[rec] como paradigma do sound design em falsos documentarios de horror anais socine 2012
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Anais de Textos Completos
Encontro Realizado de 08 a 11 de Outubro de 2012
Centro Universitário Senac - São Paulo
ESTUDOS DE CINEMA E AUDIOVISUAL
SOCINE- Anais de Textos Completos -
ISBN: 978-85-63552-12-9
SÃO PAULO
2013
XVI Estudos de Cinema e Audiovisual Socine – Anais de Textos completos
– São Paulo: Socine, 2013. Organizadores: Maria Dora Genis Mourão, Anelise Reich Corseuil, Alessandra Soares Brandão, Mauricio Reinaldo Gonçalves, Ana Maria Giannasi, Célia Regina Cavalheiro, José Gatti, Leandro M. Borges, Nanci R. Barbosa.
819 p.
ISBN: 978-85-63552-12-9 1. Cinema. 2. Cinema brasileiro. 3. Cinema latino-americano. 4. Documentário. 5. Teoria (Cinema). 7. Produção (Cinema). 8. Audiovisual. I Título. CDD: 302.2
Estudos de Cinema e Audiovisual – Socine
- Anais de Textos Completos-
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CapaA partir de arte gráfica de Joaquín Torres García
Projeto Gráfico e Diagramação
Paula Paschoalick
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1a edição digital: março de 2013
Encontro realizado no Centro Universitário Senac
Socine - Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual
[Rec] como paradigma do sound design em falsos
documentários de horror1
Rodrigo Carreiro2 (Doutor – UFPE)
1 Trabalho apresentado no XVI Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão Estudos do Som.
2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, onde também coordena o Bacharelado em Cinema e Audiovisual. Doutor e mestre em Comunicação pela UFPE.
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Resumo:
Os falsos documentários no estilo found footage vêm se consolidando como um dos subgêneros mais férteis do cinema de horror. Na área do sound design, esse subgênero empurra os limites criativos em direção a uma estética que, ao contrário da ficção tradicional, ressalta certo grau de imperfeição técnica. Pretendemos, aqui, analisar o sound design de [Rec] (2007), de Paco Plaza e Jaume Balagueró, filme que constitui, para muitos, o modelo mais bem acabado do uso do som no subgênero.
Palavras-chave:
Cinema de horror, estudos do som, sound design, found footage, zumbi.
Abstract:
Fake documentaries in found footage style have been consolidated as one of the most fertile subgenres of horror cinema. In the area of sound design, this subgenre pushes the creative boundaries toward an aesthetic that, unlike traditional fiction, emphasizes certain degree of technical imperfection. We intend here to analyze the sound design of [Rec] (2007), a Spanish movie directed by Paco Plaza and Jaume Balagueró that offers one of the best model on the use of sound in this subgenre.
Keywords:
Horror film, sound studies, sound design, found footage, zombie.
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Introdução
Filmes found footage de horror são aqueles que usam procedimentos estilísticos
e/ou narrativos comumente associados ao modo de representação documental
(NICHOLS, 2005, p. 135), mas narram enredos ficcionais. São filmes cujo estilo
documental confunde a fruição do espectador sobre a intenção do cineasta – sendo
esses dois conceitos, segundo Fernão Ramos (2008, p.25), os dois pilares fundamentais
que constroem a fruição do espectador.
Por consequência, filmes de found footage são constituídos, no todo ou em parte,
por falsos registros amadores ou semiprofissionais de situações extraordinárias. Seus
diretores devem se certificar que certos elementos de estilo que identifiquem imagens
e sons como tendo origem casual e espontânea sejam devidamente percebidos pelo
público como tal.
O que nos interessa, aqui, é a construção sonora dos filmes de found footage.
Do ponto de vista estilístico, pouco se tem discutido acerca dos filmes de found footage,
embora eles estejam por trás de mudanças na poética do cinema mais tradicional, como
pode ser facilmente percebido quando vemos, hoje, a frequência com que a câmera
tremida – para citar apenas um exemplo – vem sendo utilizada.
Verossimilhança X legibilidade
Quando se discute o estilo do found footage, se dá especial atenção às
características de estilo encontradas no campo da imagem. O som é muitas vezes
negligenciado ou desprezado no estudo desse tipo de filme. E o que temos procurado
chamar a atenção, de fato, é que praticamente todos os profissionais que se trabalham
na construção do som de falsos documentários precisam lidar com um conflito entre
dois princípios da estilística cinematográfica que são, naturalmente, incompatíveis: a
legibilidade narrativa e a verossimilhança documental.
De certo modo, o conflito entre esses dois princípios atravessa todo tipo de filme,
como assinala Rick Altman (1992). Esse conflito se manifesta do seguinte modo: os
profissionais das áreas de imagem e som precisam precisa representar com alguma
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fidelidade o universo diegético, mas também precisa se fazer entender com clareza e
rapidez. Via de regra, é possível afirmar que a legibilidade acostuma levar vantagem
nesse conflito, e não apenas na área do som, mas também nela. Afinal, o público precisa
compreender as informações narrativas, relativas ao enredo, nos sons e imagens, para
seguir a história que está sendo contada.
No que diz respeito ao som, o grau de excelência técnica alcançada pela
tecnologia garante que o público seja capaz de ouvir com clareza, e de qualquer ponto
da sala de exibição, qualquer som desejado pelo diretor ou pelo sound designer. No
entanto, no caso dos falsos documentários de horror, essa abordagem que valoriza a
perfeição técnica contém uma cilada. A boa qualidade técnica pode arruinar o caráter de
documento histórico e espontâneo que os registros sonoros e imagéticos supostamente
deveriam ter, ou precisariam ter, para alimentar a ilusão (ainda que consentida) do
público a respeito de estar olhando para uma janela que acessa o real. Por isso, é
natural que os profissionais que realizam esse tipo de filme desejem e ressaltem certo
grau de imperfeição técnica na apresentação das informações visuais e sonoras.
O filme que selecionamos para analisar é uma produção da Espanha. [Rec] foi
realizado em 2007 pelos diretores Paco Plaza e Jaume Balagueró, e tem sound design
assinado por Oriol Tarragó. Foi um dos principais lançamentos dentro desse gênero da
safra daquele ano, tendo garantido distribuição internacional mesmo sendo realizado
com orçamento limitado e fora dos Estados Unidos.
[Rec] é objeto desta análise porque, dentre os mais de 180 filmes de found
footage lançados nos últimos 13 anos ao redor do planeta (e produzidos em países
distintos como Estados Unidos, Índia, Noruega, Dinamarca, Bélgica, Japão, França,
Costa Rica e Brasil), apresentou e desenvolveu um dos modelos mais bem acabados de
construção sonora. Esse modelo foi alcançado através de um equilíbrio delicado entre
legibilidade e verossimilhança – um equilíbrio que enfatiza a segunda num grau maior
do que o filme de ficção tradicional, mas sem abandonar o privilégio da primeira. De
fato, todas as decisões criativas tomadas pela equipe de sound design em [Rec] estão
ancoradas nesse conceito: verossimilhança documental reforçada, mas sem tomar
o privilégio clássico da legibilidade narrativa. Entender o que se ouve ainda é mais
importante do que o naturalismo dos sons.
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Antes de mais nada, não nos parece coincidência que todo o trabalho de
desenho de som que podemos ouvir em “[Rec]” tenha sido planejado a partir da busca
por um ponto de equilíbrio entre esses dois polos. Esse ponto de equilíbrio consistiu
no conceito essencial que guiou o trabalho de construção do universo sonoro de [Rec],
e está ressaltado pelo sound designer do filme em todos os depoimentos dele que
conseguimos encontrar, em entrevistas e nos extras do DVD que contém a edição
especial do filme, lançada num disco duplo infelizmente não disponível no Brasil, mas
encontrável na Espanha, em Portugal e em outros países.
O conceito utilizado por Oriol Tarragó partiu da instrução principal que ouviu
dos dois diretores: trate o som de [Rec] como se filmasse um documentário. Um dos
diretores, Paco Plaza, chegou mesmo a sugerir que todo o filme fosse todo gravado com
os microfones internos das próprias câmeras, e que fosse mixado em mono.
Tarragó descartou essa ideia e preferiu, para a captação do áudio em locação,
uma abordagem mais convencional. Para tanto, decidiu registrar o som direto como
se trabalhasse num filme de ficção tradicional: até 10 microfones por cena, sendo dois
microfones aéreos para captar a ambiência da locação principal (um prédio antigo em
Barcelona com pé direito altíssimo, o que dá aos sons uma assinatura acústica muito
particular, com muita reverberação e rangidos), e até oito microfones de lapela. Há, de
fato, um microfone de lapela para cada personagem com fala.
O trabalho de “sujar” o som do filme foi realizado na pós-produção. Tarragó e a
equipe de áudio passaram alguns dias no estúdio, produzindo ruídos indesejáveis em
produções convencionais (sinal saturado, quedas do microfone, microfonia etc.) para
acrescentar depois à trilha sonora. Ele também informa que boa parte dos diálogos
foi dublada em estúdio, tarefa facilitada pelas características estilísticas do campo da
imagem selecionadas pelos diretores: planos-sequência longos de vários minutos,
com boa parte da ação física ocorrendo fora do campo, ou em áreas muito escuras da
imagem. Essas escolhas, por sinal, garantem que boa parte da ação dramática de [Rec]
dependa do som para ser compreendida, caracterizando o que Randy Thom classificaria
como um filme desenhado para o som (THOM, 1999).
A “sujeira” tão desejada pelo sound designer de [Rec] tem relação direta com o
conflito entre legibilidade e verossimilhança. Para funcionar bem dentro da proposta do
gênero found footage, o filme precisava ter clareza sonora, mas sem deixar de lado a
aparência de registro espontâneo e não planejado.
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Além desses, há aspectos criativos que o sound design de [Rec] adotou de
forma pioneira, e que foram reutilizados depois por outros filmes de found footage, entre
os quais os títulos criativamente interessantes, como o australiano The Tunnel (Carlo
Ledesma, 2011), o norueguês O Caçador de Trolls (Trolljegeren, André Øvredal, 2010)
e o americano Apollo 18 (Gonzalo López-Gallego, 2011).
Enumeramos alguns desses aspectos criativos a seguir:
(1) Mixagem realizada em seis canais (Dolby Digital 5.1), mas com uso mínimo
e discreto dos canais surround. Basicamente, os canais traseiros são usados apenas
para sons de baixa frequência (como os helicópteros vistos na metade do filme) e/
ou no terceiro ato, que ocorre dentro de um apartamento crucial para a narrativa do
filme, e que tem características especiais, servido de moradia para um personagem
com características sobrenaturais – e, portanto, seria desejável para o sound design
que os sons e a própria textura acústica que se pode ouvir nesse local sugerisse algum
elemento não-natural.
(2) Vasta variedade de ruídos que caracterizam e reforçam a imperfeição
do registro sonoro captado na locação (microfonia, quedas do microfone, batidas,
vozes sobrepostas dos atores, rangidos provenientes do manuseio do microfone,
sinais saturados etc.). Esses ruídos são responsáveis diretos pela sensação que
verossimilhança que preenche a trilha de áudio durante todo o filme.
(3) Ausência total de música extra-diegética. Muitos filmes de found footage,
sobretudo os norte-americanos, optam atualmente pelo uso da música drone3, e
produções como Noroi (Kôji Shiraishi, 2005), Lake Mungo (Joel Anderson, 2008) e The
Poughkeepsie Tapes (John Erick Dowdle, 2007) a usam com alguma eficiência, mas
[Rec] tem uma proposta mais radical: abraça com mais vigor a verossimilhança e rejeita
até mesmo a música drone, escondendo da audiência todos os tipos de manipulação do
áudio na pós-produção.
(4) Ao mesmo tempo em que há “sujeira” nos sons diegéticos, há também clareza
nas vozes dos atores. Nesse ponto, [Rec] reformula e atualiza a estratégia estabelecida
por diretores dos anos 1930, como Howard Hawks, que orientavam os atores a usar
diálogos sobrepostos, mas apenas em pontos específicos do roteiro em que nenhuma
3 Música minimalista, de poucas notas, normalmente sem uma linha melódica ou rítmica discernível, o que faz com que muitas pessoas sequer identifiquem esses sons como música.
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ação relevante para a trama acontecia. Dessa forma, o espectador é capaz de reter a
impressão de verossimilhança documental sem ser privado de nenhuma informação
importante para compreensão da trama. Para poder alcançar esse efeito de realismo
sem perder a clareza, foi fundamental a estratégia de captação de vozes que registrava
os planos em até 10 canais separados. Só assim era possível ter o controle total dos
momentos em que as vozes deveriam ser compreendidas, e dos momentos em que a
“sujeira” era bem vinda.
(5) Uso abundante de sons fora de quadro para injetar tensão e ameaça às
cenas. Essa técnica é muito comum em filmes de horror, desde os primórdios do
gênero, ainda nos anos 1930, quando o afeto do horror – a soma de medo e repulsa,
de acordo com Noël Carroll (1999, p.30) – começou a ser provocado ou realçado com
a estratégia estilística de manter a origem da ameaça aos personagens humanos fora
do campo de visão, caracterizando-a através de sons (música, no princípio) e usando
a incerteza sobre a localização espacial dessa ameaça para estimular a sensação de
horror que dá nome ao gênero fílmico. Em filme de found footage, quando a câmera
adota a perspectiva visual de um personagem da cena, o uso de sons fora de quadro
ganha ainda mais importância – e o uso intenso desse recurso em [Rec] comprova com
sucesso essa tese.
Conclusão
Por tudo isso, acreditamos que [Rec] consiste num bom exemplo de como
alcançar o equilíbrio necessário entre os princípios sonoros da legibilidade e da
verossimilhança, garantindo que os sons pareçam verdadeiros registros do real sem
que percam a capacidade de transmitir informações narrativas de modo contínuo.
De modo geral, nos parece evidente que o sound design de [Rec] se tornou
um paradigma para os filmes de found footage. Até seu lançamento, os filmes do
gênero tinham estratégias de construção sonora variáveis, distintas entre si, que ora
pendiam para a uma legibilidade mais próxima do som que se ouve em filmes de ficção
tradicionais – caso de Cloverfield (Matt Reeves, 2008) – ora para uma verossimilhança
tão fiel que prejudicava a compreensão de certos fatos no enredo – como se ouve no já
citado A Bruxa de Blair.
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Em resumo, [Rec] parece ter ampliado a importância da verossimilhança sem
abandonar a (ou abrir mão da) legibilidade, atingindo um ponto de equilíbrio que acabou
por se tornar referência dentro do gênero, algo que pode ser confirmado quando se vê
– e ouve – os filmes mais recentes de found footage.
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Referências
ALTMAN, Rick. Sound theory, sound practice. New York: Routledge, 1992.
CARROLL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Campinas: Editora Papirus, 1999.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário?. São Paulo: Editora Senac, 2008.
TARRAGÓ, Oriol. “Exclusive interview with Oriol Tarragó”. In Designing Sound (blog). Disponível em http://designingsound.org/2010/04/exclusive-interview-with-oriol-tarrago-sound-designer-of-rec-and-rec-2/. Acessado em 30 de abril de 2012.
THOM, Randy. “Designing a movie for sound”. Iris Magazine. Iowa (EUA), n. 27. 1999. Pp. 9-20.