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Reflexões sobre a imagem como gesto

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    Eduardo Henrik AubertReflexes sobre a imagem como gesto: apontamentos a partir do manuscrito Paris, BNF, Latin 9449

    ARTIGOS

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    Eduardo Henrik AubertReflexes sobre a imagem como gesto: apontamentos a partir do manuscrito Paris, BNF, Latin 9449

    REFLEXES SOBRE A IMAGEM COMO GESTO: APONTAMENTOS A PARTIR DO MANUSCRITO PARIS, BNF, LATIN 9449

    Eduardo Henrik AubertEmmanuel College, University of Cambridge

    Resumo

    Este artigo prope que compreender a imagem como gesto pode ser um modo frutfero de incrementar sua inteligibilidade, libertando a imagem do paradigma da representao, entendendo-a antes como veculo de ao social. Para tanto, estrutura-se em duas partes: uma primeira destinada discusso historiogrfica e conceitual direta, e uma segunda dedicada a um estudo de caso centrado no manuscrito Paris, BnF, latin 9449, originrio de Nevers nos meados do sculo XI. Analisando as imagens desse manuscrito, em sua relao com o contexto do livro em que se inserem e com uma srie de outros testemunhos nivernenses coevos, pretendemos avanar a factibilidade e o interesse de tal abordagem.

    Palavras-chave

    Imagem medieval msica medieval gesto teoria da imagem.

    * Doutorado em Histoire et Civilisations. cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, EHESS, Frana.

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    Eduardo Henrik AubertReflexes sobre a imagem como gesto: apontamentos a partir do manuscrito Paris, BNF, Latin 9449

    REFLECTIONS ON IMAGE AS GESTURE: NOTES BASED ON MS PARIS, BNF, LATIN 9449

    Eduardo Henrik AubertEmmanuel College, University of Cambridge

    Abstract

    This article proposes that conceiving image as gesture can be a fruitful means of enhancing the intelligibility of images moving away from the representational model towards an understanding of images as a vehicle of social action. In order to do so, it proceeds in two parts: the first one is devoted to a direct historiogra-phical and conceptual discussion, whereas the second part is devoted to a case study centred on manuscript Paris, BnF, latin 9449, from mid eleventh-century Nevers. By analysing the images in this book, in their manuscript context and with relation to other contemporary Nivernais sources, an argument is made for the feasibility and relevance of this approach.

    Keywords

    Medieval image medieval music gesture image theory

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    Para o historiador da arte alemo Aby Warburg (1866-1929), o problema mais difcil para a arte seria o de capturar as imagens da vida em movimen-to,1 questo que permaneceu no centro de seu questionamento a respeito das formas que a herana da Antiguidade assumiu na arte e na vida da Idade Mdia e do Renascimento. Warburg identificou, desde os meados do sculo XV, o incremento de importncia de uma retrica emotiva gestual e uma tendncia a se voltar para as artes do mundo antigo sempre que a vida de-veria ser encarnada em movimento exterior.2 Diante desse panorama, a c-lebre descoberta do grupo de Laocoonte, em 1506, no seria a origem, mas o cume de algo que os italianos buscavam na arte do mundo antigo: extremos de expresso gestual e fisionmica, estilizada em uma sublimidade trgica.3

    Warburg dedicou larga parte de sua obra a se opor a uma viso exem-plificada pelos trabalhos de Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) da arte antiga como fonte de uma serena grandeza. Para ele, haveria uma dupla natureza da rica herana da Antiguidade que poderia ser simbolizada por um duplo busto de Apolo-Dionsio.4 Dentro desse enquadramento, se a novidade do Renascimento a de se reaproximar de Dionsio, a Idade Mdia teria permanecido sob o signo de Apolo, a gestualidade do grupo de Laoo-conte sendo caracterizada como o latim vulgar da gestualidade emotiva, uma linguagem internacional, e mesmo universal, que tocava a todos os que se exasperavam contra as limitaes expressivas medievais.5

    Essas consideraes levantam diversas questes de ordem historiogr-fica e conceitual para o estudo das imagens (no apenas) medievais. Essas so questes expostas na sequncia, em uma primeira parte deste texto, destinada discusso do problema do gesto na imagem e formulao de um reenquadramento do problema. Em um segundo momento, propomos um estudo de caso centrado em um manuscrito produzido na Catedral Sain-t-Cyr de Nevers, na Borgonha, entre 1059-1060. Este momento do texto tem por objetivo, ao mesmo tempo, exemplificar o reenquadramento proposto e refinar o instrumental conceitual disponvel.

    1 WARBURG, Aby. The renewal of pagan Antiquity: Contributions to the cultural history of the European Renaissance. Traduo. Los Angeles: The Getty Research Institute, 1999, p. 141.

    2 Idem, p. 108.3 Idem, p. 558.4 Idem, p. 273.5 Idem, p. 558.

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    1. O gesto da imagem: exploraes conceituais

    O problema do gesto se situa em uma das polaridades mais influentes da histria da arte: no centro do gesto, a oposio entre imobilidade e movi-mento articula concepes da forma como elemento constritivo ou expressivo. O historiador da arte alemo Heinrich Wlfflin (1864-1945), contemporneo de Warbug, traou a equivalncia de forma ntida em seus Conceitos funda-mentais da histria da arte (1915), fundamentado, sobretudo, em uma distino entre o Renascimento (figura da arte clssica) e o Barroco (figura de sua su-perao) para tipificar cinco oposies fundamentais na arte: linear/pictural; forma fechada/forma aberta; planeidade/profundidade; multiplicidade/uni-dade; claridade absoluta/claridade relativa. Essas oposies formais reve-lam, por detrs das categorias artsticas, diferentes concepes de mundo.6

    Nesse esquema, s limitaes do Renascimento opor-se-ia a expresso gestual do Barroco, como demonstra a comparao entre os amplos gestos de Guido Reni (1575-1642) e a nobre reteno e grandeza da Madona Sixti-na (1512-1514, de Rafael, 1483-1520).7 O problema est no cerne mesmo da oposio entre forma fechada (ou tectnica) e forma aberta (ou atectni-ca): o ponto nevrlgico da oposio entre essas duas categorias aquele do contraste definido pela mecnica entre equilbrio estvel e instvel,8 isto , entre fixidez e mobilidade. Para Wlfflin, no estilo atectnico (...) o elemento significativo da forma no so os andaimes, mas o sopro de vida que traz fluidez e movimento forma rgida. Em um caso [o da forma tectnica], os valores do ser; no outro [o da forma atectnica], o valor do movimento.9

    Se Warburg deslocou a concepo de uma arte que sublinha a impres-so do movimento vivo10 para favorecer o Quattrocento, mas tambm se opondo concepo de uma arte medieval gestual, isto , expressiva, viva, a viso fundamentalmente cclica de Wlfflin (em que cada perodo artstico conhece as fases primitiva, clssica e barroca) lhe permite sugerir um paralelo entre a arte do alto Renascimento e aquela do alto gtico, que partilhariam o mesmo ideal da forma completamente contida em si mesma.11 Ao mesmo

    6 Idem, p. 146.7 WLFFLIN, Heinrich. Kunstgeschichtliche Grundbegriffe: das Problem der Stilentwicklung in der neueren

    Kunst. Mnchen: Hugo Bruckmann, 1917, p. 9.8 Idem, p. 134.9 Idem, p. 146.10 WARBURG, Aby. The renewal of pagan Antiquity..., op. cit., p. 140.11 WLFFLIN, Heinrich. Kunstgeschichtliche Grundbegriffe..., op. cit., p. 162.

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    tempo, o ponto de partida do gtico, totalmente diverso12 tratar-se-ia de referncia arte romnica tardia? poderia ser mais aberto, uma vez que uma arte apenas se torna estrita aps ter realizado a liberdade perfeita;13 o gtico tardio, por sua vez, tambm transformou a forma rgida em forma fluida.14

    Coube ao historiador da arte norte-americano Meyer Schapiro (1904-1996) gerir a polaridade do gesto a favor da arte medieval e, mais particular-mente, da arte romnica. Na linhagem de Wlfflin, Schapiro v, na postura e no gesto, o potencial de trabalhar no apenas como meios de composio, mas como formas expressivas, comunicativas.15 Se o gtico privilegiaria a imposio de uma forma de ordem sobretudo arquitetural ou decorativa (...) com pouco propsito expressivo,16 a arte romnica comunica a intensidade do gesto;17 ela produz tipos artsticos dotados de uma fora gestual,18 ela capaz de uma fora dramtica de toda a tenso do corpo,19 de modo que mesmo a postura das pernas cruzadas descrita, em um vocabulrio ma-nifestamente wlffliano, como sendo, na arte romnica (...) um dispositivo formal expressivo, uma postura instvel, atectnica (...) um movimento e uma tenso dirigidos para dentro.20

    A categoria do movimento mostra-se particularmente operatria para se opor a um termo contrrio e para se erigir em trao distintivo das formas da arte na durao histrica:

    Se vocs pensarem na arte clssica e na arte antiga, vocs se lembraro das figuras [humanas] tpicas dessas artes, da arte egpcia, babilnica, assria e grega, que vocs reconhecero imediatamente no apenas por seu estilo de representao, mas tambm porque, quando consideradas como objetos humanos, elas tm posturas, gestos e ex-presses caractersticas, suficientemente constantes, das quais vocs se lembraro como qualidades especficas de energia, de inteno e de movimento (...).21

    12 Idem, p. 162.13 Idem, p. 155.14 Idem, p. 165.15 SCHAPIRO, Meyer. Romanesque art: selected papers. Nova York: George Braziller, 1977, p. 56.16 Idem, p. 56.17 Idem, p. 212.18 SCHAPIRO, Meyer. Late Antique, early christian and mediaeval art: selected papers. Nova York: George

    Braziller, 1979, p. 344.19 SCHAPIRO, Meyer. Romanesque art..., op. cit., p. 236.20 Idem, p. 187.21 SCHAPIRO, Meyer. Romanesque architectural sculpture: the Charles Eliot Norton Lecture. Chicago: The

    University of Chicago Press, 2006, p. 154.

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    A relao entre arte romnica e clssica ambivalente. Diferentemen-te das imagens clssicas de danarinas, caracterizadas por uma atividade motivada e sem constries, no romnico, o movimento do corpo confi-nado, originando-se inteiramente na prpria figura.22 Mas a arte clssica se ope arte oriental antiga como a arte romnica se ope arte morabe: assim como a postura clssica imvel difere das posturas na arte oriental antiga na expresso da rica articulao do corpo, a postura romnica tam-bm difere da forma morabe habitualmente inerte como uma expresso de energias ativas.23 O romnico como o clssico por ser expressivo e gestual; ele difere do clssico na medida em que sua intensa gestualidade no livre, mas tensa. Isso se explica porque, no romnico, trata-se de uma mobilidade ou gestualidade espiritualizada, constrita e tensa.24

    No centro das reflexes sobre o estilo, a expresso e a periodizao, o problema do gesto convoca, assim, os problemas mais amplos relativos compreenso da arte. Em uma nota tomada em 1926, quando acabara de completar 22 anos, a respeito de um So Miguel em Conques, Schapiro j mostrava em um poderoso staccato tudo o que um gesto implica em termos de forma, sentido e histria: grande mo mas bom gesto de um modelo clssico anterior (?).25

    *

    O que um gesto? A perspectiva corrente que tambm a de War-burg, Wlfflin e Schapiro associa o termo aos movimentos do corpo: o termo gesto se aplica ao movimento de uma ou diversas partes do corpo, escreve Franois Garnier.26 Acabamos de ver, no entanto, que a oposio entre movimento e imobilidade que operatria no discurso da histria da arte. O movimento, ou ao, seria o prprio do gesto, assim como a imobili-dade, ou estado, seria o prprio da postura. assim que Jean-Claude Schmitt preferiu incluir potencialmente os dois polos no mesmo termo de gesto: para

    22 SCHAPIRO, Meyer. Romanesque art..., op. cit., p. 56.23 Idem, p. 56.24 Idem, p. 56.25 SCHAPIRO, Meyer. Meyer Schapiro abroad: Letters to Lillian and travel notebooks. Daniel Esterman

    (ed.). Los Angeles: The Getty Research Institute, 2009, p. 141.26 GARNIER, Franois. Le langage de limage au Moyen ge. Signification et symbolique. Paris: Le Lopard

    dOrd, 1982, p. 43.

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    ele, os gestos so definidos da maneira mais geral como os movimentos e as atitudes do corpo.27

    Se Warburg e Wlfflin sublinharam que h passagem, mas tambm tenso, entre esses dois polos de uma herana figurativa ou de uma catego-rizao de tendncias formais, o trabalho pioneiro de Meyer Schapiro exem-plificou a relao entre estado e ao como um problema central na histria das formas simblicas.28 Estudando a figurao de Moiss no episdio da batalha contra os amalecitas, Schapiro mostrou a passagem de uma postura simblica que associa a posio da orao ao signo da cruz, salvao e a um gesto pragmtico que pretende interferir concretamente na ao da ba-talha.29 A oposio entre duas modalidades de gesto segundo sua funo , alis, parte integrante do discurso sobre a arte medieval. Garnier ops gesto simblico e gesto eficaz,30 assim como Jean-Claude Bonne distinguiu entre gesto-signo e gesto pragmtico.31

    Essas concepes dependem amplamente do pensameno cristo sobre o corpo: o homem sendo definido como associao de um corpo e de uma alma, o corpo pode exprimir os movimentos da alma (gesto-signo) ou agir sobre o mundo exterior dos corpos (gesto-ao). Segundo Schmitt, Falar dos gestos antes de tudo falar do corpo. Ora, o corpo cristo ambivalente (...) Se h gestos maus, igualmente necessrio que sejam encontrados gestos bons, em primeiro lugar aqueles cujo exemplo foi dado por Cristo.32 Esse corpo ambivalente est sem dvida na raiz da leitura dada por Schapiro de uma gestualidade romnica espiritualizada e tensa: a dualidade da figura se coaduna com diversas concepes do santo romnico, que parece instvel, rasgado, dividido, a cabea se deslocando em uma direo, o corpo em outra, os joelhos flexionados ainda em outra direo.33 Trabalhando um proble-ma fundamental da arte (movimento/imobilidade) em uma forma especfica (tenso plstica) que resulta de uma concepo particular (tenso antropolgi-ca), encontramo-nos diante de uma instncia tpica das formas simblicas,

    27 SCHMITT, Jean-Claude. La raison des gestes dans lOccident mdival. Paris: Gallimard, 1990, p. 14.28 PANOFSKY, Erwin. Perspective as symbolic form. Traduo. Nova York: Zone Books, [1927] 1991.29 SCHAPIRO, Meyer. Les mots et les images: smiotique du langage visuel. Traduo. Paris: Macula, [1996] 2000.30 GARNIER, Franois. Le langage de limage au Moyen ge. Signification et symbolique, op. cit., p. 44.31 BONNE, Jean-Claude. Lart roman de face et de profil: le tympan de Conques. Paris: Le Sycomore, 1984, p. 58.32 SCHMITT, Jean-Claude. La raison des gestes..., op. cit., p. 18.33 SCHAPIRO, Meyer. Romanesque architectural sculpture..., op. cit., p. 168.

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    isto , diante do exemplo de uma objetivao do subjetivo,34 de esquemas de pensamento coerentes com o mtodo (...) de representao.35

    Porm e esse todo o problema da abordagem das formas simbli-cas limitar a anlise da imagem (mesmo ou sobretudo da imagem crist medieval) nos quadros do discurso cristo no cria o risco de levar a um curto-circuito de inteligibilidade, em que o ideal se sobrepe ao material? Segundo a ideia de que a presa do historiador consiste unicamente em representaes, que so tambm interpretaes dadas pela cultura que as produziu,36 privilegiam-se as representaes dos gestos dos homens e das figuras antropomorfas,37 concedendo uma primazia heurstica prpria no-o de representao, como se por trs de toda imagem (fsica) houvesse antes de tudo uma (ou mais) ideia(s), ou uma rede de ideias (imagem mental) e como se a imagem concreta fosse to somente uma tela de projeo para aquilo que est atrs dela. Se pensamos que o gesto d frequentemente o sentido fundamental de uma imagem38 ou que um gesto um signo, cuja funo principal a de comunicar,39 certamente porque h, no movimen-to interpretativo, uma assuno perfeita do material e nada de mais mate-rial do que o movimento do corpo pelo ideal, como se o mundo da matria apenas compreendesse os meios ou mdias40 da imagem mental, os suportes, ou os anfitries, de quem as imagens precisam para aceder sua visibilida-de.41 Mas ser que esse construto interpretativo se sustenta na confrontao com a empiria das imagens?

    O problema do gesto nos leva, assim, a toda uma ontologia da imagem como representao e crtica dessa ontologia.

    *

    34 PANOFSKY, Erwin. Perspective as symbolic form..., op. cit., p. 66.35 SCHAPIRO, Meyer. Romanesque architectural sculpture... op. cit., p. 160.36 SCHMITT, Jean-Claude. La raison des gestes..., op. cit., p. 21.37 Idem, p. 22.38 GARNIER, Franois. Le langage de limage au Moyen ge. Tomo 2: Grammaire des gestes. Paris: Le

    Lopard dOrd, 1989, p. 99.39 FRANCO JNIOR, Hilrio. Les trois doigts dAdam. Annales: Histoire, Sciences Sociales, 62 (2), 2007,

    p. 413-440, aqui p. 416.40 Cf., para o problema da mdia: AUBERT, Eduardo Henrik. Mediao e medializao. O cartulrio

    do Colgio de Hubant e a teoria do lao social. Revista de Histria, 165, 2011, p. 151-191.41 BELTING, Hans. Pour une anthropologie des images. Paris: Gallimard, 2004, p. 39.

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    A nosso ver, se h pertinncia em recorrer problemtica do gesto em relao imagem, , sobretudo, porque a noo de gesto tem o potencial de nos desvencilhar desse discurso e de abrir o caminho para conceber a imagem de outro modo. Nesse sentido, a intuio fundamental de Warburg, para quem, como vimos, capturar as imagens da vida em movimento seria o problema mais difcil da arte, ler-se- no (apenas) como um problema de ordem figurativa (figurar o movimento em um meio esttico), mas (tambm e sobretudo) como um problema ontolgico (compreender, por meio das imagens, o movimento da vida, inclusive da vida da prpria imagem).42

    Se um paradigma do gesto se distingue de um paradigma da repre-sentao porque ele desloca a problemtica do universo dual, esttico e rgido da representao para o universo plural, dinmico e mvel do gesto. Para alm da espiral infinita do significado e do significante, encontra-se a concretude do gesto, criador de significados e de significantes, mas tambm de fluxos, de intensidades, de suspenses, de atmosferas, de eventos impal-pveis, embora bem encarnados.43

    A palavra gesto provm do particpio perfeito passado gestus, do ver-bo latino gero/gerere (carregar, levar). Ela denota um engajamento ativo, uma sustentao ou manuteno no tempo, uma relao que gerida uma gesto. No latim clssico, distinguiremos trs acepes complementares, que nos interessam de forma prxima para recolocar a questo da imagem e do gesto na direo da intuio de Warburg.

    A primeira que a principal designa a presena efetiva de uma coisa na outra, no sentido de uma coexistncia, ou copresena: assim que Lucr-cio fala da terra que carrega as sementes (semina (...) quod permixta gerit tellus, De rerum natura, 6). A segunda acepo seria aquela de interpretar um papel, no sentido de tornar presente algo que est ausente, de representao: o caso dos tribunos dissimulados evocados por Lvio que se portam como se no quisessem (ita se gerere ut negando, De urbe condita, 6, 39) manter os seus ofcios, embora eles queiram. Esse sentido marginal. A terceira, enfim, indica o fato de agir tal qual aquilo que se , seja por imposio ou por escolha, portanto no sentido de presena ou mesmo de exibio: para Ccero, se o poder real, a nobreza de nascimento, a riqueza etc. dependem da sorte (casu), ns esco-

    42 Cf., sobre essa noo, WUNENBURGER, Jean-Jacques. La vie des images. Strasbourg: Presses Universitaires de Strasbourg, 1995.

    43 DIDI-HUBERMAN, Georges. Gestes dair et de pierre: corps, parole, souffle, image. Paris: Les ditions de Minuit, 2005, p. 21.

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    lhemos qual comportamento ou conduta queremos adotar (ipsi autem gerere quam personam velimus, a nostra voluntate proficiscitur, De officiis, 1, 115).

    O verbo gero/gerere se declina assim em portar: (1) no sentido de conter (um outro que tambm est presente); (2) no sentido de se referir ou se re-portar (a um outro que est ausente); (3) no sentido de se portar (tal qual aquilo que se ). Essas precises se concebem de modo simples em um qua-drado semitico, com uma posio impossvel (no se pode conceber o mes-mo que no esteja presente), as flechas mais espessas designando as relaes entre as posies efetivas do esquema.

    Imagem 1: Quadrado semitico do verbo gero/gerere

    Assim, gestus se aplica antes de tudo ao trabalho de (su)porte da imagem trabalho susceptvel de defini-la. A imagem surge como uma mediadora que e que faz: eis como a representao se v pulverizada por alguma coisa que no a coisa, evidentemente, mas sua emanao, seu ar, seu odor, sua respirao: em suma, sua proximidade material e sua distncia ao mesmo tempo.44 Entre ela mesma (presena) e o outro que est ausente ao qual ela se reporta (representao), a imagem se move para conter o meio de que ela se apropria ao mesmo tempo em que ela apropriada por ele e que ele a contm (copresena). Ela quebra o circuito da opacidade reflexiva e da trans-parncia transitiva do signo-representao,45 pois a eletricidade no ape-

    44 DIDI-HUBERMAN, Georges. Gestes dair et de pierre..., op. cit., p. 77-78.45 MARIN, Louis. Opacit de la peinture: essais sur la reprsentation au Quattrocento. Paris: EHESS, [1989]

    2006, p. 13-15.

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    nas corrente eltrica deslocamento regrado e previsvel mas tambm e sobretudo campo eletromagntico potencial de movimento e de interao imprevisveis. O dispositivo simblico da imagem se v assim repensado como um meio em movimento,46 como gesto no mundo dos gestos.

    Relativamente s trs acepes que acabam de ser evocadas, podera-mos falar de imagem-gesto (a imagem como copresena no mundo dos gestos), imagem gestual (a imagem como portadora de uma gestualidade prpria a si mesma como imagem, e no prpria a seus outros, gestualidade que lhe d uma vida prpria e, assim, uma presena) e de imagem do gesto (a ima-gem como portadora de um gesto que no o seu, mas de outro e, portanto, como representao). A propsito de um gesto de flagelao em uma pintura italiana no Duecento, Schapiro havia notado a necessidade de distinguir o movimento representado da forma ou da maneira da representao.47 Ora, para evitar andar em crculos entre significado e significante no para negligenci-los, mas para inseri-los ou sublim-los (no sentido hegeliano) no mundo de que eles so copresentes que preciso abrir os gestos da imagem ao mundo dos gestos.

    Em conformidade com essa leitura de sua intuio, na introduo do Atlas da memria, Warburg enraiza a imagem na experincia orgistica: na regio da agitao orgistica de massa que devemos buscar a impresso que marca a memria das formas expressivas com a mais alta exaltao interior exprimvel por meio da linguagem gestual.48 O termo grego orgia (rito ou mistrio) vem de ergon (trabalho), que tambm produziu energeia (ao). En-raizada nas modalidades do fazer, no mundo dos gestos a orgia apenas a figura da multitude e da intensidade de um fazer a imagem apenas faz sublimar o fazer em uma forma de fazer, o gesto-imagem.

    46 DIDI-HUBERMAN, Georges. Gestes dair et de pierre..., op. cit., p. 77.47 SCHAPIRO, Meyer. Late Antique, early christian and mediaeval art..., op. cit., p. 364.48 WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Traduo. Madri: Akal, 2010, p. 3.

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    2. Estudo de caso: o troprio-prosrio-prosulrio de Saint-Cyr de Nevers

    poca de Hugo (bispo entre 1011-13 e 1065), a Catedral Saint-Cyr de Nevers conheceu um notvel incremento na produo de livros destinados liturgia. So testemunhos disso: um pontifical-sacramentrio (Paris, BnF, ms. latin 17333),49 elementos do que certamente constitua um livro ligado ao ofcio, com propsitos complexos, incluindo extratos do saltrio, uma tbula de antifonrio e um martirolgio (Paris: Bibliothque Mazarine, ms. 1708) e um troprio-prosrio-prosulrio (Paris, BnF, ms. latin 9449).50 Todos esses livros so amplamente decorados51 e contm notaes musicais notao dessa poca, escrita sem linhas, d-se o nome de notao neumtica.52 O li-vro que nos ocupar na anlise que se segue o manuscrito BnF latin 9449 (datado de 1059-1060).

    A partir do sculo IX, novas composies vieram se adicionar ao re-pertrio de base do canto gregoriano: trata-se, sobretudo, dos tropos (curtas adies musicais e/ou textuais s frases do gregoriano), as prosas (cantos autnomos, usualmente modelados no melisma do aleluia, e sempre canta-dos aps o aleluia na missa) e as prsulas (adio de um texto a um melisma preexistente).53 O objetivo do manuscrito BnF latin 9449 apresentar, no in-terior de cada festa, os tropos adicionados s diferentes peas do repertrio de base (e especialmente ao intrito, ao Kyrie, ao Gloria e ao Sanctus, excepcio-nalmente comunho), as prosas que se seguem ao aleluia e as prsulas dos melismas dos versos dos ofertrios (e ocasionalmente prsulas dos melismas de certos responsrios do ofcio). As prsulas so precedidas da escrita in-

    49 Esse manuscrito se encontra inteiramente digitalizado e disponvel no seguinte endereo eletrnico: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8426275w.r=17333.langPT. Acesso em: 29 de maio de 2013.

    50 Esse manuscrito se encontra inteiramente digitalizado e disponvel no seguinte endereo eletrnico: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8422992k.r=9449.langPT. Acesso em: 29 de maio de 2013.

    51 Uma anlise de conjunto se encontra em: CAHN, Walter. Three eleventh-century manuscripts from Nevers. In : CHASTEL, Andr et alii (ed.). tudes dart mdival offerts Louis Grodecki. Paris: Ophrys, 1981, p. 63-78.

    52 Para uma introduo recente, cf. PHILLIPS, Nancy. Notationen und Notationslehren von Boe-thius bis zum 12. Jahrhundert. In: ERTELT, Thomas & ZAMINER, Frieder (ed.). Die Lehre vom Einstimmigen liturgischen Gesang Geschichte der Musiktheorie, band 4. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2000, p. 293-623.

    53 Dentro de uma bibliografia profusa, uma boa orientao inicial dada por: HILEY, David. Western plainchant: a handbook. Oxford: Oxford University Press, 1997.

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    tegral dos versos de ofertrio, enquanto prosas e tropos convocam apenas o incipit das peas s quais so relacionados. Em razo de tal contedo, o livro em questo pode ser descrito como um troprio-prosrio-prosulrio. Aps a sequncia litrgica, que finda com os domingos aps Pentecostes, encontra-se um segundo prosrio, ou complemento, contendo apenas algumas peas importantes e com pouca notao esse elemento faz parte do conjunto original do manuscrito. Ao fim, o manuscrito contm ainda quatro sermes, o ltimo dos quais incompleto devido perda de flios, sobre o corpo e a alma, o primeiro dos quais atribudo a Agostinho tambm aqui no se trata de insero posterior, mas de outro elemento solidrio ao conjunto.

    Esse livro tem um formato oblongo significativo, com a altura sendo mais que o dobro da largura (270 x 135 mm): trata-se do formato de uma ti-pologia especfica, o cantatorium, o livro dos cantos do solista.54 A adoo des-se formato, a presena simultnea de peas novas (tropos, prosas e prsulas) e de versos do ofertrio, bem como o emprego de uma notao neumtica especialmente detalhada indicam que se trata se um livro destinado ao so-lista, provavelmente ao cantor da catedral de Nevers. Em funo da tendncia, desde o sculo X, de acumular a direo do scriptorium e da biblioteca com o ofcio de cantor em uma mesma pessoa,55 provvel que se trate de um livro preparado pelo prprio cantor, ou ao menos sob sua superviso direta a presena dos sermes apenas corrobora a impresso de um livro pessoal, como o so tambm, cada um sua maneira, os manuscritos BnF latin 17333 e Mazarine 1708 (sobre essa questo, ver, mais adiante, a seo 2.3).

    Mais particularmente, vemos desfilar, desde 1063, nomes de cantores que tambm assinavam e/ou escreviam documentos diplomticos. Entre 1063 e 1075, um Odo cantor / cancellarius, entre 1074 e 1100, um Ra(g)inerius cancellarius / cantor / magister / precentor e, entre 1101 e 1110, um Bernardus pre-centor.56 possvel, assim, que Odo (ou o seu antecessor, no nomeado na documentao diplomtica) seja a personagem responsvel pela confeco desse pequeno livro de msica.

    54 Cf., a respeito desse livro, HUGLO, Michel. The cantatorium from Charlemagne to the fourteenth century. In: JEFFERY, Peter. The study of medieval chant: paths and bridges, East and West. Londres: Boydell & Brewer, 2011, p. 97-101.

    55 FASSLER, Margot. The office of the cantor in early Western monastic rules and customaries: a preliminary investigation. Early Music History, 5, 1985, p. 29-51.

    56 DE LESPINASSE, Ren. Cartulaire de Saint-Cyr de Nevers. Nevers/Paris: J. Gremion/Champion, 1916, p. 111, 117, 122, 124, 134, 136, 161 e 192. Disponvel em: http://www.cbma-project.eu/%C3%A-9ditions.html. Acesso em: 10/10/2014.

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    A decorao est concentrada na primeira inicial de cada festa (um tro-po de intrito), as iniciais dos outros cantos de uma festa sendo mais sbrias, rubricadas, s vezes com um realce em vermelho ou, no comeo do livro, tambm em outras cores. As festas mais importantes do calendrio litrgico, ou aquelas dos santos mais venerados em Nevers, comeam com uma inicial mais ornada do que as menos importantes (cf. imagem 4). Ns nos interes-saremos aqui sem esquecer o contexto de conjunto pelas duas nicas imagens que contm figuraes humanas, antes do primeiro domingo de Advento (flio 1r, imagem 2) e antes do domingo de Pscoa (flio 34v, ima-gem 3). So tambm as duas nicas imagens que no desempenham o papel de iniciais. Elas nos permitem analisar a figurao dos gestos no interior de um paradigma da imagem como gesto no mundo dos gestos.

    *

    O manuscrito BnF latin 9449 abre-se, no flio 1r, com uma imagem de so Gregrio delimitada por uma bordura (o Gloria e o Kyrie tropados que a precedem so acrscimos ligeiramente posteriores). O papa est sentado de perfil, segurando um livro em sua mo esquerda e um grfio em sua mo direita. Um pssaro encontra-se ao p de sua orelha. Essa imagem advm de uma iconografia desenvolvida desde o segundo quartel do sculo IX e base-ada em uma biografia do papa, escrita no comeo do sculo.57 Ela conta a his-tria do monge ao qual Gregrio ditava por detrs de uma cortina e que ficou curioso ao notar as pausas regulares do papa durante o ditado. Quando ele afastou a cortina para olhar o que se passava, o monge viu que uma pomba estava ao p da orelha de Gregrio quando ele silenciava e que a pomba se virava quando o papa ditava. Apenas depois, por volta do ano mil, essa ico-nografia se desenvolveu em um sentido musical, o ditado sendo aquele do prprio canto gregoriano. A imagem esposou assim a lenda do papa msico, j conhecida nos meados do sculo IX, de quando data o primeiro manuscri-to em que encontramos o texto com que se abre o manuscrito BnF latin 9449: O pontfice Gregrio, digno por seus mritos e por seu nome (...) comps este pequeno livro da arte da msica da schola dos cantores para todo o ano.

    57 Sobre o desenvolvimento da iconografia de Gregrio, cf. LAFOND, Nelly. Recherche sur licono-graphie de saint Grgoire le Grand dans les manuscrits des IXe-XIIe sicles en Occident. Tese de doutorado, Universit de Bourgogne, Dijon, 2012.

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    IMAGEM 2

    Imagem 2: Paris, Bibliothque Nationale de France, ms. latin 9449, f. 1r (detalhe)

    Em um primeiro momento, reteremos aqui a postura do papa, com ele-mentos que sugerem seu estado de imobilidade tendencial. Tendencial por-que h certamente um gesto na imagem aquele de designar o livro com o indicador e com o dedo mdio, gesto que ao mesmo tempo designa a coisa e qualifica a autoridade da pessoa: se a designao mais frequentemente realizada apenas com o indicador, a adio do dedo mdio no muda geral-mente a significao do gesto, mas corresponde qualidade, superioridade daquele que o realiza.58 Ao mesmo tempo, a imobilidade sugerida no ape-

    58 GARNIER, Franois. Le langage de limage au Moyen ge. Signification et symbolique, op. cit., p. 165.

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    nas pela postura sentada, com os ps repousando horizontalmente sobre o limite interno da bordura59 figura de uma posio mas tambm pelos mo-dos de figurao no-icnica, como na vestimenta de Gregrio, que termina em um polgono reto, com uma linha horizontal na qual se deposita a extre-midade das pregas verticais paralelas. Uma forma tectnica por excelncia. Esses elementos no so, contudo, contraditrios: de um lado, precisamente o contraste entre a imobilidade generalizada e o gesto pontual que permite que este se despregue do conjunto como polo central da imagem; de outro, o prprio gesto um gesto que conduz a uma pose a pose de apresentao.

    Essa imagem se distingue nitidamente daquela do flio 34v, com duas personagens que tocam instrumentos de msica (uma viela e um corno ou flauta). Essas personagens se opem a Gregrio no apenas por seu anoni-mato e, assim pela ausncia de autoridade intrnseca que era reforada na primeira imagem pelo gesto qualificado de Gregrio e que minorada aqui pelas curtas vestes dos instrumentistas. Eles se opem a Gregrio tambm por seu movimento generalizado, de modo que se torna desprovido de sentido falar de uma imagem de um gesto ou mesmo de um conjunto de gestos. Essas figuras no esto apenas de p: elas tm os ps levantados, a cabea deslo-cada para o alto (figura da direita) ou para baixo (figura da esquerda), e suas vestimentas no terminam em linha reta para reforar uma bordura, que neste caso no existe: as curtas tnicas terminam em curvas, e as pregas, no paralelas, se abrem para baixo, produzindo a forma final de pequenos tri-ngulos dispostos ao longo de um arco. Formas eminentemente atectnicas. Certamente, a oposio tambm interna entre a figura da esquerda, mais movimentada (virada para baixo, deslocada para a esquerda, os ps muito le-vantados, com um instrumento de cordas dissociado do corpo) e a figura da direita, menos movimentada (virada para cima, vertical, com os ps menos levantados, com um instrumento de sopro conectado ao corpo). Porm, entre uma espcie de dana multipolar esquerda e uma elevao mais dirigida direita, estamos diante de uma figura do movimento: a arrancada do fazer.

    59 Para a conceituao da noo de bordura, prefervel quela de moldura, fortemente anacr-nica neste contexto, cf. BONNE, Jean-Claude. Les ornements de lhistoire ( propos de livoire carolingien de saint Rmi). Annales: Histoire, Sciences Sociales, 51, 1996, p. 37-70.

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    IMAGEM 3

    Imagem 3: Paris, Bibliothque Nationale de France, ms. latin 9449, f. 34v (detalhe)

    2.1 A imagem do gesto: modelos iconogrficos e modelos antropolgicos

    A oposio entre a imobilidade da figura de Gregrio (que comporta a oposio entre imobilidade geral e gesto-pose) e o movimento generalizado dos instrumentistas (que contm a oposio interna entre uma personagem mais expansiva e outra mais concentrada) remete a modelos figurativos fun-

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    damentais para as representaes romnicas, originrios especialmente da ilustrao do saltrio.60

    Enquanto a tendncia carolngia era a de figurar Davi danando rode-ado de instrumentistas e de jograis, desde o fim do sculo IX, preferiu-se figurar Davi sentado rodeado de seus msicos de p. assim que o Psalte-rium Aureum de So Gall (manuscrito Sankt-Gallen, Stiftsbibliothek, 22, p. 2)61 retrabalhou seu modelo direto na Bblia de Vivien (ms. BnF latin 1152, f. 1v)62 de modo a bem distinguir entre a autoridade sentada de Davi e o ano-nimato movimentado dos msicos. Distintos livros de msica para os quais no havia cnone figurativo recorreram a essa iconografia e a organizaram a seu modo. Um tonrio livro de classificao do repertrio gregoriano segundo os oito modos do ochtoechos aquitano do fim do sculo XI (ms. BnF latin 7211)63 figura todos os modos sentados, enquanto outro tonrio, tambm aquitano, um pouco anterior ao ano mil (ms. BnF latin 1118)64 fi-gura o primeiro modo sentado e os outros em movimento, com uma figura supra-numerria em situao de dana.65 Um comentrio das Npcias de Filo-logia e Mercrio, provavelmente de Fleury, do sculo X (ms. BnF latin 7900A),66 figurou a gramtica e a retrica sentadas e enquadradas por um arco em uma estrutura arquitetural, enquanto a astrologia e a msica contm perso-nagens de p no ltimo caso, a msica figurada por uma mulher inscrita

    60 Sobre a ilustrao do saltrio, cf. SEEBASS, Tilman. Musikdarstellun und Psalterillustration im frheren Mittelalter: Studien ausgehend von einer Ikonologie der Handschrift Paris Bibliothque Nationale fonds latin 1118. Bern: Francke Verlag, 1973.

    61 Esse manuscrito est integralmente digitalizado, e a imagem est disponvel no endereo eletrni-co seguinte: http://www.e-codices.unifr.ch/en/csg/0022/2/small. Acesso em: 29 de maio de 2013.

    62 Esse manuscrito est integralmente digitalizado: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bt-v1b55001423q.r=1152.langPT. Acesso em: 29 de maio de 2013.

    63 Esse manuscrito est integralmente digitalizado: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8432471z.r=7211.langPT. Acesso em: 29 de maio de 2013.

    64 Algumas das imagens desse manuscrito esto digitalizadas e so acessveis no endereo ele-trnico seguinte: http://mandragore.bnf.fr/jsp/switch.jsp?typeFormulaire=RMC&division=Mi-x&filtreImage=0&cote=Latin+7900+A&folio=&r_at=1&r_leg=1&auteurTitre=&legende=&ti-treUsage=&idDesc=&desc=&nomPays=&idDesc2=&desc2=&origine=&idDesc3=&desc3=&-date=&dateAvJC=0&r_edesc=1&r_art=1&e_desc=&artiste=&x=20&y=2&resultatsParPage=20. Acesso em: 29 de maio de 2013.

    65 AUBERT, Eduardo Henrik & BONNE, Jean-Claude. Quand voir fait chanter. Images et neumes dans le tonaire du ms. BNF latin 1118: entre performance et performativit. In: DIRKENS, Alain; BARTHOLEYNS, Gil; GOLSENNE, Thomas (ed.). La performance des images. Bruxelas: Universit Libre de Bruxelles, 2010, p. 225-242.

    66 Esse manuscrito est integralmente digitalizado: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8432314k.r=1118.langPT.

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    em um medalho em que se l musica e associada a dois instrumentistas com duas tnicas curtas esquerda e direita de um vegetal esse livro pode ter partilhado um modelo com o manuscrito BnF latin 9449, ou mesmo fornecido um modelo (direto ou no) a ele.

    Tendo por ncleo forte a iconografia do saltrio que, no entanto, jamais foi exclusiva e tambm incorporou, por sua vez, modelos precedentes como o da figurao dos evangelistas os livros de msica foram muito produti-vos em matria de apropriao e reorganizao de modelos do movimento e da imobilidade, um trabalho que pode ser concebido como uma forma de Aufhebung (assuno, sublimao), no sentido hegeliano, um processo pelo qual o esprito, elevando-se acima da natureza na qual ele se encontrava submerso, suprimindo-a e retendo-a ao mesmo tempo, sublimando-a em si mesmo, realiza-se como liberdade interior.67

    Se a sublimao dos modelos em formas prprias permite conceber de outro modo a representao como um processo de produo de concordncia generalizada, um processo de produo de estrutura significativa, as iniciais ornadas (cf. imagem 4) fornecem, por sua recorrncia e por sua disseminao ao longo do manuscrito, um observatrio privilegiado que nos permitir retomar, na sequncia, as imagens dos flios 1r e 34v.68 Qual esse processo? Dois modelos, sobretudo, se entreveem para as iniciais empregadas para a primeira palavra das festas mais importantes. De um lado, trata-se de um motivo ornamental originariamente otoniano, mas, sem dvida, filtrado pela produo contempornea de Cluny:69 aquele das letras cujo corpo enlaado por um ou mais anis metlicos, com uma banda central mais larga decorada por extremidades que funcionam como bordura do prprio motivo (ver os flios 7v, 14r, 73r, 76v). De outro lado, trata-se de um motivo ornamental caro-lngio e mais precisamente franco-saxnico:70 as letras cujo corpo formado por ns de entrelaamentos, especialmente nas extremidades das hastes com um cruzamento em forma de X (ver os flios 12v, 14r, 67v, 70r, 76v, 88v).

    67 DERRIDA, Jacques. Le puits et la pyramide: introduction la smiologie de Hegel. In: DERRIDA, Jacques. Marges de la philosophie. Paris: Les ditions de Minuit, 1972, p. 79-127, aqui p. 88.

    68 A bibliografia sobre as iniciais ornadas vastssima. A nosso ver, um dos textos mais sugestivos uma breve interveno de BONNE, Jean-Claude. Quelques remarques sur la lettre peinte dans la miniature romane. In: FERRIER, Jean-Louis Ferrier. La sociologie de lart et sa vocation interdisciplinaire: luvre et linfluence de Pierre Francastel. Paris: Denol/Gonthier, 1976.

    69 A respeito dessas letras, cf. SCHAPIRO, Meyer. The Parma Ildefonsus. A romanesque illuminated manuscript from Cluny and related works. Princeton: Princeton University Press, 1964.

    70 KOEHLER, Wilhelm & MTHERICH, Florentine..Die karolingischen Miniaturen, vol. VII, Die Frankoschsische Schule. Wiesbaden: Reichert, 2009.

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    IMAGEM 4

    Imagem 4: as principais letras ornamentadas em Paris, Bibliothque Nationale de France, ms. latin 9449

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    Ora, esses motivos so retomados e recombinados em um trabalho que os atravessa de elementos zoomorfos e vegetais onipresentes. Algumas des-sas composies inspiram-se certamente nas combinaes encontradas em manuscritos aquitanos (ver, por exemplo, o manuscrito BnF latin 1121,71 tam-bm um troprio, originrio de Saint-Martial de Limoges e datado dos anos 1020: f. 21v para o Q ou 24v e 36r para o F), mas se trata apenas de mais outro campo antittico (no sentido de sua alteridade) ao qual se pode recor-rer para sublim-lo em uma nova forma.

    Os motivos vegetais apropriam-se inteiramente da letra em uma forma de Q cruciforme, com quatro palmetas voltadas para o interior da letra, a partir dos quatro cantos do oval (10r, 22r), e acabam por dominar a forma da letra, especialmente na festa da Pscoa, com formas verticais muito marca-das (34r, 35r). No , assim, surpreendente encontrar o vegetal no centro da imagem figurativa do flio 34v, entre os dois instrumentistas. Alguns ma-nuscritos desenvolvem tambm jogos compositivos entre a proliferao do vegetal nas iniciais e sua presena em cenas figurativas (ver ms. Clermont-Ferrand, Bibliothque Municipale, 145, flios 6r e 77r).72

    Depois da Pscoa, os motivos animais ganham fora, s vezes in-dependentemente dos motivos vegetais, mais discretos ou inexisten-tes. Os dois so combinados no segundo prosrio. A importncia do mo-tivo animal culmina na ltima inicial do livro, no flio 94r, em que o corpo da letra inteiramente um corpo animal (com grandes garras, um ramo na boca e cauda enrolada em uma espiral de trs anis e ter-minando em trs pontas), desempenhando a funo de letra F no co-meo de um sermo (o segundo de quatro) sobre o corpo e a alma.

    J observamos que os quatro sermes sobre o corpo e a alma fazem parte integrante do projeto do livro. Mais do que isso, a imagem romnica do gesto, vimos, foi interpretada como advinda de uma problemtica crist do corpo. Sem reificar um processo dinmico, possvel ver o processo de assuno ou sublimao iconogrfica funcionando no sentido de produzir essa estrutura de significao?

    71 Esse manuscrito est integralmente digitalizado: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8432272p.r=1121.langPT. Acesso em: 29 de maio de 2013.

    72 Diversas das imagens desse manuscrito esto digitalizadas no seguinte endereo eletrnico: http://www.enluminures.culture.fr/documentation/enlumine/fr/rechguidee_00.htm. Acesso em: 29 de maio de 2013.

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    O primeiro sermo termina com um discurso da alma dirigido ao cor-po, dizendo-lhe que ela veio do Cu para fazer o corpo ascender junto com ela, o que seria melhor do que o corpo arrast-la consigo para o Inferno. Isso quer dizer que o corpo no concebido como intrinsecamente bom ou mau. Agir bem e agir mal so modos de proceder designados, em um ato niver-nense de 1063, contemporneo do manuscrito BnF latin 9449 pelas noes de espiritualmente (spiritaliter) e carnalmente (carnaliter),73 e o sermo comea justamente por dizer que a alma apenas peca pela carne (e no pelo corpo).74

    Com efeito, esse discurso pode, primeiramente, insuflar vida a toda a problemtica dos usos do corpo, e especialmente do gesto:

    enquanto ns vivemos e estamos em um corpo, ns realizamos (operemus) com as mos aquilo que bom (...) de maneira que, pelas boas realizaes (operationibus) que ns fa-zemos (agimus), ns mereamos ascender [ao Cu], onde ns nos vestiremos no mais com a fragilidade do corpo, mas com a veste da incorruptibilidade.75

    A iconografia nivernese contempornea ao manuscrito latin 9449 exem-plificou-o na inicial do Dia de Todos-os-Santos, no manuscrito BnF latin 17333, p. 95 (imagem 5): quatro crculos encadeados um aos outros que apresen-tam, em seus interiores, quatro personagens que se utilizam ostensivamente das mos, as trs superiores nimbadas e voltadas de perfil para a direita, e a inferior sem nimbo e voltada para a cima e para a esquerda. No contexto de um livro de bnos, o gesto da mo direita da personagem do crculo superior pode ser interpretado como um gesto de bno, a mo esquerda aberta constituindo-se em um gesto de designao (em direo ao texto da bno no livro). Este ltimo gesto retomado pelas duas personagens do centro, a mo direita servindo seja para segurar uma cruz (personagem da esquerda), seja pendendo de forma aparentemente neutra (personagem da direita). A personagem de baixo segura no uma cruz, mas flores (murchas?) com ambas as mos, de modo que, a julgar pela economia global da imagem (ausncia de nimbo, postura instvel e invertida), a personagem pode ser interpretada de modo negativo. A imagem pode, assim, servir-se de elemen-tos do discurso cristo para organizar os gestos em estrutura significativa.

    73 Paris, BnF, coll. Bourgogne, t. 78, n 114. Ed. Charte Artem/CMJS n 1688 [online] http://www.cn-telma.fr/originaux/charte1688/. Acesso em: 28 de maio de 2013.

    74 Sobre esse problema, cf. a sntese de BASCHET, Jrme. me et corps dans lOccident mdival: une dualit dynamique, entre pluralit et dualisme. Archives des Sciences Sociales des Religions, 112, 2000, p. 5-30.

    75 Paris, BnF latin 9449, f. 93v.

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    IMAGEM 5

    Imagem 5: Paris, Bibliothque Nationale de France, ms. latin 17333, p. 95 (detalhe)

    Realizando com as mos aquilo que bom, continua o sermo, subir-se- ao Cu, onde a legio de anjos e o coro de incontveis santos e de todos os profetas, canta sem pausar, com os santos anjos, o hino do reino celeste.76 O discurso sobre o corpo e a alma pode, assim, dar sentido transcendente ao

    76 Idem, 94r.

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    canto, associando o canto celeste ao canto da Igreja. O sacramentrio do ma-nuscrito BnF latino 17333 precisa, a respeito dos ritos funerrios, que can-tam-se outros salmos ou realizam-se litanias at que a alma seja liberada da corrupo do corpo terrestre.77 Tropos originrios de Nevers78 registrados em nosso manuscrito associam, por exemplo, a Encarnao (Ele assumiu carne humana para a nossa salvao) a uma incitao ao canto e ao aplauso (e salmodiem e cantem aplaudindo),79 ou ento associam a celebrao na Terra quela no Cu (regozijam-se a Terra e os Cus e juntos louvam Deus nos Cus).80 Uma prsula de ofertrio tambm composta em Nevers fala da voz sublimada na jubilao que se escuta no Cu.81 A prosa que precede imediatamente a imagem do flio 34v atestada primeiramente nesta fonte e se origina, assim, provavelmente em Nevers: Este um dia claro, o mais claro dos dias claros; este um dia santo, o mais santo dos dias santos; com um nobre diadema, resplandece o mais nobre dos dias; eis que resplandece o mais festivo dos dias do ano; pois Deus onipotente, tendo vencido a morte, ressuscitando libertou mil cativos das criptas do Inferno.82

    O movimento dos instrumentistas poderia, assim, ser sublimado nesse discurso para o qual o corpo participa ele canta, aplaude em uma ao positiva, espiritual, que liga a Terra e o Cu e ajuda a alma a subir para se juntar ao coro dos santos e dos anjos. A imobilidade do corpo de Gregrio poderia tambm ser sublimada nesse discurso, para o qual o corpo participa como meio passivo de um movimento espiritual, um corpo que veicula um ditado do mundo do esprito. O corpo conduzindo salvao, o corpo espi-ritualmente, e no carnalmente.

    77 Paris, BnF latin 17333, p. 306.78 A distino do repertrio especificamente nivernense e presumivelmente originrio a

    facultada pelo trabalho de edio realizado pelo projeto Corpus Troporum em doze volumes, dos quais dez j foram publicados. A descrio do projeto e as referncias bibliogrficas a todos os volumes podem ser acessadas no seguinte enfereo eletrnico: http://www.fraitaklass.su.se/english/research/publications/concordance-for-the-corpus-troporum-1.133277. Acesso em: 29 de maio de 2013.

    79 Paris, BnF latin 9449, 7v.80 Idem, 12v.81 Idem, 44r.82 Idem, 34v.

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    2.2 A imagem gestual: o linear e o pictural

    O processo de harmonizao entre a imagem (do gesto) e o discurso cris-to sobre o corpo , assim, uma Aufhebung em que se seguem os movimentos dialticos de assuno (Festnahme), eliminao (Abschaffung) e elevao ou sublimao (Hebung). Assuno sublimada de outro, a representao no o crime perfeito: se ela elimina o outro (a materialidade sublimada em estru-tura de significao), o cadver permanece exposto. Ou mesmo exibido. Em nosso manuscrito, produz-se mesmo uma tenso entre representao e pre-sena, que pode ser identificada ao icnico e ao anicnico, e especialmente tenso entre desenho e pintura, ou ainda entre o no colorido e o colorido.

    O retngulo ocupado pela imagem do flio 1r delimitado por uma zona de projeo com dupla bordura ou por uma sobreposio de retn-gulos, cujas partes expostas funcionam como borduras para o retngulo central a exterior e mais estreita simplesmente contornada com tinta, e a interna e mais espessa constituindo-se como uma slida faixa vermelha. As linhas desenhadas com tinta permanecem visveis e dissociadas de pintura nos pontos centrais da figurao: a cabea da pomba, a cabea de Gregrio, suas mos que designam o livro e os contornos do prprio livro. Esses so os elementos centrais da narrativa da imagem, a pomba cantando ao p da orelha de Gregrio, que escreve e/ou apresenta o resultado do ditado que ele escuta. A essas linhas figurativas se opem as superfcies diretamente pintadas, que so de trs tipos.

    Em primeiro lugar, h as superfcies de cor slida, aqui sempre verme-lhas, seja a bordura interna da imagem ou o interior do livro designado por Gregrio. Esse tratamento da cor desempenha um forte papel de indicao, sublinhando o ato de fazer ver. Em segundo lugar, h as superfcies em que a cor slida sobreposta por crculos de outra cor: a superfcie retangular in-terna de projeo e a parte central da vestimenta/corpo de Gregrio (aquela que no ultrapassa essa superfcie). Essas duas zonas da imagem formam uma espcie de quiasma imperfeito, com fundo purpreo/crculos verme-lhos se opondo a fundo vermelho/crculos verdes. Modalidade tambm de oposio interna (porque a estrutura do tronco recebe um realce vermelho mais saturado, enquanto a estrutura da perna recebe um realce verde). Em terceiro e ltimo lugar, h as junes entre linhas e cores, no apenas para o contorno externo das figuras, mas no interior das zonas coloridas (todas ver-des): a parte inferior da tnica, a faixa central que sugere o assento, o corpo da pomba, os cabelos de Gregrio. Note-se que essas zonas atravessam com uma cor no-icnica elementos que so, em si mesmos, representativos, mas

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    em que a repetio dos motivos linhas onduladas, curvas, linhas retas para-lelas, linhas cruzadas torna a representao mais sugestiva do que icnica.

    A letra G que est direita da imagem do flio 1r uma figura de opo-sio imagem de Gregrio: sua estrutura curva projetada diretamente no pergaminho contrasta com a estrutura retangular com fundo de projeo da imagem de Gregrio. Essa distino formal permite ler mais uma vez a opo-sio entre imobilidade tendencial de Gregrio e o movimento generalizado, neste caso, da letra. Esta termina em duas cabeas de animais, curvadas para o interior, com a boca aberta da qual saem ramos que atravessam o corpo da letra, sugerindo um movimento de expanso e enrolamento nas extre-midades. Ao mesmo tempo, h assuno da imagem figurativa na letra, no apenas porque as extremidades so figurativas (ou parcialmente figurativas, as cabeas sendo pintadas em verde como as zonas de fraca figuratividade na imagem), mas porque dois motivos da imagem so retomados pela letra: as zonas de fundo purpreo e crculos vermelhos e as faixas semeadas de uma linha de pontos, como a faixa diagonal que divide a parte de baixo da tnica de Gregrio. Isto , a imagem se apropria de qualidades da imagem (em que elas permanecem como uma espcie de reserva).

    Essa apropriao comunica-se, na sequncia, ao desenrolar do livro, com as iniciais at a Pscoa (cf. imagem 3) se projetando contra uma super-fcie de projeo quadrada ou retangular, com uma profuso vegetal, ramos saindo da boca dos animais e s vezes atravessando o corpo da letra (14r). Es-sas letras, por sua vez, produzem uma reserva da reserva, nas iniciais menos decoradas, com realces de cor, at chegar s onipresentes letras simplesmente realadas de vermelho no comeo dos versos. A qualidade do movimento se distila assim ao conjunto do livro. Porm, sob a condio de levar consigo os elementos potencialmente irredutveis da materialidade. Talvez muito logo os utilizadores do livro tenham tomado conscincia do poder de tomada de possesso da materialidade que pode se impor a qualquer sublimao repre-sentativa. O verde de cobre abundantemente utilizado no manuscrito reagiu frequentemente com o pergaminho produzindo buracos e destruindo im-portantes superfcies (nos flios 7v, 10r, 12v, 18r, 65v, 67v, 70r, 76v, 85r et 94r).

    Assim, se h sublimao significativa nessa abundncia de movimento, no se trata de uma sublimao simples: trata-se de um trabalho que deve tratar objetos que se afirmam corporalmente tais quais eles so. Notamos, na seo precedente, os modelos impostos pelas letras decoradas, retrabalhados em uma (potencial) estrutura de conjunto. Ora, em Nevers, essas letras no so simplesmente submetidas a um discurso, como se fossem inteiramente maleveis e flexveis, os sujeitos passivos da ao do sentido. Elas constituem

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    um corpo prprio que ressurge em diversas circunstncias elas no se dobram de todas as maneiras para serem os veculos transparentes de um discurso. Observamos, assim, que o manuscrito Mazarine 1708 contm, em contextos muito diversos, iniciais muito similares quelas do manuscrito la-tin 9449, aquela do f. 75r do manuscrito Mazarine 1708 (no comeo da tbua de antifonrio) sendo uma verso do mesmo A que se v no flio 88v do manuscrito latin 9449. A letra afirma-se assim como elemento de um repert-rio de letras (antes de poder ser um depositrio de sentido).

    O problema pode ser aprofundado a partir de um documento singular. Um ato de 1063 ao qual j nos referimos trata da restaurao da abadia Sain-t-tienne de Nevers pelo bispo Hugo.83 Ele trata, em um primeiro momento, da fundao originria, atribuda a Columbano, um templo espiritual des-crito em uma profuso de referncias materiais: cada santo comemorado ti-nha seu altar singular e de mrmore, a igreja foi decorada com honestida-de dos muros e com uma composio de pirmides de mrmore e o tesouro continha uma grande quantidade de ouro e de prata e de pedras preciosas e de diversos ornamentos. De tal modo que a obra de restaurao tam-bm aquela da restaurao do corpo da igreja problema importante que situa essa carta no seio de um discurso eclesiolgico de afirmao da ma-terialidade do lugar de culto.84 Evidentemente, no se trata de materialidade inerte, mas de um processo de assuno da materialidade, o templo sendo espiritual. Mas a referncia (bastante retrabalhada) a So Paulo aquele que serve o altar deve viver do altar (1 Cor 9, 13) , disfarada como citao da autntica Escritura, favorece uma leitura (teolgica) da assuno do ma-terial pelo espiritual que desloca o peso para o momento antittico, e assim para a (percepo de uma) alteridade: Aquele que serve o altar participa com ele, mas ningum participa daquilo que nada tem; esse altar, em razo de nossos pecados, teve seu obsquio espiritual aniquilado e foi privado do benefcio terrestre.85 A materialidade do altar (ter algo como um corpo de mrmore) necessria para realizar um servio (espiritual) para a pessoa.86 Fora da anttese, no h salvao.

    83 Paris, BnF, coll. Bourgogne, t. 78, n 114..., op. cit.84 Problema tratado exemplarmente em IOGNA-PRAT, Dominique. La Maison Dieu: une histoire

    monumentale de lglise au Moyen ge (v. 800-v.1200). Paris: Seuil, 2006.85 Idem.86 Esse texto fornece um importante precedente para o discurso que se articula oitenta anos

    depois, em Suger de Saint-Denis, a respeito do funcionamento da materialidade do edifcio de culto e a profuso de seus ornamenta em uma economia salvfica. Cf., sobre Suger, BONNE,

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    Os traos da materialidade da imagem exibidos no manuscrito BnF latin 9449 e postos em tenso com a representao designam essa presena da-quilo que e que apenas pode ser sublimado por ser e por se prestar a um trabalho de assuno e sublimao.

    Na imagem do flio 34v, a oposio entre o linear e o pictural se afirma novamente. A linha designa, aqui tambm, os pontos fortes da figurao rostos, mos, instrumentos ao passo que a cor se apropria das zonas mais afastadas do centro da ao. Notar-se-, evidentemente, aqui tambm, a oposio entre a figura da esquerda com bandas multicoloridas verticais atravessando o conjunto da figura, e a figura da direita, monocrmica, exceo do brao que sustenta a ao especfica de tocar o instrumento. O emprego da cor notavelmente anicnico, as faixas coloridas criando uma tenso (conteno/extravasameto), muito mais que uma harmonia, com as pregas das vestimentas da figura da esquerda; o pescoo verde direita e os joelhos realados em verde so casos exemplares aplicados s articulaes do corpo. Notar-se-o as zonas de cor inteiramente independentes da figura, como entre o brao direito e o corpo da figura da esquerda (zona azul) ou entre as duas mos, o corpo e o instrumento da figura da direita (zona ver-de). Finalmente, notar-se- a transferncia de um motivo da imagem do flio 1r: os crculos de cor, desta vez aplicados no a uma superfcie de projeo, mas ao ponto especfico de produo do som (crculos de cor azul ao longo do arco e crculo de cor verde na ponta do corno). Pela sua partilha desigual entre as duas personagens, pela sua qualidade tensiva contra a linha (a fi-gurao) e por sua presena por si mesma no ponto de movimento corporal/sonoro, a cor se constitui em poderosa forma/matria do movimento.

    No ano de 1056, proximidade da confeco do manuscrito BnF latin 9449, os Annales Nivernenses tm apenas uma entrada. O nico evento regis-trado nesse ano, no dia 3 de abril, meia noite, que a lua virou [vermelho] sangue.87 Esse senso de espetculo da natureza bem atestado nos Annales v na cor, manifestada em sua mudana, uma maneira de visibilidade do movimento (se vertit in, de verto/vertere, a forma verbal empregada nos An-nales). A distante lua um caso exemplar de uma exibio de algo prprio (uma presena) cuja sublimao como signo (ou representao) s pode ser tra-balho e tenso movimento de assuno e sublimao.

    Jean-Claude. Pense de lart et pense thologique dans les crits de Suger. In: DESCAMPS, Christian (ed.). Artistes et philosophes: ducateurs? Paris: Centre Georges Pompidou, 1994, p. 13-50.

    87 Annales Nivernenses. In: Monumenta Germaniae Historiae, Scriptores, XIII, p. 90.

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    2.3 A imagem gesto: reflexo e refrao

    A exibio do cadver (presena) na sublimao espiritual de seu corpo em sentido (representao) conduz necessariamente intricada rede daqueles que cooperaram na morte ou relutaram contra ela (copresena). Ora, a compre-enso da imagem como um gesto em copresena no mundo dos gestos no apenas determinada pela apropriao externa da imagem por outro; ela est inscrita internamente na imagem como afinidade potencial, ou mesmo ne-cessria, como uma marca de apropriao que a torna manifestamente (sub-sequentemente, reiteradamente) aproprivel. Nas imagens do manuscrito BnF latin 9449, esse movimento se realiza de duas maneiras: sincronicamen-te, pelos jogos especulares que inscrevem o mundo externo imagem como um deslocamento necessrio; diacronicamente, por um movimento narrativo que conduz ao limite de um gesto externo imagem a ser realizado. Se nos convencemos, com Vico, que compreendemos melhor aquilo que fazemos,88 fazendo fazer que a imagem se deixa aprender como fazer, ou como gesto.

    No que tange primeira forma de agenciamento, o flio 1r prope um jogo entre a imagem do livro exibido por Gregrio e o prprio livro em que a imagem se encontra, ambos partilhando o formato marcadamente oblon-go. inteiramente compreensvel, assim, que o pronome hunc que aparece no tropo solidrio imagem esse (hunc) pequeno livro (libellum) de m-sica possa se aplicar tanto ao livro na imagem quanto ao troprio-pro-srio-prosulrio de Nevers. Como o livro na imagem no independente, mas escrito, sustentado e exibido por uma pessoa, o desdobramento do jogo especular interno ao livro remete ao jogo especular entre a personagem da imagem (Gregrio) e a pessoa que segura em suas mos o troprio-pros-rio-prosulrio de Nevers. Esse jogo sustentado e mesmo favorecido pelo estatuto complexo das borduras: a imagem est inscrita em uma superfcie de projeo com dupla bordura, mas tambm transgressiva das diferentes zonas desse retngulo (ele mesmo tambm exibido segundo o modelo do li-vro). Reiterando a transgresso da imagem para alm de um espao preten-samente autnomo de represetao, o livro se inscreve, assim, nos quadros do mundo das pessoas que o manipulam.

    Trata-se de manipulao que pode, naturalmente, realizar-se em todo um espectro de gestos e que uma parte fundamental da vida da catedral nos

    88 Cf. BERLIN, Isaiah. Vico e Herder. Braslia: UnB, [1976] 1982, p. 8.

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    meados do sculo XI, em que a escrita visivelmente acedera a uma posio central. No polo mais pblico, uma rubrica no pontifical BnF latin 17333 indica que os exorcistas aceitam da mo do bispo o pequeno livro (libellum) no qual os exorcismos esto escritos.89 No polo mais pessoal, um membro (annimo) da comunidade canonical de Nevers decidiu se apropriar por escrito do salt-rio: se o saltrio, diz ele, muito adaptado para a celebrao dos ofcios divi-nos, ele no convm para aquele que quer suplicar por seus pecados. Ento, ele decidiu extrair a parte pertinente a esse propsito e se preocupou em preparar um pequeno livro (libellum) com esses extratos, e incita a Igreja do Cristo a cantar no mundo inteiro.90 Caso to excepcional quanto revelador.

    Testemunha suplementar da centralidade dos livros litrgicos nas pre-ocupaes e nos interesses dos cnegos nivernenses obtido pela anlise da notao neumtica, que conheceu transformaes relevantes exatamente neste momento.91 Contamos com um livro contendo o trabalho de trs no-tadores de Nevers nos fins do sculo IX (Londres, ms. British Library, Harley 3091, ff. 5r, 5v, 6r e 16v).92 O estado da notao neumtica aqui fluido, com grande variao entre as diferentes mos de escribas isto , sem uma norma estrita transversal aos diferentes praticantes da escrita musical e mesmo com ampla flexibilidade formal no interior do trabalho de cada escriba. Algo dessa fluidez ainda emerge momentaneamente em alguns pontos do manus-crito Mazarine 1708 (seguramente um pouco anterior ao ms. BnF latin 9449), especialmente quando o escriba trabalha com pouco espao entre as linhas de texto ou em contextos que demandam um grau menor de formalidade. Contra esse panorama, o ms. BnF latin 9449 (mas tambm o BnF latin 17333 e um flio preservado no ms. Londres, British Library, Harley 2991, f. 3) oferece o panorama de um sistema complexo, estabilizado, estruturado fruto evi-

    89 Paris, BnF latin 17333, p. 51.90 Paris, Mazarine 1708, f. 67v.91 O nico estudo a respeito da notao nesse grupo de manuscritos CORBIN, Solange. La

    notation musicale neumatique des quatre provinces lyonnaises: Lyon, Rouen, Tours et Sens. Tese de douto-rado, Universit de Paris, Paris, 1957, 3 v., aqui v. 1, p. 402-409. Estamos preparando um estudo detalhado a respeito da notao neumtica em Nevers, a ser publicado em breve. Por ora, remetemos o leitor a algumas consideraes tecidas no mbito de outro estudo: AUBERT, Eduardo Henrik. Nova cluniacensia: les feuillets de garde du manuscrit Paris BnF nal 1236 et la cration de la liturgie clunisienne. Bulletin du Centre dtudes Mdivales dAuxerre/Bucema (online), 16, 2012. Artigo disponvel no seguinte endereo eletrnico: http://cem.revues.org/12502. Acesso em: 29 de maio de 2013.

    92 Esse manuscrito est integralmente digitalizado: http://www.bl.uk/manuscripts/FullDisplay.aspx?Source=BrowseTitles&letter=P&ref=Harley_MS_3091. Acesso em: 29 de maio de 2013.

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    dente do esforo de todo um conjunto de escribas para aperfeioar as mdias comunicativas sua disposio e assim incrementar o potencial comunicativo dos seus livros. Manipulao de livros e dos sistemas de signos neles depo-sitados para promover uma mais profunda abertura para o mundo da co-municao interpessoal, mas seguramente tambm para melhor control-lo.

    A imagem do flio 34v no tem nem bordura nem fundo de projeo e porque ela opera de um modo totalmente diverso daquela do flio 1r, no como uma forma de comeo, mas como parte da configurao interna do livro. As personagens no ocupam um espao (representativo) externo ao livro, assinalado pela bordura, mas so solidrias diretamente com os ele-mentos prprios pgina. Do que deriva a conexo da personagem direita com a linha de notao logo acima (quase tocada por seu instrumento) e da personagem da esquerda com a linha de notao na zona da imagem, em direo qual se curva. Mudando ligeiramente o ponto de vista, constata-se que, se, no flio 1r, a bordura era externa, aqui o vegetal que desempenha o papel de delimitar a imagem: linear (com uma espcie de pedestal-bor-dura na base, cruciforme no centro do tronco da planta, simtrico em toda sua extenso), ele organiza e partilha a imagem a partir do interior. Aqui, o jogo que lana a imagem no mundo dos gestos no , porm, aquele de uma associao reflexiva, solidria, mas de uma refrao repulsora. Uma refrao determinada, de um lado, pela impossibilidade da forma da nota-o, pois os pseudo-neumas, aparentemente similares notao habitual do manuscrito, no constituem um sistema de signos, uma vez que as formas ascendentes terminadas com uma virga (o neuma em forma de trao vertical) so inexistentes jogo refratrio que ganha maior peso diante do referido investimento na mdia da notao neumtica; de outro lado, pelo choque entre um repertrio inteiramente vocal e eclesistico e a representao de instrumentistas danarinos. O mundo dos gestos intervm justamente como correo do hiato da imagem como uma contraimagem de uma represen-tao manifestamente, exibidamente, irreal.

    No que concerne segunda forma de agenciamento, o flio 1r promove uma cadeia contnua de narratividade: a pomba canta, Gregrio escuta, ele escreve e apresenta o livro o livro que se abre a nossos olhos encadeando-se por fim com o contedo do que exibido, o canto que cantado por aquele que est fora do livro (o espectador/cantor). Passagem do visual (no livro) ao sonoro (fora do livro). Trata-se de solidariedade habitual lembrada frequen-temente pela frmula vendo e ouvindo (videntibus ac audientibus) nos docu-

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    mentos diplomticos de Nevers.93 No flio 34v, as personagens sendo internas ao livro, a narratividade se produz diretamente entre msicos e cantos nota-dos em um crculo: comea-se esquerda (a extrapolao da rglure do livro pela personagem da esquerda uma assuno da posio das letras iniciais ornadas), passa-se pela notao da linha Consonancia cuncta musica, chega-se personagem da direita que, enfim, em seu movimento ascensional, conduz prosa efetivamente cantada. Narratividade que leva, assim, da imagem da msica na linha refratria dotada de uma pseudo-notao, msica que carrega um canto um canto novo, provavelmente composto em Nevers mesmo, como vimos. mesmo concebvel que todo o dispositivo da ima-gem sirva, em uma primeira instncia, para valorizar essa nova composio.

    Nessa funo narrativa que desemboca em uma ativao da perfor-mance, conduzindo o espectador (da imagem) ao papel de cantor (das peas do manuscrito), as imagens funcionam como tropos: adies, no comeo ou no meio dos cantos, que visualizam ou narrativizam uma situao de performance para incitar a cantar. Assim, para indicar apenas uns poucos elementos de tropos compostos em Nevers mesmo e transmitidos em nosso manuscrito, as imagens tambm fazem figura de imperativo: salmodiem e cantem aplaudindo, exprimam alegrias ao mundo, tudo isso em um con-texto em que a interjeio eia (forma de encorajamento) onipresente. Como na imagem, o tropo conduz ao canto seja de maneira direta (segundo o mo-delo do flio 1r), seja de maneira indireta (segundo o modelo do flio 34v). No pouco importante, nesse sentido, que, enquanto a tradio aquitana buscou promover uma adaptao modal entre os tropos e as peas gregoria-nas, de forma a obter uma passagem sem arestas, a tradio de Nevers guar-dou e reforou uma tendncia disjuno modal, como a conduzir de um a outro (do tropo pea-base) por um sobressalto: a ausncia de integridade estilstica entre o tropo e a antfona no produz uma contradio absoluta.94 O senso do movimento mesmo reforado pelo hiato de uma passagem. O gesto musical esposa e reitera o gesto da imagem que conduz a ele.

    Essa copresena ativa, em que a imagem levada (gesta) pelo mundo dos gestos e conduz a ele, um modo de funcionamento habitual na liturgia. Em uma encenao prpria celebrao da Epifania em Nevers (o Drama dos magos), contida no manuscrito BnF latin 9449 (flios 17v-18r), para a qual

    93 DE LESPINASSE, Ren. Cartulaire de Saint-Cyr... op. cit., p. 192.94 REYER, Ellen Jane. The introit trope repertory at Nevers. MSS Paris B.N. lat. 9449 and Paris B.N. n.a.l. 1235.

    Tese de doutorado, The University of California, Berkeley, 1981, 3 vol., aqui t. I, p. 213.

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    rubricas contemporneas ao nosso manuscrito se encontram no manuscrito Mazarine 1708 (81v), a prpria noo de copresena manifesta a cada passo. Os gestos (a ao) so casados aos cantos (as formas de verbalizao). So exemplos disso os seguintes trechos com indicaes de performance: cami-nhando (...) digam, virando seu rosto ao povo, caminhem (...) dizendo, ofe-recendo ouro, diga (...) e assim por diante. O fim da cerimnia, suprimindo toda ao em proveito da postura imvel, mostra que se trata efetivamente da combinao de duas coisas distintas: tudo isso tendo sido feito (gestis), um menino de p (stans) em um lugar alto diga (...) ou ainda tudo isso ten-do isso realizado (peractis), o pontfice diga (...) Nessa combinao, a imagem pode justamente agir no lugar dos ou, na verdade, como suplemento aos gestos das pessoas,95 procedimento que no deve surpreender diante da constatao antropolgica de que, em um contexto social, a agncia humana se destila s coisas de que as pessoas se cercam e se servem, muitas vezes encontrando nessas coisas (que imediatamente se desreificam em fluxos e processos) repositrios poderosos para a continuidade e para a transmisso da agncia.96 Trata-se, no caso do Drama dos magos, muito provavelmente, de uma imagem tridimensional do tipo sedes sapientiae:97 mostrando-lhes a imagem (ostendentibus (...) imaginem), diga (...) a essa imagem que os magos oferecem ouro, mirra e incenso, imagem que se coloca assim como uma coi-sa (ou mesmo um gesto) no mundo dos gestos.

    Movimento e imobilidade na ao litrgica se prestam ao jogo dialtico incessantemente perseguido em que a imagem (como gesto) e os outros gestos podem se apropriar mutuamente uns dos outros sublimando o outro em seu campo prprio. O manuscrito BnF latin 9449, especialmente nos flios 1r e 34v, apresenta-nos, assim, imagens que podem ser vistas como atos das pessoas que promovem a assuno e a sublimao do mundo em imagens do mundo. Esse movimento, sempre parcial, conduz tambm a um retorno a um mundo dos gestos, que promove, em seu campo prprio, assuno e sublimao da imagem para conduzi-la para alm dela mesma em um fazer gestual efetivo.

    Um ou dois anos antes da produo de nosso manuscrito, a Catedral de Nevers foi reconsagrada por Hugo, com dois outros bispos e uma imensa

    95 Para o estudo de um caso semelhante, cf. AUBERT, Eduardo Henrik. Mediao e medializao..., op. cit.96 Cf., antes do mais, o trabalho clssico de GELL, Alfred. Art and agency: An anthropological theory.

    Oxford: Oxford University Press, 1998.97 Cf. FORSYTH, Ilene. Magi and majesty: a study of romanesque sculpture and liturgical dra-

    ma. Art Bulletin, 50, 1968, p. 215-22.

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    multido de clrigos e de laicos.98 Se, como Margot Fassler bem apontou, novos edifcios e novos livros litrgicos eram frequentemente parceiros na promoo dos objetivos dos homens da Igreja ambiciosos99 e o trecho da carta analisada na seo precedente mostra que se trata de afinidade essen-cial transponvel nas formulaes do discurso teolgico contemporneo o assassino/criador do movimento incessante de assassinato/regenerao que envolve o processo de assuno e sublimao o ponto mais elusivo na organizao das modalidades de assuno e sublimao que enredaram o manuscrito BnF latin 9449 ao mundo dos gestos aquele cujo(s) gesto(s) lan-aram-no no mundo. Esse Janus assuno e sublimao no existem sem Apolo e Dionsio possivelmente um cantor de nome Odo, sabia bem que tese e anttese so as duas faces da mesma moeda.

    Na carta que escreveu em 1063 e em que, conforme vimos, exprime grande concordncia com aquilo que se apresenta no manuscrito BnF latin 9449, Odo (ou o bispo Hugo triado pelo cantor e cancellarius Odo) reflete sobre a necessidade de assignar, atribuir ou reduzir (adsignare) s letras aquilo que se passa para o conhecimento das geraes futuras (ad noticiam posterorum).100 , ademais, algo de extrema importncia, segue Odo, pois aqueles que no se lembraram do salmo de Davi texto corporalizado na experincia vocal e corporal dos cnegos puderam destruir o corpo da igreja (e, portanto, sua capacidade de trabalho espiritual). Esta est em/ um processo de assuno e sublimao de um corpo afirmado, exibido no limite do controle, mas essen-cial como matria de sublimao. Ela no pode ser concebida, assim, apenas com o verbo (a representao); ela se faz com a obra (ao que demanda uma copresena): verbo et opere, na sublimao verbal desse processo nos termos da carta com o verbo e com a obra. A palavra (e as coisas). O fazer.

    *

    Retomando a proposta terica da primeira parte do artigo, segundo a qual possvel conceber a imagem a um s tempo como representao (imagem do gesto), como presena (imagem gestual) e copresena (imagem gesto), buscamos compreender o manuscrito Paris, BNF, lat. 9449 decom-

    98 Annales nivernenses, op. cit., p. 90.99 FASSLER, Margot. Gothic song: Victorine sequences and augustinian reform in twelfth-century Paris. Cam-

    bridge: Cambridge University Press, 1993, p. 99.100 Paris, BnF, coll. Bourgogne, t. 78, n 114..., op. cit.

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    pondo-o nessas trs modalidades de existncia da imagem. Conforme as-sentamos ao longo da anlise, essas modalidades no so apenas distines tericas que erigem polos opostos no quadrado semitico, mas antes parte de uma interao complexa em que as modalidades se anunciam e se re-clamam mutuamente no h representao que consiga apagar os traos da presena que representa, como no h presena que no ombreie com as demais presenas tecidas em rede nos processos sociais. Destarte, superar o paradigma da representao no elimin-lo, mas sublim-lo como parte de um processo muito mais complexo. localiz-lo como momento no in-sulado na tecedura do mundo social.

    Recebido: 25/06/2014 - Aprovado: 18/11/2014

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