude de aparente conflito

“Common Law e Civil Law”, em países que adotam tal sistema como Brasil,

França, Alemanha, Espanha e Itália.

Embora a legislação brasileira tenha se baseado na Civil Law,

privilegiando o formalismo habitual em face da mens legis, a intenção de

buscar a realidade patrimonial independentemente da forma sempre foi o norte

da legislação societária. Tanto assim que o art. 135 do Decreto Lei n.

2.627/1940 já previa que “o balanço deverá exprimir, com clareza, situação real

da sociedade ...”

A questão da prevalência da essência sobre a forma não é, de fato,

novidade em matéria contábil. Veja-se, como exemplo, o que dispunha a

Deliberação CVM n. 29, de 5 de fevereiro de 1986:

“Para a consecução desse objetivo da Contabilidade, e dentro

principalmente do contexto companhia aberta/usuário externo,

dois pontos importantíssimos se destacam:

(...)

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2º - A contabilidade possui um grande relacionamento com os

aspectos jurídicos que cercam o patrimônio, mas, não raro, a

forma jurídica pode deixar de retratar a essência econômica.

Nessas situações, deve a Contabilidade guiar-se pelos seus

objetivos de bem informar, seguindo, se for necessário para

tanto, a essência ao invés da forma.

Por exemplo, a empresa efetua a cessão de créditos a

terceiros, mas fica contratado que a cedente poderá vir a

ressarcir a cessionária pelas perdas decorrentes de eventuais

não pagamentos por parte dos devedores. Ora, juridicamente

não há ainda dívida alguma na cedente, mas ela deverá atentar

para a essência do fato e registrar a provisão para atentar a

tais possíveis desembolsos.

Ou, ainda, uma empresa vende um ativo, mas assume o

compromisso de recomprá-lo por um valor já determinado em

certa data. Essa formalidade deve ensejar a contabilização de uma operação de financiamento (essência) e não de compra e venda (forma).

Noutro exemplo, um contrato pode, juridicamente, estar dando

a forma de arrendamento a uma transação, mas a análise da

realidade evidencia tratar-se, na prática, de uma operação de

compra e venda financiada. Assim, consciente do conflito

essência/forma, a Contabilidade fica com a primeira.

Essas características de evidenciação ou de divulgação

(disclosure) e de prevalência da essência sobre a forma cada vez mais se firmam como próprias da Contabilidade, dados seus objetivos específicos.” (Destaques não constam

no original)

Page 11: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

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É imperioso entender, portanto, que o conceito de prevalência do efeito econômico sob a forma jurídica não é uma inovação trazida pela Lei n. 11.638/2007 para fins contábeis. A integração com o modelo internacional,

baseado em princípios, apenas evidencia a necessidade de análise subjetiva

das normas aplicadas. Tais princípios deverão ser interpretados e

cuidadosamente aplicados em cada análise e demonstração financeira

realizada.

No tocante ao Direito Tributário, o tema passou a merecer maior

atenção a partir da edição da Lei Complementar n. 104, de 10 janeiro de 2001.

Referida norma, entre outras disposições, inseriu Parágrafo Único ao art. 116

do Código Tributário Nacional – CTN, cujo texto é o seguinte:

"Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se

ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:

I - tratando-se de situação de fato, desde o momento em que

se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que

produza os efeitos que normalmente lhes são próprios;

II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que

esteja definitivamente constituída, nos termos de direito

aplicável.

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária." (Destaques não

constam no original)

De acordo com a exposição de motivos que acompanhou o Projeto

resultante na Lei Complementar nº 104/2001 demonstrava claramente os

objetivos de inserir aquela norma: "A inclusão do parágrafo único ao Art. 116

faz-se necessária para estabelecer, no âmbito da legislação brasileira, norma

que permita à autoridade tributária desconsiderar atos ou negócios jurídicos

Page 12: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

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praticados com a finalidade da elisão, constituindo-se, dessa forma, em

instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento

tributário adotados com abuso de forma ou de direito".

Muito embora exista a previsão de que os requisitos do Parágrafo

Único do art. 116 do CTN careciam de regulamentação e que esta ainda não

ocorreu, já têm sido bastante intensos os debates acerca da norma que trouxe,

e continuam trazendo, grandes preocupações ao permitir que o agente fiscal

interprete negócio ou ato jurídico de forma a priorizar a essência do negócio em

relação ao apresentado formalmente.

É bom mencionar que o dispositivo acrescentado ao art. 116 do CTN

pela Lei Complementar nº 104/2001 não buscou tratar de simulação, mas sim

da dissimulação, que busca ocultar, disfarçar o ato realmente pretendido, de

forma artificiosa. Contudo, o teste do propósito negocial tem sido entendido por

alguns como uma forma mais abrangente de simulação, razão pela qual devem

ser considerados, também, os elementos desse instituto.

O conceito de simulação diverge do conceito insculpido no art. 116, é

instituto regulamentado no Direito Brasileiro e a fiscalização pode tomá-lo por

base para sustentar eventuais questionamentos. Veja-se o art. 167 do Novo

Código Civil:

“Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o

que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

§1º. Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

I. aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas

daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;

II. contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não

verdadeira;

III. os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-

datados.”

Page 13: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

13

O conceito de simulação adotado pelo Código Civil é restrito, pontual.

Afora as três situações elencadas nos incisos do parágrafo primeiro do artigo

167, não haveria que se falar em simulação. Alberto Xavier entende a

simulação da seguinte forma1:

“A simulação é um caso de divergência entre a vontade

(vontade real) e a declaração (vontade declarada), procedente

de acordo entre o declarante e o declaratário e determinada

pelo intuito de enganar terceiros.

Os seus elementos essenciais são, pois, (i) a intencionalidade

da divergência entre a vontade e a declaração; (ii) o acordo

simulatório (pactum simulationis); (iii) o intuito de enganar

terceiros.”

Há, contudo, entendimentos que sustentam que a simulação deve ser

entendida a partir de uma compreensão mais substancial e menos formalista

das normas jurídicas e da realidade. Se o negócio jurídico é praticado com

propósitos diversos da finalidade a que se destina, se a operação realizada traz

resultados diversos daqueles que normalmente traria, poder-se-ia falar em

simulação em sentido amplo, independentemente de a operação ser

enquadrada em um dos incisos do artigo 167, §1º do Código Civil em vigor.

Veja-se claro exemplo desta interpretação mais ampla de simulação no

seguinte precedente do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda,

atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF):

“IRPJ – INCORPORAÇÃO ÀS AVESSAS – MATÉRIA DE

PROVA – COMPENSAÇÃO DE PREJUÍZOS FISCAIS – A

definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se da

validade jurídica dos atos efetivamente praticados. Se a

documentação acostada nos autos de incorporação era

1 XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001. p. 52

Page 14: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

14

enganosa para produzir efeito diverso do ostensivamente

indicado, a autoridade fiscal não está jungida aos efeitos jurídicos que os atos produziram , mas à verdadeira repercussão econômica dos atos subjacentes.” (Ac.

CSRF/01-02.107, 01.12.96)” (Destaques não constam no

original)

Também é este o entendimento admitido pelo STJ, tal como se verifica

na Ementa de recente julgado, transcrita abaixo:

RECURSO ESPECIAL Nº 946.707 - RS (2007/0092656-4) RELATOR : MINISTRO HERMAN BENJAMIN RECORRENTE : JOSAPAR JOAQUIM OLIVEIRA S/A

PARTICIPAÇÕES

ADVOGADO : CLÁUDIO MERTEN E OUTRO(S)

RECORRIDO : FAZENDA NACIONAL

PROCURADORES : LUÍS ALBERTO SAAVEDRA E

OUTRO(S)

CLAUDIO XAVIER SEEFELDER FILHO

EMENTA PROCESSUAL CIVIL. OFENSA AO ART. 535 DO CPC NÃO

CONFIGURADA. MULTA DO ART. 538, PARÁGRAFO ÚNICO,

DO CPC. INAPLICABILIDADE. INCORPORAÇÃO.

APROVEITAMENTO DE PREJUÍZOS. REDUÇÃO DA CSSL

DEVIDA. SIMULAÇÃO. SÚMULA 7/STJ. INAPLICABILIDADE.

SÚMULA 98/STJ.

1. Hipótese em que se discute compensação de prejuízos

para fins de redução da Contribuição Social sobre Lucro

Líquido - CSSL devida pela contribuinte.

2. A empresa Supremo Industrial e Comercial Ltda.

formalmente incorporou Suprarroz S/A (posteriormente

incorporada pela recorrente). Aquela acumulava

Page 15: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

15

prejuízos (era deficitária, segundo o TRF), enquanto esta

era empresa financeiramente saudável.

3. O Tribunal de origem entendeu que houve simulação,

pois, em realidade, foi a Suprarroz que incorporou a

Supremo. A distinção é relevante, pois, neste caso

(incorporação da Supremo pela Suprarroz), seria

impossível a compensação de prejuízos realizada, nos

termos do art. 33 do DL 2.341/1987.

4. A solução integral da lide, com fundamento suficiente,

não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC.

5. Não há controvérsia quanto à legislação federal.

6. A contribuinte concorda que a incorporadora não pode

compensar prejuízos acumulados pela incorporada, para

reduzir a base de cálculo da CSSL, nos termos do art.

33 do DL 2.341/1987. Defende que a empresa com

prejuízos acumulados (Supremo) é, efetivamente, a

incorporadora.

7. O Tribunal de origem, por seu turno, não afasta a

possibilidade, em tese, de uma empresa deficitária

incorporar entidade financeiramente sólida. Apenas, ao

apreciar as peculiaridades do caso concreto, entendeu

que isso não ocorreu.

8. Tampouco se discute que, em caso de simulação, "é

nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se

dissimulou, se válido for na substância e na forma" (art.

167, caput, do CC).

9. A regularidade formal da incorporação também é

reconhecida pelo TRF.

10. A controvérsia é estritamente fática: a recorrente

defende que houve, efetivamente, a incorporação da

Suprarroz (empresa financeiramente sólida) pela

Supremo (empresa deficitária); o TRF, entretanto,

entendeu que houve simulação, pois, de fato, foi a

Suprarroz que incorporou a Supremo.

Page 16: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

16

11. Para chegar à conclusão de que houve simulação, o Tribunal de origem apreciou cuidadosa e aprofundadamente os balanços e demonstrativos de Supremo e Suprarroz, a configuração societária superveniente, a composição do conselho de administração e as operações comerciais realizadas pela empresa resultante da incorporação. Concluiu, peremptoriamente, pela inviabilidade econômica da operação simulada.

12. Rever esse entendimento exigiria a análise de todo o

arcabouço fático apreciado pelo Tribunal de origem e

adotado no acórdão recorrido, o que é inviável em

Recurso Especial, nos termos da Súmula 7/STJ.

13. Aclaratórios opostos com o expresso intuito de

prequestionamento não dão ensejo à aplicação da multa

prevista no art. 538, parágrafo único, do CPC, que deve

ser afastada (Súmula 98/STJ).

14. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa

parte, provido.” (Destaques não constam no original)

Nesse contexto, embora existam entendimentos diversos acerca da

aplicação do instituto da simulação (alguns com interpretação mais restritiva do

art. 167 do Código Civil e outros com interpretação extensiva), bem como,

muito se discuta acerca da natureza do instituto previsto do art. 116 do CTN,

não se pode ignorar que por todos estes caminhos o que tem se buscado em

matéria de Direito Tributário e fiscalização é avaliar a justificativa do ato quanto

à sua repercussão negocial, econômica.

Ora, sendo o fato gerador decorrente de ato econômico, adequada está sua análise com base na relevância do mesmo sob este aspecto, dando-se menos relevo à sua mera formalização. Dito de outro modo, para

o Direito Tributário o que deve ser considerado é a conseqüência econômica

do ato, mas não a forma pela qual foi exposto. O que se deve buscar é a

Page 17: Reflexos das Normas Internacionais de Contabilidade no Direito

17

descoberta da real intenção das partes de modo a jungir o ato econômico com

a ocorrência ou não do fato gerador da obrigação tributária.

4. A QUESTÃO SOB ANÁLISE – A NATUREZA DOS TRIBUTOS COM A EXIGILIDADE SUSPENSA

Diante das ponderações apresentadas até aqui, pretende-se ter criado

um direcionamento que servirá de base para avaliar o adequado tratamento

fiscal que deve ser conferido aos efeitos gerados pela adoção do IFRS. Esse

direcionamento está baseado na compreensão da essência dos atos praticados

para, a partir disso, aplicar o adequado tratamento fiscal.

A prevalecer a essência do ato na análise de seus efeitos, o evento será reconhecido contabilmente e deve ser tratado fiscalmente tal qual sua natureza; assim, por exemplo, no caso de operações de leasing que

se mostram efetivos financiamentos de compra e venda, há que se dar o

tratamento fiscal de contratos de compra e venda de bens. Do mesmo modo,

se determinado registro não guarda a natureza de provisão, não pode seguir o

regramento fiscal destas.

Na hipótese sob análise, as Autoridades Fiscais buscam sustentar

que os tributos com exigibilidade suspensa possuem caráter de provisão,

sendo portanto indedutíveis da base de cálculo da CSLL, em virtude do inciso I

do art. 13 da Lei nº 9.249/95, que novamente aqui se reproduz:

“Art. 13. Para efeito de apuração do lucro real e da base de cálculo da contribuição social sobre o lucro líquido,

são vedadas as seguintes deduções, independentemente

do disposto no art. 47 da Lei nº 4.506, de 30 de novembro de

1964:

I - de qualquer provisão, exceto as constituídas para o

pagamento de férias de empregados e de décimo-terceiro

salário, a de que trata o art. 43 da Lei nº 8.981, de 20 de

janeiro de 1995, com as alterações da Lei nº 9.065, de 20 de

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18

junho de 1995, e as provisões técnicas das companhias de

seguro e de capitalização, bem como das entidades de

previdência privada, cuja constituição é exigida pela

legislação especial a elas aplicável; (...)”.

Dessa forma, para a devida análise da plausibilidade do

entendimento sustentado pelo fisco, é mister tecer algumas breves

considerações acerca do conceito de provisão, a fim de verificar se nele se

enquadram as despesas relativas a tributos com exigibilidade suspensa.

Entende-se por provisão os valores que devem ser contabilizados

pela empresa com o objetivo de saldar despesas que podem ou não surgir no

futuro ou que, já tendo ocorrido o fato jurídico que lhes deu origem, não

possam ainda ser mensuradas com exatidão. Veja-se, para maior clareza, a

conceituação do termo dada por Silvério das Neves e Hiromi Higuchi,

respectivamente:

“O termo Provisões refere-se a despesas com perdas de

ativos ou com a constituição de obrigações que, embora já

tenham seu fato gerador contábil ocorrido, não podem ser

medidas com exatidão e têm, por esse motivo, caráter estimativo”2. (com destaques no original).

“Provisão é título apropriado para registrar uma provável

despesa futura que poderá concretizar ou não3.”

O traço característico da provisão é, portanto, a incerteza em

relação ao valor exato, ao prazo para pagamento das obrigações futuras, ou,

ainda, à própria concretização destas.

2 In Curso prático de imposto de renda pessoa jurídica e tributos conexos: CSLL, PIS e COFINS. 10. ed. São Paulo: Frase Editora, 2003, p.161. 3 In Imposto de Renda das Empresas – interpretação e prática; atualizado até 10.01.2006. 31.ed; São Paulo: IR Publicações -2006, p.749-450.

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Em virtude dessa indefinição ínsita às provisões, a Fiscalização

defende que os tributos com exigibilidade suspensa possuem tal natureza

contábil, ao argumento de que as despesas a eles relativas não podem ser

consideradas definitivamente incorridas, visto que, de seu questionamento

judicial, poderão advir resultados favoráveis ou desfavoráveis ao contribuinte.

Assim, por perdurar dúvida quanto à efetiva liquidação das obrigações

tributárias contestadas em juízo, cuja exigibilidade esteja suspensa, sustenta o

Fisco que suas respectivas despesas devem ser contabilizadas como provisão.

Este, no entanto, não parece ser o entendimento mais acertado, consoante se

demonstrará a seguir.

Nos termos da legislação vigente, a obrigação tributária nasce

com a ocorrência do fato gerador, segundo disposição contida no §1º, do art.

113 do CTN:

“Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

§1º. A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou

penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o

crédito dela decorrente. (...)”.

Assim, preenchidos os aspectos (material, pessoal, espacial e

territorial) da hipótese abstratamente descrita na norma de incidência de

determinado tributo, surge para o contribuinte o dever de pagá-lo. Tanto o valor

quanto o vencimento da obrigação já são, desde seu nascimento,

determináveis, tendo em vista que é possível identificar em sua lei instituidora a

alíquota, a base de cálculo, bem como o prazo para recolhimento da exação.

Portanto, com a ocorrência do fato gerador, a dívida já se torna

líquida e certa, representando para o contribuinte uma despesa incorrida com

natureza contábil de contas a pagar. Constituído, pois, o dever jurídico relativo

ao cumprimento da obrigação tributária principal, deve esta ser escriturada,

ainda que não se proceda ao efetivo recolhimento do tributo no respectivo

período. Em suma, pelo regime de competência, considera-se incorrida a

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20

despesa no momento em que ela existir juridicamente e puder ser aferido seu

exato valor, independente do desembolso de recursos para quitá-la.

Diante disso, é de se convir que o fato de um tributo estar com a

exigibilidade suspensa não torna incerta sua existência ou seu valor, de modo

a possibilitar seu enquadramento no conceito de provisão. Não mesmo. Como

dito, desde o fato gerador a obrigação tributária existe, é devida e mensurável,

apenas não sendo exigível enquanto subsistir a causa suspensiva. Tal

assertiva foi, inclusive, admitida pelo Conselho de Contribuintes do Ministério

da Fazenda, atual CARF, por ocasião do julgamento do Recurso Voluntário

interposto pela Instituição no caso sob análise, conforme se pode ver no

seguinte excerto do voto do Conselheiro Relator:

“No caso em tela, o fato de as referidas contribuições se encontrarem com a sua exigibilidade suspensa, não significa que o crédito tributário correspondente não era devido, identificável ou mensurável, mas tão somente que o seu efetivo desembolso está postergado para o momento do término da ação judicial e que, portanto, enquanto não for proferida decisão na ação judicial, são devidos4.” (sem destaques no original).

Não há como alegar que houve o nascimento da obrigação

tributária que, repita-se, surge com a ocorrência do fato gerador, mesmo

estando o tributo com a exigibilidade suspensa. A suspensão da exigibilidade

do crédito tributário nada mais é do que uma forma de proteção temporária do

sujeito passivo contra atos de cobrança da Autoridade Administrativa, após

ocorrido o fato gerador e, conseqüentemente, a obrigação tributária (afinal, se

inexistisse a obrigação, sequer haveria necessidade de proteger o contribuinte

contra atos administrativos de cobrança).

4 1º CC/MF – 1ª Câmara; Acórdão nº 101-95.727; Rel. Valmir Sandri; data da sessão 20/09/2006.

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Outrossim, o mero questionamento judicial do tributo não é hábil a

torná-lo incerto ou inválido, o que somente pode ocorrer após o trânsito em

julgado da decisão que assim determine. É cediço que a lei instituidora da

obrigação tributária, ainda que contestada, goza de presunção de validade,

produzindo seus regulares efeitos até que o contrário seja declarado

judicialmente.

Por corolário lógico, o fato de o contribuinte se opor, em juízo, ao

pagamento de determinado tributo não retira a natureza de contas a pagar dessa despesa, considerando que, ainda que dela discorde, a obrigação

existe e é devida enquanto não for definitivamente julgada inválida. Esclareça-

se que o questionamento judicial a que se está referindo não decorre da dúvida

quanto à aplicação da lei tributária ao fato praticado pelo contribuinte, mas sim do entendimento deste acerca de sua ilegalidade/inconstitucionalidade.

Logo, enquanto não for declarada a invalidade jurídica da norma questionada

(se é que, de fato, isso venha a ocorrer), o contribuinte estará submetido à sua

compulsória observância, quer a considere legítima, quer não. Hugo de Brito

Machado é categórico ao lecionar sobre a questão:

“A contabilização de tributo independe da vontade do contribuinte. Independe de seu reconhecimento. Surge com a ocorrência do respectivo fato gerador, sendo o

lançamento tributário meramente declaratório, consoante

entendimento hoje pacífico entre os doutrinadores.

(...)

Se há lançamento, é induvidoso o direito que tem o contribuinte de considerar a relação jurídica tributária naquele declarada, ainda que se oponha à validade jurídica do procedimento de constituição do crédito respectivo, e sustente ser indevido o tributo. Sua contabilidade, assim, há de registrar essa relação, que não é desconstituída pelo fato de ingressar o contribuinte em Juízo sustentando ser indevido o tributo.

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(...)

A obrigação tributária, nascida com a ocorrência do fato gerador respectivo (CTN, art. 113, §1º), obviamente não deixa de existir em face de qualquer das causas de suspensão de sua exigibilidade. Até que seja a causa definitivamente julgada, a dívida existirá, e como tal deve ser tratada contabilmente, e considerada para os efeitos tributários. (...)5”. (sem destaques no original).

Diante das lições acima colacionadas, constata-se a

insubsistência da alegação de que a contabilização como despesas incorridas

dos valores relativos a tributos questionados judicialmente, cuja exigibilidade

esteja suspensa, é incorreta. Tanto não o é que, em casos semelhantes, em

que o contribuinte intenta medida judicial, buscando a declaração da invalidade

do tributo, mas não é favorecido pelas causas suspensivas da exigibilidade

deste, ou demonstra, de forma ainda mais radical, sua inconformidade com a

exação, deixando de recolhê-la por sua conta e risco, a respectiva despesa,

mesmo que não paga, é considerada efetivamente incorrida e, por conseguinte,

dedutível.

Importante ressaltar que a própria Administração Pública

reconhece como existente a obrigação tributária desde o fato gerador, mesmo

estando suspensa sua exigibilidade. Prova disso é que, quando referida causa

suspensiva deixa de existir, o Fisco passa a exigir o principal, acrescido dos

juros moratórios incidentes durante todo o período, salvo se houver depósito

judicial do valor integral do débito6. Se essa despesa representasse mera

5 In Dedutibilidade de tributos com exigibilidade suspensa – Revista Dialética de Direito Tributário nº 3, 1995, p. 49 e 50. 6 Referida exigência fiscal tem por fundamento o seguinte dispositivo do RIR/99, aprovado pelo Decreto nº 3.000/99: “Art. 953. Em relação a fatos geradores ocorridos a partir de 1º de abril de 1995, os créditos tributários da União não pagos até a data do vencimento serão acrescidos de juros de mora equivalentes à variação da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente, a partir do primeiro dia do mês subseqüente ao vencimento do prazo até o mês anterior ao do pagamento (Lei nº 8.981, de

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provisão, somente poder-se-ia admitir a incidência de juros a partir do momento

em que a decisão judicial confirmasse a legitimidade da obrigação.

Insubsistente, assim, a alegação do Fisco no sentido de que a

natureza de provisão das despesas relativas a tributos com exigibilidade

suspensa decorre da incerteza do momento de sua liquidação. Ora, se ele

próprio exige os juros de mora durante todo o período de suspensão da

exigibilidade do tributo, a contar da ocorrência do respectivo fato gerador, é

porque considera a obrigação existente e vencida desde então, caso contrário

não haveria que se falar em mora do contribuinte a ensejar tal punição.

Depreende-se de tudo o que foi exposto até aqui, que o

questionamento judicial dos tributos, bem como a suspensão de sua

exigibilidade, não desnaturam sua natureza contábil de contas a pagar, uma vez que, desde a ocorrência do fato gerador, a obrigação tributária é

devida (até que o contrário não seja julgado em definitivo) e perfeitamente

determinável, não podendo, dessa forma, ser enquadrada no conceito de

provisão.

A própria legislação relativa ao imposto de renda corrobora essa

conclusão. Ao dispor sobre a base de cálculo desse tributo, ela estabelece, em

dispositivos distintos (art. 41, §1º da Lei n.º 8.981/95 e art. 13, I da Lei n.º

9.249/95, respectivamente), que os tributos com exigibilidade suspensa, bem

como as provisões, são parcelas indedutíveis de tal cômputo.

Ora, se as exações temporariamente inexigíveis possuíssem

caráter de provisão, não haveria razão para que sua indedutibilidade fosse

determinada por dispositivo legal específico. Para tanto, bastaria apontar o 1995, art. 84, inciso I, e § 1º, Lei nº 9.065, de 1995, art. 13, e Lei nº 9.430, de 1996, art. 61, § 3º). (..) § 3º Os juros de mora serão devidos, inclusive durante o período em que a respectiva cobrança houver sido suspensa por decisão administrativa ou judicial (Decreto-Lei nº 1.736, de 1979, art. 5º). § 4º Somente o depósito em dinheiro, na Caixa Econômica Federal, faz cessar a responsabilidade pelos juros de mora devidos no curso da execução judicial para a cobrança da dívida ativa. (...)”. (sem destaques no original).

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referido art. 13, o qual, como visto, determina a inclusão das provisões na base

de incidência do IRPJ. Por essa razão, e tendo-se em vista que a lei, segundo

as regras de interpretação jurídica, não contém disposições inúteis, vê-se que o

próprio ordenamento jurídico pátrio distingue as despesas registradas para

fazer face aos tributos com a exigibilidade suspensa das provisões.

O posicionamento decorrente das aplicações dos preceitos

internacionais de contabilidade leva ao necessário reconhecimento, portanto, de que as despesas relativas a tributos com exigibilidade suspensa não se enquadram no conceito de provisão. Veja-se como a

matéria é tratada pelas normas técnicas contábeis.

Em outubro de 2005, a Comissão de Valores Mobiliários publicou

a Deliberação nº 489, aprovando o Pronunciamento do IBRACON NPC nº 22,

que dispõe sobre provisões, passivos, contingências passivas e contingências

ativas.

No anexo I da mencionada NPC, a “obrigação legal” e a

“contingência passiva” foram conceituadas da seguinte forma:

“(vi) Uma obrigação legal é aquela que deriva de um

contrato (por meio de termos explícitos ou implícitos), de

uma lei ou de outro instrumento fundamentado em lei.

(...)

(viii) Uma contingência passiva é:

(a) uma possível obrigação presente cuja existência será

confirmada somente pela ocorrência ou não de um ou mais

eventos futuros, que não estejam totalmente sob o controle

da entidade; ou

(b) uma obrigação presente que surge de eventos passados,

mas que não é reconhecida porque:

(i) é improvável que a entidade tenha de liquidá-la; ou

(ii) o valor da obrigação não pode ser mensurado com

suficiente segurança.” (sem destaques no original).

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Considerando a complexidade inerente ao assunto relativo aos

passivos tributários e às provisões em geral, o IBRACON editou a Interpretação

Técnica nº 02/2006, com o escopo de sanar algumas dúvidas geradas pela

NPC nº 22, especificamente aquelas referentes ao conceito legal de obrigação

e à interpretação do exemplo de tratamento a ser dado ao tributo em relação

ao qual o contribuinte ajuíza ação judicial para argüir sua

inconstitucionalidade7.

Dos esclarecimentos traçados pela Interpretação Técnica do

IBRACON nº 02/2006 acerca do exemplo acima mencionado (tratamento

contábil dos tributos questionados judicialmente), infere-se que, enquanto não

for declarada a inconstitucionalidade da lei instituidora da obrigação tributária,

esta continuará válida, devendo a despesa a ela vinculada ser contabilizada

como “despesas a pagar”, salvo em situações extremas em que se possa

atestar a evidência de que a lei, ainda que vigente, não produzirá seus efeitos

regulares. Confira-se, a propósito, os dizeres da aludida Interpretação Técnica:

“Nesse caso, enquanto vigorar a lei, existe uma relação jurídica que estabelece uma obrigação legal entre o contribuinte e a União. Em razão da existência dessa relação jurídica, os respectivos efeitos produzidos pela

7 Referido exemplo encontra-se previsto no item 4(a), do Anexo II da NPC 22, cuja redação é a seguinte: “4. Tributos (a) A administração de uma entidade entende que uma determinada lei federal, que alterou a alíquota de um tributo ou introduziu um novo tributo, é inconstitucional. Por conta desse entendimento, ela, por intermédio de seus advogados, entrou com uma ação alegando a inconstitucionalidade da lei. Nesse caso, existe uma obrigação legal a pagar à União. Assim, a obrigação legal deve estar registrada, inclusive juros e outros encargos, se aplicável, pois estes últimos têm a característica de uma provisão derivada de apropriações por competência. Trata-se de uma obrigação legal e não de uma provisão ou de uma contingência passiva, considerando os conceitos da NPC. Em uma etapa posterior, o advogado comunica que a ação foi julgada procedente em determinada instância. Mesmo que haja uma tendência de ganho, e ainda que o advogado julgue como provável o ganho de causa em definitivo, pelo fato de que ainda cabe recurso por parte do credor (a União), a situação não é ainda considerada praticamente certa, e, portanto, o ganho não deve ser registrado. É de se ressaltar que a situação avaliada é de uma contingência ativa, e não de uma contingência passiva a ser revertida, pois o passivo, como dito no item anterior, é uma obrigação legal e não uma provisão ou uma contingência passiva.”

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vigência da norma devem ser registrados contabilmente como contas a pagar. A obrigação legal, anteriormente descrita, somente deixará

de existir quando a relação jurídica que a originou deixar de

produzir, definitivamente, os efeitos que lhe são pertinentes.

Essa relação jurídica terminará quando houver decisão

definitiva acerca de sua inconstitucionalidade proferida em

instância competente, ou caso haja o seu efetivo

cumprimento por meio de pagamento ou outra forma de

extinção da obrigação tributária.

Note-se que a suspensão da exigibilidade do pagamento da obrigação tributária, provocada por meio de recursos legais iniciados pela entidade, não afeta a existência dessa obrigação. A obrigação legal existe, mas não é, no momento, exigível. O exemplo acima tem o objetivo de

distinguir os efeitos de uma obrigação legal, a qual deve ser

tratada como “contas a pagar”, e os efeitos da suspensão de

sua exigibilidade sob argüição de inconstitucionalidade.

O item 6(vi) da NPC 22 define uma obrigação legal como

aquela que deriva de um contrato, de uma lei ou de outro

instrumento fundamentado em lei, enquanto o item 18 dessa

mesma NPC trata da saída provável de recursos para

liquidar uma obrigação.

Para efeitos dessa definição, há de se observar que uma lei é editada com presunção de legitimidade, com o que serão raros os casos em que se poderá considerar improvável o desembolso de recursos para fazer frente à obrigação ou argüir a não-existência de obrigação legal instituída. Nesse contexto, e considerando a convenção da objetividade, as demonstrações contábeis devem ser elaboradas de acordo com uma concepção mais segura e objetiva em relação aos fatos que afetam o patrimônio da entidade. Todavia, nem toda circunstância de ordem

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objetiva consegue exprimir a melhor avaliação. Sempre

caberá ao profissional da contabilidade efetuar julgamento,

segundo as normas que regem a profissão contábil, fazendo

uso do trabalho de especialistas, principalmente nos casos

que envolvem matéria de natureza legal ou tributária, como é

o caso específico deste tópico. Em decorrência desse exercício de julgamento, podem existir situações que permitam concluir, mesmo que em raros casos, com base em concretas evidências, que determinadas leis, ainda que vigentes, não produzirão os efeitos patrimoniais que lhes seriam pertinentes. O exemplo incluso no item 4(a) do Anexo II da NPC 22,

portanto, não tem o objetivo de alterar a norma da qual faz

parte, ou seja, não se elimina o julgamento da administração

sobre a legislação editada, conforme descrito no tópico

relativo à interpretação legal; porém, repita-se, serão raras

as situações nas quais não fica caracterizada a existência de

uma obrigação legal em decorrência de uma lei, que

permitiriam à administração da entidade deixar de fazer o

registro contábil de um passivo.”

Como se pode constatar, segundo as normas técnicas da

contabilidade, as despesas relativas a uma obrigação tributária questionada

judicialmente, ainda que a exigibilidade desta esteja suspensa, são

consideradas efetivamente incorridas, devendo ser contabilizadas como contas

a pagar.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Diante dos comentários expostos até aqui, é possível concluir,

portanto, que a intenção de se conferir interpretação mais subjetiva na

definição da natureza de atos ou negócios jurídicos não é novidade em nosso

ordenamento. Mais que isso, representa, em verdade, uma tendência que

contribui para identificar a inteligência da norma relacionada ao ato que

efetivamente se praticou.

Assim, considerando que os princípios nos quais se baseiam o IFRS

estão diretamente alinhados com a interpretação baseada na essência do ato

ou negócio jurídico e que, essa mesma orientação vem se mostrando cada vez

mais admitida em questões de direito tributário tanto na jurisprudência

administrativa quanto judicial, é de se entender que a essência dos atos ou

negócios jurídicos reconhecidos a partir do IFRS é que deverá ditar o seu

correto tratamento fiscal.

Ante o exposto, é de se concluir que, de acordo com as normas

jurídicas e técnicas aplicáveis à matéria, as despesas relativas a tributos com

exigibilidade suspensa não se enquadram no conceito de provisão, não

podendo, por esse motivo, serem consideradas indedutíveis da base de cálculo

da CSLL em virtude do disposto no já mencionado art. 13, I, da Lei nº 9.249/95

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6. BIBLIOGRAFIA

Ernst & Young e FIPECAFI. Manual de Normas Internacionais de Contabilidade: IFRS versus Normas Brasileiras. 2ª. Edição. São Paulo:

Editora Atlas, 2010.

FERNANDES, Edison Carlos. Impacto da Lei n. 11.638/07 sobre os Tributos e a Contabilidade. 2ª Edição. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2009.

GRECO, Marco Aurelio. Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária. 1. edição. São Paulo: Dialética, 1998.