reflexões acerca do campo dos estudos organizacionais ... · 1 reflexões acerca do campo dos...

15
1 Reflexões acerca do Campo dos Estudos Organizacionais: Perspectivismo Teórico e Organizações como Espaços socialmente construídos Autoria: Fernanda Mitsue Soares Onuma, Juliana Cristina Teixeira, Lilian Barros Moreira Resumo Neste ensaio, discutimos o perspectivismo presente nos Estudos Organizacionais (EOR´s) apontando para o fato de que o mesmo trata-se de um campo (Bourdieu, 2005), em que pesquisadores disputam o monopólio da competência científica e que as organizações são espaços construídos (Lefebvre, 2008) a fim da reprodução de relações sociais produtivas que reforçam a diferenciação, característica da modernidade. Portanto, argumentamos que os EOR’s reiteram o processo de diferenciação e colaboram para a construção de espaços sociais que reforçam a fratura social e, sendo assim, não podem ser considerados como um corpo aperspectivista de ideias.

Upload: dotruc

Post on 05-Jun-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

Reflexões acerca do Campo dos Estudos Organizacionais: Perspectivismo Teórico e Organizações como Espaços socialmente construídos

Autoria: Fernanda Mitsue Soares Onuma, Juliana Cristina Teixeira, Lilian Barros Moreira

Resumo Neste ensaio, discutimos o perspectivismo presente nos Estudos Organizacionais (EOR´s) apontando para o fato de que o mesmo trata-se de um campo (Bourdieu, 2005), em que pesquisadores disputam o monopólio da competência científica e que as organizações são espaços construídos (Lefebvre, 2008) a fim da reprodução de relações sociais produtivas que reforçam a diferenciação, característica da modernidade. Portanto, argumentamos que os EOR’s reiteram o processo de diferenciação e colaboram para a construção de espaços sociais que reforçam a fratura social e, sendo assim, não podem ser considerados como um corpo aperspectivista de ideias.

2

Introdução Os Estudos Organizacionais (EOR’s) refletem as crenças e perspectivas de seus autores, de modo que justificar o estudo e divulgação de certas abordagens em função de sua melhor adequação à prática significa reiterar certos modos de organização e de se pensá-la que reafirmam a diferenciação, entendida enquanto ligada à fratura social que reflete a divisão internacional do trabalho (ou seja, a ideia de que existem pessoas aptas a pensarem o trabalho enquanto outras devem apenas executá-lo). Em outras palavras, trata-se de pensamento tautológico que persuade pesquisadores e praticantes na Administração a legitimarem modos de pensar e de administrar as organizações que reforçam a divisão internacional do trabalho e, por conseguinte, reafirmam a fratura social entre os que pensam e os que agem nas organizações. Neste ensaio, buscaremos desmistificar a ideia ilusória de aperspectivismo nos EOR’s apontando para o fato de que o mesmo trata-se de um campo (Bourdieu, 2005), em que pesquisadores disputam o monopólio da competência científica e que as organizações são espaços construídos (Lefebvre, 2008) a fim da reprodução de relações sociais produtivas que reforçam a diferenciação. Conforme buscaremos apresentar, as teorias organizacionais, longe de serem aperspectivistas, “neutras”, são permeadas pelas idiossincrasias de seus autores. De acordo com Guerreiro Ramos (1965), o homem não teoriza antes de agir. Pelo contrário, o pesquisador é um “ser no mundo”, o que significa que suas ações implicam o mundo em que vive, envolvendo um a priori existencial tenha o cientista consciência disso ou não. Essa noção ajuda a refletir sobre o texto de Reed (1999, p. 64) que, ao discutir que a Teoria Organizacional é um campo historicamente contestado, apresenta que cada teoria organizacional que fora se conformando, ao longo dos tempos, constitui uma “prática social situada em dado contexto histórico”, voltado, portanto, para a legitimação dos conhecimentos e projetos políticos referidos ao contexto histórico em questão. Comum a qualquer momento histórico, segundo Reed (1999), seria o fato de que em todas as épocas os EOR’s foram constituídos por linhas comuns de diálogo e debate que, ao mesmo tempo em que as delimitavam intelectualmente, proporcionavam as bases para que se pudesse julgá-las e criar, assim, novas contribuições às linhas anteriores. Essa transformação das linhas de pensamento dos EOR’s graças ao julgamento e novas contribuições em relação às teorias anteriores se fizeram importantes porque, como observam Marsden e Townley (2001), a teoria organizacional reflete não só a prática das organizações como também ajuda a formulá-la, de modo que é de se esperar que, com as mudanças nos contextos sociais e históricos dos pensadores em EOR’s e as transformações nas próprias organizações, ambos, tanto teoria quanto prática, acabem se (re)configurando ao longo dos tempos. Assim, Marsden e Townley (2001) apresentam também o caráter indissociável entre teoria e prática nos EOR’s. Portanto, argumentamos que, uma vez que os autores desse campo de pesquisas se colocam em seus textos defendendo seus pontos de vista, os EOR’s acabam por referendar dentro de seu mainstream, sua corrente teórica dominante, os interesses do business (Aktouf, 2004), apoiando certa visão de mundo predominantemente favorável àqueles que se encontram na condição de pertencentes à classe dominante no sistema de produção capitalista existente na contemporaneidade. Como argumentam Hardy e Clegg (2001), as organizações modernas (que se referem a modos de organização que reforçam a fratura social e não são assim caracterizadas em razão de termos cronológicos), foram projetadas para funcionarem tal como organismos unitários, em que seu design fora desenhado para operar contra ou apesar de nelas existirem composições plurais. Assim, as organizações, aparentemente unas, harmônicas, assim foram desenhadas justamente para favorecer tal visão, a fim de

3

que ela seja compartilhada (e não exposta e discutida de maneira crítica e reflexiva). Isso porque as organizações são espaços socialmente produzidos com fins de servirem de instrumento para a reprodução das relações (sociais) de produção, tal como Lefebvre (2008) apresenta. Buscando apresentar os elementos de suporte aos argumentos que apresentamos, construímos este ensaio da seguinte forma: em um primeiro momento, apresentamos uma breve discussão a respeito da noção de modernidade, vista como “berço” dos Estudos Organizacionais (Clegg, 1998; Reed, 1999) para, então, apresentar sucintamente que, antes de estruturas unas e “naturais”, dadas a priori, entendemos as organizações como espaços construídos (Lefebvre, 2008; Harvey, 1998) para o reforço da diferenciação, que é uma das características da modernidade. Dessa maneira, desejamos suscitar o debate em torno da suposta “neutralidade” dos EOR’s e da possibilidade de adoção do aperspectivismo (McKinley, 2003) nas teorias construídas pelos autores que se encontram neste campo. Por meio desse debate, a intenção é a questionar tanto a possibilidade de “neutralidade” na construção das teorias quanto na construção das próprias organizações em si, ideias que acabam reforçadas pela concepção enganosa do aperspectivismo, a fim de convidar os pesquisadores do campo a refletirem a respeito destas questões. Modernidade: o “berço” dos Estudos Organizacionais Nesta seção, apresentamos brevemente a noção de modernidade e suas influências aos EOR’s, baseando-nos nas ideias de Clegg (1998). Consideramos aqui, assim como Clegg (1998), que a modernidade é o “berço” dos EOR’s. Afinal, se esse campo de estudos foi gerado nesse “berço”, longe de refletir teorias e práticas “neutras” e “aperspectivistas”, ele reflete e reforça características da modernidade, sobretudo, a diferenciação. Consideramos importante a discussão da noção de diferenciação porque esta nos auxiliará a apresentarmos as organizações modernas, sobretudo, as empresas, como espaços socialmente construídos. Afinal, se os EOR’s se apoiam no pensamento moderno, os espaços socialmente construídos das empresas reforçam a diferenciação moderna (que reforça a fratura social). Em outras palavras, enquanto espaços de reprodução das relações sociais produtivas (Lefebvre, 2008), as empresas modernas acentuam a fratura social, ou seja, a distância entre comandantes e comandados nessas organizações. Portanto, os EOR’s, tendo surgido desse “berço” que é a modernidade, surgem como argumento favorável ao processo de diferenciação e, sendo assim, como defesa a um ponto de vista favorável ao processo de diferenciação moderno e não como um corpo aperspectivista de ideias. Clegg (1998) refere-se à modernidade como caracterizada por processos de diferenciação (esta ligada à divisão internacional do trabalho, entre postos de trabalho e a supervisão e controle de sua liberdade de ação) e sua respectiva gestão. Para Clegg (1998), a modernidade seria como o “berço” da teoria organizacional, a qual teria emergido especialmente a partir dos trabalhos sociológicos de Max Weber. Nesse sentido, o autor afirma que a teoria das organizações é uma criação da modernidade, sobretudo em função de sua dívida aos trabalhos de Max Weber. Por que Max Weber? O interesse central da sociologia compreensiva weberiana reside na racionalização da conduta de vida, tal como se concretizou no Ocidente, inicialmente, para então se universalizar, possibilitando o desenvolvimento do capitalismo moderno. Em outras palavras, a intenção central da investigação de Max Weber consistia em expor a relação entre a racionalidade religiosamente motivada e a

4

atividade econômica racional, traçando a história do surgimento de tal relação (FILIPE, s./d.) Weber (2004) analisou as relações entre o espírito do capitalismo e a ética (ascese) protestante. O autor demonstrou como elementos culturais éticos e religiosos influenciaram o próprio desenvolvimento do capitalismo, enfatizando aspectos espirituais e culturais interligados ao capitalismo como um fenômeno social. Nessa discussão, o autor destacou, por exemplo, como o ganho de dinheiro foi sendo considerado um objeto em si, um “objetivo da vida do homem, e já não como meio de satisfazer suas necessidades” (WEBER, 2004, p. 39). Ao tratar da afinidade eletiva entre a ética protestante e o espírito do capitalismo, Filipe (s/d) apresenta que Weber evidenciava que o surgimento do racionalismo econômico não se explica de modo monocausal pela ética protestante, mas antes, como dependente de diversos fatores, dentre os quais, a técnica e ciência racionalizadas e uma estrutura racional de dominação política ou direito racional, mas também, pela capacidade e disposição das pessoas em adotarem certos modos de conduta de vida prático-racionais. O que seria, entretanto, para Weber, o “espírito” do capitalismo? De acordo com Filipe (s/d), tal “espírito” se refere à não exclusão mútua entre a mentalidade econômica racional e o comportamento ético-religioso os quais, em conjunto, conferiram um caráter específico à cultura ocidental. A crença protestante, influenciada especialmente pelo Calvinismo é uma das mais importantes forças motrizes de tal racionalidade. Nele se encontram as raízes espirituais da conduta de vida racional e ascética produzida por longo processo educativo. Nesse sentido, a mentalidade econômica racional ocidental não é um fenômeno natural, mas fora produzida. Weber reconhecia que, se por um lado, o sistema econômico capitalista influenciou o desenvolvimento de uma mentalidade que lhe era adequada, por outro lado, esta mentalidade também lhe serviu de força motriz. Entretanto, seria o capitalismo produto direto de tal “espírito”? Para Weber, não exclusivamente, tanto pelo autor não enxergar monocausalidade em tal processo de surgimento do capitalismo, quanto pelo fato de que o capitalismo já existia anteriormente à Reforma Protestante (FILIPE, s./d.). O trabalho de Weber (2004) nos lembra que o espírito do capitalismo já existia antes do capitalismo propriamente dito, no século XVII em Massachusetts, contexto do qual ele retira os discursos de Benjamin Franklin que analisa. Filipe (s/d) ressalta a distinção entre o capitalismo moderno, o capitalismo empresarial, racional e burguês, que promovia o cálculo racional enquanto traço característico da modernidade, da forma do capitalismo primitivo do tradicionalismo econômico, singularizado pelo conforto ou bem-estar dominante que se refletia no estilo de vida tradicional, na maneira de condução dos negócios e concepção do montante do lucro, quando este não consistia na busca incessante do lucro, restrito a poucos “capitalistas aventureiros” com mania de ganhos, mas refletia uma conduta de vida em que o habitual se relacionava às limitações tradicionais rigorosas aos ganhos, até enfatizadas pelo desdém católico à usura. Assim, se compreendemos a modernidade como caracterizada pela diferenciação, esta entendida enquanto ligada à fratura social que reflete a divisão internacional do trabalho, torna-se mais evidente a contribuição da noção da conduta de vida moderna em Weber ao entendimento da modernidade, visto que tal conduta, reflexo da relação entre a racionalidade e a religião protestante e seu ethos profissional, pode ser um dos fatores de influência à diferenciação que se observa nas organizações contemporâneas, sobretudo nas empresas. Clegg (1998, p. 4) explica que as organizações, retratadas no pensamento de Weber enquanto tipo ideal de burocracia constituiriam “representações modernistas de práticas modernistas arquétipas”.

5

A organização é, segundo Clegg (1998), a forma característica de nossa condição moderna, nem sempre encarada como algo benéfico e vantajoso, mas podendo ser vista como algo repressivo e constrangedor. Embora haja discussões a respeito de que se estaria vivenciando uma época de “pós-modernidade”, Clegg (1998) afirma não haver clareza quanto à superação da modernidade. Debates recentes têm tratado que a modernidade não se trata de processo infinito, conferindo, assim, foco à “pós-modernidade”, entendida enquanto o período posterior à modernidade. Contudo, Clegg (1998) questiona em certo ponto o fim da modernidade, até por apontar a pós-modernidade enquanto possibilidade e não constatação. A pós-modernidade, segundo Clegg (1998), estaria caracterizada pela inversão de tendências da modernidade. As práticas presentes nos contextos internacionais, entre os quais o autor cita as organizações empresariais do Japão e da Suécia, contudo, apontariam para uma tendência de superação dos limites de conhecimento atribuídos à modernidade, por indicarem um decréscimo na diferenciação, ou a “desdiferenciação”, como denomina, que se trata da característica principal que atribui à pós-modernidade. Para Vieira e Caldas (2006), autores como Habermas, Giddens e Bauman negam que o pós-modernismo tenha alcançado uma ruptura com o modernismo, entendendo a pós-modernidade como um estágio mais recente existente dentro do modernismo. Pensando a respeito da noção de modernidade, concordamos com a visão de Vieira e Caldas (2006) de que o pós-modernismo teria um caráter conservador, de preservação do status quo ao considerar que, uma vez substituída a fratura social modernista pela ruptura com esta, então, nada mais parece necessitar ser feito. Como Vieira e Caldas (2006, p. 67) apresentam, “em um mundo crescentemente conflituoso, abundante em iniquidades e em miséria, a postura pós-modernista radical de questionar o projeto e as potencialidades da crítica e da autonomia humana parece, no mínimo, de difícil aceitação”. Harvey (1998) considera o fato mais espantoso em relação ao pós-modernismo a sua aceitação do fragmentário, do caótico, do efêmero e do descontínuo, tomados como existentes, dados, sem que se busque transcendê-los ou fazer-lhes oposição. O pós-modernismo, como apresenta Harvey (1998), faz com que não seja mais possível a concepção do sujeito alienado como no pensamento de Marx, uma vez que o ser alienado pressupõe um sentido de eu coerente e não fragmentado do qual se alienar, que deixa de existir no pós-modernismo, para o qual não se pode aspirar a uma representação unificada no mundo mesmo como totalidade repleta de diferenciações e conexões. No pós-modernismo, segundo Harvey (1998), como toda representação e ação coerentes são ilusórias ou repressivas, não há abertura para se pensar em algum projeto global. O pós-modernismo descarta a possibilidade de se pensar em um mundo melhor, ao centrar-se na esquizofrenia induzida pela fragmentação e fluidez que nos impedem de pensar de modo coerente e, assim, elaborar estratégias para a produção de um futuro radicalmente diferente. Já o modernismo, mesmo que caindo em frustração perpétua que pode conduzir à paranoia, sempre se dedicou à busca de futuros melhores (HARVEY, 1998). Nesse sentido, observa-se na modernidade, apesar do pessimismo weberiano expresso na “gaiola de ferro” da racionalidade instrumental, uma busca por um futuro melhor, como Filipe (s/d) sugere. Assim, a diferenciação e não a busca por um futuro melhor foi a característica moderna que acabou por prevalecer nos EOR’s e os argumentos pós-modernos, ainda que se proponham a superar essas questões, podem ser questionados até pela crítica de autores como Harvey (1998) e Vieira e Caldas (2006) acerca da incapacidade do pós-modernismo em superar o status quo. Como Clegg (1998) observa, se a modernidade é caracterizada por processos de diferenciação e pela gestão desta, a pós-modernidade é encarada como aquilo que surge

6

após a modernidade, caracterizando-se pela “desdiferenciação”. Se na modernidade, a gestão se baseou em esquemas e práticas com vistas ao gerenciamento do processo-chave de diferenciação, o pós-modernismo, com a sua “desdiferenciação” citada anteriormente, pela qual a fratura social, enxergada de maneira superficial deixa de ser evidenciada com clareza, implica, no mínimo, no desmoronamento dos alicerces da gestão moderna, enraizados nas formas de divisão do trabalho existentes. Desse modo, ainda que o pós-modernismo se proponha como contraponto, observa-se que os EOR’s seguem articulados às suas origens modernas, sobretudo, ancorado no processo de diferenciação, característico da modernidade. Após discutirmos a noção da modernidade que imprime sua marca aos EOR’s, apresentamos que, apesar de neste prevalecerem estudos que reforçam o processo de diferenciação moderno, existem outras “vozes” a ecoarem nos EOR’s. Assim, antes de ser uma área unificada de pensamento científico, os EOR’s são um campo, dado o embate de ideias divergentes que apresenta. Os Estudos Organizacionais como um campo: contraponto à possibilidade de aperspectivismo nos constructos teóricos A intenção nesta seção é a de contrapor a ideia dos EOR’s enquanto uma área consolidada, una, para apresentá-los como um campo, ou seja, um espaço de disputas. Consideramos essa discussão importante para a compreensão da ideia que expomos a seguir a respeito das organizações construídas como espaços que reforçam a diferenciação que caracteriza a modernidade. Isso porque, uma vez entendido o campo dos EOR’s enquanto construído por debates, disputas entre vozes concorrentes e não como dotado de discurso único, fica mais fácil compreender, que a modernidade permeia os Estudos Organizacionais e as próprias organizações, pela impossibilidade de cisão entre teoria e prática.

Tal dissociação ilusória entre teoria e prática pode estar relacionada a uma predominância positivista entre as abordagens que os agentesi do campo dos Estudos Organizacionais defendem. Marsden e Townley (2001) comentam que dentre os anos de 1950 e 1960, a ciência se tornou juíza da verdade e, por sua vez, o positivismo se tornou juiz da ciência. Tal preocupação em relação à cientificidade calcada no positivismo se mostrou nos trabalhos de Parsons e nos estudos de Aston, que realizaram releituras equivocadas sobre o trabalho de Weber e que acabaram por influenciar os EOR’s (BURREL, 1999; MARSDEN e TOWNLEY, 2001). Reed (1999) apresenta, todavia, que nem sempre o modelo racional calcado em tal influência teve domínio na Teoria Organizacional e que este sempre fora contestado por linhas alternativas.

Ora, se existe contestação como Reed (1999) apresenta, não há razão para se pensar nos EOR’s enquanto uma área consolidada, mas sim, como um campo, em que agentes defendem narrativas analíticas distintas. Para melhor compreensão da noção dos Estudos Organizacionais enquanto um campo, trazemos uma breve explanação aqui a respeito do conceito de campo, que coloca em dúvida a ideia de que os pesquisadores nos EOR’s possam pensar e defender suas ideias de maneira racionalmente perfeita e desinteressada. Fachin e Rodrigues (1999) apresentam que a existência de uma pluralidade de vozes nos EOR’s pode estar relacionada a vaidades que foram transformadas em propostas teóricas na busca de conquista de notoriedade e de adeptos dentro do campo. Trata-se de um conceito complexo que não pode ser entendido dissociado dos conceitos de habitusii e capital. Não é a intenção aqui apresentar uma explicação completa e acabada desses conceitos, mas apenas expô-los de maneira sucinta para fins de contribuir para a compreensão dos EOR’s vistos como campo. A distribuição do

7

capital ao longo do campo constitui a própria estrutura do campo e confere poder ao longo deste (BOURDIEU e WACQUANT, 1992). De acordo com Bourdieu e Wacquant (1992, p. 99), as estratégias de dado “jogador” e tudo aquilo que define o seu “jogo” são funções não só do volume e estrutura de seu capital no momento em consideração e suas chances de jogo, mas também da evolução ao longo do tempo do volume e estrutura de seu capital, sua trajetória e suas disposições ou habitus constituído na relação prolongada para uma distribuição definitiva de chances objetivas. Pela noção de habitus pode-se pensar ainda que não só os agentes podem defender narrativas analíticas distintas como podem mudar suas inclinações a esse respeito ao longo de suas trajetórias acadêmicas. Como os volumes e a estrutura do capital variam entre os jogadores do campo, pode acontecer, como sugerem Bourdieu e Wacquant (1992), que dois jogadores com o mesmo volume total de capital no campo difiram entre si em termos de estrutura de capital, em outras palavras, enquanto em volume total os dois se igualem, um pode ter muito capital social e pouco capital cultural e o outro, pouco capital social e muito capital cultural, por exemplo. Para Bourdieu (2005), os agentes no campo não são nem indivíduos isolados, “mônadas” como pode sugerir a visão interacionista, nem são produtos de um determinismo exacerbado. Para esse autor, a essas visões é preciso propor uma visão estrutural que considere os efeitos de campo, ou seja, as pressões que são exercidas por meio da estrutura do campo de modo contínuo, restringindo suas possibilidades de ação quanto mais mal alocada forem em tal distribuição. Assim, a compreensão do conceito de campo, entendido como indissociável das noções de habitus e capital em Bourdieu (2005), pode ajudar na compreensão dos EOR’s enquanto um campo, em que os agentes, os pesquisadores, são dotados de habitus e de capital que se relacionam à sua posição no campo. Essa discussão brevemente exposta talvez fique mais clara na definição de Bourdieu (1983, p. 122-123) a respeito do campo científico:

O campo científico, enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores) é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social, ou, se quisermos, o monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado.

Em outras palavras, grosso modo, os EOR’s são como um campo em que se disputa o monopólio da autoridade científica ou da competência científica. Como a teoria organizacional foi se moldando considerando a mentalidade de época e o lugar de origem de cada autor, a teoria organizacional acabou abrangendo diferentes escolas de pensamento, cada qual com linguagem e discursos próprios, conformando-se em uma “mistura continental” com notas do eurocentrismo e das ideias de origem anglo-saxônica, predominantemente (BURRELL, 1999). O resultado disso foi a conformação de um campo da Teoria Organizacional, cujas características divergem entre os autores. Para Marsden e Townley (2001), ela se configura como uma teoria da gestão, que, por tal natureza, se enfoca em quem gerencia e pouco aborda sobre os geridos, uma vez que a organização é encarada como uma abstração das pessoas e das relações que estas estabelecem entre si. Tanto Marsden e Townley (2001) quanto Reed (1999) concordam que a cisão entre ciência normal e contra-normal opõe um retorno ao conservadorismo a um relativismo científico, este último representado pela diversidade de perspectivas paradigmáticas da ciência contra-normal. Porém, os autores divergem quanto às suas

8

ponderações acerca do fato. Enquanto para Reed (1999) seria necessária a realização de uma mediação entre as abordagens, uma vez que as teorizações são sempre seletivas, parciais, de modo que o embate entre narrativas rivais é salutar para a renovação nos estudos organizacionais, para Marsden e Townley (2001) existe a incomensurabilidade paradigmática entre tais vertentes, de forma que, mais útil e produtivo que tentar confrontá-las seria admitir que ambas representam as duas faces da Teoria Organizacional. Burrell (1999) concorda que, felizmente, haverá sempre oposição entre ideias nos estudos organizacionais. Este autor difere dos demais, entretanto, ao afirmar que não considera a ciência normal da Teoria Organizacional como marcada pelo positivismo. Para Burrell (1999), o estado normal dos estudos organizacionais se baseia na pluralidade. Outros autores, entretanto, enxergam a pluralidade de vozes no campo dos Estudos Organizacionais como problemática. Mckelvey (2003) reconhece que os Estudos Organizacionais são um campo, mas que deveriam se conformar enquanto ciência e, para isso, a pluralidade de vozes no campo é um empecilho. Para McKelvey (2003), o que incomoda os pesquisadores alinhados à ciência normal, positivista, que domina os Estudos Organizacionais seria não a contraposição de ideias, mas o enfraquecimento dos Estudos Organizacionais que se tornariam frágeis com a multiplicidade de visões contrárias dotadas de valor de verdade questionável, afastando-se, desse modo, de tornar-se uma ciência. A fim de que seja possível a transição de campo à ciência, McKelvey (2003) sugere a convergência ontológica e epistemológica nos EOR’s, uma vez que considera que a ontologia pós-modernista e a epistemologia pós-positivista seriam as “corretas” para esse campo, combinando ortodoxia e relativismo. Para McKelvey (2003, p. 63), “quanto mais monoparadigmática (e mais científica) as disciplinas se tornam, mais pré-científicos os Estudos Organizacionais se tornam”. Para a superação do multiparadigmatismo, McKelvey (2003) sugere a atenção à proposição de solução a problemas concretos definidos pela prática. Os Estudos Organizacionais carecem, segundo McKelvey (2003), de legitimidade tanto junto à comunidade científica ampliada, quanto junto aos que praticam a Administração em seu cotidiano, de modo que as Escolas capazes de oferecerem modelos de valor aos usuários da Administração acabariam por prevalecer. Parece-nos que McKelvey (2003) ignora, contudo, que como Marsden e Townley (2001) apresentam, teoria e prática são indissociáveis. Assim, justificar a prevalência de dadas Escolas em função da adequação de seus modelos às práticas das empresas significa reiterar práticas e teorias do mainstream: afinal, as organizações não existem sem um embasamento teórico anterior o qual retroalimentam em suas práticas. E, ao fazerem, as organizações heterogestionárias, predominantes no mainstream, e as teorias que a estas se articulam pela sua constituição recíproca acabam por reforçar o processo-chave de diferenciação da modernidade. McKinley (2003) corrobora para a visão do multiparadigmatismo nos Estudos Organizacionais como problemático ao argumentar que este carece de maior objetividade. O autor distingue dois tipos de objetividade: a objetividade ontológica ou absoluta, relativa à busca da estrutura máxima da realidade e a objetividade aperspectiva, que tem por objetivo suprimir as idiossincrasias dos grupos ou indivíduos. Nessa visão, esta última deveria ser o tipo de objetividade perseguida dentro dos EOR’s por meio da convergência dos pesquisadores do campo em relação a uma definição padronizada de constructos. Pela inexistência de definição única para determinados constructos nos EOR’s, McKelvey (2003) afirma que a objetividade no campo se torna frágil. O ideal, segundo o autor, seria a busca por uma objetividade aperspectivista pela via democrática, com os pesquisadores convergindo a definições únicas para cada constructo. Os constructos, por

9

sua vez, servem, segundo o autor, para simplificar a realidade e capturar elementos comuns compartilhados por um conjunto de diversas observações. Seriam, portanto, abstrações da realidade, que têm esta por base, mas não a incorporam literalmente (BABBIE, 1995 apud McKELVEY, 2003, p. 143). Por meio da convergência de definições únicas dos constructos, seria possível, de acordo com McKelvey (2003), a construção de um “dicionário” de constructos, visando a uma padronização nos significados destes que, além de garantir o alcance de ordem cognitiva e a redução de incerteza, conferiria maior objetividade aos EOR’s. Consideramos a ideia de McKelvey (2003) um retrocesso ao se pensar a teoria organizacional como neutra e aperspectivista. Como se guiar por um dicionário de constructos previamente definidos que não considerem seus contextos sociohistóricos de aplicação e, sobretudo, que os conceitos funcionam como processos discursivos que defendem, sim, pontos de vista e posicionamentos políticos e ideológicos? A ideia de uma teoria padronizada se contrapõe a todo um esforço que vem sendo empreendido por vários pesquisadores dos EOR’s para relativizar as teorias, como aqueles que se dedicam, por exemplo, a uma visão pós-estruturalista de pesquisa (Alcadipani; Tureta, 2009; Carrieri, 2012; Souza; Bianco, 2011; Souza; Carrieri, 2010; Souza, Petinelli-Souza; Silva, 2013), a qual desconsidera o estabelecimento de verdades absolutas e universalmente válidas para se pensar a gestão. A visão de McKelvey (2003) nos remete a uma característica do estruturalismo e também do pensamento moderno, já que, para Souza e Bianco (2011, p. 398), “há um traço no estruturalismo que o mantém com resquício moderno: a busca de leis universais de funcionamento”. Contrapondo-se a essa ideia, Keleman e Hassard (2003) consideram o pluralismo de abordagens, perspectivas e conceitos não como algo problemático, mas sim benéfico ao campo. Os Estudos Organizacionais encarados em sua pluralidade, enquanto campo multiparadigmático, apresentariam, na concepção de Keleman e Hassard (2003), vantagens que superam suas limitações, pois se passaria a oferecer grande contribuição ao se conceder voz a diversas realidades e epistemologias que poderiam promover maior diálogo e crescimento dos estudos no campo. No caso brasileiro, Fachin e Rodrigues (1999) ressaltam que, desde 1995, os estudos com abordagem crítica são tão frequentes quanto os de perspectiva mais pragmática. O campo dos EOR’s, segundo os referidos autores, estaria dividido por contradições entre os que acreditam que os modelos estrangeiros não possuem utilidade no contexto brasileiro e aqueles que confiam inteiramente na literatura estrangeira e pensam que há muitas inovações geradas no Brasil. Fachin e Rodrigues (1999) sugerem a existência de dois desafios, no caso brasileiro, para a renovação dos EOR’s. O primeiro se encontra no fato de que os autores brasileiros parecem não se preocupar com a elaboração teórica a partir de trabalhos anteriores; já o segundo, se relaciona à questão de que os pesquisadores brasileiros não costumam criticar os trabalhos de seus pares. Assim, haveria, para os autores, a necessidade de uma comunidade mais efetiva de estudiosos no campo, o que é dificultado tanto pela fragmentação das disciplinas de estudo quanto pelas debilidades existentes na estruturação geral dos EOR’s. O resultado seria o da fragilidade e instabilidade das instituições e a falta de apoio e recursos nas universidades para o desenvolvimento de pesquisas. Conforme buscamos apresentar sucintamente nesta seção, há disputas no campo dos Estudos Organizacionais, daí considerá-lo enquanto campo e não como área consolidada, em que não há dissonâncias. Não que estas sejam problemáticas, em minha opinião, como McKinley (2003) e McKelvey (2003) o entendem. Tendo a concordar com Keleman e Hassard (2003) a respeito do potencial de contribuição ao campo da pluralidade de abordagens.

10

Nossaa intenção aqui é convidar o leitor à reflexão de que justamente por estas disputas existirem, os Estudos Organizacionais são um campo, ou seja, a produção teórica dos pesquisadores que o constituem, antes de desinteressadas e “neutras” referem-se às suas visões de mundo, que podem estar relacionadas com sua posição no campo, composição de capital e disposições ou habitus. Ou seja, as teorias não partiram do “nada”, não são aperspectivistas, mas sim, carregam as idiossincrasias de seus autores, quer estes o admitam ou não. E como teoria e prática se constituem de forma recíproca, as organizações não só refletem teorias como as produzem. Daí a importância de se discutir também a construção das organizações, como faremos a seguir. Organizações: espaços construídos para reforço da diferenciação da modernidade

As organizações não são estruturas estáticas, existentes tal como se nos apresentam de maneira “natural”. Entretanto, como a organização passou a ser vista como forma de resolver conflitos entre as necessidades coletivas e as individuais que, desde a Grécia Antiga, impediam o progresso social, se tornou um meio de controle social para a imposição da ordem, da estrutura e da uniformização da sociedade (WOLIN, 1961 apud REED, 1999). Uma das implicações disso é que as organizações, enquanto objetos de estudo nos EOR’s, passaram a serem vistas enquanto estáticas, estáveis, como Burrell (1999) observa.

Para Burrell (1999), uma vez encaradas como estáticas, as organizações seriam estagnadas com maior facilidade pelos conceitos, os quais mais que classificavam e marcavam profundamente a prática das organizações e os EOR’s em si, mas acabavam “ferindo-os” e transformando as estruturas de pensamento em elementos secundários. Teoria e prática, portanto, não são separáveis, mas reflexos umas das outras, tal como Marsden e Townley (2001) apresentam ao afirmarem que a teorização é uma prática em si mesma e que a prática, por sua vez, operacionaliza uma teorização, por mais inocente que aparente ser. Os espaços sociais, como Duarte (2001, p. 78) observa, não são sujeitos nem receptáculos vazios, despidos de conteúdo social, de sujeitos, vontades e diferenças. Não existe sociedade sem morfologia espacial de modo que o espaço, enquanto “estrutura de uma cotidianidade administrada” possui papel essencial na reprodução social. Lefebvre (2008) compreende o espaço como a objetivação do social e, por conseguinte, do mental. Trata-se, segundo o autor, de um instrumento para a reprodução das relações (sociais) de produção. Lefebvre (2008) aponta que há três elementos que, embora unidos na sociedade em ato, são apresentados como separados, a saber: o capital e lucro da burguesia, a propriedade do solo, com suas rendas múltiplas (advindas, por exemplo, da água, do subsolo, do solo edificado) e o trabalho assalariado da classe operária. Tal separação, de acordo com Lefebvre (2008), é ilusória, visto que os três elementos se articulam formando uma unidade. Entretanto, a separação objetiva faz com que cada grupo pareça receber certa parte do “rendimento” global da sociedade. Tal cisão é verdadeira e falsa, concomitantemente, uma vez que os elementos separados aparecem como fontes distintas da produção e da riqueza, mas apenas a ação comum produz tal riqueza. Assim, a cisão entre capital e lucro da burguesia, da propriedade do solo e do trabalho operário na objetivação do social expressa no espaço social faz com que as organizações (como as fábricas, os escritórios) sejam representações do espaço, intimamente ligados às relações (sociais) de produção que acabam, por conseguinte, reforçando o processo de diferenciação da modernidade (LEFEBVRE, 1991; MERRIFIELD, 2000).

11

Colaborando para esta visão, segundo Harvey (1998), diferentes sociedades ou subgrupos podem ter concepções distintas quanto ao tempo e o espaço. Não existiria, para esse autor, sentido único e objetivo de tempo e espaço que sirva de base para que se possa medir a diversidade de concepções e percepções humanas. Pelo contrário, Harvey (1998) apresenta que se faz necessário o reconhecimento da multiplicidade das qualidades objetivas que o espaço e o tempo podem exprimir e o papel das práticas humanas na construção destes. Partindo também de uma perspectiva materialista, Harvey (1998) entende que nem o tempo nem o espaço podem ter significados objetivos a eles atribuídos sem que sejam considerados os processos materiais. Apenas pela investigação desses processos, os quais servem à reprodução da vida social, torna-se possível fundamentar de maneira adequada os nossos conceitos de tempo e espaço. Desse modo, Harvey (1998) considera que a objetividade do tempo e do espaço advém de práticas materiais de reprodução social e, na medida em que estas podem variar geográfica e historicamente, verifica-se que o tempo social e o espaço social são construídos diferencialmente. Desse modo, o autor considera que cada forma distinta de produção ou formação social incorpora um conjunto específico de práticas e conceitos de tempo e de espaço. Como o capitalismo segue enquanto um modo de produção revolucionário em que as práticas e processos materiais de reprodução social se encontram em transformação constante, tanto as qualidades objetivas quanto os significados do tempo e do espaço também se modificam (HARVEY, 1998). Em contraponto, como o avanço do conhecimento (seja este de caráter científico, técnico, administrativo, burocrático e racional) é vital para o progresso da produção e do consumo capitalistas, as mudanças do nosso aparato conceitual (incluindo as representações do tempo e do espaço) podem ter consequências materiais para a vida das pessoas. Entretanto, não significa que as práticas sejam determinadas pela forma construída (por mais que para isso se esforcem seus planejadores), uma vez que as práticas tendem a escapar a qualquer esquema fixo de representação. Assim, Harvey (1998) afirma ainda que podem ser encontrados novos sentidos para materializações mais antigas do espaço e do tempo. Todavia, como o controle do espaço social garante o exercício do poder, de um lugar do próprio (CERTEAU, 1998), é interessante que as organizações sejam concebidas enquanto representações do espaço. As representações do espaço são o espaço dominante na sociedade porque estão articuladas intimamente às relações de poder e à “ordem” que tais relações impõem (LEFEBVRE, 1991; MERRIFIELD, 2000). Como Harvey (1998, p. 212) observa:

O incentivo à criação de um mercado mundial, para a redução de barreiras espaciais e para a aniquilação do espaço através do tempo, é onipresente, tal como é o incentivo para racionalizar a organização espacial em configurações de produção eficientes (organização serial da divisão detalhada do trabalho, linhas de montagem, divisão territorial do trabalho e aglomeração dos trabalhadores nas cidades), redes de circulação (sistemas de transporte e de comunicação) e de consumo (formas de uso e manutenção de residências, organização comunitária, diferenciação residencial, consumo coletivo nas cidades).

Desse modo, as transformações no espaço e no tempo colaboram para a redistribuição do poder social à medida que modificam as condições de ganhos em termos monetários. Assim, a capacidade de influenciar a produção de espaço é um meio extraordinário para se alcançar um aumento de poder social. Ou seja, em termos materiais, aqueles com capacidade de afetar a distribuição espacial de investimentos em transportes e comunicações e em infraestruturas físicas e sociais, ou a distribuição territorial de forças administrativas, políticas e econômicas, pode obter, por vezes, maior facilidade no alcance de retornos materiais (HARVEY, 1998).

12

O espaço é, portanto, ativamente produzido como parte das estratégias capitalistas de acumulação de capital (MERRIFIELD, 2000). Portanto, não há um espaço existente a priori, dado. Como Lefebvre (2008, p. 38) apresenta, em sua perspectiva da produção social do espaço, “a relação da teoria com a prática não é a de uma abstração transcendente a uma imediatidade ou a um ‘concreto’ anterior. A abstração teórica já está no concreto. É preciso aí revelá-la. No seio do espaço percebido e concebido já se encontra o espaço teórico e a teoria do espaço”. As organizações, enquanto espaços sociais produzidos com vistas à reprodução das relações (sociais) de produção (Lefebvre, 1991) relacionam-se, portanto, às teorias relativas a estas construídas dentro do campo dos EOR’s com vistas ao reforço do processo de diferenciação, como Clegg (1998) sugere. O exercício da chefia, nas organizações heterogestionárias, que correspondem à grande maioria das empresas, embora esteja articulado à questão da competência técnica dos dirigentes, em verdade, se presta à manutenção do existente (TRAGTENBERG, 2005). Portanto, defender as empresas, no molde heterogestionário capitalista enquanto a única forma de organização eficiente e eficaz para a organização do trabalho é reiterar formas de se pensar e de se organizar a produção que reafirmam o processo de diferenciação moderno, mantendo o status quo e dificultando transformações radicais futuras. Tratar teoria e prática de maneira dicotômica se presta, então, a reforçar, dentro do campo dos EOR’s o não questionamento das origens e imbricações entre a teoria e a prática nas organizações, recaindo-se em um pensamento tautológico: as organizações existentes são a melhor e única forma de se organizar a produção e as teorias dominantes assim o são porque melhor refletem as práticas organizacionais, ignorando-se, desta forma, a inseparabilidade entre teoria e prática. Trata-se, portanto, de rejeitar um pensamento binário (SOUZA; CARRIERI, 2010) para os EOR’s, entendendo que a teoria também é prática, e que a prática também é teoria, não havendo uma unicidade em nenhuma dessas duas categorias, e nem uma relação opositiva e dialética entre ambas, apesar dos esforços hegemonicamente empreendidos para essa dicotomização. Considerações Finais Conforme Bourdieu e Wacquant (2008, p. 341) alertam, “As aparências sempre estão a favor do aparente”. E nós, pesquisadores do campo de Estudos Organizacionais, por vezes, aceitamos esta aparência como um “dado” empírico, indiscutível, ignorando o fato de que as organizações são espaços sociais construídos para reforçar a aparência da inexistência da fratura social que caracteriza a modernidade. Como Harvey (1998, p. 218) apresenta, “As práticas temporais e espaciais nunca são neutras nos assuntos sociais; elas sempre exprimem algum tipo de conteúdo de classe ou outro conteúdo social, sendo muitas vezes o foco de uma intensa luta social”. Assim, as organizações, aparentemente unas, harmônicas, são espaços que foram construídos justamente para favorecer tal visão, a fim de que esta seja compartilhada (e não exposta e discutida). Elas não existem a priori, não são “dadas” de modo natural: antes, envolvem uma teorização com a qual se relacionam reciprocamente. Bertero (1999) afirmou que a teoria organizacional normal, prevalecente, é muito mais uma teoria voltada àqueles que gerem que aos geridos. Assim, a teoria hegemônica nos Estudos Organizacionais, que mantém uma relação mútua de influência com a prática organizacional, apresenta forte influência do pensamento moderno, o qual reafirma o processo de diferenciação, aumentando a fratura social que separa os que pensam daqueles que executam o trabalho. A intenção deste ensaio foi contribuir para a reflexão dos agentes do campo dos Estudos Organizacionais a respeito do perspectivismo das teorias engendradas no

13

campo e da interação recíproca entre estas e as práticas organizacionais. Assim, quem sabe, nós, agentes desse campo, deixemos de pensar as organizações enquanto “naturais” e as teorias do campo como “neutras” e possamos nos perguntar a que processos favorecemos com nossa própria produção acadêmica.

A contribuição específica deste ensaio está sobretudo na maneira pela qual se propõe essa reflexão, acionando temáticas que, combinadas, podem trazer novos elementos de debate: a relação entre a teoria e a prática; os Estudos Organizacionais entendidos como um campo; a modernidade e a diferenciação como sua característica; e as organizações como espaços construídos. Pudemos analisar como teorias sociais que estão, em muitos casos, dispersas nos estudos organizacionais podem, juntas, contribuir para a desmistificação de noções tradicionais desse campo de pesquisas, ao acionar autores como Bourdieu (1983; 2005), Clegg (1998) e Lefebvre (1991; 2008).

Na articulação dessas noções, pudemos reforçar que não há dissociação entre teoria e prática e que as organizações não são fenômenos naturais, mas socialmente construídos e que invocam também, em relação às pesquisas que as têm como objeto de estudo, a construção de um campo, um espaço de disputas que constituem os Estudos Organizacionais.

Buscamos argumentar, portanto, que considerar os EOR’s como aperspectivista se presta, portanto, a legitimar um corpo de ideias que se propõe a defender argumentos favoráveis à manutenção das organizações como espaços sociais que reforçam a fratura social, buscando minar a crítica ao status quo. Referências Bibliográficas AKTOUF, Omar. Pós-globalização, administração e racionalidade econômica: a síndrome do avestruz. São Paulo: Atlas, 2004. 297p. ALCADIPANI, R.; TURETA, C. Perspectivas críticas no Brasil: entre a ‘verdadeira crítica’ e o dia a dia. Cadernos Ebape.BR, v. 7, nº 3, artigo 7, Rio de Janeiro, Set. 2009.

BERTERO, Carlos Osmar. Nota técnica: a coruja de Minerva – reflexões sobre a teoria na prática. In: CLEGG, Stewart; HARDY, Cynthia; NORD, Walter. Handbook de estudos organizacionais. Volume 2. São Paulo Atlas, 1999. BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 122-155. BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, L. J. D. An Invitation to Reflexive Sociology. The University of Chicago Press: Chicago, 1992. p. 94-115. BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 1996. 231 p. BOURDIEU, Pierre. O Campo Econômico. Revista Política e Sociedade, n. 6, abr. 2005. p. 15-57. BURRELL, Gibson. Ciência normal, paradigmas, metáforas, discursos e genealogia da análise. In: CLEGG, Stewart R.; HARDY, Cynthia; NORD, Walter R. (Orgs.) Handbook de estudos organizacionais. São Paulo: Atlas, 1999. Vol. 1, p.439-462.

14

CARRIERI, A. P. A gestão ordinária. 2012. Tese (Tese para concurso de Prof. Titular) – Faculdade de Administração, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. v. 1. Petrópolis: Vozes, 1998. 351 p.

CLEGG, Stewart. Organizações modernas. Celta: Oeiras, Portugal, 1998. DUARTE, Cláudio Roberto. Notas de pesquisa: as contradições do espaço ao espaço vivido em Henri Lefebvre. In: DAMIANI, Amélia Luisa; CARLOS, Ana Fani Alessandri; SEABRA, Odette Carvalho de Lima. (Orgs.). O espaço no fim de século: a nova raridade. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2001. p. 75- 80. FACHIN, Roberto; RODRIGUES, Suzana Braga. Nota técnica: teorizando sobre organizações – vaidades ou pontos de vista? In: CLEGG, Stewart, HARDY, Cynthia, NORD, Walter. Handbook de estudos organizacionais. Volume 1. São Paulo Atlas, 1999. p. 99-104. FILIPE, Rafael Gomes. Modernidade: crítica da modernidade e ironia epistemológica em Max Weber. Lisboa: Instituto Piaget, s/d. p. 20-50; 83-108. HARVEY, David. Condição pós-moderna. 7. ed. São Paulo: Ed. Loyola, 1998. 349p. KELEMAN, Michaela; HASSARD, John. Paradigm plurality: exploring past, present, and future trends. . In: WESTWOOD, Robert; CLEGG, Stewart. Debating organization: point-counterpoint in organization studies. Oxford: Blackwell, 2003. p. 73-82. LEFEBVRE, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2008. p. 36-57. LEFEBVRE, Henri. The production of space. Oxford: Blackwell, 1991. p.1-67. MARSDEN, Richard; TOWLEY, Barbara. Introdução: a coruja de Minerva – reflexões sobre a teoria na prática. In: CLEGG, Stewart; HARDY, Cynthia; NORD, Walter. Handbook de estudos organizacionais. Volume 2. São Paulo Atlas, 1999. MCKELVEY, Bill. From fields to science: can organization studies make the transition? In: WESTWOOD, Robert; CLEGG, Stewart. Debating organization: point-counterpoint in organization studies. Oxford: Blackwell, 2003. p. 37-73. MCKINLEY, William. From subjectivity to objectivity: a constructivist account of objectivity in organization theory. In: WESTWOOD, Robert; CLEGG, Stewart. Debating organization: point-counterpoint in organization studies. Oxford: Blackwell, 2003. p. 142-156. MERRIFIELD, Andy. Henri Lefebvre: a socialist in space. In: CRANG, Mike; THRIFT, Nigel. (Orgs.). Thinking space. New York: Routledge, 2000. p. 167-182. RAMOS, Alberto Guerreiro. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: FGV, 1981. (Cap. 1 e 2).

15

REED, Michael. Teorização organizacional: um campo historicamente contestado. In:CLEGG, Stewart R.; HARDY, Cynthia; NORD, Walter R. (Orgs.) Handbook de estudos organizacionais. São Paulo: Atlas, 1999. Vol. 1, p.61-98. SOUZA, E. M.; BIANCO, M. F. Subvertendo o desejo no teatro das organizações: problematizações contemporâneas sobre o desejo e a expansão da vida nas relações de trabalho. Cadernos Ebape.BR, v. 9, n. 2, Rio de Janeiro, p. 394-411, jun. 2011. SOUZA, E. M.; CARRIERI, A. P. A Analítica Queer e seu rompimento com a concepção binária de gênero. Revista de Administração Mackenzie, v. 11, p. 46-70, 2010.

SOUZA, E. M.; PETINELLI-SOUZA, S.; SILVA, A. R. L. O pós-estruturalismo e os estudos críticos de gestão: a busca pela emancipação à constituição do sujeito. Revista de Administração Contemporânea, v. 17, n. 2, p. 198-217, mar./ abr. 2013.

THIRY-CHERQUES, H. R. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, v.40, n. 1, p. 27-55, jan./fev. 2006. TRAGTENBERG, Maurício. A co-gestão e o participacionismo ou “Alice no país das maravilhas”. In: TRAGTENBERG, Maurício. Administração, poder e ideologia. São Paulo: UNESP, 2005. Cap. 2. VIEIRA, Marcelo Milano Falcão; CALDAS, Miguel P.. Teoria crítica e pós-modernismo: principais alternativas à hegemonia funcionalista. Rev. adm. empres., São Paulo, v. 46, n. 1, Mar. 2006 . WEBER, Max. A Ética Protestante e o "Espirito" de Capitalismo. São Paulo: Editors Schwarcz, 2004.

i Referimo-nos aos pesquisadores enquanto agentes e não sujeitos, uma vez que o conceito de habitus especificamente fornece as condições para se entender o porquê da adoção daquele termo em detrimento deste. Para Bourdieu, os indivíduos não são livres e nem determinados, são agentes sociais na medida em que, dotados de habitus, pensam e agem dentro de estreita liberdade, que é dada pela lógica do campo e da situação que nele ocupa (BOURDIEU, 1996). ii Os habitus são os princípios geradores de práticas distintas como, por exemplo, o que o trabalhador come e, sobretudo, sua maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de praticá-lo, e assim por diante (BOURDIEU, 1996). São disposições, gestos, modos de perceber, de sentir, pensamentos, formas de estar, de fazer, que os indivíduos incorporam de tal forma que já não têm consciência. O habitus acaba constituindo a forma com que o indivíduo percebe, julga e valoriza o mundo. Vale ressaltar que suas disposições não são mecânicas e nem mesmo determinísticas, são plásticas e flexíveis, podendo ser fortes ou fracas (THIRY-CHERQUES, 2006).