(re)construÇÃo de sentidos

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1 “ARMARIA, BODE GAIATO!”: UMA PROPOSTA MULTIMODAL NA (RE)CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS Antônio Carlos Silva Júnior 1 Isabela Marília Santana 2 Talita Santos Menezes 3 GT 7 Educação, Linguagens e Artes RESUMO Palavras, imagens, sons, todos se “misturam” na composição dos textos que transitam pelas redes sociais, e a criatividade dos usuários torna os textos multimodais cada vez mais valorizados nesses ambientes. É nessa perspectiva que o presente trabalho tem como objetivo central analisar como a multimodalidade atua na construção dos sentidos propostos nos textos do “Bode Gaiato”, de modo que seja possível identificar seus aspectos característicos e verificar como a estruturação deles pode contribuir no processo de referenciação. O estudo trata-se, então, de uma pesquisa qualitativa do tipo bibliográfica que ampara suas discussões teóricas nas obras de Koch (2003, 2009), Kress e Van Leeuwen (1996), Mondala e Dubois (2003), Pinheiro (2012), , dentre outros, e ressalta a ideia de que o caráter visual está cada vez mais refletido nos textos, incorporando linguagem verbal e não verbal, e contribuindo significativamente para a construção dos sentidos do texto. Palavras-chave: Multimodalidade. Referenciação. Bode gaiato. ABSTRACT Words, images, sounds, they all “mix” in the making of the texts that go throught social networks, and the criativity of the users make the texts multimodal each time more valued in these environments. In this perspective the presente work has as main objective to analyze how the multimodality acts in the making of meanings proposed in the texts of “Bode Gaiato”, making it possible to identify its characteristics aspects and verify how their structure can contribute in the processo of referencing. The study is ,then, a qualitative research bibliographic type that assures its theorical discussions in the works of Koch (2003, 2009), Kress e Van Leeuwen (1996), Mondala e Dubois (2003), Pinheiro (2012), among others, and reafirms the idea that the visual aspect is becaming more and more reflected in texts, incorporating verbal and non verbal language, and contributing meaningfully for the construction of text meaning. Keywords: Multimodality. Referencing. Bode gaiato. 1 Mestre em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Docente da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe (SEED/SE) e do Colégio de Aplicação (CODAP) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: <[email protected]>. 2 Mestra em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Docente da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe (SEED/SE). Email: [email protected]. 3 Mestra em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Docente do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe (DLEV/UFS). E-mail: <[email protected]>.

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1

“ARMARIA, BODE GAIATO!”: UMA PROPOSTA MULTIMODAL NA

(RE)CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS

Antônio Carlos Silva Júnior1

Isabela Marília Santana2

Talita Santos Menezes3

GT 7 – Educação, Linguagens e Artes

RESUMO Palavras, imagens, sons, todos se “misturam” na composição dos textos que transitam pelas

redes sociais, e a criatividade dos usuários torna os textos multimodais cada vez mais

valorizados nesses ambientes. É nessa perspectiva que o presente trabalho tem como objetivo

central analisar como a multimodalidade atua na construção dos sentidos propostos nos textos

do “Bode Gaiato”, de modo que seja possível identificar seus aspectos característicos e

verificar como a estruturação deles pode contribuir no processo de referenciação. O estudo

trata-se, então, de uma pesquisa qualitativa do tipo bibliográfica que ampara suas discussões

teóricas nas obras de Koch (2003, 2009), Kress e Van Leeuwen (1996), Mondala e Dubois

(2003), Pinheiro (2012), , dentre outros, e ressalta a ideia de que o caráter visual está cada vez

mais refletido nos textos, incorporando linguagem verbal e não verbal, e contribuindo

significativamente para a construção dos sentidos do texto.

Palavras-chave: Multimodalidade. Referenciação. Bode gaiato.

ABSTRACT

Words, images, sounds, they all “mix” in the making of the texts that go throught social

networks, and the criativity of the users make the texts multimodal each time more valued in

these environments. In this perspective the presente work has as main objective to analyze

how the multimodality acts in the making of meanings proposed in the texts of “Bode

Gaiato”, making it possible to identify its characteristics aspects and verify how their structure

can contribute in the processo of referencing. The study is ,then, a qualitative research

bibliographic type that assures its theorical discussions in the works of Koch (2003, 2009),

Kress e Van Leeuwen (1996), Mondala e Dubois (2003), Pinheiro (2012), among others, and

reafirms the idea that the visual aspect is becaming more and more reflected in texts,

incorporating verbal and non verbal language, and contributing meaningfully for the

construction of text meaning.

Keywords: Multimodality. Referencing. Bode gaiato.

1 Mestre em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Docente da Secretaria de Estado da Educação

de Sergipe (SEED/SE) e do Colégio de Aplicação (CODAP) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail:

<[email protected]>. 2 Mestra em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Docente da Secretaria de Estado da Educação

de Sergipe (SEED/SE). Email: [email protected]. 3 Mestra em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Docente do Departamento de Letras Vernáculas

da Universidade Federal de Sergipe (DLEV/UFS). E-mail: <[email protected]>.

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1 INTRODUÇÃO

Os complexos e mais variados sistemas de textos, os quais têm surgido como reflexo

das constantes modificações nas formas de interação e comunicação entre os sujeitos, têm

revelado o quanto a multimodalidade se insere entre as principais e preferidas formas textuais

produzidas na sociedade contemporânea.

A integração das várias linguagens – que envolve palavras, imagens, sons, entre

outras, tornou-se a principal característica das produções textuais vinculadas na internet e

mais precisamente nas redes sociais. O indivíduo usa a criatividade para representar a si

mesmo e o mundo – como ele vê individual e coletivamente, através de um processo de

construção e reconstrução de referentes e entidades.

Nessa perspectiva, é notório o grande sucesso que o “Bode Gaiato” – figura criada

como parte dos “memes” que circulam pela internet – tem feito nas redes sociais e a reação

que tem criado nos internautas. As pessoas se identificam com as situações retratadas e isso

cria reações que envolvem processos discursivos e cognitivos que irão resultar na criação de

outros textos e/ou discursos.

Portanto, o presente artigo tem como objetivo analisar produções do “Bode Gaiato”

sob uma perspectiva que destaque a multimodalidade presente nessas criações e o processo de

referenciação presente nas tais. Ou seja, como essas criações constroem e reconstroem objetos

de discurso e, consequentemente, sentidos. Para isso, primeiramente, abordaremos a

multimodalidade presente nos estudos da linguística textual, sua estruturação como

contribuinte do processo de referenciação e em seguida faremos uma análise para mostrar os

resultados empíricos destes pressupostos.

2 A MULTIMODALIDADE NOS ESTUDOS DA LINGUÍSTICA TEXTUAL

Sob uma tradição predominantemente europeia, a Linguística Textual surge em

meados dos anos 60 do século XX como uma das subdisciplinas da Linguística. Tendo o texto

como foco principal de seus estudos, essa subdisciplina trata não só do estatuto sistemático do

texto, mas também da interação empírica dos indivíduos com os textos na realidade do dia a

dia, como afirmam Blüdorn e Andrade (2009).

3

A partir dos anos 90, os chamados “textos não canônicos” passaram a fazer parte do

escopo de estudos da Linguística Textual e nessa categoria estão (também) inseridos os textos

multimodais. É inegável que os sistemas de textos cada vez mais complexos, característicos

da comunicação e interação sociais não só convergem para novos formatos de texto, mas

também exigem novos tipos de análise.

Determinados aspectos de nossa realidade social só são criados por meio da

representação dessa realidade e só assim adquirem validade e relevância

social, de tal modo que os textos não apenas tornam o conhecimento visível,

mas, na realidade, sociocognitivamente existente. A revolução e evolução do

conhecimento necessita e exige, permanentemente, formas de representação

notoriamente novas e eficientes. (KOCH, 2003, p. 3).

Entende-se, então, que a crescente integração das várias formas de linguagem passa a

ser emergente na produção textual que representa a complexa sociedade atual. Nesse sentido,

“Os textos são, portanto, multimodais, ou seja, um conjunto de múltiplas formas de

representação ou códigos semióticos que, através de meios próprios e independentes, realizam

sistemas de significados.” (SELVATICI, 2007, p. 1).

Ao falar sobre a concepção atual de texto nos estudos da Linguística Textual, Pinheiro

(2012) diz que o texto é visto como objeto dinâmico, multifacetado e resultante de ações

linguísticas, sociocognitivas e discursivas, de forma que tais características contribuem, de

certa forma, para a inserção de elementos semióticos na constituição do texto. Dessa forma, o

autor reforça a ideia de que os elementos não verbais são responsáveis pela construção dos

sentidos do texto tanto quanto os elementos verbais.

Nessa perspectiva, o produtor de um texto que opte pelo uso de uma imagem, por

exemplo, pauta sua escolha não apenas por uma questão de estética, mas também pela noção

(consciente ou inconsciente) das funções e efeitos da imagem em sua produção. Com relação

a isso, Calado (1994) trata das funções de comunicação presentes nas imagens e evidencia

como estas contribuem na construção do sentido e na compreensão de um texto. Uma das

funções tratadas por essa autora, a qual se fundamenta num estudo feito por Levin et al

(1987), é a Função Representativa que “[...] reforça as informações mais importantes de uma

mensagem veiculada de forma verbal, através da apresentação de elementos redundantes.

Serve essencialmente para tornar mais concretos os conteúdos da informação verbal.”

(CALADO, 1994, p. 104).

4

Percebe-se, então, que as linguagens verbal e não verbal se integram de forma

coerente e coesa para a formação de um texto e, nesse sentido, a multimodalidade precisa ser

analisada sob a perspectiva de uso de ambas as formas de linguagem.

No caso dos textos multimodais, por exemplo, tanto os elementos verbais

como os não verbais devem ser considerados como parte de um todo que é o

texto. A análise empreendida deve considerar esse todo e não ser

segmentada na análise de pequenos textos, verbais de um lado e não verbais

de outro. Portanto, os elementos não verbais são fundamentais e

inevitavelmente constitutivos dos textos multimodais e incorporá-los na

análise se faz necessário para explicar e compreender a forma como ocorre,

também nesses textos, o processo de compreensão. (PINHEIRO, 2012, p. 7).

Assim, reforça-se essa ideia, trazendo a semiótica para complementar essa

fundamentação nas pessoas de Kress e Van Leeuwen, que afirmam que duas ou mais

modalidades semióticas em composição em um determinando modelo textual provoca efeitos

significativos nas características e formatos dos textos, mostrando a dinamicidade presente na

sociedade contemporânea que nos exige variadas formas de significar o mundo.

Os autores defendem que os elementos visuais possuem uma sistematização

semelhante aos elementos linguísticos, pois partem da experiência e do conhecimento de

mundo dos indivíduos que compõem a interação social em questão. Por isso, “[...] não ser

‘visualmente letrado’ começará a atrair sanções sociais. ‘Letramento visual’ começará a ser

uma questão de sobrevivência, especialmente no ambiente de trabalho”² (KRESS e van

LEEUWEN, 1996, p.3).

Dessa forma, percebe-se que o texto multimodal, tão característico da sociedade atual

– dita globalizada, insere-se nos interesses de estudo da Linguística Textual por se tratar de

uma representação (da realidade) notoriamente eficiente.

2.1 Multimodalidade: suporte na referenciação

A partir da ideia do texto como um lugar de interação entre sujeitos, pode-se perceber

que além de auxiliar no processo de compreensão do texto, as linguagens verbal e não verbal

também fazem parte do processo de referenciação, já que ambas integradas apontam para

entidades ou referentes – de forma que constroem e reconstroem esses “objetos de discurso”

no interior do discurso durante o processo de interação – e o uso dessas linguagens num texto

5

reflete a escolha de um sujeito em interação com outros sujeitos, visando um objetivo final.

Ou seja, “o sujeito, por ocasião da interação verbal, opera sobre o material linguístico que tem

à sua disposição e procede escolhas significativas para representar estados de coisas, de modo

condizente com a sua proposta de sentido.” (KOCH e ELIAS, 2007, p. 124). Assim, o uso dos

diversos “modos linguísticos” não é aleatório, mas resultante de escolhas com vistas a uma

representação significativa.

Tendo por base os estudos de Rastier (1994), Mondada e Dubois (2003, p. 20),

abordam o processo de referenciação, defendendo a ideia de que este “não diz respeito a ‘uma

relação de representação das coisas ou dos estados das coisas, mas a uma relação entre o texto

e a parte não linguística da prática em que ele é produzido e interpretado’.” Entende-se,

então, que estas práticas são realizadas pelos sujeitos através de processos discursivos e

cognitivos, sob a influência de concepções individuais e coletivas do mundo. Assim, a escolha

de um sujeito pela construção de um texto multimodal reflete uma série de fatores e

construções sociocognitivas e históricas que exprimem sua relação e interação com outros

sujeitos e com o ambiente em que estão inseridos.

Nesse sentido, é que menciona a instabilidade e a estabilidade de categorias as quais se

destacam também nesse viés de unir imagens e palavras pelo fato de o referente ser fabricado

pela prática social e cultural como também cognitivo/discursivamente visando a um ambiente

de interação e troca comunicativa e levando em consideração fatores comunicativos e

situacionais, como também, sociais, históricos e culturais. Essa instabilidade e flexibilidade

de sentidos e significações são determinadas pelos contextos e indivíduos a partir da

variabilidade das experiências humanas.

Corroborando com estes fatos, Koch (2009, p. 54) assinala que “as categorias

utilizadas para descrever o mundo alteram-se tanto sincrônica quanto diacronicamente: quer

nos discursos ordinários, quer nos discursos científicos, elas são plurais e mutáveis, antes de

serem fixadas normativa ou historicamente”.

Um aspecto bastante presente na interpretação e construção de sentidos em textos

multimodais é a questão da inferência. As palavras e imagens que surgem nos modelos

textuais nos levam a instâncias de significação extralinguísticas, a diversos contextos

interpretativos e ocasiona a recuperação de informações não explícitas e a inferir sentido

mediante as pistas linguísticas que vão sendo lançadas na progressão textual.

6

Desta forma, conclui-se que o texto é construído não apenas pelos elementos

verbalizados, mas também pelo contexto, pelo conhecimento partilhado e identificado

cognitivamente, enfim, por uma gama de fatores de variadas ordens.

E é diante dessas afirmações que a Linguística Textual sente a necessidade de alargar a

noção de texto, pois a linguagem textual-discursiva pode manifestar-se em variados caminhos

(verbal ou não verbal), afinal trata-se de um objeto de estudo multifacetado que precisa ser

explicado e trabalhado nas mais variadas instâncias para que se alcance uma maior

produtividade analítica.

3 O UNIVERSO DO “BODE GAIATO”

O “Bode Gaiato” (BG)4 é uma criação do estudante recifense Breno Melo com a

proposta de ser um diferencial em meio a tantos “memes” espalhados pela internet. O autor se

baseou em experiências de vida e observações a partir de hábitos nordestinos, como também

da linguagem e dos regionalismos, para criar as tiras misturando humor, críticas sociais como

também identificação cultural. Essa criação retrata, de maneira singela, a cultura de um povo

simples, a qual é traduzida na fala, nos gestos, nos costumes e crenças. Além disso, por incluir

em suas tiras imagens e frases, é que se julga importante analisá-los brevemente para que se

possa demonstrar o quão interessante e importante é para a (re) construção de sentidos são as

análises textuais baseadas na multimodalidade.

Na composição do seu texto, sempre encontramos elementos verbais e não verbais,

caracterizando-o assim como texto multimodal. Cada um desses elementos (verbal e visual)

tem as suas características, possibilidades e limitações e nem tudo que pode ser expresso em

palavras pode ser expresso em imagens, e vice-versa. No entanto, Breno Melo, autor das tiras,

busca utilizar as linguagens verbal e visual de modo interativo, onde uma linguagem contribui

na compreensão da outra.

A ampla divulgação no facebook deve-se ao fato de expressar significados

relacionados à cultura nordestina, às vezes de modo estereotipada, e de abordar, também,

situações típicas que causam reconhecimento do leitor originário de qualquer lugar do país.

4 Disponível em: <https://pt-br.facebook.com/BodeGaiato>.

7

Dentro das tiras do Bode Gaiato, as situações vivenciadas pelos personagens ocorrem

em sua grande maioria no contexto familiar, além de momentos informais vivenciados com os

personagens secundários “Biu” (esposo de Dona Zefinha) e “Ciço” (amigo de Junin).

A mãe do personagem central tem como nome “Dona Zefinha”. O uso do tratamento

“dona” e do termo no diminutivo “Zefinha”, derivado de Josefa provavelmente, é muito

comum para referir-se com respeito às pessoas com mais idade.

A representação visual dada a este personagem a ilustra como uma mulher com poder

aquisitivo baixo e que passa parte do seu dia cuidando dos afazeres domésticos, referência

esta feita através do uso de pano na cabeça, avental, vestido estampado e objetos utilizados

nas diversas situações.

O comportamento de Dona Zefinha com seu filho comprova quão cuidadosa, atenciosa

e carinhosa ela é. A relação texto verbal e não verbal presente nas tiras facilita o entendimento

da sua mensagem e identificação com o tema tratado. Em muitos momentos, vê-se a

demonstração de zelo da mãe para com seu filho, zelo este visto por Junin como uma

decepção. Em contrapartida, essa mesma mãe cuidadosa também é caracterizada como aquela

que questiona, dá ordens, e que, quando contrariada, pune.

Nessa perspectiva, é possível perceber a referência feita, com elementos verbais e não

verbais, às mães que ao mesmo tempo em que demonstram carinho, atenção e extremo zelo

para com seus filhos, também expressam, dependendo da situação, autoritarismo, impaciência

e nervosismo.

Júnior, mais conhecido como “Junin” – forma diminutiva bastante utilizada para

chamar crianças que possuem esse sobrenome – é o filho de Dona Zefinha. Não se sabe seu

primeiro nome, mas é em torno desse menino com cabeça de bode que ocorrem as peripécias

do Bode Gaiato.

Segundo o próprio autor Breno Melo, foi utilizada a cabeça de um bode por se tratar

de um animal comum no sertão nordestino e que daria um maior teor cômico às histórias.

Com relação ao adjetivo “gaiato” dado, o termo faz referência àquele que é engraçado, alegre,

malicioso, que faz brincadeiras em geral. Na imagem acima, ele aparece com um chapéu de

vaqueiro, mais um estereótipo atribuído à figura nordestina.

Entre as situações vivenciadas por Junin, está sua relação com Dona Zefinha. O garoto

é vítima do autoritarismo e das ordens dadas por sua mãe. Outra questão abordada nas tiras do

8

Bode Gaiato é a desobediência e desrespeito de Junin quando aparece respondendo à sua mãe

de forma sarcástica, pejorativa e irônica.

3.1 Recategorização: (re) construção de referentes no “Bode Gaiato”

A própria Linguística Textual (como também a referenciação) trabalha num viés de

uma abordagem cognitivo-discursiva da recategorização. O processo de recategorização se

concretiza na (re) elaboração dos objetos de mundo que irão ocasionar os objetos de discurso,

de acordo com a proposta enunciativa do seu produtor.

A recategorização está associada à continuidade referencial desses objetos constituídos

no universo do discurso de maneira dinâmica, e “põe em relevo não somente um sujeito real,

mas, sobretudo, um sujeito sociocognitivo, que constrói o mundo ao curso do cumprimento de

suas atividades sociais e o torna estável graças às categorias – notadamente às categorias

manifestadas no discurso” (LIMA, 2007, p. 80).

(i) a recategorização nem sempre pode ser reconstruída diretamente no nível

textual-discursivo, não se configurando apenas pela remissão ou retomada de

itens lexicais; (ii) em se admitindo (i), a recategorização deve, em alguns

casos, ser (re)construída pela evocação de elementos radicados num nível

cognitivo, mas sempre sinalizados por pistas linguísticas, para evitar-se

extrapolações interpretativas; (iii) em decorrência de (ii), a recategorização

pode ter diferentes graus de explicitude e implicar, necessariamente,

processos inferenciais. (LIMA, 2009, p. 56)

Em se tratando do Bode Gaiato, há uma grande instabilidade de categorias que vão, a

todo o momento, categorizando e recategorizando os referentes e as entidades discursivas.

9

Figura 15

Na imagem acima, percebe-se que mais uma vez o conteúdo imagético, no caso a

embalagem do suco artificial “Tang” sabor manga, recategoriza o sentido do modelo textual,

pois nenhuma explicação mais aprofundada é dada para esclarecer a situação em questão,

apenas um conhecimento partilhado, cognitivo e interacional é que detecta e recupera o

sentido por detrás do que vemos. O mito popular do suposto perigo em misturar manga e leite

podendo causar até a morte é representado pelo Bode Gaiato; a seta indicando a sugestão da

embalagem em experimentar também com leite destaca o risco por ele detectado e dialoga

com a fala de Junin que exclama: Zulive, quero morrer não.

A linguagem utilizada pelos seus personagens também é um aspecto de extrema

relevância nas histórias do Bode Gaiato. Repleta de informalidade, regionalismos, sem seguir

a norma padrão, termos aglutinados, com redução fonética, resultado da tentativa de expressar

com fidelidade, mesmo utilizando estereótipos, o modo particular de falar do povo, expressão

verbal de sua cultura e variação linguística.

Muitos dos conceitos com que lidamos são vinculados à cultura, no sentido

de que dependem, para a sua compreensão, do conhecimento transmitido

socialmente, tanto conhecimento prático quanto propositivo, e variam

consideravelmente de cultura para cultura. (LYONS, 1987, p. 279).

5 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.

Fonte: Internet

10

Figura 26 Figura 37

Entre as expressões utilizadas, pode-se destacar: armaria, mainha, pain, lasquêime,

crendôspa, ói, urêa, gazeando, zuada, pirangage, dormir de couro quente, entre outros. Nessa

perspectiva, verifica-se a multimodalidade a partir da coerente relação entre o que é dito pelos

personagens e as ilustrações que compõem os quadros, como: o computador de Junin que tira

sua atenção, o fogão, panelas e fumaça na cozinha de Dona Zefinha, como também o prego e

a sandália na mão da mãe.

3.2 Uma análise dos fatores de textualidade nas tiras do Bode gaiato

Beaugrande e Dressler (1981), citados por Koch (2009), trazem alguns princípios de

construção de sentidos, chamados por eles de critérios de textualidade, que sinalizam a virada

pragmática com que a Linguística Textual deu nos anos 80 e orientam os interlocutores e o

próprio texto a estabelecer parâmetros de atribuição de sentidos. São eles: a coesão e a

6 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>. 7 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.

Fonte: Internet Fonte: Internet

11

coerência, centrados no texto; e a intencionalidade, a aceitabilidade, a situacionalidade, a

informatividade e a intertextualidade, centrados nos interlocutores.

A coesão e a coerência, segundo Koch (2009), não podem ser mencionadas em

separado, pelo fato de que uma complementa e ocasiona a outra. A coesão reitera os

movimentos de retroação e de prospecção através das sequências temáticas que determinam a

progressão textual/tópica e estabelecem a coerência. Esta compreende os sentidos que estão

fora do linguístico, fazem parte do extralinguístico, do que está implícito e do que se busca

significação em outros contextos e domínios, ela se constrói a partir do texto e de seus

elementos, das pistas linguísticas que lhe são dadas. “Desta maneira, sempre que se faz

necessário um cálculo do sentido, com recurso a elementos contextuais – em particular os de

ordem sociocognitiva e interacional –, já nos encontramos no domínio da coerência.” (KOCH,

2009, p. 46).

Figura 48

Fonte: Internet

A imagem acima comprova a questão da coesão e coerência, quando faz referência a

um problema social no contexto familiar (assalto à mão armada a uma casa de família). Os

elementos verbais e visuais expostos (tanto na parte em que os personagens estão deitados na

cama, o que permite a inferência de ser noite – um momento mais propício à prática de

8 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.

12

assaltos, quanto no diálogo ocorrido entre Biu e o ladrão – este, caracterizado pelo capuz e

pelo uso da arma) estão interligados, de modo que uma cena dá continuidade à outra

coesivamente e estabelece a coerência como um todo no texto.

A intencionalidade refere-se à intenção do locutor em promover uma interação e uma

mobilização comunicativa coesa e coerente. No caso da página do Bode Gaiato, essa intenção

foi executada e recebida com êxito, por conta da mobilização positiva dos receptores e da

grande receptividade, além de que as imagens utilizadas, como a figura do bode, característico

do nordeste, como também as imagens da casa dele, do espaço sideral como forma de mostrar

que é o mundo que vivem, foram estratégias textuais que contribuíram para que essa intenção

fosse coerente com a proposta comunicativa.

Essa grande aceitação dos internautas, nordestinos ou não, que acabam por se

identificar e atribuir sentido aos modelos textuais propostos pela página do Bode Gaiato

contribui, de certa forma, para o critério da aceitabilidade que é a contraparte da

intencionalidade e compreende o jogo comunicativo e de sentido (efetivos) entre os

interactantes do processamento textual, como assinala Koch (2009, p. 43) “[...] refere-se à

atitude dos interlocutores de aceitarem a manifestação linguística do parceiro como um texto

coeso e coerente, que tenha para eles alguma relevância”. O leitor atribui significância e

sentido aos jogos enunciativos de acordo com conhecimento de mundo partilhado.

Figura 59 Figura 610

9 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>. 10 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.

Fonte: Internet Fonte: Internet

13

Como se pode ver, nas imagens acima, só quem conhece a imagem da raquete

exterminadora de mosquitos” (figura 5) poderá recuperar a informação dada e atribuir sentido

a tira em questão. O mesmo acontece na figura 6 que apenas a imagem da sandália já é

suficiente para depreendermos sentido, pois nos leva ao contexto das palmadas que “Junin”

sempre leva. Outro aspecto imagético de grande importância para a recategorização dos

sentidos no texto são as lágrimas nos olhos do garoto, sempre que faz algo errado ou sempre

que se pretende sinalizar que ele se deu mal.

Outro quesito é a situacionalidade, que pode ser considerada em duas direções: da

situação para o texto, que diz respeito ao conjunto de fatores que tornam um texto relevante

para uma situação comunicativa ou passível de reconstrução. Trata-se de determinar a

situação imediata comunicativa como também os contextos e seus entornos sociais, políticos e

culturais que interferem na produção/recepção do texto. Diz respeito aos fatores pragmáticos e

(extra) linguísticos (verbais e não verbais) que dão sentido ao modelo textual. Como podemos

ver na tira abaixo:

Figura 711

Nesta imagem, a situação textual traz à tona um contexto político e midiático que dá

significância ao texto. Envolve dois importantes fatos da política nacional, a saber: o

impeachment da presidente Dilma Rousseff e a cassação do presidente da Câmara dos

11 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.

Fonte: Internet

14

Deputados, Eduardo Cunha, junto a um caso midiático: o bloqueio misterioso da página do

“Bode Gaiato” pelo Facebook durante 18 horas no mês de setembro do presente ano.

Outra direção da situacionalidade é a do texto para situação, que sinaliza os reflexos

importantes trazidos pelo texto que demarcam a situação, pois o mundo real é recategorizado

pelo mundo textual. Ou seja, quais interpretações e visões de mundo o texto traz para o leitor,

como ele interfere e o que acrescenta ao indivíduo, sempre, claro, de acordo com seus

objetivos, propósitos e crenças, da sua maneira de ver o mundo e de recategorizar seus objetos

reais em objetos de discurso (MONDADA e DUBOIS, 2003).

Um critério bastante importante é a informatividade que diz respeito à distribuição da

informação evidenciando o equilíbrio entre informação dada e a informação nova, não se

pode conter em um texto apenas informação dada, senão o texto ficará redundante, nem

apenas informação nova, pois ele ficará sem sentido por não haver âncoras necessárias ao

processamento. Como se vê nas imagens abaixo:

Figura 812 Figura 913

12 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>. 13 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.

Fonte: Internet

Fonte: Internet

15

As imagens que surgem a cada cena retomam a cena anterior e acrescentam novas

significações a partir de elementos de ordem não verbal (leiteira derramando e imagem dos

sucos no balão).

A intertextualidade compreende as relações que um texto mantém com outros textos e

a construção de sentidos que estes textos mencionados podem ocasionar, como também

contribuir para o entendimento dos referentes e das entidades textuais. Como mostra a figura

abaixo, Junin cita a Lei Maria da Penha como forma de se fazer justiça aos castigos que vem

sofrendo. Nesse caso trata-se de uma intertextualidade explícita, pois faz menção ao texto

citado.

Figura 1014

Ao trazer as tiras do Bode Gaiato como objeto de análise nota-se que estes critérios de

textualidade, anteriormente citados, muito têm com o que contribuir para depreendermos

sentidos ao analisar os modelos textuais em questão, por se tratar de aspectos que elevam a

categoria de texto multimodal que se centram tanto no texto quanto nos interlocutores e

sinalizam as situações de interação e discursividade presentes nestas tiras, além de evidencias

estratégias de sentido sociocognitivas e culturais.

14 Disponível em: < https://www.facebook.com/BodeGaiato/photos>.

Fonte: Internet

16

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do constante avanço tecnológico, as comunicações e relações sociais têm se

alterado para se adequar às novas formas de interação que têm surgido. As redes sociais

tornaram-se o principal “ponto de encontro” entre os indivíduos e as produções textuais

compartilhadas nesses ambientes virtuais refletem a variabilidade das experiências humanas.

Nesse contexto, a inserção de elementos semióticos nas produções verbais mostra que a

multimodalidade passou a ser forma textual mais preterida dos indivíduos do século XXI. Os

vários modos de linguagem integrados trazem a representação dos indivíduos e do mundo em

que estão inseridos.

Nesse sentido, os textos do “Bote Gaiato”, que têm circulado pelas redes sociais, são

bons exemplos de como a multimodalidade expõe fatores comunicativos, situacionais,

históricos, culturais, sociais e políticos, exigem dos indivíduos a ativação de conhecimentos

de mundo, inferências, habilidades de interpretar e construir sentidos e, através da referência

ao cotidiano nordestino, à cultura do sertanejo, à linguagem e às crenças populares,

possibilitam, também, a identificação dos indivíduos com esse personagem e suas

experiências.

Além desses aspectos, é possível observar ainda nas produções do “Bode Gaiato” os

processos de referenciação e recategorização presentes nesses textos, juntamente com os

fatores de textualidade, o que torna sua análise relevante não apenas à cultura nordestina, mas

aos estudos linguísticos em geral. A visão de texto como objeto multifacetado e, nesse caso,

multimodal, revela a produtividade analítica advinda das produções do “Bode Gaiato” e

mostra a importância e os processos envolvidos na (re) construção de sentidos nas análises

textuais baseadas na multimodalidade.

Dessa forma, verifica-se que o aspecto multimodal – resultante da integração das

diferentes semioses apresentadas nas produções do “Bode Gaiato” – torna-se elemento

fundamental para a construção dos sentidos propostos nesses textos, pois amplia a experiência

de leitura, de modo que o leitor, ao interpretá-los, cria sentidos, atrelando a mensagem verbal

à não verbal.

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REFERÊNCIAS

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