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Theologica Xaveriana ISSN: 0120-3649 [email protected] Pontificia Universidad Javeriana Colombia Dietrich, Luiz José; Triana Rodríguez, Jorge Yecid Quando imagens passam a ser consideradas ídolos Theologica Xaveriana, vol. 66, núm. 181, enero-junio, 2016, pp. 103-122 Pontificia Universidad Javeriana Bogotá, Colombia Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=191045809005 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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  • Theologica Xaveriana

    ISSN: 0120-3649

    [email protected]

    Pontificia Universidad Javeriana

    Colombia

    Dietrich, Luiz Jos; Triana Rodrguez, Jorge Yecid

    Quando imagens passam a ser consideradas dolos

    Theologica Xaveriana, vol. 66, nm. 181, enero-junio, 2016, pp. 103-122

    Pontificia Universidad Javeriana

    Bogot, Colombia

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=191045809005

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  • theol. xave. vol. 66 no. 181 ene.-jun. 2016 103-122 bogot, colombia issn 0120-3649 103

    * Ensaio investigativo na histria da religio de Israel. ** Luiz Jos Dietrich: Doutor em Cincias da Religio, pela Universidade Metodista de So Paulo, UMESP. Professor adjunto do Programa de Ps Graduao em Teologia da Pontifcia Universidade Ca tlica do Paran, PUC PR. Correio eletrnico: [email protected]. Jorge Yecid Triana Ro dr-guez: Licentiatum in Scientiis Biblicarum et Archaeologiae por el Studium Biblicum Franciscanu, de Je rusaln. Docente investigador de la Corporacin Universitaria Minuto de Dios. Correio eletrnico: [email protected]

    doi: 10.11144/javeriana.tx66-181.qipci

    Quando imagens passam a ser consideradas dolos*

    luiz JOS dietrichJOrge Yecid triana rOdrguez**

    Resumo: Os autores refletem sobre o uso de imagens na histria da religio do antigo Israel. De um contexto em que as imagens eram abundantes y seu uso aceito e normal, chegase proibio total de imagens. Buscando as razes da luta contra as imagens, apresentam um conceito de idolatria no tanto relacionado s imagens em si, mais como um grito no combate s injustias, violncias e de-sigualdades sociais.Palavras chave: Idolatria; traduo da Bblia; te-ra fim; imagens de metal fundido; religio; poder e colonialismo.

    para citar este artculo:Dietrich, Luiz Jos y Jorge Y. Triana. Quando ima-gens passam a ser consideradas dolos. Theologica Xa veriana 181 (2016): 103-122. http://dx.doi.org/ 10.11144/javeriana.tx66-181.qipci

    recibidO: 15-05-15. aprObadO: 12-11-15

    cuando las imgenes pasan a ser consideradas dolos

    Resumen: Los autores reflexionan sobre el uso de imgenes en la historia de la re ligin del antiguo Israel. Parten de un contexto en que las imgenes eran abundantes y regularmente usadas, para pasar a su pro-hi bicin total. Al buscar las races de la lucha contra las imgenes, presentan un con cepto de idolatra relacionado no con las imgenes en s, sino con el combate a las in justicias, la violencia y las desigualdades sociales.Palabras claves: Idolatra, traduccin de la Biblia, terafim, imgenes de metal fun-dido, religin, poder, colonialismo.

    When images become idols

    Summary: The authors reflect about the use of images in the history of ancient Israels religin, from a context in which images were abundant and ussualy used, to a context in which they were absolutely forbidden. Looking for the roots of this struggle against images, the authors pre-sent a concept of idolatry, not related to the images, but to the fight against injustices, violence and social inequalities.Key words: idolatry, Bibles translation, terafim, molten metal images, religion, power and colonialism.

  • quando imagens passam a ser consideradas dolos luis jos dietrich y jorge yecid triana104

    IntroduoAs recentes mudanas nas concepes e na metodologia de anlise da arqueologia do mundo da Bblia esto implicando em muitas transformaes no modo de com-preen dermos a histria de Israel, a histria da Bblia e a histria de muitas de suas teologias e instituies1.

    A nova maneira de conceber a histria de Israel nos desafia a reler quase tudo o que pensvamos saber sobre as teologias do antigo Israel e tambm suas instituies. O quadro agora muito menos linear do que imaginvamos e tambm mais complexo, mas ao mesmo tempo, esperamos, mais prximo da vida real, menos mitificado, me-nos idealizado.

    Caem certezas e nascem novos desafiosNo quadro que temos atualmente, a histria de Israel no tem incio na Babilnia, nos anos 1800 a.C., com a migrao de Abrao. Porm, inicia-se bem mais tarde, entre 1500 e 1300 a.C., em Cana. Nesta poca teria acontecido a sedentarizao de algumas famlias de pastores ao redor de trs regies das montanhas centrais da Pales-tina: Siqum, Betel e Hebron. Na poca essa regio parte do territrio conhecido como Cana.

    As povoaes destes locais guardaram e transmitiram os nomes dos patriarcas das primeiras famlias que ali se assentaram. Em Siqum, junto ao poo, guardaram-se as memrias de Jac (Gn 33,18-19; 48,21-22; cfr. Jo 4,5.12). No santurio de Betel, trans mite-se o nome de Israel como seu fundador (Gn 28,10-22; 33,20; 35,1-15). E junto ao tmulo de Macpela, em Hebron, mantiveram-se as memrias de Abrao (Gn 23,19-20). Junto s memrias dos patriarcas, as tradies tambm guardam os nomes das matriarcas: Lia, Raquel e Sara, Agar, entre outras.

    Esses assentamentos teriam acontecido independentemente uns dos outros. E as famlias envolvidas provavelmente no tinham relao de parentesco umas com as outras. No sabemos muito mais detalhes sobre elas. Acredita-se que fossem de ori-gem pastoril porque os vilarejos que originaram tm suas casas construdas formando um crculo ao redor de um espao central, lembrando a maneira como os pastores or ga nizavam seus acampamentos, dispondo as barracas ao redor de um centro onde as cabras e ovelhas eram guardadas nas noites2.

    1 Sobre isso ver mais em Finkelstein y Silbermann, A Bblia no tinha razo, 15-41; Liverani, Para alm da Bblia. Histria antiga de israel, 13-17 e 440-443; Silva, A Histria de Israel na pesquisa atual, 43-87 (e tambm o site: http://www.airtonjo.com).2 Finkelstein y Silbermann, A Bblia no tinha razo, 159.

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    Mais um aspecto que fala em favor da origem pastoril dessas famlias precurso-ras de Israel a proibio de comer carne de porco. Nas partes planas, onde vivia a maior parte da populao de Cana, integrada s cidades-estado, porcos eram criados e con sumidos e as escavaes arqueolgicas nessa regio encontram muitos ossos destes ani mais. Mas, eles esto ausentes nas partes montanhosas3.

    O surgimento de Israel est vinculado crise das cidades-Estado das plancies. Isto aconteceu entre os anos 1250-1100 a.C. Esta crise est relacionada principalmente s diversas invases dos chamados povos do mar, guerras entre cidades e secas prolongadas. As guerras traziam sofrimentos e perdas terrveis para as famlias camponesas. Elas viviam, tinham suas casas, animais e plantaes fora das muralhas, e eram as primeiras a sofrer os ataques. Uma sequncia de invases e guerras teria cau-sa do um fluxo migratrio das plancies para as montanhas. E os pequenos vilarejos, esta belecidos pelas primeiras famlias de pastores, cresceram ao redor de Siqum, Betel e Hebron e originaram as primeiras tribos, possivelmente dando incio ao povo que na estela erigida pelo fara Merneptah, de 1213-1203 a.C., chamado de Israel.

    Esta estela o testemunho mais antigo do nome Israel, e refere-se a um povo que vivia na regio montanhosa central de Cana. A forma como a palavra Israel est escrita na estela pode ser indicativo de povos nmades, seminmades, mas neste caso provavelmente esteja se referindo a pequenos vilarejos de camponeses que no ha viam constitudo cidades com muralhas4. Provavelmente tratava-se j das tribos de Efraim, Benjamim e Manasss. A regio de Hebron talvez fosse parte de Benjamim, ou talvez j existisse a tribo de Jud5, sendo Hebron ento o centro da tribo de Jud.

    Certamente foram estas trs, ou quatro, tribos que, por volta dos anos 1050 a.C. formaram a monarquia do Benjaminita Saul (1Sm 9,1-2). As dimenses bblicas da jurisdio de Saul vo de Jabes de Galaad, a poucos quilmetros no outro lado do Jor do (1Sm 11,1-15; 31,8-13), at a localidade de Carmel, alguns quilmetro ao sul de Hebron (1Sm 15,12), incluindo, portanto, pequena parte da Transjordnia e da re gio montanhosa da Palestina central6.

    3 Ibd., 169.4 Kessler, Histria social do Antigo israel, 56. 5 Em Jz 5, o chamado cntico de Dbora, considerado um dos trechos mais antigos da Bblia, no menciona Jud. Ver Siegfried, Historia de israel en la poca del Antiguo Testamento, 59-150; e Bailo, Shiloh. O messianismo antigo, 36-64.6 Kaefer, A Bblia, a arqueologia e a histria, 149-166, especialmente 161-162.

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    Estas trs ou quatro tribos sob o comando de Saul sero a base do reino de Israel, que conhecemos como o reino do norte. Tambm aqui no sabemos ao certo se a tribo de Jud j existia e era parte dos domnios de Saul. Mas, se o substrato de 1Sm 17, corresponde a histria, o fato de Jess, o pai de Davi, que vivia prximo de He-bron, em Belm, ter enviado alguns de seus filhos para lutar no exrcito de Saul (1Sm 17,12-14), permite pensar que pelo menos parte do que ser o territrio de Jud estava dentro da jurisdio militar de Saul. Talvez fizesse parte do territrio de Benjamim.

    O reino de Jud s se forma aps Saul e seus filhos mais velhos terem sido massacrados pelos filisteus (1Sm 31). Ao retornar de seu refgio entre os filisteus, Davi consagrado rei em Hebron (2Sm 2,1-4). Nasce ali o reino de Jud. Bem mais mo desto em quantidade de terras frteis e de homens, Jud sempre ser bem menos im portante na guerra, na poltica e na economia do que seu vizinho do norte, Israel. E assim, permanecer quase a maior parte do tempo, sombra do reino do norte, at a in vaso assria derrotar e desestruturar o reino de Israel em 722 a.C.

    Uma das afirmaes mais estrondosas da nova arqueologia a constatao de que o grande imprio davdico-salomnico, descrito nos primeiros captulos de 1Reis, jamais existiu. As escavaes arqueolgicas feitas com os critrios cientficos da ar queologia moderna, independente frente Bblia, no encontram nenhum vestgio do vasto e rico imprio descrito nos primeiros 10 captulos de 1Rs. Fora da Bblia no h nenhum testemunho da existncia de Salomo. Fato este que leva arquelogos mais cticos inclusive a afirmarem que Salomo um mito.

    Fora da Bblia, o nome de Davi aparece uma s vez. Ele mencionado na chamada estela de D. Esta estela teria sido erigida pelo rei Hazael, de Damasco/Aram por volta de 841 a.C., celebrando sua vitria sobre uma coalizo formada pelo rei Joro, que governou Israel de 848 a 841 a.C., e pelo rei Ocozias, que foi rei de Jud em 841 a.C. A estela indiretamente menciona Davi referindo-se a Ocozias como rei da BetDavid, casa de Davi7. Para a maioria dos estudiosos isto uma prova extra b blica da existncia de Davi e do seu reino.

    A constatao que hoje predomina nos estudos acadmicos a de que Jerusa-lm, a capital do reino de Jud, s ser uma grande e importante cidade aps a Assria invadir, desarticular e anexar o reino de Israel aos seus domnios em 722 a.C. At esta poca Jud viveu sombra do reino de Israel, que na dinastia de Amri (885-841 a.C.) e no governo de Jeroboo II (783-743 a.C.) alcanar grande desenvolvimento so ciocultural e poltico.

    7 Sobre essa estela ver dem, A estela de D, 33-46.

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    Jerusalm s alcanar importncia poltica e situao sociocultural semelhan te Samaria na poca de Ezequias (716-687 a.C.), quando a Assria destruiu a capital e outras cidades importantes do reino do norte, e tambm devastou 46 pequenas cidades de Jud, situadas nos arredores de Jerusalm. Nesta poca, Ezequias, para acolher os fugitivos das reas atacadas, aumentou o tamanho da cidade de Jerusalm, que passou de cinco hectares (em grande parte ocupados por templo e palcio) para sessenta hec-tares, e a populao provvel passou de 1.000 para 15.000 habitantes, no espao de uma gerao8 (entre os anos 722-700 a.C.). Esses nmeros referem-se certamente a refugiados mais ricos, acolhidos dentro das muralhas, que foram ampliadas para receb-los, mas muitos camponeses mais pobres devem ter-se integrado famlias cam ponesas fora das muralhas, nos arredores de Jerusalm.

    Assim muito provvel que os refugiados do norte, mais desenvolvido, tenham trazido suas tradies j escritas, talvez entre elas algum esboo de histria, que foram reor ganizados e desenvolvidos agora a partir de Jerusalm pelos escribas de Ezequias e de Josias9.

    Essas so algumas das consequncias e desafios para a leitura e interpretao da Bblia no que diz respeito histria de Israel e da prpria Bblia.

    Nova histria, novas compreenses da teologia e da religio de Israel

    Mas consequncias no menos importantes e desafiantes se do no campo da compreenso do desenvolvimento da religio e das teologias de Israel10. Aqui precisamos reconfigurar nosso modo de compreender a religio de Israel, que fez um complexo per curso do politesmo, com uma grande diversidade deuses e deusas, locais de culto, fa mlias sacerdotais, liturgias, imagens, etc., para um monotesmo, centralizado em

    8 Liverani,Para alm da Bblia, 195-199.Dados semelhantes so fornecidos porFinkelstein e Silberman,A Bblia no tinha razo, 29-331.Uma estimativa divergente, com nmeros um pouco maiores, apresentada por Schniedewind,Como a Bblia tornouse um livro. A textualizao do Antigo israel, 98-106. Porm este autor parece superestimar a importncia de Jerusalm no tempo de Ezequias.9 Ibd., 48-90. As tradies provindas do norte so possivelmente as seguintes: as tradies de Jac/Israel, de Jos (seus filhos so Efraim e Manasss, nomes das duas principais tribos do norte), as tradies sobre o xodo, o cdigo da aliana (Ex 20,22-23,19), a tradio do bezerro de ouro (Ex 32-34), as tradies dos chamados juzes libertadores, dos santurios de Silo, Gilgal e Betel, de Samuel, de Saul, dos profetas Elias e Eliseu, o ncleo mais antigo de Dt 12-26, as tradies dos profetas Ams e Osias, etc., alm dos anais dos reis de Israel, e possivelmente ainda outro textos. 10 Para o processo de instituio da teologia monotesta em Israel ver Dietrich, Quando Deus faz mal e mata, 11-27, onde h tambm indicao de outras bibliografias a respeito.

  • quando imagens passam a ser consideradas dolos luis jos dietrich y jorge yecid triana108

    Je ru salm como nico local de culto, controlada por uma famlia sacerdotal e com um cdigo litrgico nico.

    Um dos aspectos que pretendemos desenvolver mais neste texto a questo das imagens. At aproximadamente os anos 720 a.C., na reforma de Ezequias, as imagens eram parte dos cultos e eram muito disseminadas em Israel e em Jud, tanto no culto p blico, nos muitos santurios e locais de culto espalhados por todo o territrio, quanto no culto domstico.

    Isso pode ser visto no s a partir da expressiva quantidade de imagens en-con tradas pelas escavaes arqueolgicas nos estratos deste perodo, mas tambm na na turalidade com que certos textos mencionam as imagens, e seus portadores, sem nenhuma meno de crtica em relao posse e ao uso de imagens em cultos religiosos (Gn 31,19.34.35; Jz 17,5; 18,14-20; 1Sm 19,13-16). E tambm na forte proibio que posta em vigor pela teologia oficial aps as reformas de Ezequias e de Josias, por exem plo, Dt 7,25-26; 16,21-22.

    dolo ou imagem? A questo das tradues: fidelidade ao texto ou doutrina?

    Em primeiro lugar faz-se necessria uma palavra sobre as tradues da Bblia que temos em portugus e em espanhol. Em muitos casos as tradues apresentadas inserem no tex to traduzido um carter pejorativo, depreciativo, que rebaixa o objeto que est sendo mencionado colocando-o como algo condenvel. Isso ocorre muitas vezes quando o texto bblico hebraico refere-se a alguma imagem, a algum objeto usado normalmente no culto pblico ou domstico, na fase politesta anterior s reformas de Ezequias e de Josias. Muitas tradues usam ou acrescentam a palavra dolo para traduzir palavras que no hebraico indicam simplesmente alguma imagem.

    Uma recente e sinttica apresentao de Dany Nocquet (2012) trata do tema das imagens bblicas de outras divindades no Antigo Testamento, indicando que o vo cabulrio com o qual so nomeadas e qualificadas pelos autores em seus relatos, leis e discursos, extenso e variado. Tal vocabulrio estaria ligado s tcnicas da manufatura artesanal11. Dentre os termos tcnicos usados encontra-se a palavra terafm, identificada 15 vezes, com o significado de estatuetas de terracota ou gravuras entalhadas, como mencionam Gn 31,19.34 y 1Sam 19,13.

    11 Nocquet, el Dios nico y los otros dioses. esbozo de la evolucin religiosa del antiguo israel, 39.

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    Sem uma etimologia claramente definida, os terafim estaban ligados al culto domstico y al de los antepasados12. Tambm se discute sua funo. A esse respeito, de Vaux indica que cumpriam uma funo oracular ou de adivinhao13, associando-os ao efod e s massebot14. Porm, devido proximidade geogrfica e cultural, talvez de vssemos buscar uma compreenso mais prxima do culto aos antepassados como o que apresentado nas religies africanas, tambm apontado acima por Nocquet.

    Imagem uma palavra neutra, no carrega a carga negativa e condenvel que possui a palavra dolo. Pois, especialmente no mundo catlico, e tambm no mundo das religies afro-brasileiras, qualquer pessoa pode dizer: na cabeceira de minha cama tenho trs imagens, mas nenhuma destas pessoas dir: na cabeceira de minha cama tenho trs dolos! Tambm os afiliados aos terreiros do candombl, tambor de mina, ba tuques, umbanda, santerias e outras religies que fazem uso de imagens em seus cultos, no iro referir-se a estas imagens chamando-as de dolos. As semelhanas entre a religio no Israel pr-exlico e a sua religio ofuscada e colocada sob o pejo da idolatria.

    O problema que muitas de nossas tradues fazem isso. Acrescentam a pala-vra dolo na traduo portuguesa e espanhola de palavras hebraicas que se referem a objetos que no texto hebraico so tratados de maneira natural, neutra, como imagem.

    Alguns exemplos da traduo de Gn 31,19 em Bblias em portugus

    bblias em portugus traduo de Gn 31,19Bblia de Jerusalm (BJ)15 Labo fora tosquiar os rebanhos e Raquel

    roubou os dolos domsticos que pertenciam a seu pai.

    A Bblia da CNBB16 Como Labo tinha ido tosquia das ovelhas, Raquel roubou as estatuetas dos dolos de seu pai.

    12 Ibd., 41.13 De Vaux, instituciones del Antiguo Testamento, 456.14 Ibd., 458.15 Editora Paulus, Bblia de Jerusalm.16 Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil, Bblia sagrada.

  • quando imagens passam a ser consideradas dolos luis jos dietrich y jorge yecid triana110

    Traduo ecumnica da Bblia (TEB)17

    Laban tinha ido tosquiar o seu gado, e Raquel roubou os dolos que pertenciam a seu pai.

    Bblia de Estudo Almeida18 Tendo ido Labo fazer a tosquia das ovelhas, Raquel furtou os dolos do lar que pertenciam a seu pai.

    A Nova Verso Internacional (NVI) Bblia de Estudo Arqueolgica19

    Enquanto Labo tinha sado para tosquiar suas ovelhas, Raquel roubou os dolos do cl.

    Bblia Sagrada Ave Maria, edio de estudo20

    Nova Bblia Pastoral21 Labo tinha ido tosquiar o rebanho, e Raquel roubou os terafins que pertenciam a seu pai.

    No entanto o versculo hebraico no tem aqui uma palavra que possa ser traduzida como dolo. O texto menciona a palavra terafim, e o faz com a maior na-tu ralidade. Terafim era o nome dado s imagens de deuses domsticos22, que muito provavelmente eram os ancestrais divinizados de cada famlia, eram os Elohim, das famlias. Cada famlia tinha os seus Elohim (cf. Gn 31,53). No h nessa narrativa nen hum vestgio de crtica posse destas imagens e ao seu uso nos cultos familiares. No caso de Raquel nem sequer o ato de roubar condenado explicitamente! Para os auto res da narrativa estas imagens eram conhecidas, muito comuns e de uso corriqueiro. No h uma explicao sobre elas e nem so consideradas dolos.

    O fato de muitas de nossas tradues traduzirem a palavra terafim, do hebraico para o portugus, com a expresso dolos (conforme tabela acima) revela que os tra-du tores assimilaram as proposies das reformas de Ezequias (+ 720 a.C.) e de Josias

    17 Edies Loyola, Bblia. Traduo ecumnica.18 Sociedade Bblica do Brasil, Bblia de estudo Almeida.19 Editora Vida Nova, Bblia de estudo arqueolgica NVi.20 Editora Ave Maria, Bblia sagrada Ave Maria. edio de estudo.21 Editora Paulus, Nova Bblia pastoral.22 Gessenius, Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament, 875; Koehler e Baumgartner, The Hebrew & Aramaic Lexicon of the Old Testament. The New Koehler-Baumgartner, 4, 1794-1796.

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    (+ 620 a.C.), e as tm como verdadeiras revelaes da vontade de Jav. E as usam de for ma retroativa, em tradies que podem ser anteriores s reformas de Ezequias e de Josias23.

    Exemplos de tradues de Gn 31,19 em Bblias em espanhol

    bblias em espanhol traduo de Gn 31,19Nueva Biblia de Jerusaln Aprovechando que Labn haba ido a

    esquilar sus ovejas, Raquel rob los dolos fami liares que tena su padre24.

    Biblia Del siglo de oro (Reina Valera) Como Labn haba ido a trasquilar sus ovejas, Raquel hurt los dolos de su padre.

    Biblia de estudio Dios habla hoy Mientras Labn fue a otra parte a tras-quilar sus ovejas, Raquel le rob sus dolos familiares.

    Biblia de Amrica Mientras Labn se haba ido a esquilar sus ovejas, Raquel rob los dolos familiares de su padre.

    Biblia para el pueblo de Dios Mientras Labn se haba ido al esquileo de sus ovejas, Raquel rob los dolos familiares de su padre.

    Biblia de nuestro pueblo Labn se march a esquilar las ovejas y Raquel rob los amuletos de su padre.

    Biblia Ncar-Colunga Labn haba ido al esquileo de sus ovejas y Raquel rob los terafm de su padre.

    Observa-se praticamente um consenso na traduo do termo como dolos familiares (NBJ, Dios Habla Hoy, Pueblo de Dios y la BA). A BSO os denomina como dolos del padre, que neste caso seria o chefe do cl, referindo-se ento aos dolos da

    23 Deve-se observar aqui que a traduo de terafim como dolos, j ocorre na Septuaginta () e tambm na Vulgata (idola). E transmitida tambm em dicionrios, como Holladay, Lxico hebraico e aramaico do Antigo Testamento, 563. Porm a Nova Vulgata, Bibliorum Sacrorum Editio, corrige isso e apresenta a traduo theraphim.24 Deve-se mencionar que esta nova verso da Bblia de Jerusaln, como tambm a verso em portugus citada acima, indica em nota de p de pgina que o termo hebraico terafm, significa pequenos dolos domsticos, e que sua posse poderia constituir ttulo de herana.

  • quando imagens passam a ser consideradas dolos luis jos dietrich y jorge yecid triana112

    fa mlia. A edio de Alonso Schekel traduz por amuletos25. Unicamente a Biblia N car Colunga no traduz a expresso e prefere transliterar o original hebraico; porm re mete a uma explicao em nota de rodap, indicando que eran los dolos domsticos, de forma ms o menos humana, conforme se depreende de 1Sam 19,13.1626.

    No caso do relato de Jac e Labo (Gn 31), pode-se perceber uma funo na-rrativa do termo dentro do texto. O assunto do roubo seria um motivo acrescentado em redao ps-exlica, sirve para restar crdito a Labn el arameo en cuanto adorador de otras divinidades27, estabelecendo-se assim um distanciamento em relao s ori gens aramias de Israel, ainda que se trate de uma separao amigvel. Continua Nocquet indicando que se evidencia um jogo de ironia na maneira como Raquel es-con de os terafim sob suas pernas e em estado de impureza ritual, fazendo mofas da auto ridade paterna28.

    Assim, as estatuetas resultam insignificantes e ineficazes como divindades pa-ternas frente a unicidade de Jav. Mas mesmo essa abordagem nos permite ver que os re datores ps-exlicos no criaram toda a narrativa, somente inseriram elementos de iro nia e desprezo em uma base narrativa mais antiga.

    Pede-se aqui a anuncia dos leitores e leitoras para fazer um parntesis ampliando ainda um pouco mais a discusso sobre a traduo da Bblia, dado que este um campo muito importante, fundamental mesmo, porm ainda muito pouco dis cutido e estudado nas academias sul-americanas e tambm nos movimentos de leitu ra popular da Bblia. A influncia das perspectivas doutrinrias dos tradutores e das instituies que patrocinam as tradues fica fortemente visvel quando esse ob-jeto de culto domstico, terafim, aparece ligado a um personagem importante na cha mada histria da salvao.

    Por exemplo, quando os textos revelam a existncia de terafim na casa de Davi e de Micol (1Sm 19,13). Na traduo de Gnesis, em se tratando da casa de Labo, pai de Raquel, privilegia-se a perspectiva doutrinria condenando o uso de imagens no culto. Na traduo de 1Sm 19,13, que trata de um objeto na casa de Davi, vrias ver ses evitam traduzir terafim, como para proteger Davi da posse de algo condenvel e no usam aqui, a palavra dolo.

    25 Porm de modo inverso traduz no v. 31 por dioses, e em 1Sm 19,13 por dolo familiar.26 Ncar e Colunga, Sagrada Biblia, 63. Pode-se notar que os dois casos tratam de mulheres que manuseiam os terafim e os ocultam; o que tambm pode ser um sinal de desprezo tal como aponta a Bblia Ncar-Colunga na nota mencionada.27 Nocquet, el Dios nico y los otros dioses, 42.28 Ibid.

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    Essa influncia doutrinria pode ter origem na LXX ou na Vulgata, pois nelas j se mostra essa tendncia:

    terafins na casa de labo e raquel (Gn 31,19)

    terafins na casa de davi e micol (1Sm 19,13)

    Septuaginta (LXX) (sarcfagos vazios)

    Vulgata (VUL) idola statuam29

    Bblia de Jerusalm (BJ) dolos domsticos terafim30

    Almeida Corrigida e Fiel (ACF) dolos esttuaAlmeida Revista e Corrigida (ARC)

    dolos esttua

    Bblia Sagrada em Portugus (BRP)

    dolos esttua

    Sociedade Bblica de Portugal (SBP)

    imagens dos dolos domsticos

    dolo protetor da casa

    NBJ, Dios habla hoy, Pueblo de Dios, BA

    dolos familiares dolos familiares

    BSO dolos del padre Uma estatuaBiblia para e pueblo de Dios Amuletos dolo familiarNcar-Colunga Terafim Ls terafim

    Somente esses pequenos exemplos demonstram quo fundamental e importante o estudo e o ensino das lnguas bblicas bem como as reflexes sobre as tradues b blicas que possumos. Todas tm suas virtudes, mas tambm todas tm pontos em que precisam melhorar diante dos novos conhecimentos da histria, da arqueologia e da religio do mundo bblico e tambm do avano de nossa conscincia do outro, da outra em nossa sociedade.

    29 Tambm aqui a Nova Vulgata j corrigiu a intepretao e apresenta theraphim.30 No caso de BJ, e possivelmente outras, a traduo diferente pode ter ocorrido porque os dois textos foram traduzidos por pessoas diferentes.

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    Fechando o parntesis, e retomando o pensamento, as reformas de Ezequias e de Josias de fato iro estabelecer o templo de Jerusalm como nico local de culto em todo Israel, instituiro Jav como Deus de Israel, proibiro o culto a qualquer outra di vindade e tambm condenaro o uso de qualquer tipo de imagem que represente Jav ou qualquer outra divindade (2Rs 18,1-5; 23,4-24). Com estas reformas as imagens, mes mo as que podiam ser imagens de Jav, passam a ser consideradas dolos, inclusive os terafim, e seu uso ser condenado como crime de idolatria (2Rs 23,24).

    As tradues, porm, ao colocar a palavra dolo, onde o texto hebraico no a possui e nem mesmo a pressupe, na verdade esto antecipando as coisas e crian do um anacronismo que mascara e esconde o longo perodo politesta com uso co rriqueiro de imagens vivido por Israel antes das reformas centralizadoras. Alm disso, essa mesma concepo doutrinria pode estar na raiz de pregaes e prticas ge radoras de discriminao, intolerncia e outras violncias contra pessoas e religies que adotam imagens em seus cultos e liturgias, ainda hoje presentes em diversas formas do cristianismo.

    Idolatria... O que mesmo idolatria?

    Esse procedimento acaba tambm por falsear, ou at mesmo esvaziar completamente o sentido libertador da crtica idolatria. Pois acaba focando o peso desta crtica no uso da imagem em si. Idolatria, segundo esse raciocnio, possuir imagens, usar imagens co mo representao do divino, substituir o Divino por algo que se possa ver, manipular, usar. Mas no esse o motivo original da crtica proftica s imagens na Bblia.

    Pode haver idolatria mesmo sem imagens

    A crtica bblica proftica s imagens, idolatria, tem mais a ver com o tipo de culto, de religio, que a elas esto associados. Criticam-se as imagens mais por suas funes e pelas consequncias de certos cultos do que s imagens em si. Podendo ser possvel, ne sse sentido, haver idolatria sem necessariamente haver imagens.

    Vejamos o texto do Salmo 115,4-8:So de prata e ouro os dolos deles,e foram feitos por mos humanas;

    esses tm boca e no falam,tm olhos e no veem, tm ouvidos e no escutam.tm nariz e no cheiram;tm mos e no apalpam,

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    tm ps e no andam,nem sua garganta produz sussurro algum.

    Os dolos deles so obras de mos humanas.

    A verdadeira causa da condenao no est simplesmente no fato de as ima-gens aqui sim este texto, possivelmente exlico ou ps-exlico as chama de dolos (`atsav) serem de ouro e de prata...feitos por mos humanas, e se caracterizarem pela imobilidade e insensibilidade.....est sim no fato de essa imobilidade e essa insensibilidade tambm caracterizarem aqueles que fazem e confiam nas imagens. O versculo 8 do Salmo 115 diz literalmente isso: Esto sendo, ou sero, como eles todos aqueles que os fazem e que neles confiam31. Porm o problema no somente a imobilidade e a insensibilidade em si.

    Para compreender a profundidade da denncia precisamos colocar o texto do Salmo diante da provvel referncia hipertextual a que ele est associado. As imagens, cha madas aqui de dolos, so apresentadas fazendo um contraponto a uma outra ima gem, uma outra descrio, uma imagem narrativa, textual, de Deus. O Salmo faz um contraponto com a imagem de Deus apresentada no xodo:

    Os filhos de Israel gemiam por causa da servido. Eles clamaram, e da servido seu grito de aflio subiu at Deus (elohim). E Deus (elohim) ouviu o clamor de les, e lembrou-se da aliana.... e Deus (elohim) viu os filhos de Israel e os re conheceu.... (Ex 2,23-25).

    A mesma imagem pode ser vista em Ex 3,7: Jav disse: estou vendo muito bem (a Bblia de Jerusalm traduz: eu vi, eu vi) a aflio do meu povo que est no Egito. Ouvi seu clamor diante de seus opressores, pois tomei conhecimento de seus so frimentos. Desci para libert-los....

    Pode-se notar que a descrio dos dolos no Salmo corresponde imagem invertida de uma atitude, como um negativo, da descrio da divindade do xodo. No xodo a ao da divindade se d por sua sensibilidade para com os escravos, para com os oprimidos. A divindade do xodo caracteriza-se por ver os injustiados e ouvir os gemidos dos escravizados e os gritos dos oprimidos, e por agir, por no permanecer in sensvel e imvel frente a isso. Vendo os injustiados e ouvindo os clamores dos

    31 Nesse sentido recentemente foi traduzido ao portugus o livro de Beale, Voc se torna aquilo que ado ra. Uma teologia bblica da idolatria. Porm a interpretao ali apresentada difere bastante da apresentada neste artigo, especialmente por no considerar as funes sociais do culto, especialmente as suas relaes com a justia, a injustia, as opresses e desigualdades sociais.

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    explorados frente a seus exploradores a divindade do xodo age para libertar. Se solidariza com os oprimidos, toma partido deles, age, coloca-se em seu meio para sal v-los, para libert-los.

    Com isso estamos aptos para compreender a questo da idolatria transcendendo questo das imagens: idolatria todo culto a Deus com imagens ou sem imagens que no nos torna sensveis e solidrios para com os pobres e injustiados, que no nos faz ver as injustias e ouvir os gritos dos injustiados, e que no nos leva a solidarizarmo-nos com eles, a pormo-nos em seu lugar, em seu meio e a lutar com os oprimidos pela superao da opresso, das injustias e das desigualdades.

    esse tambm provavelmente o sentido e o esprito das primeiras lutas profticas, que se dirigem especialmente contra determinadas imagens.

    As primeiras lutas contra imagensTemos dificuldade de perceber isso, no s por causa das tradues, que s vezes nos impedem de ver Israel em seu perodo politesta, com liturgias e cultos que incluam gran de diversidade de imagens, mas tambm porque na cabea de muitos de ns est a ideia de que todas as imagens cultuais, de qualquer forma e material, foram con-denadas desde o incio da histria de Israel.

    Entretanto, se olharmos os textos com um novo olhar, instigados e informados pelas contribuies da nova arqueologia, se tratarmos de compreender os israelitas vivendo dos anos 1500-1400 a.C. aos anos 700 ou 600 a.C. em um mundo de muita diversidade religiosa, em meio a muitos deuses e deusas, com muitos locais de culto, com uma grande diversidade de liturgias, objetos e imagens, talvez consigamos perceber que a condenao das imagens, e sua associao com idolatria, no comeou no incio da histria de Israel, e que o processo que culminar com a proibio de qualquer tipo de imagem, de qualquer material, com qualquer forma, como aparece por exemplo em Dt5,8, deriva-se da condenao de um tipo especial de imagens. E tambm poderemos ver que nesse processo o sentido primeiro, proftico, foi deturpado. E o resultado, a condenao geral de todas as imagens no contexto das reformas de Ezequias e Josias, em muitos sentidos uma traio do esprito proftico inicial.

    O grito proftico contra as imagensProvavelmente o grito proftico contra as imagens ecoa ainda hoje nas pginas da Bblia naqueles versculos que condenam os deuses de metal fundido, e os deuses de ouro e de prata:

    Vocs no faro para mim deuses de prata e deuses de ouro, vocs no faro para vocs (Ex 20,23).

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    Deuses de metal fundido (eloh massekah)32 no fars para ti (Ex 34,17).

    Uma proibio semelhante aparece em Lv 19,4: No se voltem para os dolos nem faam deuses de metal fundido. Eu sou Jav, o Deus de vocs. Porm nesse verso j aparece a reinvindicao de culto exclusivo a Jav. Em Ex 34,17 a reivindicao de ex clusividade a Jav est no contexto mais amplo dentro do bloco de Leis, que vai de Ex 34,10-2833. A exigncia de culto exclusivo aparece nos versculos 12 e 13: No firme aliana com os habitantes da terra onde voc vai entrar, porque seria uma armadilha para voc. Pelo contrrio, derrubem os altares deles, quebrem suas colunas sagradas e cortem suas Assers. E claramente a exclusividade estabelecida no versculo 14: No se prostre diante de outro El, porque o nome de Jav Ciumento. Ele um El ciumento34. A exigncia de culto exclusivo a Jav a principal caracterstica das re-for mas de Ezequias e de Josias. Sua presena nos textos revela a redao dos escribas de Ezequias e de Josias. Porm, a proibio explcita a um tipo especfico de imagem, de ve ser anterior s reformas. Vem de outro contexto.

    Dois aspectos chamam a ateno nestes versculos: O primeiro que tanto as imagens de metal fundido (massekah), como as de prata e ouro so chamadas de deuses (eloh). No recebem uma qualificao pe-jorativa. No so chamadas de dolos, nem sequer para elas usada uma palavra mais neutra, como ou genrica, como imagem. So chamadas de deuses! Para quem fala neste versculo, estas imagens so deuses. Como Labo, quando procura seus terafins per gunta: porque roubaste meus deuses (elohay)? (Gn 31,30) Aqui tambm, mesmo ex pressando uma condenao estas imagens so ainda chamadas de deuses (eloh). E, em segundo lugar, chama a ateno que em Ex 34,17 a proibio dirigida especificamente a um tipo de imagem. Veta somente a confeco de um tipo exclusivo de imagens. Especificamente as imagens de metal fundido (massekah) so proibidas. E Ex 20,23 probe somente imagens feitas de ouro e de prata. Imagens de cermica, pe dra, madeira ou outro material, no so proibidas.

    32 Traduo sugerida por Koehler e Baumgartner, The Hebrew & Aramaic Lexicon of the Old Testament, 2, 605; Gessenius, HebrewChaldee Lexicon to the Old Testament, 489; Holladay, Lxico hebraico e aramaico do Antigo Testamento, 287; entre outros. 33 Ver Editora Paulus, Nova Bblia pastoral, Ex 34,10-28 pode conter as palavras de uma aliana feita no norte, nos tempos do profeta Eliseu e do rei Je (2Rs 10,16.26-28), ou no sul, pelo sacerdote Joiada (2Rs 11,17-18), ou por Ezequias ou Josias: impem o culto exclusivo a Jav sem negar a existncia de outros Deuses (v.14); probem imagens de metal (v. 17); organizam o calendrio das festas, direcionando os primognitos e os tributos a Jav em Jerusalm (v. 18-26a; cfr. Dt 15,19-16,17) e proibindo ritos ca naneus de fertilidade (v. 26b).34 Versculos citados conforme a Nova Bblia pastoral.

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    Para compreender melhor esta questo interessante perceber que em Ex 20,22-26, uma das partes mais antigas do chamado Cdigo da Aliana35, nesse trecho do cdigo proibio de fazer deuses de ouro e deuses de prata est associada proibio de fazer altar de pedras lavradas. A presena desses versos testemunha a an tiguidade das primeiras tradies que compem o cdigo. Sua origem anterior s re formas de Ezequias e de Josias.

    So de um tempo em que ainda se admite a existncia de altares fora de Je-rusalm: Em todo lugar onde eu fizer lembrar o meu nome, virei a voc e o abenoarei (20,24). Na primeira parte do cdigo inclusive se legisla a respeito desses altares, dizendo que tipos de altares so permitidos (de terra, de pedras em estado natural) e que tipo de altar proibido (de pedras lavradas). Percebe-se aqui a mesma especificidade da lei que probe deuses de ouro e de prata. Tambm aqui claramente se probe um ti po muito especfico de altar.

    A proibio dos deuses de ouro e de prata, e a proibio do altar de pedras la-vradas, provavelmente pertencem ao marco inicial do processo de redao do Cdigo da Aliana. Estas denncias podem ter sido feitas em nome de Jav, mas ainda no pro pem ou supem uma centralizao do culto, ou exclusividade do culto a Jav.

    E quando nos perguntamos pelo lugar social de onde teriam brotado estas proibies, ou por outra via, onde se encontravam os altares proibidos (de pedras lavradas), e as imagens proibidas (de ouro e de prata), somos levados a concluir que es tas proibies ecoam algumas das primeiras crticas da profecia camponesa (Ams, Oseas) contra o uso da religio para explorar os camponeses.

    Aqui chamamos ateno para a especificidade da proibio. A proibio refere-se aos deuses de metal fundido (masekah), ou deuses de ouro (zahav) e deuses de prata (qesef). Imagens de pedra, madeira ou cermica no so proibidas. Por que somente so proibidas as de metal? Por que no se pode fazer um altar de pedras lavradas? Quem possui ou pode fazer tanto imagens de ouro e prata como altares de pedras la vradas? Onde eram encontrados?

    As perguntas tm a mesma resposta. Eram encontrados nas principais cidades. Talvez somente nas capitais e nas cidades com santurios do rei (Am 7,13). So materiais caros, precisam ser importados, ou precisam ser importados os artesos que os faam (1Rs 5,31-32; 7,13-14). A condio para que sejam feitas o acmulo de

    35 Sobre este texto ver o artigo de Dietrich, O cdigo da aliana. Revisitando textos e reavivando saudades 289-300, especialmente 298-299.

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    ri queza e de poder. Esse acmulo feito s custas da opresso do povo campons que vive e trabalha ao redor das muralhas das cidades. Imagens de metal fundido, de ouro e de prata, e altares de pedras talhadas so caractersticos do culto nas cidades, como os que a arqueologia encontrou em Beersheva, e em Dan, por exemplo.

    Estes versculos ecoam os primeiros gritos dos camponeses contra o uso da re-ligio para explor-los. no geral um grito contra a religio oficial das monarquias e seus centros de culto, nos quais a ostentao de altares caros e deuses de metal fundido, ou mesmo de ouro e de prata, tinham a funo de legitimar a explorao das famlias cam ponesas (Os 8,4-5; 13,236; cfr. Lv 19,6; Dt 9,12.16; 27,15; 1Rs 14,9; Is 30,22). E Ex 34,17: No faa para voc deuses de metal fundido, talvez seja a forma mais antiga da crtica aos deuses de ouro e aos deuses de prata.

    Esse largo percurso nos mostra que no incio as leis contra imagens no tinham nada a ver com a maior parte dos discursos teolgicos que hoje rebaixam ou condenam as pessoas, povos, culturas e religies que usam imagens em seus rituais de culto. As vilas camponesas no Israel pr-exlico estavam cheias de locais de culto, os lugares altos, montculos de terra e de pedras, rvores, colunas de pedra, e tambm possuam muitas imagens de pedra, madeira e cermica. E tambm muitas divindades com uma grande variedade de liturgias associadas a estas diferentes divindades e a suas res pectivas reas de atuao na vida das pessoas e vilarejos. Em suas liturgias e em seus cultos, porm, ningum fiava mais rico ou mais pobre. Seus cultos estavam bem mais ligados s necessidades e tempos da vida concreta do que a funes de concentrao de poder e de riqueza.

    Assim, podemos perguntar: onde de fato est a idolatria? Num culto com diversidade de deuses e deusas e imagens, ligado defesa e promoo da vida, ou num culto centralizado em um s local, em um s Deus, com uma nica liturgia, mas que est desligado da defesa e da promoo da vida, legitimando concentrao de poder e riqueza?

    36 De Oseias, e tambm Ams, no se pode afirmar que eram politestas, porm tudo indica que viviam em um contexto em que a diversidade de deuses e deusas, de cultos e liturgias, e o uso de imagens ainda eram algo comum e aceito (Barton e Stavrakopoulou (eds.), Religious Diversity in Ancient israel and Judah; Zevit, The Religions of Ancient israel. A Synthesis of Parallactic Approaches. Somos chamados a reavaliar as leituras e interpretaes que fazemos destes profetas, considerando os atuais dados da arqueologia e, o que a grande maioria dos exegetas j aceita, que seus textos chegaram para ns atravs de redaes nas cortes de Ezequias e de Josias, ainda retocadas posteriormente no ps-exlio. E essas redaes, como se sabe estavam interessadas em legitimar a exclusividade do culto a Jav bem como a proibio do culto s outras Divindades e ao uso de imagens.

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    bastante possvel que estas denncias dos profetas camponeses passaram a fazer parte das leis oficiais de Israel quando Je, apoiado pelo profeta Eliseu, massacra a dinastia de Amri e impe o culto a Jav como o culto oficial no Israel norte (2Rs 10,16-28; cf. 1Rs 16,31-33). Possivelmente nessa ocasio o profeta Eliseu passou a fa zer parte da corte de Je. Ou, mais tardar, nas reformas de Ezequias e de Josias.

    E assim tambm se pode perceber com grande clareza o lado ambguo da religio oficial: leis que na origem eram contra o acmulo de riqueza e de poder realizado pela monarquia, quando integradas nas reformas eram postas a servio da monarquia e visavam dar-lhe legitimidade.

    Refletindo...

    Isso tambm deve fazer-nos refletir como abordamos as outras religies e especialmente as que usam imagens. No Brasil, concretamente as religies mais perseguidas por ostentarem esta caracterstica so as religies afro-brasileiras. Tambm as religies dos povos nativos, e as devoes catlico-romanas, especialmente as de cunho popular.

    A condenao destas religies, na maioria das vezes, est imbuda do mesmo esprito centralizador e imperialista que esteve presente nas reformas concentradoras de riqueza e de poder levadas a cabo por Ezequias e Josias, ou no mesmo esprito co lonizador e imperialista ps-constatiniano que influenciou a constituio de parte importante das teologias, dos dogmas, das doutrinas e dos rituais das diversas corren-tes crists.

    Que saibamos descolonizar nossas leituras bblicas, nossas teologias e espi-ritualidades, despir nossas prticas religiosas de suas associaes presentes ou passadas com poderes colonizadores e imperiais e buscar dentro de nossa diversidade religiosa e cultural, o respeito, a convivncia harmoniosa, para que dentro dessa mesma diversidade, possamos entender com profundidade o que seja adorar Deus em Esprito e verdade.

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