reflexões sobre os fundamentos da teoria junguiana - individuação em cartas

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Psicologia: Teoria e Prática – 2008, 10(1):125-143 Jung, entrelinhas: reflexões sobre os fundamentos da teoria junguiana com base no estudo do tema individuação em Cartas Paola Vieitas Vergueiro Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Resumo: O presente artigo é uma contribuição para o campo da Psicologia Analítica. O es- copo do trabalho é a análise do conceito de individuação de Carl Gustav Jung. O objetivo do estudo é apontar alguns dos fundamentos científicos de sua teoria, bem como tecer con- siderações sobre certas questões conceituais. Para isso, analisaram-se os trechos associa- dos aos conceitos “individuação” e “processo de individuação”, ao longo dos três volumes de Cartas, de Jung. A técnica utilizada para efetuar o exame desses volumes foi a de análi- se de conteúdo. Identificaram-se, nesses volumes, categorias com base nas quais se abor- daram os conceitos. Os resultados evidenciam aspectos do conceito de individuação, assim como outros conceitos ainda não esclarecidos. Um resultado relevante é a coerência dos fundamentos do paradigma junguiano, encontrado nos volumes analisados Palavras-chave: Psicologia Analítica; individuação; ciência; paradigma junguiano. JUNG, BETWEEN LINES: CONSIDERATIONS ON THE FOUNDATIONS OF THE JUNGIAN THEORY DEPARTING FROM THE STUDY OF THE THEME INDIVIDUATION IN LETTERS Abstract: This article is a contribution to the maturity of Analytic Psychological. The article intended to analyze Carl Gustav Jung’s individuation concept. It was intended to clarify so- me of the scientific foundations of his theory, as well as to weave considerations about some conceptual failures was analyzed fragments associated to the themes of “individuation” and “individuation process” across the three volumes of Letters, by Jung. . It was identified, through those volumes, The results evidence aspects of the individuation concept and other concepts. Some important result is the coherence of the Jungian paradigm foundations, which can be found through the analyzed volumes. Keywords: Analytic Psychology; individuation; science; jungian paradigm. JUNG, ENTRE LÍNEAS: REFLECCIONES SOBRE LOS FUNDAMENTOS DE LA TEORÍA JUNGUIANA DESDE EL ESTUDIO DEL TEMA INDIVIDUACIÓN EN CARTAS Resumen: Este artículo se propone aclarar algunos de los principios del paradigma junguia- no con el fin de contribuir a la madurez de la ciencia psicológica. Por medio de la análise de lo concepto de individuación de Carl Gustav Jung se propone aclarar tanto algunos de los fundamentos científicos de su teoría, como tejer consideraciones sobre sus fallas concep- tuales. Realiza este objetivo mediante el análisis de trechos asociados al tema “individua- ción” y “proceso de individuación” a lo largo de los tres volúmenes de Cartas, de Jung. Iden- tifica en los mismos categorías, a partir de las quales aborda lo concepto. Los resultados muestran aspectos del concepto de individuación así como otros conceptos no esclarecidos todavia. Un resultado relevante es la coherencia de los fundamentos del paradigma jun- guiano encontrado en los volúmenes analizados. Palabras clave: Psicología Analítica; individuación; ciencia; paradigma junguiano.

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Reflexões sobre os fundamentos

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  • Psicologia: Teoria e Prtica 2008, 10(1):125-143

    Jung, entrelinhas: reflexes sobre os fundamentos da teoria junguiana com baseno estudo do tema individuao em Cartas

    Paola Vieitas Vergueiro Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    RReessuummoo:: O presente artigo uma contribuio para o campo da Psicologia Analtica. O es-copo do trabalho a anlise do conceito de individuao de Carl Gustav Jung. O objetivodo estudo apontar alguns dos fundamentos cientficos de sua teoria, bem como tecer con-sideraes sobre certas questes conceituais. Para isso, analisaram-se os trechos associa-dos aos conceitos individuao e processo de individuao, ao longo dos trs volumesde Cartas, de Jung. A tcnica utilizada para efetuar o exame desses volumes foi a de anli-se de contedo. Identificaram-se, nesses volumes, categorias com base nas quais se abor-daram os conceitos. Os resultados evidenciam aspectos do conceito de individuao, assimcomo outros conceitos ainda no esclarecidos. Um resultado relevante a coerncia dosfundamentos do paradigma junguiano, encontrado nos volumes analisados

    PPaallaavvrraass--cchhaavvee:: Psicologia Analtica; individuao; cincia; paradigma junguiano.

    JUNG, BETWEEN LINES: CONSIDERATIONS ON THE FOUNDATIONS OF THEJUNGIAN THEORY DEPARTING FROM THE STUDY OF THE THEME INDIVIDUATIONIN LETTERS

    AAbbssttrraacctt:: This article is a contribution to the maturity of Analytic Psychological. The articleintended to analyze Carl Gustav Jungs individuation concept. It was intended to clarify so-me of the scientific foundations of his theory, as well as to weave considerations about someconceptual failures was analyzed fragments associated to the themes of individuation andindividuation process across the three volumes of Letters, by Jung. . It was identified,through those volumes, The results evidence aspects of the individuation concept and otherconcepts. Some important result is the coherence of the Jungian paradigm foundations,which can be found through the analyzed volumes.

    KKeeyywwoorrddss:: Analytic Psychology; individuation; science; jungian paradigm.

    JUNG, ENTRE LNEAS: REFLECCIONES SOBRE LOS FUNDAMENTOS DE LA TEORAJUNGUIANA DESDE EL ESTUDIO DEL TEMA INDIVIDUACIN EN CARTAS

    RReessuummeenn:: Este artculo se propone aclarar algunos de los principios del paradigma junguia-no con el fin de contribuir a la madurez de la ciencia psicolgica. Por medio de la anlise delo concepto de individuacin de Carl Gustav Jung se propone aclarar tanto algunos de losfundamentos cientficos de su teora, como tejer consideraciones sobre sus fallas concep-tuales. Realiza este objetivo mediante el anlisis de trechos asociados al tema individua-cin y proceso de individuacin a lo largo de los tres volmenes de Cartas, de Jung. Iden-tifica en los mismos categoras, a partir de las quales aborda lo concepto. Los resultadosmuestran aspectos del concepto de individuacin as como otros conceptos no esclarecidostodavia. Un resultado relevante es la coherencia de los fundamentos del paradigma jun-guiano encontrado en los volmenes analizados.

    PPaallaabbrraass ccllaavvee:: Psicologa Analtica; individuacin; ciencia; paradigma junguiano.

  • Introduo

    A leitura do tema individuao, nas Cartas de Jung, promove um efeito curioso. Se,por um lado, conhecimentos acrescentam-se sobre o tema, por outro, instalam-se algumasquestes. Jung parece-nos contraditrio: ao mesmo tempo em que dedicado e cuida-doso com muitos aspectos da sua construo terica, deixa dvidas conceituais.

    A Psicologia nasce da filosofia no sculo VII a.C. A Psicologia Cientfica, por sua vez, jovem; nasce no sculo XIX, com Wundt e experimentos laboratoriais. Desde ento,busca apresentar teorias cada vez mais consistentes (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2002).O fato de ser uma cincia jovem um dos motivos que faz com que a Psicologia tenhadiferentes modelos tericos para explicar o mesmo fenmeno e poucas definies con-sensuais acerca do funcionamento psquico.

    Outro fator que favorece a diversidade de abordagens que, dada a natureza de seuobjeto de estudo, a Psicologia no possui, como rea da cincia, a possibilidade de visua-lizar ou mesmo de comprovar diretamente seu conhecimento da psique. Assim, cadamodelo terico prope uma forma de conceber o funcionamento psquico baseando suametodologia em fundamentos ontolgicos e epistemolgicos que oferecem sustentaos diferentes metodologias (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2002).

    O desconhecimento que as diferentes abordagens possuem umas das outras poucofavorece a Psicologia em geral, que pode evoluir como cincia mediante a compreensoe a investigao de limites e possibilidades dos diferentes modelos. Quanto maior a aber-tura para tais esclarecimentos e para o debate, maior o ganho em compreenso dos mo-delos tericos psicolgicos. Nessa direo, a Psicologia como rea de produo cientfi-ca depende de produes crticas de diferentes modelos para ganhar em consistnciaterico-prtica. Este artigo, portanto, tem a finalidade de colaborar com a rea de pro-duo cientfica, buscando aclarar alguns dos fundamentos e aspectos conceituais dateoria junguiana.

    Com esse propsito, tomou-se o estudo do conceito individuao como primeiro focodeste artigo. Realizou-se uma seleo das cartas de Jung em que o conceito abordadoe, em seguida, um estudo feito. Entre as mais de mil cartas publicadas nos trs volu-mes de Cartas, h 43 que tratam diretamente do tema individuao ou processo de indi-viduao. Procuramos citar todas as 43 para oferecer ao leitor um panorama o maisabrangente possvel das idias de Jung sobre o assunto.

    Segundo Sharp (1991), a individuao um processo de diferenciao psicolgica quetem como finalidade o desenvolvimento da personalidade individual. Esse objetivo,todavia, alcanado por meio de informaes arquetpicas e depende da relao vitalexistente entre ego e inconsciente. Para Samuels, Shorter e Plaut (1988), individuao um processo em que a pessoa torna-se si mesma, inteira, indivisvel e distinta de outraspessoas ou da psique coletiva. Os autores consideram que individuao um conceito-chave da teoria de Jung que trata do desenvolvimento da personalidade. Dada a impor-tncia do conceito, dedicaremo-nos a explorar a abordagem de Jung, nas Cartas, segun-do esse aspecto.

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    Paola Vieitas Vergueiro

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  • A maior parte das cartas que tratam deste conceito aborda, tambm, questes epis-temolgicas bastante polmicas. Por isso, elegeu-se um segundo foco para este estudo:a compreenso da essncia da postura do autor, de seus princpios e recortes epistemo-lgicos. Nesse sentido, ser tomada como figura a investigao do tema individuao e,como fundo, a concepo de cincia de Jung e a forma como ele se props a investigaro psiquismo. Por meio da relao de uma com a outra, visamos evidenciar um quadromais completo de compreenso da teoria junguiana.

    Os textos de Cartas tm a particularidade, por serem parte de um processo de comu-nicao via carta, de deixarem o contexto dos textos nebuloso, pois no possvel tercontato com todas as cartas enviadas e recebidas. Muitas cartas so respostas a outrascujo contedo desconhecido pelo leitor. Em razo disso, somente o contedo de algu-mas delas pode ser entendido. Por sua vez, a linguagem mais direta que a das Obrascompletas, e, por isso, de mais fcil compreenso.

    O fato de este artigo ser baseado em escritos que no fazem parte da obra principalde Jung no parece fazer grande diferena no que tange ao rigor do pensamento cien-tfico ou fidelidade aos princpios norteadores de sua obra. Examinando as cartas deJung, visa-se acrescentar alguns elementos ao entendimento de sua concepo sobre oprocesso de individuao, bem como de sua orientao cientfica.

    Mtodo

    O artigo teve como objetivos realizar uma reviso terica do tema individuao nostrs volumes de Cartas, de Jung (1999, 2002, 2003) e identificar os pressupostos cientfi-cos do tema por meio da anlise. Diferentemente do uso do mtodo experimental, omtodo clnico, que embasa a pesquisa qualitativa, pressupe que o ser humano sejadescrito do ponto de vista histrico-antropolgico, de maneira que possam ser captadosaspectos especficos dos dados do contexto em que eles acontecem. Essa abordagemqualitativa parte do fundamento de que h uma relao dinmica entre mundo real esujeito, uma interdependncia viva entre o sujeito e o objeto, um vnculo indissocivelentre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito (TRINCA, 1997; CHIZZOTTI, 1995;ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1999; BARDIN, 2002; SERAPIONI, 2000).

    A tcnica utilizada para abordar o conceito de individuao foi a Anlise de Conte-do proposta por Bardin (2002, p. 42). De acordo com a autora, a anlise de contedo um conjunto de tcnicas de anlise das comunicaes visando obter, por procedimentossistemticos e objetivos de descrio do contedo das mensagens, indicadores (quanti-tativos ou no) que permitam a inferncia de conhecimentos relativos s condies deproduo/recepo (variveis inferidas) dessas mensagens.

    Dessa maneira, objetivou-se evidenciar os contedos relacionados ao conceito que oautor abordou, elegendo as categorias de anlise com base nos textos selecionados. Pormeio dos trechos que tratam do conceito, discutem-se categorias temticas emergentes,tendo sido a anlise do contedo realizada com base nas seguintes categorias: indivi-duao e religiosidade, definio de individuao, a meta da individuao, trabalhonecessrio para a individuao e modelos de individuao. Finalmente, so discutidos fun-damentos cientficos da teoria por meio das proposies de Penna (2003, 2006).

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  • Discusso de resultados

    Das 43 cartas que tratam do tema individuao ou processo de individuao, umagrande parte endereada a pastores e padres de diferentes pases ou trata diretamen-te do tema da religiosidade. Esse fato , por si s, um indicador da forte relao entre osdois temas. Para Jung, a religiosidade o caminho para a realizao da personalidadetotal ou do si mesmo. Uma vez que a realizao tambm a meta da individuao, a com-preenso da relao entre os dois conceitos reveste-se de especial importncia.

    Categoria: individuao e religiosidade

    O sentido original de religiosidade, para Jung, pode ser esclarecido pela origem latinada palavra religare. Esta nos remete capacidade humana de religar, reconectar di-menses da personalidade que tendem a um natural afastamento, especialmente na pri-meira metade da vida. Ou seja, a religiosidade , para Jung, a capacidade de religar adimenso do ego, centro do campo da conscincia, do si mesmo, totalidade psquica.Uma vez desenvolvida e exercida esta religao, o ego pode realizar as demandas do simesmo, que visam individuao. Em suas cartas a pastores e religiosos, esclarece algunsdos aspectos da relao entre individuao, religio e religiosidade.

    Particularmente ao pastor Hans Wegmann de Zurique, Jung (1999, p. 401) afirma sera individuao um processo religioso, mas no dependente de uma Igreja. Acaba porindicar sua independncia em relao a qualquer Igreja: O processo de individuao um desenvolvimento no solo nativo do cristianismo. Mas ele no uma Igreja, nem serIgreja, muito menos uma anti-Igreja, ainda que tenha suas razes na Igreja, na Igreja pri-mitiva e em sua tradio.

    Ao se referir Igreja primitiva e sua tradio, Jung remete-se s origens da Igreja,quando o herege, ao se ligar a ela, sente-se conectado a um solo materno e a toda a cris-tandade. Ao longo da carta, dedica-se ao argumento de que tanto o protestantismocomo o catolicismo esto afastados desse sentido original dado Igreja primitiva. Suaanlise busca demonstrar como o sentido original da religiosidade est sendo perdidonas igrejas atuais.

    Apesar de sua concepo de religiosidade no depender de religio formal, Jung nonega a importncia dessa ltima, isto , da ligao a uma Igreja. Assim, a escolha de qual-quer religio depende de cada ser e pode desempenhar uma funo importante no pro-cesso de individuao.

    Em carta escrita em 11 de junho de 1960, Jung (2003) fica curioso em relao seguintefrase do reverendo norte-americano Keneth Gordon Lafleur: Espero que o senhor nodesanime diante da possibilidade de a religio desempenhar um papel no processonecessrio da individuao da personalidade. Jung no entende a razo dessa coloca-o, uma vez que foi o primeiro a afirmar a relao entre psicoterapia e religio no quese refere aos aspectos prticos e importncia da religio no processo de individuao.Foi, tambm, acusado de ser ateu, agnstico, materialista e mstico. Precisou de corageme nimo para enfrentar todos esses mal-entendidos. Em resposta ao reverendo, pedepara se explicar melhor.

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  • Categoria: definio de individuao

    A definio de individuao aparece em uma carta a Hlne Kiener, de Estrasburgo.Nela, explica como a psicologia compreende a imagem de Deus e sua importncia. Acabapor definir individuao como, em ltima anlise, um processo religioso que exige ati-tude religiosa correspondente: a vontade do eu de submeter-se ao si mesmo. Em 15 dejunho de 1955, escreve (JUNG, 2002, p. 432):

    Si-mesmo algo que podemos verificar psicologicamente. Ns experimentamos smbolos do si-mesmo

    que no se deixam distinguir dos smbolos de Deus. No posso provar que o si-mesmo e Deus sejam idn-

    ticos, mesmo que na prtica paream idnticos. Naturalmente, individuao em ltima anlise um proces-

    so religioso que exige uma atitude religiosa correspondente a vontade do eu de submeter-se vontade de

    Deus. Para no provocar mal-entendidos digo si-mesmo em vez de Deus. Empiricamente tambm mais

    exato. A psicologia analtica ajuda-nos a conhecer as potencialidades religiosas [...].

    Nesse trecho, Jung afirma que a individuao o processo que ocorre a partir da acei-tao, por parte do ego, das orientaes de uma dimenso da personalidade que deno-mina si-mesmo, que, por sua vez, traz informaes simblicas acerca do caminho darealizao plena da personalidade.

    Fica claro quanto Jung reconhece a importncia da religiosidade para a individuao.Tambm fica claro o seu rigor cientfico, pois toma o cuidado de conceituar o processopor meio da Psicologia. Exemplo disso o fato de nomear as expresses psquicas datotalidade como smbolos do si-mesmo, em vez de utilizar smbolos de Deus, emboraeles paream idnticos na prtica.

    Essas afirmativas explicitam o que, para Penna (2003, p. 110), caracteriza um rigorcientfico invejvel, pois ele distingue o aspecto metafsico e teolgico da religio de seupapel psicolgico. A autora considera a relao entre psicologia e religio um dos as-suntos mais controversos para um pesquisador de cincias humanas.

    A individuao um processo psicolgico da mxima importncia. Ela consiste nodesenvolvimento pessoal e na realizao o mais plena possvel da personalidade, repre-sentada pelo si-mesmo. Jung (2003, p. 124) escreve a Jaff, em 1958, frisando a impor-tncia desse processo, como se mostra a seguir: Parece que a individuao uma tare-fa impiedosamente importante, em vista da qual tudo o mais vai para segundo plano., tambm, uma meta transcendental, em parte consciente e em parte inconsciente. Emparte mstica e numinosa e em parte racional. Essa experincia no pode ser traduzidae jamais ser de todo conhecida. Alm disso, essa passa a ser uma das dificuldades en-contradas para a compreenso do pensamento de Jung, j que, para ele, o enigma par-te da vida. Esse um dos fundamentos epistemolgicos fundamentais da teoria, para aqual a realidade inconsciente jamais ser conhecida como um todo, pois a conscincia limitada em relao a ela (PENNA, 2003).

    Categoria: a meta da individuao

    Ao diferenciar as metas da teologia e da psicologia mdica, Jung acaba por definir ameta desta ltima. Em carta ao doutor Joseph Rudin de Zurique, enviada em 30 de abril

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  • de 1960, explicita a diferena de metas das duas reas de conhecimento e afirma queonde o doutor Rudin aplica Deus, Jung aplica Anthropos. Jung (2003, p. 251) busca sem-pre uma ponte entre as duas disciplinas, que visam cura animarum:

    A diferena de nosso point de dpart, de nossos clientes e de suas experincias espirituais implica uma

    diferena exterior de nossas metas. Sua orientao teolgica se pauta pelos eixos da Igreja enquanto eu

    me vejo forado a seguir as linhas imprevisveis do caminho da individuao e de seu simbolismo; isto ,

    onde o sr. fala Cristo eu devo empregar Anthropos, pois este possui uma histria de mais de 5.000 anos

    como arqutipo.

    Tambm em relao meta da individuao, escreve ao pastor Werner Niederer, em26 de maro de 1951. Na carta, aborda a diferena entre perfeio e totalidade, apontan-do essa ltima como a meta da individuao (JUNG, 2002, p. 189-190):

    O mrito psicolgico (melhor: significado) de Cristo consiste em ser ele, como primognito, o protti-

    po do T'lc,, do ser humano integral. Conforme testemunho da histria, esta imagem numinosa e, porisso, s pode ser respondida por outra numinosidade. Ela atinge a imago Dei, o arqutipo do si mesmo em

    ns, e assim desperta este ltimo. Torna-se constelado e, devido sua numinosidade, fora a pessoa

    totalidade, isto , integrao do inconsciente ou subordinao do eu vontade integral que, com razo,

    entendida como vontade de Deus. No sentido psicolgico, a T'l'lc,, significa uma integralidade eno uma perfeio da pessoa. A totalidade no pode ser consciente, pois abrange tambm o inconsciente.

    Para o Monsieur le Pasteur William Lachat, Jung escreve, em 29 de maio de 1955,sobre o tema. Pode-se observar como, neste texto, enfatiza a unio da luz com as trevase a presena do erro e do pecado na busca da experincia de graa (JUNG, 2002, p. 435):

    Do ponto de vista psicolgico, a vida de Cristo em ns idntica aspirao do inconsciente individua-

    o, e isto devido ao fato de a luz de Cristo ser acompanhada pelas trevas da alma, da qual fala S. Joo

    da Cruz e que os agnsticos de Irineu chamavam umbra Christi; estas escurides so idnticas ao aspec-

    to ctnico do qual j falei. ele que nos obriga a viver totalmente nossa vida, uma aventura muitas vezes

    herica e trgica. Sem erro e sem pecado no h nenhuma experincia de graa, isto , nenhuma unio

    entre Deus e os homens.

    Um dos fundamentos ontolgicos e epistemolgicos de sua obra est aqui esclareci-do. O desenvolvimento obriga a uma vivncia total da vida, que inclui aspectos trgicose sombrios. Diante disso, a meta da individuao a realizao plena de sentido, o queinclui erros. Isso nos remete unio de opostos, como meta da individuao. Em diver-sos momentos, Jung (2002, 2003) refere-se unio de luz e sombra, sofrimento e ale-gria, masculino e feminino, entre tantos outros.

    Categoria: trabalho necessrio para a individuao

    O primeiro estgio deste processo o confronto com a sombra. O reconhecimento dodesconhecido em ns mesmos , muitas vezes, tarefa desagradvel e dolorosa. Isso se d

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  • porque o contedo desconhecido freqentemente a expresso do mal em ns. Jung(2002) explicita essa concepo em carta ao Father Victor White, escrita em 24 de novem-bro de 1953:

    Quando um paciente sai de seu estado de inconscincia defronta-se imediatamente com sua sombra e

    deve decidir-se pelo bem, caso contrrio estar perdido. O primeiro passo na tarefa da individuao con-

    siste em diferenciar entre ele e a sombra. Neste estgio o bem a meta da individuao e Cristo repre-

    senta o si-mesmo.

    Reconhecer a sombra significa admitir aspectos desconhecidos e freqentementeindesejveis de ns mesmos. A admisso de tais elementos de nossa prpria personalida-de tarefa nem sempre fcil ou agradvel. Trata-se, contudo, de tarefa imprescindvelpara o desenvolvimento pessoal, mediante o qual a personalidade desenvolve-se. A con-frontao com a sombra uma das tarefas impostas pelo si-mesmo no processo de indi-viduao.

    Outro fator que fica claro em suas cartas o de que o relacionamento concreto necessrio para a individuao. No entanto, s vezes a distncia necessria, como afir-ma, em 20 de setembro de 1928, em carta para Oscar Shmitz (JUNG, 2003): Diminuir adistncia entre as pessoas um dos pontos mais difceis e mais importantes do processode individuao. O perigo suprimir a distncia unilateralmente, causando violao ouressentimento. Todo relacionamento tem seu ponto timo em distncia.

    Por sua vez, a solido tambm tem o seu papel. A Robert Rock escreve, em 11 de no-vembro de 1969, sobre a importncia da solido como forma de encontrar certo conte-do necessrio ao relacionamento:

    St Louis (Mo.)/EUA

    Dear Sir, concordo com o Sr. Sem o relacionamento, a individuao quase impossvel. [...] Se algum pro-

    curar, encontrar certamente o interlocutor conveniente. sempre importante ter um contedo para tra-

    zer para um relacionamento e, muitas vezes, na solido que podemos encontr-lo.

    A compreenso do smbolo uma das demandas do processo de individuao. Ela faz a ponte entre as

    polaridades psquicas, promovendo a sua unio, e traz conscincia parte do contedo desconhecido pelo

    ego. Dessa maneira, o ego, centro do campo da conscincia, pode manter-se em contato com a dimenso

    do si-mesmo.

    Quando a imagem de Deus se presentifica, ela remete o sujeito ao seu processo de in-dividuao. Trata-se da apario da dimenso arquetpica mediante o smbolo de Deus.Nesse sentido, o entendimento do smbolo pode servir ao processo de individuao(JUNG, 2003, p. 61): No que se refere integrao das partes da personalidade, pre-ciso ter em mente que a personalidade do eu como tal no contm os arqutipos, mas apenas influenciada por eles, pois os arqutipos so universais e pertencem a uma psi-que coletiva sobre a qual o eu no pode dominar.

    Nesse momento, Jung indica que a imagem de Deus arquetpica, e no pertence dimenso egica. O arqutipo uma potncia psquica respaldada na experincia da

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  • humanidade e que serve sua individuao quando aparece como smbolo. Certas ima-gens remetem o sujeito dimenso coletiva e arquetpica da psique distinta da pessoal,que pertence ao ego.

    Ao Pater Lucas Menz, da Alemanha, Jung reafirma, em 1955, que se tornar si-mes-mo tornar-se inteiro, embora isso no signifique estar livre de opostos. Ao contrrio,conforme explicita em outras cartas (como na enviada ao professor Karls Schmid, em 25de fevereiro de 1958), o princpio da individuao a conciliao suprema de opostos.Deus a imagem da conciliao suprema de opostos. A C. H. Josten, afirma, em carta de3 de maio de 1952, a importncia do relacionamento do homem com o feminino, sinali-zando, mais uma vez, a importncia da integrao de polaridades (no caso, a integraoentre o masculino e o feminino).

    Em carta a James Kirsh, de 16 de fevereiro de 1954, afirma que no acredita que osjudeus devam aceitar o Deus cristo, pois ao quererem transformar Jav num Deus mo-ral do bem, separaram-se os opostos que estavam unidos em Deus. Cabe ao ego humanodecidir entre o bem e o mal, e essa diferenciao moral imprescindvel no caminho daindividuao.

    pastora Dorothee Hoch, da Basilia, escreve, em 3 de julho de 1952, que, sob todosos aspectos, a vida de Cristo um prottipo de individuao e por isso no pode ser imi-tada. S podemos viver a nossa prpria vida com todas as suas conseqncias (JUNG,2002, p. 250):

    E ns? Ns imitamos a Cristo e esperamos que ele nos livre de nosso prprio destino. Ns seguimos como

    ovelhinhas o pastor, naturalmente para boas pastagens. No se fala nada em unir o nosso em cima com o

    embaixo! Ao contrrio, Cristo e sua cruz nos libertam de nosso conflito, que ns deixamos simplesmente

    como est. Ns somos fariseus fiis lei e tradio; enxotamos a heresia e s pensamos na imitatio Christi,

    mas no na realidade que nos foi imposta, na unio de opostos em ns; preferimos acreditar que Cristo j

    o fez por ns.

    O trabalho psicolgico para realizar o processo de individuao um opus divinumque consiste em uma srie de atos simblicos que aproximam polaridades. Do ponto devista psicolgico, a vida de Cristo, em ns, idntica aspirao do inconsciente indivi-duao. Cristo um modelo da realizao integral da personalidade, meta da indivi-duao.

    Categoria: modelos de individuao

    O autor no esclarece se considera a individuao um processo que acontece em todoo ser humano, de maneira natural, ou se, para que ela ocorra, necessrio que a cons-cincia e o inconsciente se aproximem. H a hiptese de compreender o processo de in-dividuao como de todos, mas indicar que os conscientes ganham algo.

    Em carta ao Mr O, de 1947, por exemplo, Jung sugere a imaginao ativa para odilogo entre o consciente e o inconsciente e descreve como pode ser realizada. Em

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  • seguida, comenta a importncia desse dilogo para o processo de individuao (JUNG,2002, p. 66): [...] Assim poder no apenas analisar o seu inconsciente, mas tambmdar uma chance ao seu inconsciente de analisar o senhor. Assim, o senhor criar aospoucos a unidade do consciente e do inconsciente, sem a qual no haver individuaoalguma (grifo nosso).

    Nesse texto, a individuao aparece como um processo que s ocorrer se houver uni-dade entre a conscincia e o inconsciente. Diferentemente disso, o texto a seguir abor-da o processo de individuao como sendo de todos, permitindo um diferencial quelesque usam a conscincia em seu benefcio (JUNG, 2002, p. 48):

    Ao Mr Erlo van Waveren, em Nova Iorque

    Poderamos dizer que o mundo todo, com seu tumulto e misria, est num processo de individuao. Mas

    as pessoas no se do conta disso, e esta a nica diferena. Se soubessem disso, no estariam em guerra

    uns com os outros, pois quem tem a guerra dentro de si, no tem tempo nem prazer de lutar com os

    outros. A individuao no uma coisa rara ou luxo de poucos; mas aqueles que sabem que esto nesse

    processo devem ser considerados felizes. Eles ganham alguma coisa, caso sejam conscientes o bastante. [...]

    A individuao a vida comum e aquilo de que temos conscincia (grifo nosso).

    Ou seja, a vinculao do processo conscincia d a chance da cura pela individuao.Em carta a Jolande Jacobi (12 de junho de 1945), afirma o mesmo. A Joaquim Knopp, deDusseldorf, em 10 de julho de 1946, reafirma esse ponto, enfatizando que quando setoma conscincia do sentido da doena, ela passa a ter um sentido mais amplo (JUNG,2002, p. 33):

    No se pode dizer que todo sintoma seja um desafio e que toda cura ocorra no espao intermedirio entre

    o psquico e o fsico. Pode-se dizer, apenas, que aconselhvel abordar toda doena tambm do ponto de

    vista psicolgico, porque isto pode ser de suma importncia tambm para o processo de cura. Quando

    esses dois aspectos atuam juntos, pode facilmente acontecer que a cura se d no espao intermedirio, ou,

    em outras palavras, que ela consista numa complexio oppositorum, como o lpis. Neste caso a doena

    um estgio do processo de individuao no sentido mais pleno (grifo do autor).

    Nesse mesmo sentido, afirma ao seu primo, Rudolf Jung (em 11 de maio de 1956),que o carcinoma pode ser a expresso de um processo de individuao que parou emalgum lugar essencial, e no consegue vencer o obstculo. Nesse caso, a constituio estno fim das suas possibilidades, mas isso no quer dizer que esses casos sejam acessveis psicoterapia (JUNG, 2003, p. 22):

    Assim como o carcinoma pode surgir por razes psquicas, tambm pode desaparecer por razes psquicas.

    Casos semelhantes foram constatados com certeza. Isto, porm, no quer dizer que estes casos sejam

    incondicionalmente acessveis psicoterapia ou que se possa impedir seu surgimento atravs de um desen-

    volvimento psquico especial.

    Jung, entrelinhas: reflexes sobre os fundamentos da teoria junguiana com base no estudo do tema individuao em Cartas

    133Psicologia: Teoria e Prtica 2008, 10(1):125-143

  • Tambm em carta a Kesser, em 1949, a individuao aparece, como, a um s tempo,fatalidade e realizao (JUNG, 2002, p. 136): A individuao tanto fatalidade quantorealizao. A psicologia do si-mesmo no filosofia, mas um processo empiricamenteconstatvel que, enquanto processo natural, poderia transcorrer harmoniosamente seno recebesse uma conotao trgica no ser humano pela coliso com a conscincia.

    Isto , a conscincia importante e favorece a individuao. Em funo disso, todaanlise est a caminho da meta longnqua da individuao, mas no a garante. Nessesentido, permanece uma dvida conceitual, pois Jung afirma tanto que ela um proces-so natural, como que s ocorrer se houver unidade entre a conscincia e o inconscien-te. No obstante, fica claro que a conscincia torna o processo tanto mais difcil comomais vantajoso para o desenvolvimento.

    Ao abordar processos psquicos, ressalta a importncia da vivncia de fatos, incluin-do do processo de individuao e da assimilao da sombra. Enfatiza ser a experinciaaquela que d sentido vida. Em carta baronesa Vera Von Der Heydt, de 1958, isso ficaclaro (JUNG, 2003, p. 178):

    Sua pergunta provm certamente de um ambiente onde soam muitas palavras. No se pode esclarecer a

    verdadeira situao apenas com conceitos, mas com experincia interior correspondente. Com os concei-

    tos, entra-se num beco sem sada porque eles no so idias filosficas, mas simples nomes das experin-

    cias. Por isso, quando se fala a partir do lado experimental, as coisas que antes pareciam confusas se tor-

    nam de repente claras (grifo nosso).

    A experincia interior essencial para Jung. Sem ela, no h aprendizagem. E, semaprendizagem, no h individuao. Ao ressaltar a necessidade da experincia, esclare-ce um aspecto epistemolgico de sua abordagem. O ato de conhecer depende da expe-rincia, sem a qual no h construo de conhecimento pessoal. Em carta de 22 de de-zembro de 1958, faz a seguinte afirmao baronesa Vera Von Heyt, de Londres (JUNG,2003, p. 179): Tambm bvio que toda introspeco naquilo que chamo de sombra um passo no caminho da individuao, sem que se deva chamar isso de processo de indi-viduao.

    H uma nota do revisor tcnico nesta carta baronesa Von Heydt. Na nota, ele enten-de por individuao o desenvolvimento natural do indivduo, e por processo de indi-viduao o respectivo desenvolvimento, enquanto observado e estimulado pela cons-cincia. Em seus escritos, usa os dois conceitos como sinnimos.

    Levantou-se a hiptese de que o revisor das publicaes de Cartas tenha buscado nor-matizar o conceito de individuao, tarefa para a qual Jung no se dedicou em especial.Parece mais adequado que se permanea com as afirmaes de Jung, com suas contra-dies e direes, e que se busque, por meio dessas, um sentido.

    Em sua obra, Jung discute, extensa e detalhadamente, as premissas epistemolgicasda psicologia analtica (PENNA, 2003). Alm de suas preocupaes, h, em sua obra, for-mulaes aparentemente contraditrias, que mantm questes abertas.

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    Paola Vieitas Vergueiro

    Psicologia: Teoria e Prtica 2008, 10(1):125-143

  • Antecipando, talvez, a necessidade de esclarecimento de suas palavras, na carta de1958 baronesa, faz a seguinte afirmao (JUNG, 2003): Dessas discusses se v o queme espera depois que me tornei pstumo. Ento, tudo o que foi fogo e vento ser esp-rito e reduzido a preparados sem vida. Os deuses sero enterrados em ouro e mrmore,e os simples mortais como eu em papel.

    Seu receio de ser transformado em preparados sem vida e de ser enterrado em papelrevela o imenso perigo que v para o futuro de sua obra. Reconhece, em sua teoria,aspectos vitais passveis de serem perdidos por estarem escritos. Com isso, sinaliza que avitalidade da obra independe da maneira como foi registrada.

    A dvida essencial que permanece refere-se funo da conscincia no processo deindividuao. curioso observar como a concepo de individuao (processo que podeser iluminado pela conscincia e, ao mesmo tempo, desenrolar-se naturalmente) retomao paradoxo conscincia versus inconsciente como fundamento da teoria. Jung, portan-to, levanta a questo da funo da conscincia no desenvolvimento humano.

    Anlise dos fundamentos cientficos do conceito de individuao

    Tem-se como meta, neste momento, sinalizar, mesmo que de maneira breve, algunsaspectos dos fundamentos cientficos da obra de Jung, mediante a anlise de seus escri-tos sobre o conceito individuao, reunidos nos trs volumes de Cartas. Procura-se, comisso, esclarecer alguns dos princpios do paradigma junguiano e demonstrar sua coern-cia com o modelo de cincia ps-moderno.

    No se pretendeu, com este estudo, esgotar o debate sobre os fundamentos cientfi-cos da obra de Jung. Buscou-se apenas sinalizar sua aproximao a um paradigma con-temporneo de cincia, que envolve dada complexidade e atualidade das quais vale apena se aproximar.

    Vasconcelos (2007) sugere que o paradigma da complexidade de Edgard Morin podefavorecer as construes cientficas do mundo atual, medida que contempla uma visode mundo e de homem compatvel com os fenmenos contemporneos. A abordagemde Jung apresenta forte coerncia com esse paradigma, tendo anunciado, desde o in-cio, fundamentos divergentes dos da cincia da poca. Dados os limites deste artigo,no se deter descrio de complexidade de Edgard Morin, mas se iro sugerir as per-guntas iniciais de Vasconcelos (2007, p. 23) que podem nos aproximar do paradigmajunguiano:

    Como vemos o mundo em que vivemos? Em que medida somos originais ou apenas reprodutores de uma

    percepo pr-fabricada e padronizada dos diversos fenmenos e elementos do ambiente que nos cerca,

    induzida pela cultura hegemnica, por uma forma rotinizada de vivenciar o mundo, e por uma subjetivi-

    dade pessoal medrosa, defensiva, que teme a variao, o novo, a ventura interior e a ousadia de transfor-

    mar a histria?

    Sugere-se a leitura de Jung com esse olhar. Talvez seja possvel identificar, em algunsconceitos junguianos, uma viso de mundo inovadora e incompatvel com a cincia con-

    Jung, entrelinhas: reflexes sobre os fundamentos da teoria junguiana com base no estudo do tema individuao em Cartas

    135Psicologia: Teoria e Prtica 2008, 10(1):125-143

  • vencional. Segundo Penna (2003, p. 40) as principais caractersticas do ps-modernismoso: pluralidade, impreciso, paradoxalidade, incerteza, relatividade com nfase na po-livalncia do significado e a integrao da individualidade na coletividade.

    A autora (PENNA, 2003) cita vrios autores, como Boaventura Santos, Tarnas, RolandOmns, Dora Fried Schnitman e Christopher Hauke, dentre outros que tm se dedicado anlise da crise epistemolgica no panorama cientfico atual. Diversos fatores vm inter-ferindo para inserir, na cincia contempornea, essas noes de mundo e de homem. Apartir da segunda metade do sculo XX, surgem importantes movimentos que abalam osprincipais pilares daquele paradigma que buscava a objetividade, a observao, a exclu-sividade do pensamento dedutivo e a nfase na quantificao. Ainda coloca:

    Os horizontes da cientificidade parecem estar se ampliando em relao aos limites estritos propostos pela

    filosofia iluminista e pelo rigor cientfico do positivismo lgico. Estes tm se mostrado no somente insu-

    ficientes e insatisfatrios, mas, sobretudo, impeditivos para o desenvolvimento do conhecimento (PENNA,

    2003, p. 40).

    A abordagem de Jung antecipa, j na segunda metade do sculo XX, algumas for-mulaes epistemolgicas e metodolgicas contemporneas. Uma vez que o objeto deestudo da psicologia do inconsciente distinto do das cincias naturais e exatas, h par-ticularidades ontolgicas, epistemolgicas e metodolgicas.

    Penna (2003) analisa a obra de Jung luz do conceito atual de paradigma cientfico,no qual as perspectivas ontolgica, epistemolgica e metodolgica articulam-se de modoque formem um todo. Define-se, assim, pela perspectiva simblico-arquetpica que nor-teia o tratamento metodolgico dispensado ao material psicolgico. Nas palavras de Pen-na (2003, p. 214), a perspectiva simblico-arquetpica pode ser comparada ao olhar daguia, que ao mesmo tempo abrangente para contemplar panoramas amplos, e foca-lizada para se concentrar e ver com nitidez o que essencial e importante. A denomi-nao simblico-arquetpica sintetiza e abarca diversas caractersticas do mtodo jun-guiano analisadas neste estudo e expressa sua essncia e amplitude.

    Uma vez que as perspectivas ontolgica, epistemolgica e metodolgica articulam-sena composio do conceito atual de paradigma, esses trs aspectos so contemplados napresente anlise do paradigma junguiano, com base na autora e na obra supra citada.

    Perspectiva ontolgica

    A perspectiva ontolgica refere-se ao ser em geral, e o termo ontologia refere-se aoestudo do ser. A perspectiva ontolgica de um paradigma levanta questes bsicas sobrea natureza da realidade.

    A Psicologia de Jung compreende o mundo e o ser humano como unidades indisso-lveis. A conseqncia dessa viso est na compreenso de que cada aspecto relaciona-se ao todo, tanto em termos de ontognese, como em termos de filognese. Cada aspec-to da existncia est, portanto, ligado a outros extratos.

    Observa-se, nas citaes, a concepo de que a realidade primariamente incons-ciente e depende da conscincia para constat-la, averigu-la e fazer uso dela para o seu

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    Paola Vieitas Vergueiro

    Psicologia: Teoria e Prtica 2008, 10(1):125-143

  • desenvolvimento. Esse princpio ontolgico fundamental bastante importante, pois dele que surgem outros dois princpios fundamentais: 1. o inconsciente d origem conscincia, e, portanto, ele que est mais prximo da origem e da fonte de informa-es; 2. a conscincia, que aparece em um estgio posterior do desenvolvimento, exerceum papel fundamental, pois, sem ela, no h discriminaes e evoluo na construode conhecimento.

    Desse modo, fica claro o modo como se d o trabalho na teoria: ambas as dimenses,a consciente e a inconsciente, so importantes para a individuao. importante consi-derar que toda informao original, uma vez traduzida pela conscincia, perde sua inte-gridade. O trabalho psicolgico sofre dessa limitao. Em funo disso, h um cuidadoespecial de Jung em diferenciar as dimenses da realidade: consciente e inconsciente.

    de extrema importncia a discriminao feita por Jung dos critrios adotados pelacincia da poca para validar a investigao cientfica. Grande parte da cincia da pocae da cincia de hoje, de acordo com o que afirma Zoja (2005), no se prope investi-gao subjetiva, realizada por Jung. Nesse sentido, observa-se que, na perspectiva deJung, subjetividade um dos aspectos da realidade.

    Outro aspecto abordado na citao de Jung o de que a cincia da poca no se ocu-pava dos indivduos em sua singularidade. Dedicava-se, na verdade, abordagem quan-titativa que buscava uma mdia nas ocorrncias. Tal aspecto tambm nos remete aoaspecto ontolgico da perspectiva, demonstrando o contraponto existente entre umaviso de mundo calcada na singularidade de cada ser humano e na singularidade dosfenmenos observados e uma abordagem calcada na viso global, que busca uma m-dia. Nesse sentido, observa-se uma enorme diferena entre a teoria de Jung e a cinciado seu tempo, mas uma aproximao dela em relao aos paradigmas atuais.

    Perspectiva epistemolgica

    Entende-se epistemologia como o estudo dos fundamentos, da origem, da natureza,do valor e do limite dos conhecimentos dentro de um modelo cientfico filosfico. Elabusca diferenciar a realidade em si da sua percepo.

    Para Jung, a realidade em si no diretamente acessvel ao homem. Em funo disso,em psicologia analtica no se falou, por exemplo, de Deus, mas da imagem de Deus. Poroutro lado, as percepes de imagens, sentimentos e pensamentos so a maneira pelaqual temos acesso ao mundo interior. Em funo disso, Jung enfatiza a importncia de selidar com fatos e experincias. Sua metodologia de trabalho , portanto, baseada na ob-servao e na comprovao, guardadas as limitaes de uma cincia que tem como focode investigao a psique, j que se parte do princpio de que no acessamos o incons-ciente diretamente.

    Aqui, se observa um dado epistemolgico da teoria que tem implicao direta nametodologia.

    Um exemplo do rigor de Jung (2003, p. 60) ao abordar fatos da perspectiva psicolgi-ca a carta que escreve, em 1957, a uma destinatria sua no identificada:

    Jung, entrelinhas: reflexes sobre os fundamentos da teoria junguiana com base no estudo do tema individuao em Cartas

    137Psicologia: Teoria e Prtica 2008, 10(1):125-143

  • Muito obrigada pela carta cujo contedo me interessou bastante. Impressionou-me, sobretudo, o fato de,

    na discusso entre a senhora e a senhora X, sempre se falar de Deus, do que ele faz ou que ele . Sinto

    falta aqui de um reconhecimento explcito do limiar epistemolgico. No podemos falar de Deus, mas ape-

    nas de uma imagem de Deus que nos apresenta ou que ns fazemos.

    Esse esclarecimento torna clara a postura de Jung. Ele aborda o universo psquico doser humano com base naquilo que se apresenta a ele. Pauta-se nas expresses do mundointerno, das imagens e de relatos de experincias.

    Ao dr. Joseph Goldbrunner Stockdorf bei Munchen, Jung afirma, em carta de 14 demaio de 1950, que obrigao moral no se fazerem afirmaes sobre o que no se po-de ver nem comprovar. Faz-lo seria uma transgresso epistemolgica. Em funo disso,no h, em seus trabalhos, afirmaes metafsicas nem negaes das afirmaes metaf-sicas. Na individuao, o sujeito expe-se a foras desconhecidas. No afirma nem negao metafsico por se pautar numa cincia emprica. Em funo disso, afirma sua posturaepistemolgica (JUNG, 2003, p. 61):

    [...] Isto so naturalmente problemas que permanecem indiscutveis se abstrairmos da epistemologia. Eles

    nos tornam acessveis s quando nos lembramos constantemente da crtica epistemolgica, isto , quando

    se esquece que a realidade absoluta s imaginvel psicologicamente. E, assim, a psique, ou melhor, a

    conscincia introduz na imagem as condies do conhecimento, isto , a distino de particularidades que

    no esto separadas no mundo em si mesmo.

    A afirmao a conscincia introduz na imagem deixa bem claro um aspecto do en-foque de Jung: o conhecimento construdo com base na imagem distinto do original.O que a imagem comunica total, diz respeito ao mundo em si mesmo. A conscinciapermite a discriminao de aspectos da realidade e a construo de certo conhecimento,que nunca ser igual ao original. Ao mesmo tempo em que a anlise (entendida comodistino de particularidades e estabelecimento de relao entre elas) permite uma am-pliao da compreenso, ela tambm nos afasta do mundo em si.

    Em carta pastora Dorothee Hoch, de 28 de maio de 1952, Jung (2002, p. 240) deixaisso claro:

    Considero uma desgraa que a maioria dos telogos acreditem que tenham realmente mencionado Deus

    quando dizem a palavra Deus. [...] Diante dessas circunstncias um tanto dolorosas, o emprico, em detri-

    mento de suas convices religiosas, no tem outra escolha seno lidar com idias de Deus, sem abordar a

    questo metafsica. Ele no toma decises com base na f.

    Sendo emprico, o cientista no toma decises com base na f. As palavras do cien-tista reconhecem sua limitao ao descreverem aquilo com que entraram em contato ea forma como este se deu, em vez de considerarem comunicar sobre a realidade em si.Sabem que nos remetem a uma realidade intangvel, que intermediada pela conscin-cia humana. Essa mesma noo apresenta-se na carta enviada ao dr. Ph.D. Med AlbertJung em 21 de dezembro de 1960 (JUNG, 2000, p. 312): O processo de individuao, isto

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    Psicologia: Teoria e Prtica 2008, 10(1):125-143

  • , tornar-se totalidade, inclui por definio o todo do fenmeno humano e o todo doenigma da natureza, cuja diviso em aspectos fsicos e espirituais mera discriminaoque serve aos elevados interesses do conhecimento humano (grifo nosso).

    Nela, Jung parte da premissa de que a natureza pura integrada. A conscincia dis-crimina aspectos da realidade para poder examinar suas partes. O exame da cinciadominante, por sua vez, busca a mdia, trabalha estatisticamente os dados, adotandouma anlise quantitativa. Contudo, no essa a atitude de Jung. Ao professor Henry Mur-ray, de Boston, escreve sobre isso em agosto de 1956 (JUNG, 2003, p. 43-44):

    A cincia s se ocupa com a idia mdia de um carvalho, de um cavalo, ou de uma pessoa, mas no com

    sua singularidade. Alm disso, quase impossvel descrever um ser humano individualizado, uma vez que

    no temos pontos de referncia fora da esfera humana. Por isso, no sabemos o que o ser humano. Do

    ponto de vista da cincia, o indivduo desprezvel ou mera curiosidade. Mas do ponto de vista subjetivo,

    isto , do ponto de vista do prprio indivduo, ele o mais importante, pois o portador da vida, e seu

    desenvolvimento e aperfeioamento so de suprema importncia. [...] Todos os critrios da individuao

    so necessariamente subjetivos e esto fora dos propsitos da cincia (grifo nosso).

    Aqui, fica claro que Jung no se dispe a descrever uma pessoa individualizada por-que, do ponto de vista geral, ela no existe. O que existe so pessoas, particulares e dife-rentes entre si, fato que, para a cincia de seu tempo, no tem valor nenhum.

    Perspectiva metodolgica

    O mtodo de investigao e anlise da psique de Carl Gustav Jung revelador doparadigma que o sustenta. Para compreender esse paradigma, so vlidos alguns esfor-os de aproximao sua trajetria de construo de conhecimentos com base no queprope Penna (2003). Ela afirma que as investigaes de Jung, desde o seu incio, dire-cionam-se ao mtodo construtivo sinttico e evoluem a partir de suas observaes emp-ricas, clnicas e culturais. Prope uma compreenso de seu desenvolvimento por meiodas seguintes etapas, aqui descritas sinteticamente.

    1. Fraternidade Zofingia 1896-1900. Nesse perodo, ainda muito jovem (entre 21 e24 anos), Jung j propunha, nas palestras do seu grupo Zofingia, crticas veementes aomaterialismo da poca. Sua erudio patente nas conferncias, o que demonstra, des-de j, a capacidade de fazer articulaes entre diversas reas do conhecimento.

    2. Burgholzli 1900-1909. Nesse perodo, Jung estudou e utilizou o mtodo experi-mental, prevalente em seu tempo, concluindo, por fim, a sua inadequao para a psico-logia do inconsciente. Por meio do teste de associao de Wundt, chega concepo decomplexos de tonalidade afetiva de origem inconsciente.

    3. Freud e a psicanlise (1906-1912) Trata-se de um mtodo interpretativo e asso-ciativo. Perodo de consolidao e investigao do inconsciente na psicologia profunda.

    4. Divergncias com a psicanlise (1909-1913). Jung firma as seguintes noes bsicasde Psicologia Analtica nesse perodo: a ontognese repete a filognese, a simultaneidade

    Jung, entrelinhas: reflexes sobre os fundamentos da teoria junguiana com base no estudo do tema individuao em Cartas

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  • de causa e finalidade nas ocorrncias simblicas e a libido no exclusivamente sexual.Amplia suas pesquisas do material mitolgico. Rompe com Freud aps sete anos de ami-zade e cooperao profissional.

    5. Psicologia Analtica (1914-1928). Nesse perodo extremamente produtivo, Jungestabelece as bases fundamentais de seu modelo psicolgico. A abordagem simblica domaterial psquico abarca tanto a leitura causal como a final. Afirma, tambm, as basesontolgicas da teoria da totalidade que abrange mundo subjacente, manifesto e princi-pais conceitos; e formula seu mtodo de investigao da psique, sinttico, hermenuticoe construtivo.

    6. Reviso, ampliao e consolidao do mtodo (1930-1949). Nesse perodo, Jung rea-liza uma ampla reviso de textos anteriores e reformula alguns conceitos, como os de com-plexo, inconsciente coletivo e arqutipo. Retoma a natureza e a dinmica da psique. Aspesquisas sobre arqutipos so intensificadas por conta dos estudos sobre alquimia e re-ligio ocidental e oriental. A relao entre psicologia e cultura abordada mediante aarte, eventos histricos relevantes e outros campos da cincia. O termo amplificao cunhado em 1930, e remete ao embasamento de suas postulaes conceituais no campoda cultura.

    7. A sntese final (1950-1961). Nesse perodo, Jung reformula alguns de seus estudospela ltima vez, lapida conceitos. A sincronicidade amplia e conclui o mtodo junguiano.

    De maneira mais sinttica, pode-se afirmar, com base em Stein (2006), que os primeiros30 anos da sua vida profissional foram profundamente criativos e geraram elementosbsicos de uma teoria psicolgica. Dedicou-se intensamente atividade clnica e psi-quitrica. Nesses anos, destacam-se a observao e a descrio de fatos que, unidos auma viso do todo, que lhe era particular, indicavam um modelo de funcionamento ps-quico. Nos 30 anos subseqentes, de 1930 a 1961, Jung buscou aprofundamento e vali-dao de hipteses anteriores. Segundo Stein (2006, p.14), na segunda metade da vida,ampliou ainda mais suas teorias para incluir estudos de histria, cultura e religio, epara criar uma ligao essencial com a fsica moderna, aplicando o chamado mtodohermenutico e construtivo.

    Algumas cartas que tratam do conceito da individuao demonstram aspectos de seumtodo de trabalho. De acordo com ele, no h postulaes que partam das idias, con-tudo, por meio de suas observaes clnicas, tem condio de lanar hipteses sobre ofuncionamento psquico. Em relao ao seu mtodo de trabalho, afirmou a dra. JolandeJacobi, em 1956 (apud Jung, 2003, p. 18), que a idia de totalidade da psique, que le-vou Jung mais tarde concepo do processo de individuao e aos mtodos que o tor-nam eficaz, foi desde o incio fator determinante de sua viso psicolgica.

    Jung (1956, p. 18), no entanto, discorda dessa afirmao, esclarecendo suas basesepistemolgicas e metodolgicas:

    Esta idia incorreta. A idia de totalidade no me levou concepo do processo de individuao. O pro-

    cesso de individuao no uma concepo, mas designa uma srie de fatos observados; e, em segundo

    lugar, no existe mtodo algum no mundo que possa tornar eficaz o processo de individuao. Este a

    experincia de um processo natural que pode ser percebido ou no pela conscincia. A idia de totali-

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    Psicologia: Teoria e Prtica 2008, 10(1):125-143

  • Jung, entrelinhas: reflexes sobre os fundamentos da teoria junguiana com base no estudo do tema individuao em Cartas

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    dade uma expresso que usei e s nos ltimos anos para descrever, por exemplo, o si-mesmo. Con-

    ceitos no tm muita importncia para mim, porque no fao pressuposies filosficas; por isso nunca

    parti de uma idia de totalidade (grifo nosso).

    Jung observa e se relaciona com os fatos, e por meio deles elabora uma teoria. Enfa-tizando a experincia e o dado emprico, refora essa idia em carta de 1950 ao dr.Joseph Goldbrunner (JUNG, 2002, 164-165):

    No sentido estrito, a psicologia a cincia dos contedos da conscincia. Seu objeto, portanto, no meta-

    fsico, caso contrrio ela seria uma metafsica. Pode-se acusar a fsica de no ser uma metafsica? evidente

    que todos os objetos da fsica sejam fenmenos fsicos. Por que seria a psicologia a nica exceo dessa

    regra? [...] Estou profundamente impressionado com o fato de as pessoas estarem to sujeitas ao erro e

    iluso. Acho, portanto, ser obrigao moral no fazer afirmaes sobre aquelas coisas que no podemos

    ver nem comprovar, e acho que uma transgresso epistemolgica faz-lo assim mesmo. Estas regras

    valem para a cincia emprica (grifo nosso).

    Concluso

    O conceito de individuao de Jung permite, desse modo, evidenciar pressupostos desua teoria que caracterizam determinado paradigma cientfico, cujo conhecimento podecolaborar na compreenso de sua obra e na comparao desta com outras abordagens.De acordo com o que foi exposto ao longo deste estudo, em sua viso, o mundo externoe o interno compem uma unidade indissolvel. Alm disso, outras polaridades psqui-cas, como o ego e o self, masculino e feminino, o pessoal e o universal, so interligadas,e cada aspecto do psiquismo est ligado aos demais. Aspectos paradoxais na teoria sofreqentes, uma vez que diferentes dimenses da psique coexistem. Como exemplo, arealidade psquica, que se origina do inconsciente e passa a ser consciente com o desen-volvimento. A conscincia fundamental para a individuao e distingue o homem dosoutros animais. No entanto, deve se manter sempre conectada fonte original de infor-maes, o inconsciente. medida que o inconsciente , tambm, coletivo, a atividade docientista da psique exige o reconhecimento tanto da particularidade de cada ser comode sua ligao com o coletivo.

    Essas afirmativas so concordantes com Penna (2006), para quem o paradigma jun-guiano apresenta uma proposta de construo de conhecimento afinada com a episte-mologia cientfica ps-moderna em vrios aspectos.

    A relatividade do conhecimento humano diante da infinitude do inconsciente coletivo,a busca de interao dos opostos sem anular as diferenas, a aceitao de paradoxos e con-tradies inerentes diversidade e complexidade da natureza humana so alguns dosaspectos do paradigma junguiano afinados com as caractersticas da cincia ps-moderna.

    Acredita-se que a complexidade e a abertura para o desconhecido, dentro da visode Jung, devem ter favorecido a existncia de algumas lacunas conceituais. Entretanto,como Jaff apontou (1995, p. 31), compreende-se que, diante da importncia e da coe-rncia da teoria de Jung, a ocasional falta de uniformidade terminolgica, de formu-

  • lao clara ou de preciso no , realmente, anulada por isso, mas perde sua importn-cia bsica.

    Os fundamentos da abordagem demonstram coerncia interna e com o mundo atuale uma abertura para as mutaes permanentes em nossa realidade. A complexidade aaproxima dos paradigmas contemporneos, cientes de seus limites em relao a afirma-es absolutas e da interdependncia entre os diversos aspectos da realidade.

    Referncias

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    ContatoPaola Vieitas Vergueiro Rua Carop, 433 So Paulo SPCEP 05447-000 e-mail: [email protected]

    TramitaoRecebido em maro de 2008

    Aceito em junho de 2008

    Jung, entrelinhas: reflexes sobre os fundamentos da teoria junguiana com base no estudo do tema individuao em Cartas

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