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Antigos Combatentes Africanos em Portugal Muitos antigos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas residem actualmente em Portugal. Alguns desses homens estavam em Portugal quando terminaram as guerras e não voltaram aos seus territórios de origem, enquanto que outros foram chegando após o 25 de Abril de 1974. Uns vieram porque foram afastados, expulsos ou rejeitados dos projectos dos novos Estados africanos onde nasceram ou deles partiram porque se sentiam desiludidos com os mesmos; outros porque não alcançaram a qualidade de vida que aspiravam, um dia, vir a conquistar, ou porque aqueles territórios não lhes ofereceram condições que lhes permitissem sobreviver como ambicionavam. As suas experiências e opiniões sobre a guerra, não se distinguem substancialmente das que proferem muitos dos antigos combatentes portugueses que um dia partiram da então metrópole para combater em África. Para todos, o final da guerra significou recomeçar as suas vidas marcadas por uma experiência inolvidável. Para muitos desses antigos combatentes, africanos ou não, este recomeço, embora naturalmente difícil, foi bem sucedido, enquanto que, para muitos outros, as marcas deixadas pela guerra impediram-nos de concretizar projectos anteriormente desejados. Mas, ao contrário da maioria dos ex-combatentes portugueses, muitos destes africanos vivem, ainda hoje, longe das suas famílias, da sua casa e da terra onde nasceram, que tiveram que deixar para vir para Portugal e alguns deles aguardam, ainda hoje, o que esperavam encontrar: obter o mesmo reconhecimento pela sua participação na guerra que os antigos combatentes portugueses obtiveram, porque também eles eram portugueses quando foram integrados nas Forças Armadas Portuguesas. Embrenhados em processos burocráticos intermináveis, para muitos deles, esse reconhecimento continua a tardar e adiar o regresso a casa, onde não querem chegar como dela partiram, torna-os reféns de uma guerra na qual, como muitos outros, combateram involuntariamente. Combatentes Africanos das Forças Armadas Portuguesas das Guerras Coloniais (1961-1974): Reféns de Portugal Pós-Colonial Introdução Nas guerras travadas em África entre potências coloniais e povos africanos que resistiam aos seus avanços ou ao seu domínio, bem como entre as próprias forças invasoras que lá disputavam certas posições, o poder colonial recrutou soldados africanos para as suas fileiras. Portugal não fugiu a essa regra e recorreu a tropas africanas sempre que a sua posição em África foi ameaçada, o que aconteceu, mais uma vez, nas últimas guerras que travou em Angola, em Moçambique e na Guiné. Entre 1961 e 1973, foram recrutados aproximadamente 1.400.000 soldados para a guerra; mais de 400 mil faziam parte do recrutamento local, isto sem contar com algumas das forças chamadas auxiliares. No final dos conflitos, o recrutamento local representava aproximadamente metade dos contingentes presentes nos 3 territórios [1] . imagem 1 Pesquisa de Doutoramento* Fátima da Cruz Rodrigues* Objectivos da Pesquisa Este projecto visa compreender como os africanos das Forças Armadas Portuguesas que combateram na guerra colonial, e que residem em Portugal, interpretam os seus percursos de vida. Com base na interpretação de memórias e de narrativas biográficas destes antigos combatentes, que viverem situações coloniais e pós-coloniais diversificadas, pretende-se compreender como se posicionam face ao seu envolvimento na guerra e aos seus percursos de vida e problematizar as múltiplas, complexas e provavelmente contraditórias relações que compunham e compõem, ainda, os seus quotidianos. A análise interpretativa dos percursos de vida destes homens, cujas referências identitárias parecem assumir, simultânea e paradoxalmente, condições de sujeitos colonizados e de actores responsáveis pela manutenção da força colonial, procura contribuir para aprofundar a compreensão da situação pós-colonial e dos processos de colonização/descolonização portugueses. Percurso Metodológico O percurso metodológico da pesquisa é de carácter qualitativo. O trabalho empírico privilegiou a recolha e interpretação de narrativas biográficas de antigos combatentes africanos, oriundos de Angola, de Moçambique e da Guiné-Bissau mas recorreu, igualmente, a outros discursos que fossem testemunhos das suas vivências durante e após a guerra colonial. A observação de diversos eventos associados às guerras coloniais e de encontros entre antigos combatentes, constituiu outro meio de recolha de dados e de informações. A pesquisa documental, em arquivos históricos, foi utilizada para seguir pistas, bem como para suportar e problematizar alguns dados sugeridos, sobretudo, pelas narrativas biográficas. Pretende-se que os conceitos estruturadores da tese sejam sugeridos pela interpretação dos dados recolhidos, privilegiando-se, deste modo, uma abordagem compreensiva onde a Grounded Theory assume um lugar de destaque uma vez que permite proceder a sucessivas abstracções conceptuais e o confronto dos seus resultados com teorias e conceitos existentes. Tendo em conta este percurso metodológico, assume-se que apresentar hipóteses de trabalho, que significam adoptar um raciocínio hipotético-dedutivo, comprometeria as potencialidades e possibilidades heurísticas que o trabalho empírico pode oferecer. Contudo partiu-se da hipótese de pesquisa provisória que se segue, de modo a garantir um trabalho empírico orientado. Hipótese Para os ex-combatentes de origem africana os relacionamentos estabelecidos entre os diversos sujeitos que com eles interagiram durante a guerra colonial, os espaços culturais, políticos e sociais que passaram a ocupar a partir da sua participação nesse conflito, bem como os papéis que desempenharam no mesmo, constituem referências interpretativas e potencialidades estratégicas que mobilizam no sentido de justificar posicionamentos e de reivindicar estatutos e direitos político-jurídicos no contexto pós-colonial. Doutoramento apoiado pela FCT programa de doutoramento Pós-Colonialismos e Cidadania Global orientador Professor José Manuel Mendes [email protected] Referências Imagem 1 - Teixeira, Rui de Azevedo, Guerra de África: Angola 1961-1974, Matosinhos: QuidNovi,2006, p.74. [1] CORREIA, Pedro Pezarat: "A participação local no desenvolvimento das campanhas". AAVV, Estudos sobre as Campanhas de África (1961-1974). Antena e Instituto de Altos Estudos Militares. S. Pedro do Estoril, 2000, pp.143-153. O poster estará disponível, a partir de 8 de Julho, em www.ces.uc.pt/ciencia2010

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Page 1: Reféns de Portugal Pós-Colonial - ces.uc.pt Rodrigues.pdf · Mas, ao contrário da maioria dos ex-combatentes portugueses, muitos destes africanos vivem, ainda hoje, longe das suas

Antigos Combatentes Africanos em Portugal

Muitos antigos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas residem actualmente

em Portugal. Alguns desses homens estavam em Portugal quando terminaram as guerras e não

voltaram aos seus territórios de origem, enquanto que outros foram chegando após o 25 de Abril

de 1974. Uns vieram porque foram afastados, expulsos ou rejeitados dos projectos dos novos

Estados africanos onde nasceram ou deles partiram porque se sentiam desiludidos com os

mesmos; outros porque não alcançaram a qualidade de vida que aspiravam, um dia, vir a

conquistar, ou porque aqueles territórios não lhes ofereceram condições que lhes permitissem

sobreviver como ambicionavam.

As suas experiências e opiniões sobre a guerra, não se distinguem substancialmente das que

proferem muitos dos antigos combatentes portugueses que um dia partiram da então metrópole

para combater em África. Para todos, o final da guerra significou recomeçar as suas vidas

marcadas por uma experiência inolvidável. Para muitos desses antigos combatentes, africanos

ou não, este recomeço, embora naturalmente difícil, foi bem sucedido, enquanto que, para

muitos outros, as marcas deixadas pela guerra impediram-nos de concretizar projectos

anteriormente desejados. Mas, ao contrário da maioria dos ex-combatentes portugueses, muitos

destes africanos vivem, ainda hoje, longe das suas famílias, da sua casa e da terra onde

nasceram, que tiveram que deixar para vir para Portugal e alguns deles aguardam, ainda hoje,

o que esperavam encontrar: obter o mesmo reconhecimento pela sua participação na guerra

que os antigos combatentes portugueses obtiveram, porque também eles eram portugueses

quando foram integrados nas Forças Armadas Portuguesas. Embrenhados em processos

burocráticos intermináveis, para muitos deles, esse reconhecimento continua a tardar e adiar o

regresso a casa, onde não querem chegar como dela partiram, torna-os reféns de uma guerra

na qual, como muitos outros, combateram involuntariamente.

Combatentes Africanos das Forças Armadas Portuguesas

das Guerras Coloniais (1961-1974):

Reféns de Portugal Pós-Colonial

Introdução

Nas guerras travadas em África entre potências coloniais e povos africanos que resistiam aos seus avanços ou ao

seu domínio, bem como entre as próprias forças invasoras que lá disputavam certas posições, o poder colonial

recrutou soldados africanos para as suas fileiras. Portugal não fugiu a essa regra e recorreu a tropas africanas

sempre que a sua posição em África foi ameaçada, o que aconteceu, mais uma vez, nas últimas guerras que

travou em Angola, em Moçambique e na Guiné.

Entre 1961 e 1973, foram recrutados aproximadamente 1.400.000 soldados para a guerra; mais de 400 mil faziam

parte do recrutamento local, isto sem contar com algumas das forças chamadas auxiliares. No final dos conflitos, o

recrutamento local representava aproximadamente metade dos contingentes presentes nos 3 territórios [1] .imagem 1

Pesquisa de Doutoramento*

Fátima da Cruz Rodrigues*

Objectivos da Pesquisa

Este projecto visa compreender como os africanos das Forças Armadas Portuguesas que

combateram na guerra colonial, e que residem em Portugal, interpretam os seus percursos de

vida. Com base na interpretação de memórias e de narrativas biográficas destes antigos

combatentes, que viverem situações coloniais e pós-coloniais diversificadas, pretende-se

compreender como se posicionam face ao seu envolvimento na guerra e aos seus percursos

de vida e problematizar as múltiplas, complexas e provavelmente contraditórias relações que

compunham e compõem, ainda, os seus quotidianos. A análise interpretativa dos percursos de

vida destes homens, cujas referências identitárias parecem assumir, simultânea e

paradoxalmente, condições de sujeitos colonizados e de actores responsáveis pela

manutenção da força colonial, procura contribuir para aprofundar a compreensão da

situação pós-colonial e dos processos de colonização/descolonização portugueses. Percurso Metodológico

O percurso metodológico da pesquisa é de carácter

qualitativo. O trabalho empírico privilegiou a recolha e

interpretação de narrativas biográficas de antigos

combatentes africanos, oriundos de Angola, de Moçambique

e da Guiné-Bissau mas recorreu, igualmente, a outros

discursos que fossem testemunhos das suas vivências durante

e após a guerra colonial. A observação de diversos eventos

associados às guerras coloniais e de encontros entre antigos

combatentes, constituiu outro meio de recolha de dados e

de informações. A pesquisa documental, em arquivos

históricos, foi utilizada para seguir pistas, bem como para

suportar e problematizar alguns dados sugeridos, sobretudo,

pelas narrativas biográficas.

Pretende-se que os conceitos estruturadores da tese sejam

sugeridos pela interpretação dos dados recolhidos,

privilegiando-se, deste modo, uma abordagem

compreensiva onde a Grounded Theory assume um lugar de

destaque uma vez que permite proceder a sucessivas

abstracções conceptuais e o confronto dos seus resultados

com teorias e conceitos existentes.

Tendo em conta este percurso metodológico, assume-se que

apresentar hipóteses de trabalho, que significam adoptar um

raciocínio hipotético-dedutivo, comprometeria as

potencialidades e possibilidades heurísticas que o trabalho

empírico pode oferecer. Contudo partiu-se da hipótese de

pesquisa provisória que se segue, de modo a garantir um

trabalho empírico orientado.

Hipótese

Para os ex-combatentes de origem africana os

relacionamentos estabelecidos entre os diversos sujeitos que

com eles interagiram durante a guerra colonial, os espaços

culturais, políticos e sociais que passaram a ocupar a partir da

sua participação nesse conflito, bem como os papéis que

desempenharam no mesmo, constituem referências

interpretativas e potencialidades estratégicas que mobilizam

no sentido de justificar posicionamentos e de reivindicar

estatutos e direitos político-jurídicos no contexto pós-colonial.

Doutoramento apoiado pela FCT

programa de doutoramento

Pós-Colonialismos e Cidadania Global

orientador

Professor José Manuel Mendes

[email protected]

Referências

Imagem 1 - Teixeira, Rui de Azevedo, Guerra de África: Angola 1961-1974, Matosinhos:

QuidNovi,2006, p.74.

[1] CORREIA, Pedro Pezarat: "A participação local no desenvolvimento das campanhas".

AAVV, Estudos sobre as Campanhas de África (1961-1974). Antena e Instituto de Altos

Estudos Militares. S. Pedro do Estoril, 2000, pp.143-153.

O poster estará disponível, a partir de 8 de Julho, em www.ces.uc.pt/ciencia2010