realidades adaptadas - resenha

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Globalismos e Atomização Philip K. Dick em Realidades Adaptadas apresenta uma imaginação fecunda ao delinear rumos possíveis ao mundo pós-Guerra Fria Rodrigo Belinaso Guimarães Essa antologia de contos de ficção científica de Philip Dick, organizada pela editora Aleph, Realidades Adaptadas (2012), possui fios interpretativos que podem ser captados tanto do ambiente social de suas histórias quanto do contexto político em que foram escritos: a emergência de um governo mundial policialesco e altamente burocratizado; a presença de grandes empresas detentoras de tecnologias sofisticadas; a atomização dos indivíduos; o possível contexto social pós-Guerra Fria; etc. Certamente, chama a atenção nos contos a presença de um Estado onipresente, isso não deixa de ser um alerta contra as teorias estatizantes que continuam influentes em nossos dias. De todo modo, observa-se que a necessária imaginação presente nas obras de ficção científica possui o potencial de revelar, para problemas contemporâneos, certas possibilidades de desdobra- mentos futuros. Talvez seja esta capacidade que separe a boa da descartável ficção científica. Certamente, estes contos de Philip Dick estão entre os melhores do gênero, embora os dramas psicológicos de seus personagens, postos em situações sociais opressivas, não se apresentem bem desenvolvidos. A chamada publicitária da obra apela para o fato dos contos terem sido utilizados como inspiração para roteiros de grandes produções de Hollywood, mas não é neste aspecto onde encontraremos seu valor. Nem tampouco na aparente discussão sobre o que é a realidade, ou mais, sobre o questionamento da própria existência do real que embala o título da coletânea e sua apresentação ao leitor. Neste ponto, trata-se de uma simples concessão à filosofia da linguagem contemporânea que vê a materialidade do real como algo construído discursivamente. Ora, se é possível discernir uma realidade subjacente numa obra de ficção científica que faça algum sentido para o leitor atual, não se trata apenas de um ambiente social fictício no qual se movem os personagens, ambiente construído discursivamente por uma subjetividade inspirada, mas da visualização de possibilidades de desenvolvimento de problemas que mantêm sua atualidade desde a época em que foram escritos. Deste modo, os contos foram publicados em plena vigência da Guerra Fria, entre os anos de 1950 e 1960, época a meu ver de maior produtividade deste gênero literário. A imaginação de Philip Dick o levou a conceber um universo social onde tal conflito já estaria resolvido ou em vias de resolução. Neste mundo, haveria uma grande concentração de poder nas mãos de uma estrutura estatal global e nas de grandes empresas metacapitalistas detentoras de tecnologias capazes de controlar a vida humana, até em seus aspectos mais individualizados, como a memória. Num cenário social onde o poder de influência está tão concentrado, Philip Dick observa a atomização ou a separação radical entre os indivíduos mesmo que aglomerados em grandes cidades. Como consequência, o autor imagina a eclosão de uma disputa entre as empresas metacapitalistas e suas tecnologias com os poderes policiais e centralizadores do Estado, no meio da qual os personagens principais tentam se libertarem. Portanto, se levarmos a sério a tese central destes contos: a maior centralização do poder estatal e empresarial pode ser acompanhada da maior atomização dos indivíduos; observaremos, na atualidade, como um perigo, a emergência de organizações políticas transnacionais como a ONU e a União Europeia, vendo nelas um passo para a concretização de um poder político global cada vez mais apartado dos indivíduos. O mesmo alerta vale para a concentração de poder econômico e tecnológico em poucas empresas. Neste ponto, os leitores podem ser instigados a se informarem melhor sobre o que vem sendo discutido em torno dos Globalismos e da Nova Ordem Mundial. Por fim, como alento, é possível captar nesses contos, um possível antídoto para essas estruturas globais de poder: o fortalecimento das relações locais entre os seres humanos.

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Globalismos e Atomização

Philip K. Dick em Realidades Adaptadas apresenta uma imaginação fecunda ao delinear rumospossíveis ao mundo pós-Guerra Fria

Rodrigo Belinaso Guimarães

Essa antologia de contos de ficção científica de Philip Dick, organizadapela editora Aleph, Realidades Adaptadas (2012), possui fios interpretativosque podem ser captados tanto do ambiente social de suas histórias quantodo contexto político em que foram escritos: a emergência de um governomundial policialesco e altamente burocratizado; a presença de grandesempresas detentoras de tecnologias sofisticadas; a atomização dosindivíduos; o possível contexto social pós-Guerra Fria; etc. Certamente,chama a atenção nos contos a presença de um Estado onipresente, isso nãodeixa de ser um alerta contra as teorias estatizantes que continuaminfluentes em nossos dias. De todo modo, observa-se que a necessáriaimaginação presente nas obras de ficção científica possui o potencial derevelar, para problemas contemporâneos, certas possibilidades de desdobra-

mentos futuros. Talvez seja esta capacidade que separe a boa da descartável ficção científica.Certamente, estes contos de Philip Dick estão entre os melhores do gênero, embora os dramaspsicológicos de seus personagens, postos em situações sociais opressivas, não se apresentem bemdesenvolvidos.

A chamada publicitária da obra apela para o fato dos contos terem sido utilizados comoinspiração para roteiros de grandes produções de Hollywood, mas não é neste aspecto ondeencontraremos seu valor. Nem tampouco na aparente discussão sobre o que é a realidade, ou mais,sobre o questionamento da própria existência do real que embala o título da coletânea e suaapresentação ao leitor. Neste ponto, trata-se de uma simples concessão à filosofia da linguagemcontemporânea que vê a materialidade do real como algo construído discursivamente. Ora, se épossível discernir uma realidade subjacente numa obra de ficção científica que faça algum sentidopara o leitor atual, não se trata apenas de um ambiente social fictício no qual se movem ospersonagens, ambiente construído discursivamente por uma subjetividade inspirada, mas davisualização de possibilidades de desenvolvimento de problemas que mantêm sua atualidade desdea época em que foram escritos.

Deste modo, os contos foram publicados em plena vigência da Guerra Fria, entre os anos de1950 e 1960, época a meu ver de maior produtividade deste gênero literário. A imaginação de PhilipDick o levou a conceber um universo social onde tal conflito já estaria resolvido ou em vias deresolução. Neste mundo, haveria uma grande concentração de poder nas mãos de uma estruturaestatal global e nas de grandes empresas metacapitalistas detentoras de tecnologias capazes decontrolar a vida humana, até em seus aspectos mais individualizados, como a memória. Numcenário social onde o poder de influência está tão concentrado, Philip Dick observa a atomização oua separação radical entre os indivíduos mesmo que aglomerados em grandes cidades. Comoconsequência, o autor imagina a eclosão de uma disputa entre as empresas metacapitalistas e suastecnologias com os poderes policiais e centralizadores do Estado, no meio da qual os personagensprincipais tentam se libertarem.

Portanto, se levarmos a sério a tese central destes contos: a maior centralização do poderestatal e empresarial pode ser acompanhada da maior atomização dos indivíduos; observaremos, naatualidade, como um perigo, a emergência de organizações políticas transnacionais como a ONU ea União Europeia, vendo nelas um passo para a concretização de um poder político global cada vezmais apartado dos indivíduos. O mesmo alerta vale para a concentração de poder econômico etecnológico em poucas empresas. Neste ponto, os leitores podem ser instigados a se informaremmelhor sobre o que vem sendo discutido em torno dos Globalismos e da Nova Ordem Mundial. Porfim, como alento, é possível captar nesses contos, um possível antídoto para essas estruturas globaisde poder: o fortalecimento das relações locais entre os seres humanos.