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[REVISTA CONTEMPORÂNEA DOSSIÊ 1964-2014: 50 ANOS DEPOIS, A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO] Ano 4, n° 5 | 2014, vol.1 ISSN [2236-4846] Reflexões sobre a representação da esquerda armada no cinema brasileiro Wallace Andrioli Guedes 1 RESUMO: O presente trabalho discute os caminhos seguidos pelo cinema brasileiro ao abordar o tema da instalação e consolidação da ditadura civil-militar no país e, particularmente, da luta armada de setores da esquerda contra esse regime. O texto está focado em como tal esquerda apareceu no cinema em três momentos distintos da história recente do Brasil: o imediato pós-golpe de 1964; os anos da abertura política que reconduziu o país à democracia; e o período pós-redemocratização, especialmente o final da década de 1990. Busca-se, assim, analisar as continuidade e rupturas na representação cinematográfica da guerrilha de esquerda no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Ditadura civil-militar brasileira, cinema, luta armada. ABSTRACT: The present article discusses the paths that the Brazilian cinema followed when approaching the matter of the implementation and consolidation of the civilian and military dictatorship in the country, and especially the gunfight that the left-wing invested against the government. The text focuses on how this left-winged movement showed up on the cinema in three different moments in the recent Brazilian history: immediately after the 1964 coup; during the years of political opening that led the country back to democracy; and the period after the return of the democracy, especially in the end of the 1990s. The aim of this article is, therefore, to analyze the continuity and the ruptures in the cinematographic representation of the left-winged Brazilian guerrilla. KEY-WORDS: Brazilian dictatorship, cinema, guerrilla. 1 Doutorando em História Social no Programa de Pós-Graduação em História/ Universidade Federal Fluminense (PPGH/UFF)

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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ 1964-2014: 50 ANOS DEPOIS, A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO]

Ano 4, n° 5 | 2014, vol.1 ISSN [2236-4846]

Reflexões sobre a representação da esquerda armada no cinema

brasileiro Wallace Andrioli Guedes

1

RESUMO:

O presente trabalho discute os caminhos seguidos pelo cinema brasileiro ao abordar o tema

da instalação e consolidação da ditadura civil-militar no país e, particularmente, da luta

armada de setores da esquerda contra esse regime. O texto está focado em como tal

esquerda apareceu no cinema em três momentos distintos da história recente do Brasil: o

imediato pós-golpe de 1964; os anos da abertura política que reconduziu o país à

democracia; e o período pós-redemocratização, especialmente o final da década de 1990.

Busca-se, assim, analisar as continuidade e rupturas na representação cinematográfica da

guerrilha de esquerda no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Ditadura civil-militar brasileira, cinema, luta armada.

ABSTRACT:

The present article discusses the paths that the Brazilian cinema followed when

approaching the matter of the implementation and consolidation of the civilian and military

dictatorship in the country, and especially the gunfight that the left-wing invested against

the government. The text focuses on how this left-winged movement showed up on the

cinema in three different moments in the recent Brazilian history: immediately after the

1964 coup; during the years of political opening that led the country back to democracy;

and the period after the return of the democracy, especially in the end of the 1990s. The

aim of this article is, therefore, to analyze the continuity and the ruptures in the

cinematographic representation of the left-winged Brazilian guerrilla.

KEY-WORDS: Brazilian dictatorship, cinema, guerrilla.

1 Doutorando em História Social no Programa de Pós-Graduação em História/ Universidade Federal

Fluminense (PPGH/UFF)

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O presente trabalho busca analisar as representações da esquerda armada pelo

cinema brasileiro, com destaque para três momentos específicos: os primeiros anos pós-

golpe de Estado de 1964; o início da década de 1980, período culminante da lenta, gradual

e segura abertura política promovida pela ditadura civil-militar; e o final da década de

1990, contexto da chamada retomada da produção cinematográfica brasileira (após o fim

da Embrafilme e a crise enfrentada durante o governo do presidente Fernando Collor de

Mello), quando o tema da guerrilha reapareceu em algumas obras.

Os filmes discutidos neste texto são: para o primeiro período, O desafio (1965), de

Paulo César Saraceni, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, e As armas (1969), de

Astolfo Araújo; para o segundo, Pra frente Brasil (1982), de Roberto Farias, e O bom

burguês (1983), de Oswaldo Caldeira; para o terceiro período, O que é isso, companheiro?

(1997), de Bruno Barreto.

Quando ocorreu o golpe de Estado que derrubou o governo constitucional de João

Goulart (1961-1964), o cinema brasileiro vivia um momento de esplendor criativo. Filmes

como O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte, Vidas secas (1963), de Nelson

Pereira dos Santos, Os cafajestes (1962) e Os fuzis (1964), de Ruy Guerra, e Deus e o

diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, eram exibidos e premiados em alguns dos

mais importantes festivais de cinema do mundo.2 Esse grupo de filmes, do qual ainda fez

parte Barravento (1962), também de Rocha, constituiu os primeiros passos do movimento

cinematográfico que ficaria conhecido como Cinema Novo.

Engajados no esforço de produzir um cinema moderno no Brasil – em diálogo com

correntes internacionais como o Neorrealismo italiano3 e a Nouvelle Vague francesa

4 – que

2 O pagador de promessas venceu o prêmio principal do Festival de cinema de Cannes, na França, em 1962,

a Palma de Ouro; Vidas secas ganhou o prêmio da crítica no Festival de Cannes de 1964 e foi indicado à

Palma de Ouro; Os fuzis ganhou o prêmio de melhor diretor no Festival de cinema de Berlim, na Alemanha,

em 1964, enquanto Os cafajestes foi indicado ao prêmio principal do mesmo festival em 1962; assim como

Vidas secas, Deus e o diabo na terra do sol foi indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1964. O

próprio Roberto Farias tivera, em 1960, um filme seu em competição no Festival de Cannes: Cidade

ameaçada. Fonte: www.imdb.com 3 O movimento denominado Neo-realismo italiano tem como marco inicial tradicional o lançamento do filme

Roma, cidade aberta, de Roberto Rossellini, em 1945 – no entanto, segundo um de seus principais expoentes,

Luchino Visconti, o cinema neo-realista teria iniciado-se em 1943, com seu primeiro longa-metragem,

Obsessão. Tendo como principal nome, além de Rossellini e Visconti, Vittorio De Sica, tal movimento

buscou, na Itália pós-fascismo e pós-Segunda Guerra Mundial, "levar a uma mudança nas relações entre

cinema e espectadores, inventando uma nova linguagem cinematográfica, que o grande público pudesse

compreender e, graças a ela, adquirir uma maior consciência cultural e social". Para os adeptos deste cinema,

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tratasse dos problemas sociais do país (miséria, desigualdades, relação do povo com a

religião e com o poder, o choque entre campo e cidade, o papel da classe média na

sociedade, entre outros), os diretores do Cinema Novo realizaram filmes de envolvimento

político com a realidade brasileira. Havia em obras como Deus e o diabo na terra do sol,

Barravento, Os fuzis e Vidas secas, por exemplo, certo desejo político de mudança, uma

esperança depositada na força transformadora dos grupos explorados e miseráveis. “O

sertão vai virar mar, o mar virar sertão”, cantavam os versos otimistas que encerravam

Deus e o diabo na terra do sol, enquanto os personagens de Yoná Magalhães e Geraldo

Del Rey corriam rumo ao mar.

Essa produção cinematográfica politizada e colocada à esquerda no campo político

brasileiro da época sentiu os impactos do golpe de 1964. Os cinemanovistas logo trataram

de tematizar, com lamento e desilusão, a derrota sofrida, em filmes como O desafio (1965),

de Paulo César Saraceni, e Terra em transe (1967), de Glauber Rocha. Surgiram aí as

primeiras representações cinematográficas da ditadura civil-militar brasileira.

não cabia mais representar a realidade, mas mostrá-la. Segundo classificação feita por Raymond Borde e

André Bouissy, citada por Mariarosaria Fabris, as principais características do Neo-realismo seriam: 1) A

utilização freqüente dos planos de conjunto e dos planos médios e um enquadramento semelhante ao

utilizado nos filmes de atualidades: a câmera não sugere, não disseca, só registra; 2) A recusa dos efeitos

visuais (superimpressão, imagens inclinadas, reflexos, deformações, elipses), caros ao cinema mudo: o Neo-

realismo - se quisermos forçar um pouco as coisas - retoma o cinema lá onde os irmãos Lumière o tinham

deixado; 3) Uma imagem acinzentada, segundo a tradição do documentário; 4) Uma montagem sem efeitos

particulares, como convém a um cinema não tão acentuadamente polêmico ou revolucionário; 5) A filmagem

em cenários reais; 6) Uma certa flexibilidade na decupagem, que implica um recurso freqüente à

improvisação, como decorrência da utilização de cenários reais; 7) A utilização de atores eventualmente não-

profissionais, sem esquecer, no entanto, que o neo-realismo se valeu de intérpretes famosos como Lúcia

Bosè, Aldo Fabrizi, Vittorio Gassman, Massimo Girotti, Gina Lollobrigida, Sophia Loren, Folco Lulli, Anna

Magnani, Silvana Mangano, Giulietta Masina, Amedeo Nazzari, Alberto Sordi, Paolo Stoppa, Raf Vallone e

Elena Varzi, só para citarmos os italianos; 8) A simplicidade dos diálogos e a valorização dos dialetos, que

levou diretores como Visconti e Emmer a usá-los, na ilusão de transmitir ao público uma imagem verdadeira

da Itália, sem intermediários, sem tradução; 9) A filmagem de cenas sem gravação, com sincronização

realizada posteriormente, o que tornava possível uma maior liberdade de atuação; 10) A utilização de

orçamentos módicos: o cinema social de alto custo não existe, caso contrário, deixa de ser social.

(MASCARELLO, 2006, pp. 191-219) 4 A Nouvelle Vague foi um movimento cinematográfico francês, iniciado por volta de 1958-1959 – com o

lançamento dos filmes Nas Garras do Vício (1958), de Claude Chabrol, Os incompreendidos (1959), de

François Truffaut, Hiroshima, Mon Amour (1959), de Alain Resnais, e Acossado (1960), de Jean-Luc Godard

–, proveniente da prática do cineclubismo, da cinefilia e da experiência de alguns destes cineastas na crítica

cinematográfica (através da revista Cahiers du Cinéma), e que trouxe para o cinema francês – e mundial,

posteriormente – inovações narrativas (como a montagem abrupta, descontínua e fragmentada) e estéticas,

tirando as câmeras dos estúdios e levando-as às ruas (de Paris, principalmente). Estabeleceu um profícuo

diálogo com o cinema norte-americano, com as referências da cultura pop, com o neo-realismo italiano e com

a linguagem do documentário. (MASCARELLO, 2006, pp. 221-152)

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O desafio e Terra em transe exprimiam a perplexidade dos intelectuais de esquerda

diante do golpe e um esforço de compreensão daquele evento político. Obras amargas,

pessimistas, espécie de resposta ao próprio Cinema Novo pré-1964 que, ainda assim,

conforme destaca Maria do Socorro Carvalho, buscavam manter-se coerentes com a

estética do movimento – mas aprendendo a dura lição de que “não tinham nem força nem

poder para transformar a realidade” (MASCARELLO, 2006, p. 298).

O primeiro – que acompanha um jornalista de esquerda sofrendo com a recente

mudança política no país, enquanto se relaciona amorosamente com a esposa de um

industrial que apoia a ascensão dos militares ao poder – era, nas palavras de Carvalho, “o

grito sufocado na garganta dos que viram seus projetos artísticos e individuais abalados por

um regime militar” (MASCARELLO, 2006, p. 300), um filme feito no calor do golpe, uma

tentativa desesperada de expressar o horror diante do ocorrido.

Terra em transe, por sua vez, almejava, com um pouco mais de distanciamento

temporal, entender o desenho político daquela sociedade que prometia a Revolução e

entregava um golpe de Estado conservador. Ao acompanhar as disputas políticas do

imaginário país Eldorado, vulgo Brasil, pelos olhos de um poeta/jornalista/intelectual de

esquerda, Glauber Rocha apontou seu devastador arsenal crítico não só para as elites

golpistas de direita, mas também para a própria esquerda, com seus intelectuais indecisos e

políticos demagógicos. Estava feita a crítica do dito populismo e da cultura nacional-

popular de esquerda na qual o próprio Cinema Novo se inserira no início da década de

1960. Conforme afirma, novamente, Carvalho,

Terra em transe é um filme político, que expressa uma determinada

reação da geração cinemanovista diante do triunfo da direita no país com

o golpe militar de 1964 (...). Com estética inovadora no cinema brasileiro,

o filme propõe uma análise daquele momento de perda de ilusões,

superação de certa ingenuidade política, questionamento das

potencialidades revolucionárias do povo, antecipando também o processo

que levaria ao fechamento completo do regime a partir de dezembro de

1968. (MASCARELLO, 2006, p. 301)

Terra em transe opta por representar a realidade política brasileira por vias

alegóricas. No filme de Glauber Rocha, como aponta Ismail Xavier, Eldorado serve como

“representação da cena brasileira, hierarquizando agentes, espaços, ações para figurar um

acontecimento: o golpe de 1964” (XAVIER, 2012, p. 106). Seus personagens passam a

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condensar, cada um, “atributos variados, encarnando numa unidade singular um conjunto

de segmentos da sociedade, uma convergência de posição política e inclinação

psicológica” (XAVIER, 2012, p. 106). Assim, continua Xavier, Porfírio Diaz (Paulo

Autran) representa “a tradição ascética, cristã, conservadora”; Fuentes (Paulo Gracindo),

“a burguesia progressista, a face moderna da classe dominante”; Vieira (José Lewgoy), “o

líder populista de origem rural, ‘coronel’ com verniz urbano que se alia ao progresso”;

Sara (Glauce Rocha), “a militante de partido, figura disciplinada que cumpre as tarefas

necessárias à preparação de um novo tempo” (XAVIER, 2006, pp. 106-108), e assim por

diante. “Cada uma das personificações tem lugar específico na geografia de Eldorado, no

desenvolvimento das ações e na ordem cósmica de Terra em transe”, completa Xavier

(XAVIER, 2012, p. 108).

Nesse ponto, o autor destaca que Rocha vai além dessa alegoria didática, não

permitindo “uma relação termo a termo com referentes encontrados, por exemplo, na

realidade brasileira, pois a galeria de tipos quer se referir a algo mais do que as

personagens da vida política da década de 60” (XAVIER, 2012, p. 110). O cineasta insere

no jogo alegórico de Terra em transe elementos mágicos/religiosos que se confundem com

a História brasileira recente personificada em Eldorado:

O filme se põe como franca expressão de um estado de espírito e destila

um sentimento globalizante da crise, que não hesita em imprimir um

sentido mítico fundamental à análise dos eventos políticos, em verdade,

assumidos como parte de uma totalidade maior só compreensível a partir

de uma peculiar representação da política. No topo dessa figuração que

quer totalizar, alcançar ordens que julga mais fundas, há a metáfora do

transe para caracterizar a crise nacional. Com essa tônica, a lógica dos

interesses materiais se vê articulada à força de um mundo de símbolos

que parece disputar a hegemonia pela condução dos gestos, resultando em

um conjunto de ambivalências que tornam mais opaca a textura do social,

e gerando o movimento de dupla determinação tão característico a Terra

em transe. Dados o esquema e a hierarquia, a ordem social vira ordem

cósmica, a ação assume uma dimensão ritual, cumprimento de um

programa; o filme, nos seus traços de estilo, vai sugerindo outras esferas

de determinação que apontam para o aspecto mágico-religioso, expresso

com maior ênfase na feição de ‘possesso’ de seus agentes. O progresso da

trama política apresenta informações suficientes para adquirir

consistência própria, mas resta o dado estranho dessa identidade de estilo

de conduta que, em verdade, impele todos os atores políticos de Eldorado

a cumprirem seu papel em tal programa, notadamente na hora do transe; a

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exibirem uma fé em sua ‘ideia fixa’, que vem a sabotar as ilusões de

liberação e mostrar a tentativa de ‘fazer história’, produzir o novo, como

montagem de um cenário de repetição. (XAVIER, 2012, p. 111)

Terra em transe, portanto, fala sim da política brasileira da década de 1960, sob

impacto direto dos fatos de 1964, mas apostando numa representação totalizante de

Eldorado (Brasil) que vai além dessa conjuntura, condenando o país imaginário (e o real) a

uma eterna repetição que, conforme analisa Xavier, remete ao seu mito de fundação,

também encenado no filme (XAVIER, 2012, pp. 116-117). Mesmo evitando uma

representação que mimetizasse a realidade,5 Rocha construiu aquela que tornou-se,

provavelmente, a obra-síntese de como a esquerda cultural absorveu o impacto do golpe de

1964.

Ainda sob o calor dos acontecimentos, da derrota sofrida pela esquerda, O desafio e

Terra em transe colocaram em pauta também a possibilidade de, diante de um inimigo

autoritário e muito mais poderoso, se optar pela luta armada. Em ambos os casos, essa

opção é apenas sugerida, apontada como um caminho possível a partir do reconhecimento

da vitória das forças da reação. Em O desafio, na verdade, a luta armada surge como

inferência permitida pela cena final, na qual o protagonista Marcelo (Oduvaldo Vianna

Filho) caminha, desiludido, em direção à cidade, ao som da canção-tema da peça teatral

Arena conta Zumbi.6 Conforme destaca Mônica Brincalepe Campo,

5 Terra em transe é filho direto dos pressupostos cinemanovistas: possui narrativa fragmentada, descontínua,

cheia de rupturas internas que materializam em imagem a agonia de seu protagonista. Como aponta

Carvalho: “O filme (...) seria mais uma expressão poética do que ficcional, pois sua narrativa rompe com a

linearidade, evitando a cronologia. Em sua estrutura livre, cada sequência é um bloco isolado, narrado em

estilos diversos, que procura analisar um aspecto desse tema complexo. Usando o delírio verbal de um poeta

que está morrendo, vítima da polícia/política, Terra em transe é a história do ápice de uma revolução

frustrada.” (XAVIER, 2012, pp. 116-117)

6 Arena conta Zumbi foi um musical escrito por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal em 1965, com

música de Edu Lobo. O desafio é encerrado com a canção “Tempo de guerra”, cuja letra, na versão da peça,

diz: “Eu vivo num tempo de guerra/ Eu vivo num tempo sem sol/ Só quem não sabe das coisas/ É um homem

capaz de rir./ Ai triste tempo presente/ em que falar de amor e flor/ é esquecer que tanta gente/ tá sofrendo de

dor./ Todo mundo me diz/ que devo cume e bebê/ mas como é que eu posso comer/ mas como é que eu posso

beber/ se eu sei que estou tirando/ o que vou comer e beber/ de um irmão que está com fome/ de um irmão

que está com sede/ de um irmão./ Mas mesmo assim eu como e bebo./ Mas mesmo assim, essa é a verdade./

Dizem crenças antigas/ que viver não é lutar./ Que sábio é o que consegue/ ao mal com o bem pagar./ Quem

esquece a própria vontade,/ quem aceita não ter seu desejo/ é tido por todos um sábio./ É isso que eu sempre

vejo/ é a isso que eu digo Não!/ Eu sei que é preciso vencer/ Eu sei que é preciso brigar/ Eu sei que é preciso

morrer/ Eu sei que é preciso matar./ CORO: É um tempo de guerra, é um tempo sem sol./ Sem sol, sem sol,

sem dó./ E você que me prossegue/ e vai ver feliz a terra/ lembre bem do nosso tempo,/ deste tempo que é de

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Marcelo [protagonista de O desafio] talvez veio a pegar uma

metralhadora, como Paulo Martins o fez em Terra em transe, ou tornou-

se guerrilheiro, como o padre em Quarup ou o intelectual em Pessach,

mas essa opção veio em momento posterior ao deste filme. Alternativas

que estavam ainda sendo formuladas e discutidas, por isso não se pode

obter clareza de posição neste filme. (CAPELATO ET AL., 2011, p. 252)

Em Terra em transe, o caminho para a luta armada é trilhado de maneira mais

explícita pelo protagonista Paulo Martins, ainda que ele também se concretize plenamente

apenas na cena final do filme. Paulo (Jardel Filho), protagonista de Terra em transe,

defende ardorosamente o enfrentamento armado das forças do governante progressista

Vieira (José Lewgoy) contra os golpistas comandados por Diaz (Paulo Autran). Frustrado

seu projeto, por culpa da covardia de Vieira (ele não era, afinal, o líder popular esperado

por Paulo), o protagonista foge, é baleado num cerco policial e, abandonado por sua

companheira de luta Sara (Glauce Rocha), agoniza nas dunas de metralhadora em punho,

talvez sinalizando para a luta armada como única saída possível.

Para Ismail Xavier, não há na atitude de Paulo uma defesa racional do confronto

armado a partir da avaliação de que a vitória seria possível. O poeta/jornalista “quer a luta

como ritual, sacrifício de sangue necessário à evolução da comunidade” (XAVIER, 2012,

p. 114). O embate armado teria um valor em si e a violência seria “um fator de redenção,

um ato político de purificação” (XAVIER, 2012, p. 115). É interessante notar como essa

concepção se assemelha à noção de “violência revolucionária”, bastante disseminada entre

os grupos radicais da esquerda na década de 1960, conforme analisa a historiadora Maria

Paula Araújo. Trata-se de uma interpretação positiva da violência como instrumento

legítimo de ação política, adotada por diversos grupos guerrilheiros do período, como as

Brigadas Vermelhas italianas, o Baader-Meinhoff alemão e as organizações armadas

brasileiras. A frase de Oriol Sole, dirigente do grupo catalão MIL-CAC, escrita na prisão-

modelo de Barcelona, citada por Maria Paula Araújo, sintetiza bem esse ideal: “A

violência revolucionária é uma resposta global do proletariado à violência do capital. As

guerra./ É um tempo.../ Veja bem que preparando/ o caminho da amizade./ Não podemos ser amigos/ Ao mal

vamos dar maldade/ É um tempo.../ Se você chegar a ver/ essa terra da amizade,/ onde o homem ajuda o

homem,/ pense em nós só com bondade./ É um tempo../ Essa terra eu não vou ver!” (grifos meus) Disponível

em: http://pyndorama.com/2009/01/arena-conta-zumbi-audio-da-peca-para-download/

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manifestações de raiva, de cólera etc. são expressões da guerra civil revolucionária latente”

(ARAÚJO, 2008). Glauber já havia explicitado um olhar positivado para a violência como

ação política transformadora tanto em Deus e o Diabo na terra do sol – vale lembrar que a

libertação de Manuel e sua esposa das estruturas arcaicas do sertão, representadas pelo

messianismo e pelo cangaço, se dão através do assassinato do líder messiânico Sebastião e

do cangaceiro Corisco pelo personagem Antônio das Mortes – quanto no manifesto

Estética da fome, de 1965:

Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de uma faminto é a

violência, e a violência de um faminto não é primitivismo (...) somente

conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode

compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto

não ergue as armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro

policial morto para que o francês percebesse um argelino

(...) essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também

não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor

que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque

não é um amor de complacência ou de contemplação mas um amor de

ação e transformação. (ROCHA, 1981, pp. 31-32)

Terra em transe e O desafio, obras que acenam com bons olhos para a possibilidade

do combate armado à ditadura civil-militar instalada no Brasil em 1964 são sempre

lembrados quando se fala nas primeiras representações cinematográficas deste regime. Mas

vale citar aqui o caso do filme As armas, dirigido por Astolfo Araújo, que constrói um

discurso diverso sobre a guerrilha de esquerda no país. O longa-metragem de Araújo tem

como protagonista César, chofer que trabalha para uma organização de esquerda sobre a

qual ele pouco sabe. Ambicioso, o personagem se irrita com a pouca importância que lhe é

dada no interior da organização, passando paulatinamente ao enfrentamento com seus

superiores.

Ainda que o protagonista de As armas não seja um personagem de boa índole (ele é

apresentado pelo filme como egoísta, agindo violentamente com uma prostituta que recusa

beijar-lhe a boca e armando algumas artimanhas para conquistar as mulheres que deseja,

incluindo a filha do líder da organização para a qual trabalha), chama atenção a

representação claramente negativa da esquerda armada. Os membros de tal organização

são rudes no trato com o chofer e com outro funcionário mais velho – o que explicita seu

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elitismo e, no limite, justifica certas ações do protagonista. São também egoístas, imaturos

e hipócritas. Vale citar duas passagens do filme que confirmam essa visão construída por

Araújo.

Na primeira delas, que ocorre entre 22 minutos e 50 segundos e 24 minutos e 40

segundos de filme, César está em seu quarto assistindo ao noticiário, que fala da repressão

violenta da polícia a manifestações estudantis. Aparentemente preocupado, o personagem

se dirige ao líder da organização para relatar o ocorrido, mas a notícia é recebida com

indiferença por este, que orienta César a não se preocupar, já que não se tratava do seu

“pessoal”. A esquerda radical de As armas não só deixa de participar de manifestações de

rua, preferindo a conspiração inócua em ambientes privados, como se nega a solidarizar-se

com aqueles que, tendo feito a opção pelo enfrentamento aberto com a ditadura em espaços

públicos, sofrem com a repressão policial.

Na segunda passagem, César, já em total discordância com os outros membros da

organização – e sendo alvo da desconfiança destes –, decide espionar uma de suas

reuniões, na qual toma conhecimento da existência de grande quantia de armas e dinheiro

em posse dos militantes, que se preparam para uma revolução que nunca chega. Durante tal

reunião, o tema do constante adiamento das ações armadas é levantado e o personagem

Boris, braço direito do líder do grupo, argumenta que não há motivos para preocupação, já

que eles sempre brincaram de fazer revolução.7 Mais uma vez a luta armada surge

negativada no filme, representada como brincadeira de jovens imaturos ou manipulação de

adultos inescrupulosos e gananciosos.

É verdade que O desafio e Terra em transe eram críticos à atuação da esquerda no

pré-1964, particularmente à figura do intelectual, que atuava com paternalismo em sua

relação idealizada com o povo – não à toa, os protagonistas de ambos os filmes chegam ao

final das narrativas em estado de isolamento, consequência direta de sua incapacidade de

compreender os reais desejos dos explorados. No entanto, Saraceni e Glauber pareciam

ainda acreditar na saída, ainda que extrema, do combate armado contra a ditadura, capaz de

fazer o povo “sair de sua condição amorfa e atingir o status de coletividade orgânica capaz

de expressar coesão e identidade” (XAVIER, 2012, p. 114). Pelo menos Paulo Martins, o

7 A cena se desenrola entre 38 minutos e 30 segundos e 40 minutos e 05 segundos de filme.

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protagonista de Terra em transe, crê nesse caminho. As armas, por sua vez, é como uma

resposta ainda mais amargurada, e talvez reacionária, a essa crença. Para Araújo, a

esquerda é necessariamente imatura, elitista e egoísta e a opção pelas armas só ressalta

essas características. É como se tal postura da esquerda apresentada por Astolfo Araújo

fosse um prolongamento natural – ainda que extremado – das ações de Marcelo e Paulo em

O desafio e Terra em transe.8

Apontei para o possível posicionamento político reacionário do filme de Araújo por

conta não só da crítica veemente à esquerda, mas também pela presença de um diálogo,

logo na primeira cena, em que são contrapostas uma postura pessimista e uma otimista em

relação ao novo governo brasileiro. E os argumentos daquele (não sabemos quem são os

personagens, já que seus rostos não são mostrados em momento algum) que defende a

confiança nos que ocupam o poder parecem bem mais convincentes, baseados em fatos

concretos apresentados pelo governo. Segue a transcrição do diálogo:

Personagem 1 (o pessimista): Puxa, será que a gente vai melhorar num

curto esquema? Do jeito que tá não dá pé não!

Personagem 2 (o otimista): É claro! Não tá vendo os planos do governo?

É só ter um pouco de paz para trabalhar que você vai ver.

Personagem 1: Olha, do jeito que a minha vida tá, meu velho, só tenho

paz na hora que eu durmo. Sabe que eu estou sendo despejado? O cara lá

tá querendo a casa.

Personagem 2: Ah, mas você não viu no jornal? O problema da casa

própria é o primeiro que vai ser resolvido. Bom, o plano habitacional tá aí

pra um fim, só falta ser aplicado.

Personagem 1: No duro?

Personagem 2: Espera um pouco, deixa eu ver se eu pego aquele maço de

cigarro.

Personagem 1: Olha, eu não acredito nisso não, viu? Eu acho que vou

acabar dormindo embaixo de uma ponte, isso sim.

8 O olhar crítico para a atuação da esquerda também apareceu no filme Estranho triângulo (1970), de Pedro

Camargo, no qual a militância política na década de 1960 aparece como um subtema que, vez ou outra,

interfere na trajetória do protagonista Durval, jovem que se envolve num inusitado triângulo amoroso com

um homem mais velho e sua esposa. Está presente em tal longa-metragem uma crítica à fragilidade dos ideias

defendidos pelos jovens esquerdistas, manifesta, por exemplo, na afirmação do personagem Werner de que

“toda ideologia morre quando se ganha o primeiro milhão” – o que seria confirmado pela mudança no

comportamento de Durval, que de simpático aos protestos dos estudantes, mesmo participando de alguns

deles, passa ao total desinteresse pelas atividades políticas ao experimentar uma vida de conforto sob a

proteção de Werner – e na sequência em que um grupo de jovens, dentre eles o protagonista, agride

verbalmente um casal de holandeses, confundidos com americanos, e Walter, amigo de Durval, repreende os

demais colegas, dizendo ter pena de sua Revolução. Como o destaque dado à questão da militância de

esquerda é muito pequeno em Estranho triângulo, optei por não analisa-lo de maneira detalhada neste artigo.

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Personagem 2: Ah, não seja pessimista, precisa acreditar em alguma

coisa! Se todo mundo pensar como você, nada vai pra frente.

Personagem 1: Olha, desde que eu nasci estou ouvindo essa conversa.

Entra governo, sai governo, o país vai pra frente e a gente só vai pra trás.

Personagem 2: Ah, também não é tanto assim!

Da postura minimamente esperançosa na opção pelas armas em O desafio e Terra

em transe à crítica veemente às organizações de esquerda em As armas. Se os dois

primeiros filmes ocupam papel de destaque nos estudos acadêmicos sobre o cinema do

período e nas antologias acerca da produção cinematográfica acerca da ditadura, enquanto

o terceiro foi quase completamente esquecido em ambos os espaços, não deixa de ser

curioso observar que o olhar negativo para os guerrilheiros se prolongou no tempo,

reaparecendo em momentos posteriores no cinema brasileiro. No contexto da abertura

política (segunda metade da década de 1970 e primeira metade da década de 1980), os anos

mais duros da ditadura civil-militar se tornaram tema recorrente para um cinema de viés

naturalista, bem diverso esteticamente de obras como Terra em transe e O desafio –

trazendo, como se esperaria, o subtema da guerrilha em seu bojo. São os casos de Pra

frente Brasil (1982), de Roberto Farias, e O bom burguês (1983), de Oswaldo Caldeira.

Pra frente Brasil narra a história de Jofre (Reginaldo Faria), cidadão de classe

média que, tido por “terrorista”, é sequestrado por um grupo de extrema-direita que passa a

torturá-lo barbaramente enquanto sua família busca notícias de seu paradeiro. O pano de

fundo é a Copa do Mundo de futebol de 1970, com a população embalada e envolvida

pelas sucessivas vitórias da Seleção. Há no filme de Roberto Farias personagens ligados à

guerrilha: Mariana (Elizabeth Savalla), namorada de Miguel (Antônio Fagundes), irmão de

Jofre; e dois outros membros da organização da qual esta personagem faz parte, Ivan e Zé

Roberto (Luiz Mário Farias). Apresentados como jovens sonhadores, mas vazios de

conteúdo, os guerrilheiros têm importância na trama de Pra frente Brasil por contribuírem

para a vingança de Miguel contra os algozes de seu irmão. No entanto, eles representam o

outro extremo das torturas bárbaras cometidas pelos vilões do filme (liderados pelo temível

Dr. Barreto), um extremo também violento e que, por isso, deve ser igualmente extirpado.

Assim, ao final da narrativa de Farias, tanto torturadores cruéis quanto militantes radicais

de esquerda são mortos, restabelecendo o equilíbrio perdido, e pedido, de acordo com o

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discurso do filme, pelo país. Nesse sentido, o discurso político de Pra frente Brasil se afina

com o texto do letreiro – escrito por Farias a pedido da censura, como condição para

liberação da obra – que abre o filme:

Este filme se passa durante o mês de junho de 1970, num dos momentos

mais difíceis da vida brasileira. Nessa época, os índices de crescimento

apontavam um desempenho extraordinário no setor econômico. No

político, no entanto, o governo empenhava-se na luta contra o

extremismo armado. De um lado, a subversão da extrema esquerda, de

outro, a repressão clandestina. Sequestros, mortes, excessos. Momentos

de dor e aflição. Hoje, uma página virada na história de um país que não

pode perder a perspectiva do futuro. Pra frente Brasil é um libelo contra

a violência.

Já o personagem Miguel, que pega em armas para enfrentar não só o grupo de

Barreto, mas também seu ex-patrão Geraldo Braulen – empresário que financia o combate

clandestino à “subversão” –, é visto com bons olhos pelo roteiro de Farias, já que suas

motivações são puramente passionais, não estando contaminadas por quaisquer

pressupostos ideológicos. Miguel empreende uma busca por justiça e, posteriormente,

vingança, tema clássico no cinema hollywoodiano, que conduz o personagem a um duelo

típico do gênero western no epílogo de Pra frente Brasil.9

O bom burguês, por sua vez, acompanha a inusitada trajetória de Lucas (José

Wilker), bancário que desvia dinheiro de seu emprego para financiar a guerrilha enquanto

constrói uma fachada de empresário bem-sucedido – o que o leva a envolver-se também

com a repressão clandestina aos mesmos guerrilheiros que financia. Como Pra frente

Brasil, O bom burguês pinta um retrato dúbio da luta armada. Seus membros parecem

dotados de boas intenções, seja no caso de figuras mais jovens e inocentes como Joana e

Lauro (Anselmo Vasconcelos), seja no de líderes como Joel (Ivan de Almeida) e Raul

(Nelson Xavier). No entanto, o filme também destaca o caráter autoritário da organização

guerrilheira retratada, que acaba por sufocar a individualidade do casal Joana/Lauro (sopro

de vida em meio a um mundo sem graça e triste) e determinar a morte da primeira. Joana

tem suprimidas suas relações familiares (é duramente criticada por seus companheiros de

luta por ter fraquejado durante ação em um banco, ao ter se deparado com seu irmão

Lucas) e alegria da juventude (ela tem um raro momento de leveza quando retorna ao

9 Conforme ressaltam David Bordwell e Kristin Thompson, narrativas de vingança são comuns em westerns.

(BORDWELL & THOMPSON, 2008, p. 320)

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apartamento no qual morava com uma amiga universitária); Lauro tem de se contentar a

lembrar de sua infância através das frestas do sótão do esconderijo utilizado pela

organização, por onde observa algumas crianças soltando pipa. Num diálogo, ainda no

início do filme, o casal comenta sobre o autoritarismo do grupo do qual participam:

Lauro e Joana enquadrados em plano médio, em frente à linha do trem

próxima ao esconderijo de seu grupo.

Lauro: O Partido Comunista já era uma coisa velha, caquética. Mas isso

parece um jardim de infância. O caso não é um, dois ou três caras, mas a

engrenagem da organização. De boca só se fala em liberdade, mas por

dentro, por baixo, o que vai te devorando é um esquema de dominação.

Dá para você entender isso?

Joana: Dá. Você sabe que dá? Eu acho que é exatamente isso que eu

sinto, de vez em quando, assim, eu quero falar alguma coisa, assim,

contra aquilo que eles tão falando, contra aquilo que eles tão propondo...

mas eu não consigo! Eles fazem me sentir como uma criança, Lauro! Tá

entendendo?10

Também como em Pra frente Brasil, os guerrilheiros de O bom burguês, ao menos

os que ganham mais destaque, acabam punidos com a morte: Joana comete suicídio para

não entregar o próprio irmão à repressão; Lauro é preso e brutalmente torturado,

entregando a identidade da namorada e depois sumindo de cena (Thomas chega a prometer

a Joana que ele ainda está vivo, mas não sabemos, ao término do filme, se o vilão fora

sincero em sua fala); Raul é assassinado.

No mesmo depoimento presente no DVD de O bom burguês, Oswaldo Caldeira

explicitou o olhar crítico de seu filme para a esquerda armada:

O filme mostra que alguns revolucionários, algumas pessoas que estão

engajadas em organizações de esquerda pretensamente revolucionárias,

eram ou são muito parecidas com seus antagonistas de direita. (...) O

filme questionava certas atitudes, certos comportamentos e certas ações

da esquerda. Questionava através, claramente, de alguns personagens.

Isso é uma coisa também que causou estranhamento. Uma coisa que

depois voltou, virou café pequeno, todo mundo passou a criticar,

inclusive aí com tons de direita. O nosso filme, na época, em plena

ditadura, criticava não só a ditadura militar, como a própria ação de

esquerda.

10 O diálogo ocorre entre 22 minutos e 23 minutos e 7 segundos de filme.

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Apesar desse empenho de Caldeira em destacar o caráter inovador de seu filme, as

críticas de O bom burguês à esquerda armada não parecem se diferir muito daquelas

apresentadas por Roberto Farias em Pra frente Brasil. Ambos os longas-metragens, no fim

das contas, condenam a opção pelas armas, aproximando a extrema-esquerda da extrema-

direita em suas práticas violentas – ainda que se referindo aos primeiros como ingênuos,

vazios e dotados de boas intenções, enquanto os segundos são vilanizados. Já a fala de

Caldeira sobre a recorrência posterior da crítica às esquerdas no cinema brasileiro parece

remeter diretamente a uma tradição representativa dos jovens guerrilheiros como sinceros

sonhadores que fizeram escolhas equivocadas, tradição iniciada nesse contexto e que

também marcou presença em obras mais recentes, como O que é isso, companheiro?.

Baseado no livro homônimo de memórias do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira, O

que é isso, companheiro?, dirigido por Bruno Barreto, se propõe a falar do sequestro do

embaixador norte-americano Charles Elbrick (Alan Arkin), em 1969, por organizações da

esquerda armada brasileira. O filme causou polêmica quando de seu lançamento nos

cinemas, particularmente por sua representação da luta armada e dos torturadores. No

primeiro caso, o longa-metragem de Barreto aposta em apresentar a guerrilha de esquerda

como um empreendimento de velhos militantes inescrupulosos – particularmente o

personagem Jonas (Matheus Naschtergaele), responsável pelo comando do sequestro, que

manipula outros personagens, mantém postura antipática ao protagonista do filme (com o

qual o público deve se identificar) e parece sedento pela chance de assassinar o sequestrado

– que manipulam jovens rebeldes ingênuos e sonhadores. Já Elbrick, no cativeiro em meio

a esses jovens, aparece como voz da razão, homem experiente e sábio que se contrapõe,

enquanto tal, à loucura comandada pelos militantes mais velhos.

Para complicar um pouco mais as coisas, O que é isso, companheiro? ainda traz a

figura de um torturador (Marco Ricca) que passa longe da crueldade per se que

caracterizava esse tipo de personagem em outros filmes sobre o período. O torturador de

Barreto sofre com crises de consciência por suas ações, parecendo, assim, mais humano

que o guerrilheiro Jonas, por exemplo. Ismail Xavier caminhou também nesse sentido em

sua análise do filme:

O Gabeira imaginário do filme e o embaixador definem uma relação que

consolida a imagem diferenciada de ambos diante dos outros,

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confirmando a vítima como a figura mais serena do episódio, espécie de

voz da razão que aconselha, dá palpites certos e compreende melhor o

que se passa, em contraste com a insegurança e a falta de formulação

mais lúcida por parte dos jovens rebeldes bem-intencionados, que acabam

por obedecer a um comandante dogmático e vingativo, que anula as

individualidades, qualquer que seja o lado em que estejam. (XAVIER,

2000, p. 118)

É importante destacar, no entanto, que parte desse olhar para o embate entre

guerrilheiros e repressão já estava presente no livro O que é isso, companheiro?, de

Gabeira. Para o autor, o embaixador Charles Elbrick era totalmente sincero em seus

comentários críticos à ditadura brasileira, uma figura imponente que remetia a um herói de

histórias em quadrinhos; os torturadores e demais policiais aparecem no livro com sua

brutalidade matizada, com Gabeira destacando as conversas amistosas que teve com eles e

o fato de a maioria ser composta não por homens sádicos, mas por trabalhadores comuns

que voltavam para casa ao final do expediente; por fim, ele também ressalta o

comportamento autoritário das organizações de esquerda, prevendo uma forte repressão

contra os intelectuais, caso elas chegassem ao poder (GABEIRA, 1996, pp. 128-148).

As críticas feitas pelo filme de Bruno Barreto à esquerda, portanto, não são novas:

além de presentes na obra memorialística de Gabeira, remetem a uma tradição iniciada no

cinema brasileiro ainda na década de 1960, com As armas (1969), e continuada nos anos

da abertura política, em obras como Pra frente Brasil (1982) e O bom burguês (1983). Tal

tradição começou, portanto, num filme de pouco apelo comercial e raramente lembrado

quando se fala em cinema e ditadura brasileira, mas foi apropriada e desenvolvida dentro

de outro tipo de cinema, caracterizado pela aproximação com gêneros de maior inserção

entre o grande público. O que é isso, companheiro? confirma essa apropriação. Ainda que

um olhar estritamente positivo sobre a luta armada apareça em filmes brasileiros recentes –

como em Cabra-cega (2005), de Toni Venturi, e no documentário Hércules 56 (2007), de

Sílvio Da-Rin, espécie de resposta da esquerda ao longa-metragem de Barreto –, a

disposição para criticar os guerrilheiros, apresentando-os ou como manipuladores ou como

ingênuos sonhadores, ainda parece sobreviver no cinema de caráter comercial produzido

no país.

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BIBLIOGRAFIA

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edition. New

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2ª ed. São Paulo: Alameda, 2011.

GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro?. São Paulo: Companhia das Letras,

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2006.

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XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, tropicalismo, cinema

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XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro dos anos 90. In: Praga. Estudos marxistas. São

Paulo: Ed. Hucitec, junho de 2000.