(re)construÇÃo de sentidos
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“ARMARIA, BODE GAIATO!”: UMA PROPOSTA MULTIMODAL NA
(RE)CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
Antônio Carlos Silva Júnior1
Isabela Marília Santana2
Talita Santos Menezes3
GT 7 – Educação, Linguagens e Artes
RESUMO Palavras, imagens, sons, todos se “misturam” na composição dos textos que transitam pelas
redes sociais, e a criatividade dos usuários torna os textos multimodais cada vez mais
valorizados nesses ambientes. É nessa perspectiva que o presente trabalho tem como objetivo
central analisar como a multimodalidade atua na construção dos sentidos propostos nos textos
do “Bode Gaiato”, de modo que seja possível identificar seus aspectos característicos e
verificar como a estruturação deles pode contribuir no processo de referenciação. O estudo
trata-se, então, de uma pesquisa qualitativa do tipo bibliográfica que ampara suas discussões
teóricas nas obras de Koch (2003, 2009), Kress e Van Leeuwen (1996), Mondala e Dubois
(2003), Pinheiro (2012), , dentre outros, e ressalta a ideia de que o caráter visual está cada vez
mais refletido nos textos, incorporando linguagem verbal e não verbal, e contribuindo
significativamente para a construção dos sentidos do texto.
Palavras-chave: Multimodalidade. Referenciação. Bode gaiato.
ABSTRACT
Words, images, sounds, they all “mix” in the making of the texts that go throught social
networks, and the criativity of the users make the texts multimodal each time more valued in
these environments. In this perspective the presente work has as main objective to analyze
how the multimodality acts in the making of meanings proposed in the texts of “Bode
Gaiato”, making it possible to identify its characteristics aspects and verify how their structure
can contribute in the processo of referencing. The study is ,then, a qualitative research
bibliographic type that assures its theorical discussions in the works of Koch (2003, 2009),
Kress e Van Leeuwen (1996), Mondala e Dubois (2003), Pinheiro (2012), among others, and
reafirms the idea that the visual aspect is becaming more and more reflected in texts,
incorporating verbal and non verbal language, and contributing meaningfully for the
construction of text meaning.
Keywords: Multimodality. Referencing. Bode gaiato.
1 Mestre em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Docente da Secretaria de Estado da Educação
de Sergipe (SEED/SE) e do Colégio de Aplicação (CODAP) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail:
<[email protected]>. 2 Mestra em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Docente da Secretaria de Estado da Educação
de Sergipe (SEED/SE). Email: [email protected]. 3 Mestra em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Docente do Departamento de Letras Vernáculas
da Universidade Federal de Sergipe (DLEV/UFS). E-mail: <[email protected]>.
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1 INTRODUÇÃO
Os complexos e mais variados sistemas de textos, os quais têm surgido como reflexo
das constantes modificações nas formas de interação e comunicação entre os sujeitos, têm
revelado o quanto a multimodalidade se insere entre as principais e preferidas formas textuais
produzidas na sociedade contemporânea.
A integração das várias linguagens – que envolve palavras, imagens, sons, entre
outras, tornou-se a principal característica das produções textuais vinculadas na internet e
mais precisamente nas redes sociais. O indivíduo usa a criatividade para representar a si
mesmo e o mundo – como ele vê individual e coletivamente, através de um processo de
construção e reconstrução de referentes e entidades.
Nessa perspectiva, é notório o grande sucesso que o “Bode Gaiato” – figura criada
como parte dos “memes” que circulam pela internet – tem feito nas redes sociais e a reação
que tem criado nos internautas. As pessoas se identificam com as situações retratadas e isso
cria reações que envolvem processos discursivos e cognitivos que irão resultar na criação de
outros textos e/ou discursos.
Portanto, o presente artigo tem como objetivo analisar produções do “Bode Gaiato”
sob uma perspectiva que destaque a multimodalidade presente nessas criações e o processo de
referenciação presente nas tais. Ou seja, como essas criações constroem e reconstroem objetos
de discurso e, consequentemente, sentidos. Para isso, primeiramente, abordaremos a
multimodalidade presente nos estudos da linguística textual, sua estruturação como
contribuinte do processo de referenciação e em seguida faremos uma análise para mostrar os
resultados empíricos destes pressupostos.
2 A MULTIMODALIDADE NOS ESTUDOS DA LINGUÍSTICA TEXTUAL
Sob uma tradição predominantemente europeia, a Linguística Textual surge em
meados dos anos 60 do século XX como uma das subdisciplinas da Linguística. Tendo o texto
como foco principal de seus estudos, essa subdisciplina trata não só do estatuto sistemático do
texto, mas também da interação empírica dos indivíduos com os textos na realidade do dia a
dia, como afirmam Blüdorn e Andrade (2009).
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A partir dos anos 90, os chamados “textos não canônicos” passaram a fazer parte do
escopo de estudos da Linguística Textual e nessa categoria estão (também) inseridos os textos
multimodais. É inegável que os sistemas de textos cada vez mais complexos, característicos
da comunicação e interação sociais não só convergem para novos formatos de texto, mas
também exigem novos tipos de análise.
Determinados aspectos de nossa realidade social só são criados por meio da
representação dessa realidade e só assim adquirem validade e relevância
social, de tal modo que os textos não apenas tornam o conhecimento visível,
mas, na realidade, sociocognitivamente existente. A revolução e evolução do
conhecimento necessita e exige, permanentemente, formas de representação
notoriamente novas e eficientes. (KOCH, 2003, p. 3).
Entende-se, então, que a crescente integração das várias formas de linguagem passa a
ser emergente na produção textual que representa a complexa sociedade atual. Nesse sentido,
“Os textos são, portanto, multimodais, ou seja, um conjunto de múltiplas formas de
representação ou códigos semióticos que, através de meios próprios e independentes, realizam
sistemas de significados.” (SELVATICI, 2007, p. 1).
Ao falar sobre a concepção atual de texto nos estudos da Linguística Textual, Pinheiro
(2012) diz que o texto é visto como objeto dinâmico, multifacetado e resultante de ações
linguísticas, sociocognitivas e discursivas, de forma que tais características contribuem, de
certa forma, para a inserção de elementos semióticos na constituição do texto. Dessa forma, o
autor reforça a ideia de que os elementos não verbais são responsáveis pela construção dos
sentidos do texto tanto quanto os elementos verbais.
Nessa perspectiva, o produtor de um texto que opte pelo uso de uma imagem, por
exemplo, pauta sua escolha não apenas por uma questão de estética, mas também pela noção
(consciente ou inconsciente) das funções e efeitos da imagem em sua produção. Com relação
a isso, Calado (1994) trata das funções de comunicação presentes nas imagens e evidencia
como estas contribuem na construção do sentido e na compreensão de um texto. Uma das
funções tratadas por essa autora, a qual se fundamenta num estudo feito por Levin et al
(1987), é a Função Representativa que “[...] reforça as informações mais importantes de uma
mensagem veiculada de forma verbal, através da apresentação de elementos redundantes.
Serve essencialmente para tornar mais concretos os conteúdos da informação verbal.”
(CALADO, 1994, p. 104).
4
Percebe-se, então, que as linguagens verbal e não verbal se integram de forma
coerente e coesa para a formação de um texto e, nesse sentido, a multimodalidade precisa ser
analisada sob a perspectiva de uso de ambas as formas de linguagem.
No caso dos textos multimodais, por exemplo, tanto os elementos verbais
como os não verbais devem ser considerados como parte de um todo que é o
texto. A análise empreendida deve considerar esse todo e não ser
segmentada na análise de pequenos textos, verbais de um lado e não verbais
de outro. Portanto, os elementos não verbais são fundamentais e
inevitavelmente constitutivos dos textos multimodais e incorporá-los na
análise se faz necessário para explicar e compreender a forma como ocorre,
também nesses textos, o processo de compreensão. (PINHEIRO, 2012, p. 7).
Assim, reforça-se essa ideia, trazendo a semiótica para complementar essa
fundamentação nas pessoas de Kress e Van Leeuwen, que afirmam que duas ou mais
modalidades semióticas em composição em um determinando modelo textual provoca efeitos
significativos nas características e formatos dos textos, mostrando a dinamicidade presente na
sociedade contemporânea que nos exige variadas formas de significar o mundo.
Os autores defendem que os elementos visuais possuem uma sistematização
semelhante aos elementos linguísticos, pois partem da experiência e do conhecimento de
mundo dos indivíduos que compõem a interação social em questão. Por isso, “[...] não ser
‘visualmente letrado’ começará a atrair sanções sociais. ‘Letramento visual’ começará a ser
uma questão de sobrevivência, especialmente no ambiente de trabalho”² (KRESS e van
LEEUWEN, 1996, p.3).
Dessa forma, percebe-se que o texto multimodal, tão característico da sociedade atual
– dita globalizada, insere-se nos interesses de estudo da Linguística Textual por se tratar de
uma representação (da realidade) notoriamente eficiente.
2.1 Multimodalidade: suporte na referenciação
A partir da ideia do texto como um lugar de interação entre sujeitos, pode-se perceber
que além de auxiliar no processo de compreensão do texto, as linguagens verbal e não verbal
também fazem parte do processo de referenciação, já que ambas integradas apontam para
entidades ou referentes – de forma que constroem e reconstroem esses “objetos de discurso”
no interior do discurso durante o processo de interação – e o uso dessas linguagens num texto
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reflete a escolha de um sujeito em interação com outros sujeitos, visando um objetivo final.
Ou seja, “o sujeito, por ocasião da interação verbal, opera sobre o material linguístico que tem
à sua disposição e procede escolhas significativas para representar estados de coisas, de modo
condizente com a sua proposta de sentido.” (KOCH e ELIAS, 2007, p. 124). Assim, o uso dos
diversos “modos linguísticos” não é aleatório, mas resultante de escolhas com vistas a uma
representação significativa.
Tendo por base os estudos de Rastier (1994), Mondada e Dubois (2003, p. 20),
abordam o processo de referenciação, defendendo a ideia de que este “não diz respeito a ‘uma
relação de representação das coisas ou dos estados das coisas, mas a uma relação entre o texto
e a parte não linguística da prática em que ele é produzido e interpretado’.” Entende-se,
então, que estas práticas são realizadas pelos sujeitos através de processos discursivos e
cognitivos, sob a influência de concepções individuais e coletivas do mundo. Assim, a escolha
de um sujeito pela construção de um texto multimodal reflete uma série de fatores e
construções sociocognitivas e históricas que exprimem sua relação e interação com outros
sujeitos e com o ambiente em que estão inseridos.
Nesse sentido, é que menciona a instabilidade e a estabilidade de categorias as quais se
destacam também nesse viés de unir imagens e palavras pelo fato de o referente ser fabricado
pela prática social e cultural como também cognitivo/discursivamente visando a um ambiente
de interação e troca comunicativa e levando em consideração fatores comunicativos e
situacionais, como também, sociais, históricos e culturais. Essa instabilidade e flexibilidade
de sentidos e significações são determinadas pelos contextos e indivíduos a partir da
variabilidade das experiências humanas.
Corroborando com estes fatos, Koch (2009, p. 54) assinala que “as categorias
utilizadas para descrever o mundo alteram-se tanto sincrônica quanto diacronicamente: quer
nos discursos ordinários, quer nos discursos científicos, elas são plurais e mutáveis, antes de
serem fixadas normativa ou historicamente”.
Um aspecto bastante presente na interpretação e construção de sentidos em textos
multimodais é a questão da inferência. As palavras e imagens que surgem nos modelos
textuais nos levam a instâncias de significação extralinguísticas, a diversos contextos
interpretativos e ocasiona a recuperação de informações não explícitas e a inferir sentido
mediante as pistas linguísticas que vão sendo lançadas na progressão textual.
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Desta forma, conclui-se que o texto é construído não apenas pelos elementos
verbalizados, mas também pelo contexto, pelo conhecimento partilhado e identificado
cognitivamente, enfim, por uma gama de fatores de variadas ordens.
E é diante dessas afirmações que a Linguística Textual sente a necessidade de alargar a
noção de texto, pois a linguagem textual-discursiva pode manifestar-se em variados caminhos
(verbal ou não verbal), afinal trata-se de um objeto de estudo multifacetado que precisa ser
explicado e trabalhado nas mais variadas instâncias para que se alcance uma maior
produtividade analítica.
3 O UNIVERSO DO “BODE GAIATO”
O “Bode Gaiato” (BG)4 é uma criação do estudante recifense Breno Melo com a
proposta de ser um diferencial em meio a tantos “memes” espalhados pela internet. O autor se
baseou em experiências de vida e observações a partir de hábitos nordestinos, como também
da linguagem e dos regionalismos, para criar as tiras misturando humor, críticas sociais como
também identificação cultural. Essa criação retrata, de maneira singela, a cultura de um povo
simples, a qual é traduzida na fala, nos gestos, nos costumes e crenças. Além disso, por incluir
em suas tiras imagens e frases, é que se julga importante analisá-los brevemente para que se
possa demonstrar o quão interessante e importante é para a (re) construção de sentidos são as
análises textuais baseadas na multimodalidade.
Na composição do seu texto, sempre encontramos elementos verbais e não verbais,
caracterizando-o assim como texto multimodal. Cada um desses elementos (verbal e visual)
tem as suas características, possibilidades e limitações e nem tudo que pode ser expresso em
palavras pode ser expresso em imagens, e vice-versa. No entanto, Breno Melo, autor das tiras,
busca utilizar as linguagens verbal e visual de modo interativo, onde uma linguagem contribui
na compreensão da outra.
A ampla divulgação no facebook deve-se ao fato de expressar significados
relacionados à cultura nordestina, às vezes de modo estereotipada, e de abordar, também,
situações típicas que causam reconhecimento do leitor originário de qualquer lugar do país.
4 Disponível em: <https://pt-br.facebook.com/BodeGaiato>.
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Dentro das tiras do Bode Gaiato, as situações vivenciadas pelos personagens ocorrem
em sua grande maioria no contexto familiar, além de momentos informais vivenciados com os
personagens secundários “Biu” (esposo de Dona Zefinha) e “Ciço” (amigo de Junin).
A mãe do personagem central tem como nome “Dona Zefinha”. O uso do tratamento
“dona” e do termo no diminutivo “Zefinha”, derivado de Josefa provavelmente, é muito
comum para referir-se com respeito às pessoas com mais idade.
A representação visual dada a este personagem a ilustra como uma mulher com poder
aquisitivo baixo e que passa parte do seu dia cuidando dos afazeres domésticos, referência
esta feita através do uso de pano na cabeça, avental, vestido estampado e objetos utilizados
nas diversas situações.
O comportamento de Dona Zefinha com seu filho comprova quão cuidadosa, atenciosa
e carinhosa ela é. A relação texto verbal e não verbal presente nas tiras facilita o entendimento
da sua mensagem e identificação com o tema tratado. Em muitos momentos, vê-se a
demonstração de zelo da mãe para com seu filho, zelo este visto por Junin como uma
decepção. Em contrapartida, essa mesma mãe cuidadosa também é caracterizada como aquela
que questiona, dá ordens, e que, quando contrariada, pune.
Nessa perspectiva, é possível perceber a referência feita, com elementos verbais e não
verbais, às mães que ao mesmo tempo em que demonstram carinho, atenção e extremo zelo
para com seus filhos, também expressam, dependendo da situação, autoritarismo, impaciência
e nervosismo.
Júnior, mais conhecido como “Junin” – forma diminutiva bastante utilizada para
chamar crianças que possuem esse sobrenome – é o filho de Dona Zefinha. Não se sabe seu
primeiro nome, mas é em torno desse menino com cabeça de bode que ocorrem as peripécias
do Bode Gaiato.
Segundo o próprio autor Breno Melo, foi utilizada a cabeça de um bode por se tratar
de um animal comum no sertão nordestino e que daria um maior teor cômico às histórias.
Com relação ao adjetivo “gaiato” dado, o termo faz referência àquele que é engraçado, alegre,
malicioso, que faz brincadeiras em geral. Na imagem acima, ele aparece com um chapéu de
vaqueiro, mais um estereótipo atribuído à figura nordestina.
Entre as situações vivenciadas por Junin, está sua relação com Dona Zefinha. O garoto
é vítima do autoritarismo e das ordens dadas por sua mãe. Outra questão abordada nas tiras do
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Bode Gaiato é a desobediência e desrespeito de Junin quando aparece respondendo à sua mãe
de forma sarcástica, pejorativa e irônica.
3.1 Recategorização: (re) construção de referentes no “Bode Gaiato”
A própria Linguística Textual (como também a referenciação) trabalha num viés de
uma abordagem cognitivo-discursiva da recategorização. O processo de recategorização se
concretiza na (re) elaboração dos objetos de mundo que irão ocasionar os objetos de discurso,
de acordo com a proposta enunciativa do seu produtor.
A recategorização está associada à continuidade referencial desses objetos constituídos
no universo do discurso de maneira dinâmica, e “põe em relevo não somente um sujeito real,
mas, sobretudo, um sujeito sociocognitivo, que constrói o mundo ao curso do cumprimento de
suas atividades sociais e o torna estável graças às categorias – notadamente às categorias
manifestadas no discurso” (LIMA, 2007, p. 80).
(i) a recategorização nem sempre pode ser reconstruída diretamente no nível
textual-discursivo, não se configurando apenas pela remissão ou retomada de
itens lexicais; (ii) em se admitindo (i), a recategorização deve, em alguns
casos, ser (re)construída pela evocação de elementos radicados num nível
cognitivo, mas sempre sinalizados por pistas linguísticas, para evitar-se
extrapolações interpretativas; (iii) em decorrência de (ii), a recategorização
pode ter diferentes graus de explicitude e implicar, necessariamente,
processos inferenciais. (LIMA, 2009, p. 56)
Em se tratando do Bode Gaiato, há uma grande instabilidade de categorias que vão, a
todo o momento, categorizando e recategorizando os referentes e as entidades discursivas.
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Figura 15
Na imagem acima, percebe-se que mais uma vez o conteúdo imagético, no caso a
embalagem do suco artificial “Tang” sabor manga, recategoriza o sentido do modelo textual,
pois nenhuma explicação mais aprofundada é dada para esclarecer a situação em questão,
apenas um conhecimento partilhado, cognitivo e interacional é que detecta e recupera o
sentido por detrás do que vemos. O mito popular do suposto perigo em misturar manga e leite
podendo causar até a morte é representado pelo Bode Gaiato; a seta indicando a sugestão da
embalagem em experimentar também com leite destaca o risco por ele detectado e dialoga
com a fala de Junin que exclama: Zulive, quero morrer não.
A linguagem utilizada pelos seus personagens também é um aspecto de extrema
relevância nas histórias do Bode Gaiato. Repleta de informalidade, regionalismos, sem seguir
a norma padrão, termos aglutinados, com redução fonética, resultado da tentativa de expressar
com fidelidade, mesmo utilizando estereótipos, o modo particular de falar do povo, expressão
verbal de sua cultura e variação linguística.
Muitos dos conceitos com que lidamos são vinculados à cultura, no sentido
de que dependem, para a sua compreensão, do conhecimento transmitido
socialmente, tanto conhecimento prático quanto propositivo, e variam
consideravelmente de cultura para cultura. (LYONS, 1987, p. 279).
5 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.
Fonte: Internet
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Figura 26 Figura 37
Entre as expressões utilizadas, pode-se destacar: armaria, mainha, pain, lasquêime,
crendôspa, ói, urêa, gazeando, zuada, pirangage, dormir de couro quente, entre outros. Nessa
perspectiva, verifica-se a multimodalidade a partir da coerente relação entre o que é dito pelos
personagens e as ilustrações que compõem os quadros, como: o computador de Junin que tira
sua atenção, o fogão, panelas e fumaça na cozinha de Dona Zefinha, como também o prego e
a sandália na mão da mãe.
3.2 Uma análise dos fatores de textualidade nas tiras do Bode gaiato
Beaugrande e Dressler (1981), citados por Koch (2009), trazem alguns princípios de
construção de sentidos, chamados por eles de critérios de textualidade, que sinalizam a virada
pragmática com que a Linguística Textual deu nos anos 80 e orientam os interlocutores e o
próprio texto a estabelecer parâmetros de atribuição de sentidos. São eles: a coesão e a
6 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>. 7 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.
Fonte: Internet Fonte: Internet
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coerência, centrados no texto; e a intencionalidade, a aceitabilidade, a situacionalidade, a
informatividade e a intertextualidade, centrados nos interlocutores.
A coesão e a coerência, segundo Koch (2009), não podem ser mencionadas em
separado, pelo fato de que uma complementa e ocasiona a outra. A coesão reitera os
movimentos de retroação e de prospecção através das sequências temáticas que determinam a
progressão textual/tópica e estabelecem a coerência. Esta compreende os sentidos que estão
fora do linguístico, fazem parte do extralinguístico, do que está implícito e do que se busca
significação em outros contextos e domínios, ela se constrói a partir do texto e de seus
elementos, das pistas linguísticas que lhe são dadas. “Desta maneira, sempre que se faz
necessário um cálculo do sentido, com recurso a elementos contextuais – em particular os de
ordem sociocognitiva e interacional –, já nos encontramos no domínio da coerência.” (KOCH,
2009, p. 46).
Figura 48
Fonte: Internet
A imagem acima comprova a questão da coesão e coerência, quando faz referência a
um problema social no contexto familiar (assalto à mão armada a uma casa de família). Os
elementos verbais e visuais expostos (tanto na parte em que os personagens estão deitados na
cama, o que permite a inferência de ser noite – um momento mais propício à prática de
8 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.
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assaltos, quanto no diálogo ocorrido entre Biu e o ladrão – este, caracterizado pelo capuz e
pelo uso da arma) estão interligados, de modo que uma cena dá continuidade à outra
coesivamente e estabelece a coerência como um todo no texto.
A intencionalidade refere-se à intenção do locutor em promover uma interação e uma
mobilização comunicativa coesa e coerente. No caso da página do Bode Gaiato, essa intenção
foi executada e recebida com êxito, por conta da mobilização positiva dos receptores e da
grande receptividade, além de que as imagens utilizadas, como a figura do bode, característico
do nordeste, como também as imagens da casa dele, do espaço sideral como forma de mostrar
que é o mundo que vivem, foram estratégias textuais que contribuíram para que essa intenção
fosse coerente com a proposta comunicativa.
Essa grande aceitação dos internautas, nordestinos ou não, que acabam por se
identificar e atribuir sentido aos modelos textuais propostos pela página do Bode Gaiato
contribui, de certa forma, para o critério da aceitabilidade que é a contraparte da
intencionalidade e compreende o jogo comunicativo e de sentido (efetivos) entre os
interactantes do processamento textual, como assinala Koch (2009, p. 43) “[...] refere-se à
atitude dos interlocutores de aceitarem a manifestação linguística do parceiro como um texto
coeso e coerente, que tenha para eles alguma relevância”. O leitor atribui significância e
sentido aos jogos enunciativos de acordo com conhecimento de mundo partilhado.
Figura 59 Figura 610
9 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>. 10 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.
Fonte: Internet Fonte: Internet
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Como se pode ver, nas imagens acima, só quem conhece a imagem da raquete
exterminadora de mosquitos” (figura 5) poderá recuperar a informação dada e atribuir sentido
a tira em questão. O mesmo acontece na figura 6 que apenas a imagem da sandália já é
suficiente para depreendermos sentido, pois nos leva ao contexto das palmadas que “Junin”
sempre leva. Outro aspecto imagético de grande importância para a recategorização dos
sentidos no texto são as lágrimas nos olhos do garoto, sempre que faz algo errado ou sempre
que se pretende sinalizar que ele se deu mal.
Outro quesito é a situacionalidade, que pode ser considerada em duas direções: da
situação para o texto, que diz respeito ao conjunto de fatores que tornam um texto relevante
para uma situação comunicativa ou passível de reconstrução. Trata-se de determinar a
situação imediata comunicativa como também os contextos e seus entornos sociais, políticos e
culturais que interferem na produção/recepção do texto. Diz respeito aos fatores pragmáticos e
(extra) linguísticos (verbais e não verbais) que dão sentido ao modelo textual. Como podemos
ver na tira abaixo:
Figura 711
Nesta imagem, a situação textual traz à tona um contexto político e midiático que dá
significância ao texto. Envolve dois importantes fatos da política nacional, a saber: o
impeachment da presidente Dilma Rousseff e a cassação do presidente da Câmara dos
11 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.
Fonte: Internet
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Deputados, Eduardo Cunha, junto a um caso midiático: o bloqueio misterioso da página do
“Bode Gaiato” pelo Facebook durante 18 horas no mês de setembro do presente ano.
Outra direção da situacionalidade é a do texto para situação, que sinaliza os reflexos
importantes trazidos pelo texto que demarcam a situação, pois o mundo real é recategorizado
pelo mundo textual. Ou seja, quais interpretações e visões de mundo o texto traz para o leitor,
como ele interfere e o que acrescenta ao indivíduo, sempre, claro, de acordo com seus
objetivos, propósitos e crenças, da sua maneira de ver o mundo e de recategorizar seus objetos
reais em objetos de discurso (MONDADA e DUBOIS, 2003).
Um critério bastante importante é a informatividade que diz respeito à distribuição da
informação evidenciando o equilíbrio entre informação dada e a informação nova, não se
pode conter em um texto apenas informação dada, senão o texto ficará redundante, nem
apenas informação nova, pois ele ficará sem sentido por não haver âncoras necessárias ao
processamento. Como se vê nas imagens abaixo:
Figura 812 Figura 913
12 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>. 13 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.
Fonte: Internet
Fonte: Internet
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As imagens que surgem a cada cena retomam a cena anterior e acrescentam novas
significações a partir de elementos de ordem não verbal (leiteira derramando e imagem dos
sucos no balão).
A intertextualidade compreende as relações que um texto mantém com outros textos e
a construção de sentidos que estes textos mencionados podem ocasionar, como também
contribuir para o entendimento dos referentes e das entidades textuais. Como mostra a figura
abaixo, Junin cita a Lei Maria da Penha como forma de se fazer justiça aos castigos que vem
sofrendo. Nesse caso trata-se de uma intertextualidade explícita, pois faz menção ao texto
citado.
Figura 1014
Ao trazer as tiras do Bode Gaiato como objeto de análise nota-se que estes critérios de
textualidade, anteriormente citados, muito têm com o que contribuir para depreendermos
sentidos ao analisar os modelos textuais em questão, por se tratar de aspectos que elevam a
categoria de texto multimodal que se centram tanto no texto quanto nos interlocutores e
sinalizam as situações de interação e discursividade presentes nestas tiras, além de evidencias
estratégias de sentido sociocognitivas e culturais.
14 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.
Fonte: Internet
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do constante avanço tecnológico, as comunicações e relações sociais têm se
alterado para se adequar às novas formas de interação que têm surgido. As redes sociais
tornaram-se o principal “ponto de encontro” entre os indivíduos e as produções textuais
compartilhadas nesses ambientes virtuais refletem a variabilidade das experiências humanas.
Nesse contexto, a inserção de elementos semióticos nas produções verbais mostra que a
multimodalidade passou a ser forma textual mais preterida dos indivíduos do século XXI. Os
vários modos de linguagem integrados trazem a representação dos indivíduos e do mundo em
que estão inseridos.
Nesse sentido, os textos do “Bote Gaiato”, que têm circulado pelas redes sociais, são
bons exemplos de como a multimodalidade expõe fatores comunicativos, situacionais,
históricos, culturais, sociais e políticos, exigem dos indivíduos a ativação de conhecimentos
de mundo, inferências, habilidades de interpretar e construir sentidos e, através da referência
ao cotidiano nordestino, à cultura do sertanejo, à linguagem e às crenças populares,
possibilitam, também, a identificação dos indivíduos com esse personagem e suas
experiências.
Além desses aspectos, é possível observar ainda nas produções do “Bode Gaiato” os
processos de referenciação e recategorização presentes nesses textos, juntamente com os
fatores de textualidade, o que torna sua análise relevante não apenas à cultura nordestina, mas
aos estudos linguísticos em geral. A visão de texto como objeto multifacetado e, nesse caso,
multimodal, revela a produtividade analítica advinda das produções do “Bode Gaiato” e
mostra a importância e os processos envolvidos na (re) construção de sentidos nas análises
textuais baseadas na multimodalidade.
Dessa forma, verifica-se que o aspecto multimodal – resultante da integração das
diferentes semioses apresentadas nas produções do “Bode Gaiato” – torna-se elemento
fundamental para a construção dos sentidos propostos nesses textos, pois amplia a experiência
de leitura, de modo que o leitor, ao interpretá-los, cria sentidos, atrelando a mensagem verbal
à não verbal.
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REFERÊNCIAS
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