reconstruindo a tradiÇÃo turismo e modernidade na … · norte do silk há mais de mil anos....

12
RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na China e no Japão * Nelson Graburn Apresentação: a escala do turismo no Leste asiático Atualmente a Ásia é uma das principais uma das principais regiões de destino e de origem do turismo internacional. Mas na China e no Japão o número de turistas internacionais é ultrapassado pelos enormes fluxos de turistas domésticos. O turismo étnico e cultural cresce mais rápido do que quaisquer outros na atual indústria globalizante. Embora as civilizações da China e do Japão sem- pre tenham valorizado e visitado suas tradições de “alta cultura”, o florescente turismo contemporâ- neo tem um efeito democratizante, estendendo a capacidade de viajar à maioria da população e va- lorizando o “exótico”, o estrangeiro e o “margina- lizado” não só para os visitantes internacionais mas também para as massas urbanas que constituem mais de 95% dos turistas. Este texto analisa como povos rurais recen- temente visíveis, minoritários e exóticos passaram a ser remodelados como aqueles que valorizam suas tradições culturais tangíveis e intangíveis. Nos últimos 25 anos as autoridades chinesas em algumas províncias vêm encorajando o turismo em aldeias étnicas minoritárias, antes remotas, com a apresentação de performances em trajes tradicio- nais, de comidas “típicas”, danças e arquitetura pecu- liar. Em centros urbanos, empresários têm orques- trado características estereotipadas de minorias em extravagâncias para a audiência de um público maior. Mas membros dessas 55 nacionalidades mi- noritárias aprenderam muitas vezes a construir sua RBCS Vol. 23 n. o 68 outubro/2008 Este trabalho foi originalmente apresentado como uma conferência ilustrada no Encontro Nacional da Anpocs, em Caxambu, MG, dia 23 de outubro de 2007. Foi em parte ilustrado pela projeção de clipes do vídeo Global Villages (Gordon, 2005). Algumas das citações são tomadas do áudio desse vídeo. Tradução de Plínio Dentzien. *

Upload: vuongnguyet

Post on 10-Dec-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na … · norte do Silk há mais de mil anos. Inteiramente separados das atrações turísticas ... 2007). O projeto de turismo rural

RECONSTRUINDO A TRADIÇÃOTurismo e modernidade na China e no Japão*

Nelson Graburn

Apresentação:a escala do turismo no Leste asiático

Atualmente a Ásia é uma das principais umadas principais regiões de destino e de origem doturismo internacional. Mas na China e no Japão onúmero de turistas internacionais é ultrapassadopelos enormes fluxos de turistas domésticos. Oturismo étnico e cultural cresce mais rápido do quequaisquer outros na atual indústria globalizante.Embora as civilizações da China e do Japão sem-pre tenham valorizado e visitado suas tradições de“alta cultura”, o florescente turismo contemporâ-

neo tem um efeito democratizante, estendendo acapacidade de viajar à maioria da população e va-lorizando o “exótico”, o estrangeiro e o “margina-lizado” não só para os visitantes internacionais mastambém para as massas urbanas que constituem maisde 95% dos turistas.

Este texto analisa como povos rurais recen-temente visíveis, minoritários e exóticos passarama ser remodelados como aqueles que valorizam suastradições culturais tangíveis e intangíveis.

Nos últimos 25 anos as autoridades chinesasem algumas províncias vêm encorajando o turismoem aldeias étnicas minoritárias, antes remotas, coma apresentação de performances em trajes tradicio-nais, de comidas “típicas”, danças e arquitetura pecu-liar. Em centros urbanos, empresários têm orques-trado características estereotipadas de minorias emextravagâncias para a audiência de um públicomaior. Mas membros dessas 55 nacionalidades mi-noritárias aprenderam muitas vezes a construir sua

RBCS Vol. 23 n.o 68 outubro/2008

Este trabalho foi originalmente apresentado como umaconferência ilustrada no Encontro Nacional da Anpocs,em Caxambu, MG, dia 23 de outubro de 2007. Foi emparte ilustrado pela projeção de clipes do vídeo GlobalVillages (Gordon, 2005). Algumas das citações sãotomadas do áudio desse vídeo. Tradução de PlínioDentzien.

*

02 rbcs 68 nelson grabum.p65 10/10/2008, 16:5411

Page 2: RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na … · norte do Silk há mais de mil anos. Inteiramente separados das atrações turísticas ... 2007). O projeto de turismo rural

REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 6812

própria imagem no sentido de garantir vantagensdentro das comunidades. Alguns assumiram mesmoo papel de representar outras culturas, estrangeirase não-chinesas, em exibições culturais “étnicas”.

A reavaliação japonesa no que diz respeitoaos povos rurais e marginais ocorreu no início doséculo XX. Embora as minorias étnicas, como osAinu, tivessem sido excluídas por longo tempo(Weiner, 1996), havia uma busca nostálgica pelaautenticidade dessas populações rurais, montanhe-sas e de outros japoneses marginais durante a loucacorrida pela industrialização e a militarização doJapão (Yanagita, 1946; Yanagi, 1952). Em temposmais recentes, comunidades e instituições japone-sas reconstruíram edifícios, retomaram a arte e oartesanato das comunidades tradicionais, e, ainda,construíram verdadeiros simulacros de comunida-des estrangeiras, especialmente européias, não sópara o olhar do turista, mas também para performan-ces interativas e até mesmo para habitação (Appel-gren, 2007; Graburn, 2007; Hendry, 2000).

De que maneira os conceitos ocidentais detradição e autenticidade são aplicáveis a esse tipode projeto? O que podemos aprender a respeito detrajetórias culturais nacionais com base nessesfenômenos?

As Minzu chinesas: aldeias étnicaspara turismo

Boa parte do desenvolvimento político e co-mercial do turismo na China focalizou as regiõesmais pobres, o oeste e o sudoeste. No interiordessas áreas, “pequenas nacionalidades” Minzu fi-guram entre as mais pobres, sendo que suas dife-renças e exotismo fascinam os chineses principal-mente de áreas urbanas e litorâneas, que constitu-em a vasta maioria dos turistas. Nem a natureza“selvagem” nem o ecoturismo são atraentes paramuitos chineses, mas há alguns desenvolvimentosno Ocidente dirigidos por organizações não-go-vernamentais, como o World Wildlife Fund e aNature Conservancy, que atraem principalmenteturistas ocidentais.1

Os estudos de casos de turismo étnico e ruralestão localizados na província de Xinjiang, no ex-tremo oeste, e em Yunnan e Guizhou, no sudoeste.As grandes cidades de Kunming (em Yunnan) eShenzen (próxima de Hong Kong) são os locais

onde foram construídos Parques Temáticos Étni-cos, que serão analisados adiante. A maioria dessasaldeias está fora do alcance do turismo típico. Osgovernos locais e regionais tentam ainda ajudá-lasou desenvolvê-las no sentido de melhorar sua infra-estrutura ou seu acesso ao mercado.

Em alguns poucos casos, o desenvolvimentodo turismo em áreas étnicas não inclui as popula-ções locais como atração turística. Por exemplo, emTuyuk, uma aldeia muçulmana localizada na depres-são Turfan de Xinjiang,2 o envolvimento direto dapopulação local no turismo oficialmente apoiado émínimo. Esse turismo patrocinado volta-se maispara os desenhos sagrados deixados pelos budistashá mais de mil anos nas cavernas das montanhas,onde o governo regional construiu uma passarelade madeira do estacionamento na aldeia até as ca-vernas que se encontram numa área deserta. Asparedes das cavernas permanecem fechadas porportões de ferro, e somente abertas quando da pre-sença de guias. Infelizmente, todos os budas pinta-dos foram literalmente desfigurados pelos muçul-manos que ocuparam a área ao longo dessa áreanorte do Silk há mais de mil anos.

Inteiramente separados das atrações turísticasoficiais, turistas/peregrinos religiosos regionais cos-tumam visitar as mesquitas de Tuyuk. Lá, há setetúmulos/mesquitas que constituem as sepulturasdos profetas-fundadores oriundo do Yemen. Es-ses fundadores mágicos, segundo a lenda, foramoriginalmente mortos e enterrados, mas retornaramà vida centenas de anos mais tarde. Tais aconteci-mentos mágicos transformaram seus túmulos empoderosas atrações tanto para os turistas islâmicosda região como para peregrinos em geral que osvisitam informalmente. Durante os serviços religio-sos, os visitantes fazem doações que são usadas paramanter as estruturas e remunerar os líderes religio-sos locais. O governo não encoraja o turismo islâ-mico por medo de aumentar a consciência pan-islâmica e, portanto, abrir caminho para um possí-vel movimento de separatismo “nacionalista” islâ-mico. De fato, chineses Han mudaram-se em mas-sa para a província ocidental de Kinjiang, hoje su-perando os Uyghur e outros povos islâmicos queeram maioria até trinta ou quarenta anos atrás,exceto em aldeias periféricas, como Tuyuk.

Nem todos os esforços governamentais paradesenvolver o turismo são motivados apenas no sen-tido de diminuir a pobreza dessas regiões, mas tam-

02 rbcs 68 nelson grabum.p65 10/10/2008, 16:5412

Page 3: RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na … · norte do Silk há mais de mil anos. Inteiramente separados das atrações turísticas ... 2007). O projeto de turismo rural

RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO 13

bém para garantir um prestígio internacional e a atra-ção de turistas internacionais. A paupérrima minoriaHa Ni, da aldeia de Quingkou, nas montanhas dosul de Yunnan,3 mantém imensos terraços de arroznas encostas, o que levou os governos nacional eregional a indicar a região como Herança Naturale Cultural da Unesco. A aldeia é muito distante dasáreas urbanas, mas na entrada da estrada principalpodem-se observar as propagandas a este respeito.Além disso, ali foi construído um hotel privado queretira os negócios dos empreendimentos coopera-tivos da aldeia. O mapa turístico sublinha, ainda, ascaracterísticas tradicionais e animistas da região.

A aldeia é formada por casas com telhadosde sapé, conhecidas como “casas-cogumelos”, sen-do que o governo paga aos moradores uma taxaanual para que não os substituam por outro tipode telhado a fim de manter o lugar pitoresco. Essaaldeia exótica também foi locação de um drama detelevisão, mas os moradores não receberam nadapor isso, foram apenas ludibriados pelo fato de te-rem aparecido na TV e por ter sido criada umafalsa expectativa de que tal acontecimento melho-raria o aspecto “primitivo” da região. Há tambémali um pequeno museu, com uma guia Ha Ni trei-nada pelo governo, que, como a maioria das mo-radoras, é quase analfabeta. Grupos de turistas sãomuito raros, se se comparar com as aventuras tu-rísticas étnicas de maior sucesso nas aldeias deGuizhou (Chio, 2008; Donaldson, 2007). Poucosturistas (e antropólogos) ricos compram os artesa-natos locais. Para se ter uma idéia, quando da mi-nha estadia nesta aldeia, apenas um único mochileirojaponês visitou a loja de artesanato. Os líderes daaldeia queixavam-se de serem explorados por cen-tenas de fotógrafos que desejam fotografar os im-pressionantes terraços de arroz mantidos pelosmoradores, que na realidade não têm lucro peloque é produzido a partir dessas fotos (calendários,livros, revistas de viagens e assim por diante).

O governo provincial de Guizhou, por outrolado, teve mais sucesso em promover a diminuiçãoda pobreza via turismo (Chio, 2008; Donaldson,2007). O projeto de turismo rural do rio Ba La4

ajudou a organizar sete aldeias Miao no leste deGuizhou ao longo de vinte anos no sentido de umdesenvolvimento gradual e colaborativo, utilizan-do dinheiro e assessores especializados do BancoMundial e de ONGs estrangeiras. Cada aldeia es-colhe seu próprio caminho de desenvolvimento,

como, por exemplo, a construção de restaurante,museu ou pequenos hotéis, apoiados pelo governoe por especialistas estrangeiros. Em todas as aldeiassão as jovens Miao, vestidas em trajes “tradicio-nais,” que atraem e recebem os turistas (neste caso,oferecendo vinho de arroz), enquanto os homens,em seus trajes não tão espetaculares, fazem apre-sentações musicais.

Jovem Miao em trajes tradicionais.

O foco da atenção dos turistas é o conjun-to de características desenvolvido diretamente parao turismo étnico, não só na China, mas em boaparte do mundo. Elas incluem performances de dan-ça e música, com vestes tradicionais,5 vendas deartesanato e de comida típica (cf. Stanley. 1998).Em muitos casos, os turistas são incentivados a par-ticipar dos eventos apresentados. Em Langde (Bala),por exemplo, os Miao dançam em volta da esca-da/árvore da vida na praça central da aldeia. Mu-lheres mais velhas mostram a fiação e a tecelagemde algodão tanto para os mais jovens da popula-ção como para os visitantes. Mas os turistas muitasvezes tentavam comprar os tecidos e os trajespresumivelmente mais autênticos usados pelas pró-prias mulheres!

Na aldeia Miao de Nanhua, o restaurante ficano andar de cima de uma casa antiga. À época deminha visita em 2004, a conhecida escritora inglesade viagens, Gina Corrigan, foi calorosamente rece-bida, pois não só já tinha visitado a aldeia, como

02 rbcs 68 nelson grabum.p65 10/10/2008, 16:5413

Page 4: RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na … · norte do Silk há mais de mil anos. Inteiramente separados das atrações turísticas ... 2007). O projeto de turismo rural

REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 6814

também seus livros tornaram a região mais conhe-cida, o que é encarado como vantajoso pela popu-lação local (Corrigan, 2002). No projeto Ba La, éprevisto o treinamento dos moradores em relaçãoà higiene, à lavagem das mãos, da comida e dospratos. Freqüentemente, é preciso construir enca-namentos de água para banheiros etc. O turismoainda é algo economicamente secundário em com-paração com cultivo do arroz. Saindo da aldeia,camponeses Miao podem ser vistos em seu coti-diano quando voltam do trabalho no campo, eportanto sem a preocupação com trajes e rituaisturísticos.

Algumas poucas aldeias especializaram-se noturismo como base econômica. Elas são freqüen-temente próximas a cidades, com bons meios detransporte, perto de cenários espetaculares, ou re-ceberam visitas dos mais altos funcionários do go-verno. Xiawutan, uma aldeia Bu Yi típica na áreaQingyi da Província de Guizhou, situada num fo-togênico cenário de montanhas karst, tem um tu-rismo bem organizado. Uma típica festa de boasvindas no portal inclui mulheres em trajes tradicio-nais e duas mulheres fazendo demonstrações de ar-tesanato, fiando algodão. Um grande signo de boasvindas sobre o portal informa o nome do distritoe uma data auspiciosa, e reconhece a orientação daideologia comunista. A religião animista local foiabrandada e tornou-se mais exótica com os “totensreligiosos” recentemente esculpidos. Placas bilíngüesde informações para turistas são típicas do turismooficial, não necessariamente por causa de turistasestrangeiros, mas como marcadores de moderni-dade e progresso, um exemplo do que Miyazaki(2005) chamou de “antropologia da esperança”.Ocorrem também demonstrações obrigatórias doartesanato Bu Yi , em que é confeccionado o teci-do especial utilizado nos trajes locais e nos souvenirs.A coreografia das danças apresenta casais enamo-rados, que dançam no palco entre “arrulhos”. Osturistas são sempre convidados a participar maistarde, seja “cortejando” as jovens locais, seja dan-çando ou tocando os instrumentos musicais típi-cos. A culinária exótica é também foco do sistematurístico. Em muitas aldeias Guizhou, turistas to-mam parte na soca do “arroz pegajoso”, encon-trado apenas no sudoeste da China e no Japão.Zhang Zhaosong, antropólogo do desenvolvimen-to do turismo que trabalha para o escritório estatalde Turismo Rural e Alívio da Pobreza de Guizhou,

mostra aos turistas como socar o arroz num potede madeira com um pesado malho de madeira. Asmulheres Bu Yi enchem as “bolas” de arroz compasta de feijão para repartir entre o público.

Algumas aldeias turísticas são “famosas porserem famosas”. Uma aldeia turística Bu Yi já eracélebre por sua localização no exclusivo cenário dasmontanhas karst, mas após ser visitada pelo presiden-te Hu Jintao no dia de ano novo de 2004 tornou-seainda mais famosa. Podem-se observar anúncios efaixas festivas que reiteram a celebridade do lugar.Fora da aldeia, há um palco de pedra para as dan-ças com “totens religiosos”, onde especialmenteconstruiu-se uma arquibancada quando da visita dopresidente Hu. Trata-se de uma versão ampliadados “palcos de dança” comuns nas aldeias turísticas.

Parques temáticos étnicos

A identidade da minoria étnica minzu é umcomponente-chave da identidade regional chinesano noroeste e no sudoeste. Além das aldeias turísticas,criaram-se parques temáticos étnicos em Kunming,oferecendo aos turistas uma versão condensada domosaico étnico de Yunnan. Em Shenzen, próximoa Hong Kong, quatro parques temáticos étnicos efolclóricos divertem os turistas e dão uma visãototalizante das etnias nacionais chinesas. Em boamedida, Kunming6 anuncia-se como uma metoní-mia das diversas populações de Yunnan. Donaldson(2007) observou recentemente que a província deYunnan construiu com sucesso uma pujante indús-tria do turismo, mas não para o benefício das pe-quenas aldeias minoritárias espalhadas pelo vasto e“áspero” interior. Criou, ao contrário, atrações tu-rísticas de mais envergadura nas cidades grandes,para onde se dirigem membros das “pequenas co-munidades” étnicas apresentando danças estereoti-padas e outros ícones da cultura tradicional em“palcos” ou arenas típicos de aldeias construídospara diversão (MacCannell, 1976). Por sua parte, ogoverno de Guizhou optou por uma estratégia eco-nômica alternativa, utilizando empréstimos exter-nos a fim de restaurar as próprias aldeias, comoocorreu no vale do rio Bala, onde apresentaçõesestereotipadas e aspectos da vida cotidiana consti-tuem as atrações turísticas.

Em sua apresentação da Aldeia das Naciona-lidades de Kunming, Gordon (2005) afirma que

02 rbcs 68 nelson grabum.p65 10/10/2008, 16:5414

Page 5: RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na … · norte do Silk há mais de mil anos. Inteiramente separados das atrações turísticas ... 2007). O projeto de turismo rural

RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO 15

Minzu Kun, a aldeia das nacionalidades de Yunnan, éum portal administrado pelo Estado para essa provín-cia multicultural e ecologicamente diversa. A entradapara o parque é um espaço conhecido como Praça daUnidade. Ali, os visitantes assistem às apresentações detodas as nacionalidades num só lugar e ao mesmo tem-po. A dança dos minzu é um instantâneo do discursoestatal oficial sobre as minorias e sobre o papel que elasdesempenham no Estado multiétnico unido. A políticaafirma que pessoas de todos os grupos étnicos em con-junto e com um só coração e mente promovem o de-senvolvimento e a prosperidade da nação (Vídeo Glo-bal Villages, 31:30 – 32:35).

A autora observa, ainda, como alguns traçosculturais são apresentados de maneira exagerada:

[Os] mosou são considerados popularmente especialistasem amor livre, e por seu exótico sistema de linhagens.Isso os torna objetos de intensa curiosidade dos turistasque também os visitam no Lago Lugu, ao norte daprovíncia de Yunnan e nos parques temáticos étnicos,como a Aldeia das Nacionalidades de Yunnan. Os mosousão atrações da indústria do turismo étnico local deYunnan (Idem, 39:20 – 40:35).7

Shenzen: parques temáticos nacionais

Em Shenzen, área recentemente desenvolvi-da para empreendimentos especiais próxima a HongKong, alguns parques temáticos exibem povosminoritários de toda a China. “Nessa aldeias folcló-ricas chinesas, são exibidas as cores e os sabores das56 minorias étnicas autorizadas. Nessa nação mul-tiétnica imaginária, as narrativas estatais de unidadeétnica e unidade da Mãe Pátria são apresentadas emmeio ao ideal consumidor de classe média da NovaChina” (Idem, 6:00 – 6:40).

Embora haja shows de trajes e danças “tradi-cionais” estereotipados, um empresário chinês, oSr. Lin Sushen, subgerente geral, dançarino e coreó-grafo da Companhia de Desenvolvimento ChinaEsplêndida, explica:

Classifico as atividades culturais nas aldeias étnicas emtrês níveis. Tanto como administrador do turismo quan-to como criador artístico, seu alvo final deve ser opúblico. Da perspectiva deste, o primeiro nível é a cul-tura étnica, incluindo apresentações, canto, dança, ar-quitetura, arte, bem como jogos interativos e diversosshows. O segundo nível é a cultura étnica ligeiramentemodificada com costumes aperfeiçoados. O último, quebuscamos atingir continuamente por meio de pesquisasprofundas, inovações e da montagem extensiva de pa-

cotes comerciais, é o perfeito item da cultura étnica(Idem, 7:30 – 9:15).

Em outro parque temático, minorias étnicasestrangeiras também são representadas. Numa área,por exemplo, o público é saudado pela faixa “Bem-vindo à aldeia Maori” e pela canção “Venha para aPolinésia: Aloha!. . .”. E Gordon (2005) continua:

A aldeia folclórica chinesa foi modelada a partir deoutro parque temático, o Centro Cultural Polinésio, noHavaí, que apresenta todas as nacionalidades daPolinésia. Em “Janelas para o Mundo,” o parque vizi-nho, o PTP é reproduzido numa apresentação Maori.Esses jovens atores [da minoria chinesa] aprenderamessas danças a partir de fitas de vídeo e ensinados pelosverdadeiros Maoris, que passaram três meses no parque(Idem, 21:20 – 22:27).

Uighur e Wa representando Maoris.

Gordon também entrevistou dois atores, umuighur (minoria turquica, caucasiana) e um wa, depele escura (considerada a minoria étnica mais “pri-mitiva”) e perguntou como eles estavam represen-tando MaorisO uighur respondeu: “Minha pele ébranca e a sua é negra. Nós vimos o show do povoMaori aqui. Eles se parecem conosco. Alguns delestêm pele escura e outros têm a pele branca”. Gordonentão perguntou ao wa: “Se você pudesse apresen-tar uma dança wa, de seu próprio grupo, ou umadança maori, qual escolheria?”. O wa respondeu:“a dança wa é bela, esta dança [maori] também ébela. Depende do emprego e do trabalho necessário.Muitos atores aqui são capazes de apresentar dan-ças de todo o mundo. Se você não puder, fica paratrás” (Idem, 23:16). Salientou, pois, que essa era umaoportunidade de desenvolvimento para eles.

02 rbcs 68 nelson grabum.p65 10/10/2008, 16:5415

Page 6: RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na … · norte do Silk há mais de mil anos. Inteiramente separados das atrações turísticas ... 2007). O projeto de turismo rural

REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 6816

Em seguida Gordon perguntou a um grupowa por que eles eram tão populares e convidadospara as danças. Um deles respondeu: “[é nossa]beleza selvagem, nossa paixão e nosso vigor. . .[Nossos dançarinos] são como o fogo, e têm men-tes abertas. A outra razão é que nossa pele é muitoescura, não como a pele de outros chineses”.

Aldeias étnicas e parques temáticos japoneses

No Japão, até os últimos anos houve poucoreconhecimento e valorização da diversidade étni-ca. O regionalismo cultural é apresentado em ter-mos de “coisas famosas” meibutsu por meio das quaisa mídia e os turistas podem apreciar a alteridadeicônica, mas movimentos regionais sérios, como oryukyuan (de Okinawa) ou as demandas ainu peloautogoverno não são tolerados. Desde a restaura-ção Meiji em 1868, a ênfase recaiu sobre a assimi-lação e o tan-itsu nihon, “uma etnia, uma nação”.Embora o Japão tenha assinado a Declaração dasNações Unidas sobre os Direitos das Etnias e dasMinorias, recusou-se a reconhecer os ainu comogrupo cultural separado até 1995. Entretanto, essegrupo tem tentado tentavam salvar sua identidadecultural e seus direitos à terra e à propriedade, com-binando renascimento étnico com procedimentoseconômicos do turismo étnico.

Em algumas aldeias turísticas ainu, em Hok-kaido, são apresentados aos turistas a cultura mate-rial , danças, música e rituais seculares. Os ainu, comooutras minorias, há tempos produzem artefatosoriginais, transformados, e mesmo objetos novospara o comércio com visitantes (Grabum e Lee,1999). Algumas delas se tornaram fundamentaispara o renascimento étnico e funcionam como vi-veiros para o aprendizado cultural e lingüístico dascrianças ainu (Kayano, 1975).

Contudo, entre as atrações culturais que nãodizem respeito ao Japão, as mais importantes sãorecriações de lugares-símbolos de países estrangei-ros. Há um tal grau de fidelidade nessas constru-ções, que se utilizam até mesmo de trabalhadoresestrangeiros e materiais importados, que se pare-cem com um cenário da pós-modernidade e comos simulacros que Umberto Eco (1985) e JeanBaudrillard (1981) observaram no oeste norte-ame-ricano. Como exemplo, temos uma notável “Cenade Rua de Veneza”8 , localizada no “Porto Medi-

terrâneo”, espaço que reproduz fielmente as áreasportuárias de cidades italianas famosas, incluindonavios da Era dos Descobrimentos. Isso faz partedo parque temático Marítimo Disney de Tóquio(propriedade da Companhia Oriental de Terras) quefica dentro da Disneylândia de Tóquio.

Cena simulada de Veneza.

Há uma antiga tradição japonesa em reprodu-zir a arquitetura, os jardins etc. de outros países e lu-gares distantes; um fascínio pelos artefatos físicos eculturais do mundo ocidental desde o século XIX.A construção de “cópias exatas” de ambientes estran-geiros começou na década de 1970. Talvez a pri-meira tenha sido o museu nacional de antropologia“Pequeno Mundo” – Rittoru Waradu, em japonês –construído num parque rural perto de Nagoya.9Foi desenvolvido como parte da política de interna-cionalização – Kokusaika – do governo nacional.

O “Pequeno Mundo” tem espaço suficientepara que os pavilhões nacionais fiquem separados.Alguns são exemplares arquitetônicos, reproduzi-dos inteiramente, como a grande tenda Toba Batak;outros são reproduções menores, como o interiorde uma casa africana. Mas há também espaços in-

02 rbcs 68 nelson grabum.p65 10/10/2008, 16:5416

Page 7: RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na … · norte do Silk há mais de mil anos. Inteiramente separados das atrações turísticas ... 2007). O projeto de turismo rural

RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO 17

terativos, com áreas para comer, beber, vestir-se comtrajes nacionais estrangeiros, e, é claro, adquirirlembranças.

A hospedaria do sul da Alemanha (Bavária),por exemplo, um dos projetos de construção maisrecente, oferece oportunidade de comer e beberao estilo alemão e comprar produtos daquele país.Na opinião do professor do Museu Nacional deAntropologia de Osaka, Han Min, a fidelidade exatacedeu aos interesses comerciais na reprodução desseprédio. O visitante pode também entrar num “res-taurante italiano”, importado pedra por pedra deApulia, no sul da Itália, em claro estilo regional. Paracompor a região, encontram-se lojas nos arredorese podem-se ouvir árias clássicas cantadas por can-tores italianos de ópera.

Outra atividade bastante comum é vestir-se eandar pelo parque em trajes nacionais estrangeiros.Muitos pavilhões têm locais especiais para que osvisitantes possam se compor devidamente comroupas, maquiagem, coiffeur etc., ao estilo da nacio-nalidade ali proposta. Podem-se encontrar até mes-mo assistentes estrangeiros, trazidos por poucosmeses, para ajudar nesse sentido. Depois disso, ti-ram-se fotografias para kinen shashin (de lembran-ça), parte-chave da experiência turística japonesa quefunciona como hanko (papel de embrulho com adata estampada), como prova da visita.

Essas experiências permitem que os japone-ses encontrem estrangeiros e experimentem umpouco de outras culturas, num ambiente festivo emque podem usar a moeda nacional e falar seu pró-prio idioma.

Mulheres japonesas em trajes estrangeiros.

Aldeias estrangeiras: gaikoku mura

Logo depois da inauguração do parque Pe-queno Mundo, surgiram outros projetos mais co-merciais de “vida estrangeira”. Há ou houve pelomenos vinte desses gaikoku mura (“aldeias de paísesestrangeiros”), cada um representando aspectos es-tereotipados e positivos desses países. Nem todostiveram sucesso comercial, mas o investimento fi-nanceiro não era o único objetivo de alguns doscriadores desses projetos. Segundo eles, tratam-sede tentativas ideológicas de reforma arquitetônica,ecológica e social (Appelgren, 2007), fantasias deoutros estilos de vida, até mesmo futuristas.

Nessa linha, o principal projeto é Huis tenBosch, uma reconstrução de US$ 3 bilhões de uma“cidade holandesa” numa área costeira, anterior-mente desolada, próxima a Nagasaki.10 Durante osakoku japonês, período de auto-isolamento de 1641a 1853, os holandeses obtiveram o completo mo-nopólio do comércio japonês com o mundo exte-rior através de Dejima, pequena ilha artificial emNagasaki. Planejado durante a expansão econômicada década de 1980, o novo parque temático co-piou famosos prédios holandeses, como o PalácioReal chamado Huis ten Bosch e a torre Domtur dacatedral de Utrecht, numa cidade planejada que in-clui área de diversão e área residencial. Apresentasímbolos holandeses como moinhos de vento etulipas, mas na realidade é um projeto ecológicoavançado que não poupa despesas, com água, lixoe esgotos reciclados e energia co-gerada, o que ga-rante uma confortável vida moderna.

O projeto também reforça os laços entre Japãoe Holanda, com réplicas funcionais do navio holandêsoriginal que fazia o comércio no século XVII doprimeiro navio japonês a vapor, doado pelos holan-deses em 1840, e um museu em Dejima, que ilustraas relações pessoais e profissionais entre a popula-ção destes dois países naquela época. A atração queeste projeto suscita nos japoneses é causada, de umlado, por mostrar justamente os laços históricos coma Holanda, mas, de outro, por haver ali uma espé-cie de metonímia de uma civilização européia urbanabem administrada e ecologicamente responsável,com conexões artísticas (Van Gogh) e gastronômicas(lojas de queijos). Muitos japoneses vão ali paraaprender sobre queijos, vinhos e cozinha européia,ou aqueles que já estiveram na Europa desejam lem-brar a experiência. Embora tenha quem despreze

02 rbcs 68 nelson grabum.p65 10/10/2008, 16:5417

Page 8: RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na … · norte do Silk há mais de mil anos. Inteiramente separados das atrações turísticas ... 2007). O projeto de turismo rural

REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 6818

o Huis ten Bosch como parque temático, muitosacreditam que se construiu ali uma comunidade realque serve de modelo a ser imitado. Os proprietá-rios e aqueles que projetaram o parque vão aindamais longe, afirmando que o Huis ten Bosch é hojeo que era a antiga cidade de Edo (hoje Tóquio),com seus canais, sua vida refinada e um estilo eco-lógico de baixa tecnologia. Embora Huis ten Bosche outros megaprojetos tenham falido, seus apoiado-res têm uma visão de longo prazo, e afirmam que“em mil anos isso será visto como uma das mara-vilhas do Japão do século XX” (Appelgren, 2007).

Loja de queijos.

Discussão

O que podemos aprender a partir dessa bre-ve aproximação com algumas características doturismo contemporâneo nesses dois importantespaíses? Uma razão para considerá-los em conjuntoé que as comparações envolvem tanto similarida-des como diferenças, e de certa maneira a Chinahoje está alcançando o que o Japão vem pratican-do há algumas décadas; é uma versão regional da“teoria da convergência” global. Por exemplo, aautorização para que os chineses pudessem viajarpara o exterior em grandes grupos, que passou avaler no final dos anos de 1990, se parece muitocom os primeiros contingentes de turistas japone-ses da década de 1960, com a notável exceção deque os chineses levam seus filhos com eles.

Embora a escolha do que representar e retra-tar nessas aldeias e parques varie desde as mais “atra-sadas” das minorias domésticas até os países euro-peus mais refinados, ambos os extremos fazem

parte do que eu chamo de “regime folclórico”, quecontempla o passado de forma bastante idealiza-da, buscando aspectos “tradicionais”. Por exem-plo, a maioria das “assistentes estrangeiras” nospavilhões do parque temático Pequeno Mundousam “trajes camponeses” e, em especial, as mu-lheres japonesas escolhem para vestir trajes “tradi-cionais”, da mesma forma que o “quimono” temum sentido mais ritualístico do que de uso cotidia-no. Assim como os “habitantes” das aldeias étnicase dos parques temáticos chineses costumam usartrajes reconhecidamente tradicionais, que não ape-nas marcam idade e gênero, mas também a “nacio-nalidade”. A arquitetura deste tipo de turismo temum estilo também nostálgico e idealizado, o que émais evidente nas aldeias étnicas chinesas, que sepropõem a mostrar aos turistas o que há de maistradicional em termos culturais e arquitetônicos. Emcontrapartida, nas aldeias minoritárias, onde nãoexiste esta preocupação turística, é nítido o desejopor um estilo mais “moderno”. Diz-se que o par-que Huis ten Bosch representa uma “cidade holan-desa”, mas na verdade o projeto selecionou cuida-dosamente edificações de toda a Holanda que con-templassem traços mais antigos e tradicionais e que,com o passar do tempo, adquiriram status para setornarem atrações turísticas.

Nas aldeias chinesas são principalmente asmulheres jovens que se mostram e se apresentam.Paradoxalmente, as jovens representam a “tradi-ção” – são as “guardiãs da cultura” –, mantendoidealmente as características da sociedade tradicio-nal, mais voltadas para o lar e competindo menosno mercado de trabalho urbano. Em sua juventu-de não foram “corrompidas” nem assimiladas pelomundo exterior. Em estudos anteriores mostrei queessa concepção também ocorre em lugares comoas termas japonesas (Grabum, 1995), assim comonos pavilhões nacionais do parque temático Peque-no Mundo. Além disso, as próprias minorias têmgênero e são apresentadas como do sexo femini-no, como mostrou Schein (2000). Embora as mu-lheres masuo, solteiras e dadas ao amor livre, sejamo extremo alvo do fascínio chinês e dos desejosdos homens (Walsh, 2001), quase todas as mulhe-res das minorias estão sob “pressão sexual” nosencontros turísticos.

Entretanto, essa idéia não cabe no parque Huisten Bosch, uma vez que a civilização européia é so-mente emulada, e talvez tenha seu melhor símbolo

02 rbcs 68 nelson grabum.p65 10/10/2008, 16:5418

Page 9: RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na … · norte do Silk há mais de mil anos. Inteiramente separados das atrações turísticas ... 2007). O projeto de turismo rural

RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO 19

nos especialistas mais velhos. A natureza dos fre-qüentadores, bem como a origem dos emprega-dores, tem muito a ver com os papéis escolhidospara representação. A maioria dos turistas chinesesno sudeste é de homens jovens e de meia idade quedesejam se divertir, com muita bebida e fanfarrice.No Japão, por sua vez, a maioria dos turistas quebrincam de se vestir no parque Pequeno Mundo écomposta por mulheres jovens, com ou sem fi-lhos, e elas se sentem satisfeitas em serem ajudadaspor pessoas da mesma idade. Em contrapartida,em Huis ten Bosch os visitantes e residentes carac-terizam-se por serem mais velhos, mais cosmopo-litas e mais interessados em gostos e estilos diver-sos. Appelgren (2007) mostrou, por exemplo, quemuitos deles quando jovens eram fãs ardorosos daDisneylândia e de outros parques temáticos orien-tados à juventude.

Tanto a China como o Japão cuidam de seutecido nacional interno e de suas relações com omundo exterior. Mas a China tem se preocupadomais com lutas internas do que com ameaças exter-nas. A região oeste do país não é considerada segurapara o turismo doméstico, mas há uma grande cam-panha para desenvolvê-la . Ademais, as dificuldadesem integrar à nação a população desta região é gran-de especialmente no Tibet e nas áreas islâmicas deXinjiang. O turismo étnico contemporâneo é útilpara mostrar à maioria da população em que con-siste seu flanco ocidental, mas, ao mesmo tempo,satura demográfica e economicamente as minorias.Embora a ênfase em diminuir as diferenças nacio-nais num trabalho em conjunto possa assemelhar-se à “solidariedade orgânica” de Durkheim, não sepode esquecer do princípio que orientava a políticaem relação às minorias do antigo Comissário dasNacionalidades da União Soviética, Joseph Stalin:“nacionalista na forma, mas socialista no conteú-do”, isto é, as diferenças são superficiais e o princí-pio agregador é a solidariedade mecânica.

A encenação de performances tradicionais este-reotipadas para propósitos turísticos não é apenasuma lição que reforça a igualdade das minorias,como Oakes (1998) mostrou em relação aos miaode Guizhou, mas é por meio delas que o turismodeve produzir ou impor a modernidade sobre osminzu do interior. Chamando atenção para suas “tra-dições”, eles são ensinados a “o que não ser” –exceto quando se apresentam para turistas pagantesde fora.

Em Shenzen, observa-se um novo desenvol-vimento nas apresentações étnicas: minorias chine-sas “desempenham” o papel de grupos de atoresde minorias do restante do mundo. Por exemplo,normalmente os wa, que até recentemente eramconsiderados a mais “primitiva” das minorias étni-cas chinesas, são escolhidos, supostamente por suapele escura, para representar maoris ou africanos,assim como são os mongóis que representam índiossul-americanos e norte-americanos. Essa nova ten-dência também reflete o desejo crescente dos chi-neses em conhecer outros países e diferentes cultu-ras, uma vez que o contingente de turistas chinesesno mundo é cada vez mais visível. Se a experiênciaem parques temáticos como o Pequeno Mundo dealguma forma ajuda os japoneses quando viajamao exterior, as performances na China também ofere-cem aos potenciais turistas chineses um contato coma realidade do mundo fora do país.

O Japão sempre esteve preocupado com suasrelações ambivalentes com outras nações, desde osséculos V e VII, quando importou da China a religiãobudista, o sistema de escrita, a arquitetura, o planeja-mento urbano, os trajes e os hábitos alimentares. Essaansiedade atitude foi mais uma vez reforçada pelasubmissão do país às demandas e às regras do mun-do ocidental no século XIX, num momento emque acabara de incorporar politicamente os ainu deHokkaido e os ryukuos de Okinawa. Por outro lado,o Estado procurava suprimir a diversidade étnica eregional do país, especialmente por meio do contro-le centralizado da educação. As diferenças que cons-tituíam o todo foram expressas pelo meibutsu, coi-sas famosas que ironicamente marcam a identidadede um lugar. Freqüentemente produtos específicossão exportados para o restante do Japão, o quetambém ocorre em relação a eventos singulares,que contribuem para a construção da história da na-ção. Em ambos os casos, vemos “as partes do to-do” como formas de solidariedade orgânica.

Na história recente, os japoneses tornaram-segrandes comerciantes e viajantes do mundo. Suapreocupação com a aceitação e a manutenção dasfronteiras (Ohnuki-Tierney, 1990) aparece claramentena adoção de políticas públicas como a kokusaika(internacionalização) e a kokunai kokusaika (inter-nacionalização doméstica, com a crescente proporçãode estrangeiros residentes no Japão). A gaikoku mura,por outro lado, oferece “experiências estrangeiras”para uma população que, viajando ou não, deseja

02 rbcs 68 nelson grabum.p65 10/10/2008, 16:5419

Page 10: RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na … · norte do Silk há mais de mil anos. Inteiramente separados das atrações turísticas ... 2007). O projeto de turismo rural

REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 6820

entender o mundo exterior e as pessoas que cadavez mais chegam ao país para visitar ou morar.

“O mundo é um palco”, no dizer de Shake-speare. E o palco é uma metáfora comum para sepensar o turismo. O “Pequeno Mundo” e a gaikokumura refletem os estágios de uma técnica constan-temente aperfeiçoada pelo incrível domínio dereproduzir coisas estrangeiras, o que resulta em es-paços muito peculiares que, de alguma forma, per-mitem a realização da fantasia de ser estrangeiro ouestar no estrangeiro.

Ao considerar os conceitos de autenticidadee reprodução, enfrentamos um desafio. Tanto aafirmação do empresário chinês de que a “autenti-cidade” é algo que pode ser aperfeiçoado, em doisestágios rumo à fantasia, como a preocupação ja-ponesa com a mímesis exata coincidem com asnoções ocidentais, respectivamente, de criatividadeou integridade intelectual e artística. A autenticidadeque o empresário chinês aperfeiçoa – isto é, ex-pressões culturais da minoria minzu – não tem paraele qualquer valor exceto como fonte de inspiraçãopara fins de entretenimento e comércio, ao passoque os japoneses depositam um valor extremamentesignificativo na tradição européia ocidental por elescopiadas, como se fosse algo que gostariam deconstruir e, eventualmente, ultrapassar.

Notas

Informação obtida em 2001 durante uma visita aoescritório do World Wildlife Fund em Lijiang,Yunnan, à época sob a direção de Heather Peters.Agradeço ao antropólogo Wang Yu por apresentara mim e à minha esposa Lijiang e o escritório doWWFund.Agradeço a Cindy Y. Huang por receber a mim e aprofessora Marie-Françoise Lanfant em nossa visitaa Urumqi, Tuyuk e outras aldeias em 2005; e a RehileDawut, professora na Xinjiang University por nosacompanharam a Tuyuk.Agradeço à antropóloga Wang Yu e a Jenny Chio,que em julho de 2006 me apresentarm ao povo, àsautoridades e às pessoas importantes dessa aldeia,ampliando assim meu conhecimento a respeito daregião e dos projetos relacionados com a Unesco.Conheci tal projeto em 2004, por intermédio daSra. Yang e dos professores Peng e Zhang, depoisde uma conferência sobre o Desenvolvimento do

Turismo Rural e a Diminuição da Pobreza emGuiyang. A respeito do processo de desenvolvimen-to turístico dessas aldeias, ver Jenny Chio (2008).Utilizo o termo “vestes”, no lugar de roupas outrajes, para indicar que se destinam a propósitosespeciais e não (ou não mais) ao uso cotidiano.Além disso tais vestes podem não ser estritamentetradicionais, mas modificadas para expressar ver-sões mais chamativas dos trajes tradicionais.Visitei Kunming pela primeira vez na Conferência“Turismo, Antropologia, China” em 1999 (Tan,Cheung e Yang, 2001). Voltei em 2001 a convitedos professores Zhang Xiaoping e Yang Hui e fui àAldeia das Nacionalidades em companhia de WangYu, então estudante na Universidade Chinesa deHong Kong.Ver também Walsh, 2001.Fotografia fornecida por Maki Tanaka.Visitei este parque em 1989 e 1990, convidado pelocurador chefe Kobayashi Shigeru. Voltei novamen-te ao parque no verão de 2004, acompanhado peloestudante de Berkeley Sumii Kensuke.Huis ten Bosch é uma “cidade” bem conhecida noJapão. Passei lá uma temporada em 2001 com ajudade um financiamento do Centro de Estudos Japo-neses da U. C., Berkeley.

BIBLIOGRAFIA

APPELGREN, Staffan. (2007), Huis Ten Bosch:mimesis and simulation in a Japanese Dutch Town.Tese de doutorado. Göteberg, School ofGlobal Studies.

CHEUNG, Sidney (1999), “The meanings of aheritage trail in Hong Kong”. Annals of TourismResearch, 26 (3): 570-588.

CHIO, Jenny. (2008), “The internal expansion ofChina: tourism and the production ofdistance”, in T. Winter, P. Teo e T. C. Chang(orgs.), Asia on tour: exploring the rise of Asiantourism, Londres, Routledge.

CORRIGAN, Gina. (2002), Guizhou province. 2 ed.Hong Kong, Odyssey Guides.

DONALDSON, J. A. (2007), “Tourism, develop-ment and poverty reduction in Guizhou andYunnan”. The China Quarterly, 190: 333-351.

ECO, Umberto. (1985), Travels in hyperreality: essays.San Diego, CA, Harcourt Brace Jovanovich.

GORDON, Tamar. (2005), Global villages: a docu-

1

2

3

4

5

6

7 8 9

10

02 rbcs 68 nelson grabum.p65 10/10/2008, 16:5420

Page 11: RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na … · norte do Silk há mais de mil anos. Inteiramente separados das atrações turísticas ... 2007). O projeto de turismo rural

RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO 21

mentary video. Tourist Gaze Productions, site<www.globalvillagesmovie.com>.

GRABUN, Nelson H. H. (1995), “The past in thepresent in Japan: nostalgia and neo-tradi-tionalism in contemporary japanese domestictourism”, in R. W. Butler e D. G. Pearce (orgs.),Changes in tourism: people, places, processes, Lon-dres, Routledge.

_________. (2007), “Multiculturalism, museumsand tourism in Japan”, in N. H. H. Grabun, J.Ertl e R. K. Tierney (orgs.), Multiculturalism inthe new Japan: crossing the boundaries within, NovaYork, Berghahn Press.

GRABURN, N. & LEE, M. (1999), “Saranip andTenki: the basketry of the Ainu, in relation tothe baskets of Siberia and Alaska”, in W.Fitzhugh e C. O. Dubreuil (orgs.), Ainu: spiritof a Northern people, Washington D.C., Smiths-onian Institution Press.

HENDRY, Joy. (2000), The Orient strikes back.Oxford, Berg.

KAYANO, Shigeru. (1975), Ore no Nibutani [MyNibutani village]. Tóquio, Susuzawa Shoten.

LIU, Xin. (1997), “Space, mobility, and flexibility:Chinese villagers and scholars negotiate pow-er at home and abroad, in A. Ong e D. No-nini (orgs.), Ungrounded empires: the cultural politics of Chinese transnationalism, Londres,Routledge.

MAcCANNELL, Dean. (1976), The tourist: a newtheory of the leisure class. Nova York, Schocken.

MIYAZAKI, Hirokazu. (2005), The method of hope:anthropology, philosophy and fijian knowledge.Stanford, Stanford University Press.

OAKES, Tim. (1998), Tourism and modernity in Chi-na. Londres, Routledge.

OHNUKI-TIERNEY, Emiko. (1990), “Theambivalent self of the contemporary Japane-se”. Cultural Anthropology, 5 (2): 197-216.

SCHEIN, Louisa. (2000), Minority rules: The Miaoand the feminine in China’s cultural politics. Durham,NC, Duke University Press.

STANLEY, Nick. (1998), Being ourselves for you: theglobal display of cultures. Londres, MiddlesexUniversity Press.

TAN, Chee-Beng; CHEUNG, Sidney & Hui,YANG (orgs.). (2001), Tourism, anthropology andChina: in memory of professor Wang Zhusheng.Bangkok, White Lotus Press.

WALSH, Eileen. R. (2001), “Living with the myth

of matriarchy: the Mosuo and tourism”, inC.-B. Tan, S. C. H. Cheung e H. Yang (orgs.),Tourism, anthropology, and China, Bangkok, WhiteLotus Press.

WEINER, Michael (org.). (1996), Japan’s minorities:the illusion of homogeneity. Londres, Routledge.

YANAGI, Muneyoshi. (1952), Ryukyu no tomi [Thebounty of Okinawa]. Tóquio, Nihon MingeiKyokai.

YANAGITA, Kunio. (1946), Nihon Nominshi[History of the rural people of Japan]. Tó-quio, Toa Shuppansha.

02 rbcs 68 nelson grabum.p65 10/10/2008, 16:5421

Page 12: RECONSTRUINDO A TRADIÇÃO Turismo e modernidade na … · norte do Silk há mais de mil anos. Inteiramente separados das atrações turísticas ... 2007). O projeto de turismo rural

RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 189

RECONSTRUINDO A TRADIÇÃOTURISMO E MODERNIDADENA CHINA E NO JAPÃO

Nelson Graburn

Palavras-chave: Tradição; Turismo;Modernidade

Atualmente a Ásia é uma das principaisregiões de destino e de origem do turismointernacional. Mas na China e no Japão onúmero de turistas internacionais é ultra-passado pelos enormes fluxos de turistasdomésticos. O turismo étnico e culturalcresce mais rápido do que quaisqueroutros na atual indústria globalizante.Embora as civilizações da China e doJapão sempre tenham valorizado e vi-sitado suas tradições de “alta cultura”, oflorescente turismo contemporâneo temum efeito democratizante, estendendo acapacidade de viajar à maioria da popula-ção e valorizando o “exótico”, o estran-geiro e o “marginalizado” não só para osvisitantes internacionais mas tambémpara as massas urbanas que constituemmais de 95% dos turistas. Este texto ana-lisa como povos rurais recentemente vi-síveis, minoritários e exóticos passarama ser remodelados como aqueles que va-lorizam suas tradições culturais tangíveise intangíveis.

RECONSTRUCTING TRADITION:TOURISM AND MODERNITYIN CHINA AND JAPAN

Nelson Graburn

Keywords: Tradition; Tourism; Mod-ernity

Asia is one of the main destinationregions for today’s international tourismand it is increasingly one of the majorareas originating tourism. But in Chinaand Japan the numbers of internationaltourists are overwhelmed by the hugeflows of domestic tourists. Ethnic andcultural tourism are growing faster thanany other forms in this globalizing in-dustry. While the civilizations of Chinaand Japan have always valued and visitedtheir “high cultural” traditions, burgeon-ing contemporary tourism has had a de-mocratizing effect, extending the abilityto travel to a majority of the population,and valuing the exotic, the foreign andthe marginalized, not just for interna-tional visitors but for the urban masseswho make up over 95% of tourists. Thispaper looks at how the newly visible ru-ral, minority and exotic peoples are recastas having valued cultural traditions, bothtangible and intangible.

RECONSTRUCTION DE LATRADITION: LE TOURISMEE LA MODERNITÉ EN CHINEET AU JAPON

Nelson Graburn

Mots-clés: Tourisme; Chine; Japon;Culture; Tradition; Modernité.

Aujourd’hui l’Asie est une des principalesrégions d’origine et de destin du tourismeinternational. Mais dans la Chine et leJapon le nombre de touristes étrangersest moins important que l’immenseafflux de touristes domestiques. Letourisme ethnique et culturel augmenteplus rapidement que tous les autres typesdans l’actuelle industrie globalisé. Bienque les civilisations japonaise e chinoiseaient toujours valorisés leurs traditionsde haute culture, le tourisme con-temporain détient un effet plus dé-mocratique, pusqu’il élargit l’horizondu voyage jusqu’à la plupart de lapopulation, tout en valorisant l’exo-tique, l’étranger e le marginalisé nonseulment aux qui viennet du dehors,mais aussi le masse urbaine qui cons-titue 95% des touristes dans cesrégions.