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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES I SOBRE Deontologia Medica DISSERTAÇÃO INAUGURAL APRESENTADA A ESCOLA MEDICO-CIRURGICA DO PORTO Francisco Adriano da Silva Tavares J°l ï tHd POETO Typographia A. F. Vasoonoellos, Suo. Rua de Sá Noronha, Si 1902

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

I S O B R E

Deontologia Medica

DISSERTAÇÃO INAUGURAL

APRESENTADA A

E S C O L A M E D I C O - C I R U R G I C A DO P O R T O

Francisco Adriano da Silva Tavares

J°l ï tHd

POETO Typographia A. F. Vasoonoellos, Suo.

Rua de Sá Noronha, Si

1902

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ESCOLA MEDICO-CIRURGICÂ DO PORTO D I R E C T O R

DR. A N T O N I O J O A Q U I M DE MORAES C A L D A S LENTE SECRETARIO

Cfemeníe Joaquim dos Santos pinto

C o r p o C a t h e d r a t i c o

Lentes Cathedraticos 1." Cadeira — Anatomia descripti-

va geral Carlos Alberto de Lima. 2.a Cadeira — Physiologia . . . Antonio Placido da Costa. 3." Cadeira—Historia natural dos

medicamentos e matéria me­dica Illydio Ayres Pereira do Valle.

4." Cadeira — Pathologia externa e therapeutica externa . . Antonio Joaquim de Moraes Caldas,

5." Cadeira—Medicina operatória. Clemente J. dos Santos Pinto. 6.a Cadeira—Partos, doenças das

mulheres de parto e dos re-cem-nascidos Cândido Augusto Corrêa de Pinho.

7." Cadeira — Pathologia interna e therapeutica interna . . Antonio d'Oliveira Monteiro.

8.a Cadeira — Clinica medica . . Antonio d'Azevedo Maia. 9." Cadeira—Clinica cirúrgica . lloberto B. do Rosário Frias.

10." Cadeira — Anatomia patholo-gica Augusto H. d'Almeida Brandão.

11.* Cadeira —Medicina legal . . Maximiano A. d'Oliveira Lemos. 12.a Cadeira—Pathologia geral, se-

meiologia e historia medica. Alberto Pereira Pinto d'Aguiar. 13." Cadeira — Hygiene . . . . Joào Lopes da S. Martins Junior. Pharmacia Nuno Freire Dias Salgueiro.

Lentes jubilados | José d'Andrade Gramaxo.

Secção medica | D r J o g é ^ ^ Lopes_ \ Pedro Augusto Dias.

Secção cirúrgica j D r A g o s t i n h o A n t o n i o d o S o u t o . Lentes substitutos

. I José Dias d'Almeida Junior. Secção medica j J o s é A l f i .e d o M e n d e s d e Magalhães. „ I Luiz de Freitas Yiegas. Secção cirúrgica j y a g a

Lente demonstrador Secção cirúrgica . . . . " . Vaga.

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A Escola não responde pelas doutrinas expendidas na dissertação e enunciadas nas proposições.

ÇRgpulamenlo da Efcóla, de 23 d'abril do 1840, artigo 155.°

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A' MEMORIA

MEU PAE

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-çff minha santa m&e

Quizera n'este momento agra­decer-vos tudo quanto por mim tendes feito até hoje ; como porém não encontro no vocabulário hu­mano palavras com que possa ex­primir tudo o que me vae n'aima, limito-me a deixar-vos n'esta pa­gina este pequeno mas immorre-douro testemunho da minha eter­na gratidão de filho.

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f^M -rnvnaa.

^ minha íilha

Pedaços da minh'alma : agora, como em todos os momentos da vida, não sa-his da minha imaginação.

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_<&. me-u.s i rmãos

Csíât-cito-

(ÒetaÂr,

A cada um de vós um abraço sincero do vosso irmão

Francisco.

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4 MllEâ it i lâ

A minhas cunhadas

S). DQTargarida (f. (Cornes de ÇFreifas ^avares S). Gmiíia Jlugusla da Cruz pereira 3Ê). 3£eíena ^osa da Cruz Pereira

A MEU CUNHADO

Õcsé ^Llveô "Pereira

SS, minhas í ias?

££L meu xio

Hl minhas ^Primas3

meus Primos^

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A meus Primos e bons amigos

P.c ófflgòstinho ^fosé Paes 3íoreira

Wictorino "jaoares Paes floreira

A MINHA PRIMA

|J. jf[ana Intóttt» j[]eJlesa fmaz íjaes J]^om

E A SUA EX. m a F A M Í L I A

A MINHA PRIMA

z). 'TTCaria 'Paes "nToreira

A MEUS J^RIMOS E ÍNTIMOS AMIGOS

C l o a a u i m Q)OÒ& da. c H l o a &avaz,cò

âíezmencqildo C>oc>é d a cH-t-oa cJaocxíco

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AO MEU INTIMO E VELHO AMIGO

ÎOÎW-1 i e i ^ e i r a pJeJagtop

Ao despedir-me de ti, depois de tantos annos de convivência, levo a impressão de ter conhecido um amigo verdadeiro.

Ao meu velho coiáiscipalo e sincero amigo

Ao meu condiscípulo e bom amigo

erh j$.uyustò Mezar (yrJnh ^(achado

Ao meu contemporâneo e bom amigo

Antonio d® Hondonça

Ao men amigo e companheiro d'intancia

^Justino Borges cl' ÓPbreu e "ÏLasfro

A todos um abraço de amigo sincero.

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AO EX.™ SUR.

jr. José Antonio jRamra dos pantos

E A SUA EX."'" FAMÍLIA

AO EX.ra° S N R .

uanjfãõ çpJòmingôs gpe/Zeza

Aos meus amigos

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Ao meu illustre Presidente de these

P f.X."" pNR.

jjr. João | opes da Stlua J|arítn!5 J J J J J

unior

Preito d'homenagem ao seu profundo talento e vasto saber.

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Obrigado por lei a apresentar no fim do meu curso um trabalho escripto, optei, depois de largas hesitações, pelo assumpto que me serve de thema.

Vários outros deslisaram successivamente perante a minha imaginação, mas dando con­secutivamente balanço aos meus conhecimen­tos e aos exiguos recursos intellectuaes de que dispunha, eu desistia, por vêr que era absolu­tamente incapaz de os tratar, ainda que d'uma maneira summaria.

De resto, necessitando por motivos impe­riosos defender these na primeira época, a es­cassez do tempo era mais uma difficuldade a juntar a todas as outras.

Lendo n'esta conjunctura, n'uma revista estrangeira, alguns artigos sobre deontologia medica, tão sympathico se me tornou o assum-

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pto, que desde logo resolvi aproveital-o para a minha dissertação.

Claro está que, como a principio, me en­contrei embaraçadíssimo; mas convencido es­tava já também (pie para mim não haveria assumpto em que não encontrasse escolhos.

Não julguem os que lerem o titulo da mi­nha these, que vão aqui encontrar versados os vastos problemas de deontologia medica ; nem isso caberia no programma d'uma dissertação ; apenas me limito a fazer algumas considera­ções mais ou menos opportunas sobre o as­sumpto, deixando a espirites mais cultos, e sobretudo mais práticos, o desenvolvimento d'elle, e esperando que sejam relevadas as faltas, aliás innumeras, n'uni trabalho de quem, forçado, escreve pela primeira vez.

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Esboço histórico

Apezar de não ser fácil remontar á época em que se originou o sentimento dos deveres do me­dico, em virtude dos exíguos conhecimentos que possuimos d'esses tempos remotos, é crivei que ella coincidisse com a da origem da medicina.

Na índia antiga, na Chaldeia e no Egypto, onde os elementos hierático e magico são tidos na mais alta consideração, os deveres do medico são estri-ctamente ligados aos do padre e aos do magico; no emtanto, com o tempo, alguns são postos em relevo com bastante nitidez.

Na índia, aos individuos que exercem a medi­cina, bem como aos que se dedicam á carreira me­dica, são formalmente exigidas qualidades especiaes; são impostas regras de prática; e os mais estrictos

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observadores dos preceitos escriptos por Suçruta no Ayur-Veda (sciencia da vida) são os medicos leigos, sahidos da classe dos guerreiros, dos agri­cultores e mesmo dos escravos, que no periodo brahmanico foram admittidos a fazer parte da cor­poração.

E o que é realmente curioso e que bastante nos impressiona, é a analogia que existe entre os pre­ceitos de Suçruta e os de Hippocrates, mesmo em materia de qualidades physicas. Assim, segundo Su­çruta, o medico deve ser de boa família, bello, forte, discreto, amável, serio sem pretençóes, cortez, honrado, reservado, paciente, opportunamente ale­gre, e familiarisado com as sciencias sagradas. Deve vestir de branco, trazer o cabello curto, unhas cor­tadas, fallar brandamente, sem gestos excessivos, e com uma physionomia serena. Não deve preoccu-par-se com o amor, com o ódio ou com o orgulho; deve resistir e até fugir da ganância e da ambição; ser escravo da verdade ; attender os seus mestres e todos os que a elle se dirigirem d'uma maneira po­lida e conveniente, os estranhos, os pobres e os desamparados.

A sua solicitude junto dos doentes deve ser le­vada ao ultimo ponto.

Unicamente, para interesse da sua reputação e para salvaguardar a dignidade da arte, deve recu­sar os seus cuidados aos doentes que reconhecer incuráveis.

Encontrar-se-ha este preceito em Hippocrates,

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bem como o respeito do discípulo pelo mestre, que era um dos traços mais caracteristicos da pratica indú.

O primeiro dever é sempre ter a maxima con­sideração pelos brahmanes; o segundo, a maior commiseração pelos infelizes.

«Tu evitarás, diz o mestre, toda a má compa­nhia ; não darás nunca remédio a um homem con-demnado por crime contra o rei, nunca irás tratar uma mulher, cujo marido esteja ausente, sem prévio consentimento d'esté ; não receberás d'ella mais que a alimentação que te for necessária. O medico nunca irá tratar um doente, sem ser previamente cha­mado, etc.»

E para termos uma ideia da maneira como no Ayur-Veda se entendia o dever scientifico, vejamos o que nos diz M. Liétard no seu artigo do diccio-nario encyclopedico, referente a este assumpto. «Aquelle que tiver aprendido unicamente os prin­cípios da medicina, sem ter recebido a instrucção pratica, perderá todo o sangue frio em frente d'um doente, como o poltrão no campo de batalha perde toda a presença d'espirito ao ouvir zoar a primeira bala. Por outro lado, aquelle que, por precipitação, se arroja á pratica, sem ter previamente estudado os princípios da arte, é indigno do apoio dos indi­víduos instruídos, e deve ser punido pelo rei. Ambcs são tão insufficientes e tão incapazes de se tornar bons medicos, como uma ave de voar com uma só aza.»

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O caracter hierático da medicina egypcia, de que os Sêrapeuns são o traço mais visivel, affir-ma-se mais uma vez na existência d'um código me­dico obrigatório. Parece realmente que o código de que falia Diodoro, escrevendo no primeiro século antes de Christo, não era um documento emanado dos sacerdotes, mas sim fornecido por antigos me­dicos illustres. Mas a existência d'um código official no antigo Egypto, não deixa por isso de ser um traço dos costumes medicos mais notáveis, e este código official era um código sagrado, n'iim paiz em que a sciencia estava nas mãos dos sacerdotes, em que uma hierarchia fora dos limites era tão sa­cerdotal como politica, e em que o soberano do povo era também o sacerdote soberano.

Causará talvez admiração encontrar uma tal dis­ciplina n'um paiz que, já no tempo d'Hérodoto es­tava coberto d'especialidades de todos os géneros, no meio das quaes seria difficil dizer o que podia ser a deontologia medica.

O desmembramento da pratica não é, de resto, por si mesmo, um signal d'emancipaçao; muito antes pelo contrario; a medicina não sendo com­posta a principio senão de noções particulares, é natural que a pratica tivesse começado pela sub­divisão. Ella repousava então sobre a virtude das plantas, e cada planta tinha a sua applicação n'um género determinado de doenças.

Ahi, sobretudo onde a doença estava sob o im­pério d'um génio maligno, d'um demónio mau, o

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remédio devia, como a formula conjuratoria, ser especial.

E as coisas deviam ter-se passado quasi da mesma forma na Chaldeia e na Persia, onde se sabe, por Heródoto, Ctésias e Diodoro, que os medicos egypcios eram muito bem considerados na corte da Persia, no tempo de Dário e de Cambyses. E' de presumir que o movimento medico nas suas diver­sas expressões, noções, superstições, preconceitos, hábitos e costumes, tem seguido na sua marcha quasi a mesma direcção que as artes, das quaes os dois grandes movimentos partidos da Chaldeia e do Egypto, se téem estendido e encontrado na Phe-nicia, para ganhar conjunctamente as ilhas medi­terrâneas, e espalbar-se para o lado da Persia, vindo adiante do movimento próprio, mas muito pouco expansivo da índia.

A medicina grega do tempo d'Homero, e d'Ho-mero a Hippocrates, não foi como o estabeleceu Daremberg, absorvida pela theurgia ; o dever me­dico privado, qu; se poderia chamar livre, o que não procede d'um ritual, devia ahi ter sido objecto d'estudos; e uma prova d'isto é, segundo Decham-bre, o facto da obscuridade se dissipar subitamente com Hippocrates. Com effeito a obra que tem o nome do que se chama o pae da medicina, não é só d'um homem, nem tão pouco d'um momento. Se bem que elle tenha n'ella um largo papel, é facto averiguado que essa obra é collectiva, e que representa um estado da sciencia preparado por

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progressos anteriores. E o que se diz da parte scien-tifica, repete-sc relativamente á parte profissional, como vamos ver examinando alguns trechos dos cinco livros hippocraticos intitulados: Do medico, Da decência, Preceitos, Juramento, A lei, que con-téem um verdadeiro código de deontologia medica, em que os deveres não são expostos detalhadamente, mas sim a breves traços, e como que em aprio­rismos.

Assim o livro — Do medico — abre da seguinte maneira:

>'E' uma recommendação para o medico ter uma physionomia agradável e (boa saúde, porque d'um medico doente, ou melhor aleijado, pensa-se, d'ordinario, que não saberá tratar bem os outros. E' preciso em seguida que elle seja cuidadoso com-sigo, limpo, que ande bem vestido e que use per­fumes agradáveis, cujo cheiro nada tenha de sus­peito; pois tudo isto dispõe bem o doente em seu favor. O medico sabedor deve também, quanto á moral, observar o seguinte : primeiro, saber guar­dar silencio; depois, regular a sua vida; pois que isso é muitíssimo importante para a sua reputação.

Elle deve ter um caracter honestíssimo, sendo ao mesmo tempo grave e affectuoso, porque o ex­cesso de zelo em prestar serviços pôde influir des­favoravelmente no respeito que lhe é devido.

Quanto á sua condueta, deverá ser 'a dum ho­mem reflexivo e sem orgulho, porque d'outra forma elle parecerá arrogante e austero. Por outro lado,

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se elle se entrega ao riso e ao prazer, torna-se massador, e é sobretudo d'isso que elle deve fugir. Deve ser honesto em todas as suas relações, porque a honestidade é-lhe muitas vezes d'uni grande au­xilio; os doentes téem muitas conversas sérias com o medico, entregando-se a elle sem reservas; a todas as horas elle está a tratar mulheres e donzellas; precisa pois de se conservar sempre senhor de si. Eis o que deve ser o medico no physico e no moral».

No livro—Da decência — encontram-se conse­lhos análogos: nenhuma affectaçáo no modo de ves­tir, um poite grave, urbanidade, falias sóbrias; ne­nhuma ostentação.

Certas recommendações dizem respeito mais especialmente á prática, como a de ver frequente­mente o doente e fiscalisa* as infracções que elle possa commetter, e cujos effeitos possam ser lançados á conta do medico.

No livro — Preceitos — alguns trechos são ainda referentes ás roupas e aos abusos de palavras, mas é sobretudo recommendado ao medico não começar por se occupar dos honorários; fazer um preço pro­porcional ás posses do doente, e provocar conferen­cias nos casos graves e embaraçosos.

A propósito d'honorarios, deve-se ilhbar Hippo­crates da injuria que lhe foi feita de não dizer uma palavra a respeito da medicina gratuita a favor dos indigentes. «O juramento não impõe em nenhum caso ao medico, se elle não trata dos seus mestres ou parentes, o exercer gratuitamente a sua profis-

»

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são; em uma palavra, não se faz menção dos po­bres no juramento medico d'Hippocrates», diz M. Briau, e junta: «Nada prova melhor que este facto o quanto os homens, mesmo os mais eruditos.. ., estavam ainda afastados dos sentimentos da mais elementar philantropia». Ora por um lado Hippo­crates não devia ser responsável por uma lacuna n'um documento que elle nem talvez redigiu, e que devia ter sido, no todo ou em parte, herança da familia dos Asclepiades; e por outro lado no seu livro Preceitos, Hippocrates voltando segunda vez ao rigor do medico, exprime-se assim: «Por vezes vós prestaes serviços gratuitos como tributo d'um favor recebido, ou em viitude do bom nome do doente; se houver occasião de soccorrer um homem estrangeiro e pobre, é sobretudo n'este caso que assim deveis proceder.

Evidentemente não ha aqui uma plena conce­pção d'assistencia medica gratuita; mas vê-se bem que não era exacto apresentar o pae da medicina como não a tendo prescripto em nenhum caso.

O livro — A te' —insiste particularmente sobre a vantagam da primeira instrucção. A instrucção começada desde a infância, «é a sementeira feita na estação conveniente». Hippocrates insurge-se ao mesmo tempo contra «a timidez que denuncia a impotência, e a temeridade que denuncia a inexpe­riência».

Temos emfim — o juramento — cujo texto traz o estygma d'uma tradição mais ou menos longa, e

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do qual alguns trechos parecem provar á evidencia que elle sahiu dos templos, para se transmittir com o próprio ensino scientifico aos asclepiades leigos, dos quaes, segundo os trabalhos de Daremberg, Hippocrates parece ter feito parte.

Eis, segundo a versão franceza de M. E. Egger, o juramento : «Juro por Apollo medico, por Ascle-pios, Hygio e Panaceo, e tomo por testemunhas todos os deuses e deusas, cumprir segundo a minha auctoridade e a minha razão, o juramento, cujo texto é o seguinte: respeitar tanto o individuo que me ensinou esta arte como meus próprios pães, fazer com elle vida commum, e se elle tiver neces­sidade repartir com elle os meus bens ; considerar os seus filhos como meus irmãos, ensinar-lhes esta arte se elles tiverem necessidade de a aprender, sem salário nem promessa escripta; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os do mestre que me ensinou, e os dis-cipulos inscriptos segundo os regulamentos da pro­fissão, e absolutamente mais ninguém. Applicarei os regimens para bem dos doentes, segundo a mi­nha auctoridade e o meu critério, nunca para fazer mal ou causar prejuizo a ninguém. Não darei a ninguém, a seu pedido, um remédio mortal, nem conselhos que causem prejuizo. Nunca darei a uma mulher substancias abortivas. Conservarei imma-culadas a minha sciencia e a minha arte. Nunca praticarei a talha mesmo n'um calculoso. A qual­quer casa que eu vá, entrarei só para bem dos

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doentes, evitando produzir qualquer lesão voluntá­ria, e conservando-me longe de toda a seducçáo, e sobretudo longe dos prazeres do amor com mulhe­res, ou com homens, quer livres, quer escravos; o que no exercício da minha profissão, ou fora d'elle, eu vir ou ouvir, que não seja preciso communicar, conservarei no mais absoluto segredo. Se eu cum­prir este juramento com fidelidade, que eu gose uma vida feliz e boa reputação na minha arte, entre os homens, e para sempre; se eu o quebrar ou infrin­gir, que me aconteça o contrario».

Seja dito, de passagem, que a parte relativa á operação da talha tem sido objecto de numerosas controvérsias, e que alguns a consideram como al­terada. Além d'isso, Daremberg crê que o preceito a ser verdadeiro, poderia não ser mais que a appli-cação do que interdizia o tratamento dos incurá­veis, e tinha por fim não comprometter a arte n'uma operação perigosa. A propósito ainda de juramen­tos, Dechambre cita um outro dVrigem grega, e data incerta, que não deixa de ser alguma coisa cu­rioso, e que por isso transcrevemos:

«Ao grande Deus eu juro, com palavras since­ras, não destruir por doença nenhum homem, es­trangeiro ou do meu paiz, com o auxilio de prati­cas homicidas; que ninguém me arrastará, por offer­tes, a commetter um crime horrível, dando a al­guém remédios funestos, capazes de lhe provoca­rem a morte; que, mesmo por amizade, eu me não encarregarei de os administrar a outrem. Mas eu

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levanto piedosimente as mãos para o céo, e nunca deixarei de ter senão pensamentos isentos da ma­cula do crime. Esforçar-me-hei por salvar o doente, e para todos procurarei a saúde que prolong! a vida.»

A differença entre estes dois juramentos é fla­grante: o segundo limita-se a induzir á abstenção d'actos criminosos; ao passo que o primeiro, com­batendo o mal, ordena o bem.

Alguns traços do programma d'Hippocrates, que aliás elle augmenta ainda em varias partes da collec-ção, não são mais que a reproducção de vários au-ctores da antiguidade: sobretudo os que dizem res­peito á observação dos doentes, á experiência, boa conducta, honestidade dos processos, etc. Assim, Aristóteles, quando doente, certificava-se primeiro dos conhecimentos do medico, exigindo-lhe uma circumstanciada exposição do caso, e uma justifica­ção dos meios que elle ia empregar para o trata­mento.

A superioridade da experiência sobre a erudi­ção no medico, tem sido muitas vezes affirmada ; assim, Luciano, principalmente, compara o medico experiente ao musico que sabe cantar, e o medico erudito ao musico que não conhece senão o rythmo e a harmonia. «Assim como é bom que o cantor co­nheça a musica, assim é conveniente e até indis­pensável que o medico não fique estranho ás dou­trinas correntes».

Hippocrates proclamou a ailiança intima da phi-

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losophia e da medicina; Galeno interpretou esté pensamento a seu modo, estabelecendo a excellencia do methodo racional e da sciencia lógica; e perma­neceu fiel a esta ideia, como se vê na exhortação ao estudo das artes, onde elle colloca a medicina em primeiro logar.

Isto pelo que respeita a qualidades intellectuaes ; quanto ás moraes, as numerosas queixas que se en­contram contra o charlatanismo, mostram á evi­dencia o quanto ellas se apreciavam, e a falta que faziam. Assim, no segundo século antes de Christo, Polybio, declamando contra os medicos alexandri­nos, apresenta-os percorrendo o paiz com pompa, amontoando-se a multidão em volta d'elles, osten­tando o titulo de racionalistas, e captando a con­fiança publica á força de palavreado. Cerca de qua­tro séculos mais tarde, quando Dion Chrysostomo quer envergonhar os habitantes de Tarso, pelo seu excessivo gosto pela verbosidade, não encontra me­lhor comparação que os pruridos da palavra, «as exhibições d'esses pretendidos medicos, que posta­dos na praça publica, ahi expõem grandes sorti­mentos de membros e ossos amontoados e articu­lados, bím como outros objectos do mesmo gé­nero . . . etc.

Ainda a propósito de charlatanismo, se se fo­lheara alguns auctores, ahi se encontra, mais que uma vez, menção se não d'exercicio illegal (a época não permittiria o termo) pelo menos d'exercicio intruso. Assim vê-se claramente nos textos d'Hip-

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pocrates, que bastantes indivíduos praticavam a me­dicina, sem terem sido submettidos aos regulamen­tos da profissão. A este propósito cita Dechambre a titulo de curiosidade a XIV fabula de Phedro, que tem por titulo — o sapateiro medico. Este indi­viduo cujo officio não prosperava, vendia um anti-doto. Um bello dia, foi chamado pelo rei, que fin­gindo misturar veneno ao antidoto, lhe ordenou que o bebesse todo; elle recusou fazel-o; e o rei voltando-se para o povo que se encontrava reunido junto do palácio, pronunciou estas judiciosas pala­vras:

...Capita vostra non dubitatis credere Cui calceandos nemo commisit pedes.

Isto mostra-nos claramente que o charlatanismo não é de data recente, e tudo nos leva a crer que elle pouco posterior seja á origem da medicina.

A questão dos honorários é uma das que parece vir de mais longe. N'uma espécie de código deon­tológico dos Indus, o medico tinha direito a uma remuneração; mas devia proporcional-a ás condi­ções sociaes do doente, e contentar-se em ultima instancia com «um penhor de consideração». A ins-trucção do mestre orientava-o particularmente no sentido de fugir o mais possivel da avidez da ga­nância.

No registo dos Reis vê-se citado o seguinte caso: um sacerdote, Eliseu, recusa acceitar alguma coisa

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de Naaman, curado por elle da lepra; d'aqui se conclue que elle ou outros sacerdotes recebiam algu­mas vezes recompensas, por serviços d'esté género ; a não ser assim, esta offerta do doente seria bem extraordinária. E n'este caso, vê-se já apparecer alguma coisa, que hoje é muito commum : a espe­culação illicita dos creados ; assim o servo d'Eliseu, sabedor de tudo isto, corre a casa de Naaman, e por meio d'uma historieta, obtém d'elle uma pequena quantia. «Este velhaco foi castigado com uma le­pra que lhe cobriu todo o corpo.»

O uso de pagar os cuidados medicos é aliás tão legitimo, que elle deve ter existido em toda a parte, e atravez de todos os séculos. Isto é muito conhe­cido pelo que diz respeito á Grécia e Roma, para que seja necessário insistir. Aristóteles tem o cuidado de demonstrar quanto é justo que o medico, depois de ter tratado um doente por amizade, receba d'elle uma recompensa, por o ter curado. Infelizmente, trechos d'alguns auctores, fazendo allusão aos hono­rários, consideram-n'os como uma praga eterna e incurável da cubica.

A propósito d'honorarios cita-se ainda um pre­ceito d'Hippocrates (não contido no juramento), que diz o seguinte: «Se começaes por vos occupar de honorários, suscitareis no doente a ideia de que não chegando a um accôrdo, vós partireis e o aban­donareis, ou que o desprezareis, e nada lhe pres­crevereis n'esse momento. Vós não vos occupareis pois de fixar o salário... ; mais vale censurar indi-

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viduos que se salvaram, que offender indivíduos que estão em perigo».

Nos tempos actuaes, se costumes différentes e diversidade d'elementos de civilisação, têem, ora ex­citado, ora enfraquecido, ora inclinado n'um ou n'outro sentido o sentimento publico sobre as qua­lidades privadas do medico, o fundo permanece o mesmo.

Feito este ligeiro e resumido esboço histórico, estudemos o medico no estado actual da civilisacão.

O aspirante a medico, chegado ao fim da car­reira, e tendo obtido a sua carta, representa já um capital considerável, que se pôde desdobrar nas se­guintes parcellas: i.° desembolsos que representa a vida material d'um individuo que attingiu ou ul­trapassou já, a metade da meia edade; 2." despe-zas especiaes que exijem estudos longos e onerosos, como são os medicos; 3.° capital representado pelo valor intrinseco, resultante da sua capacidade intel­lectual e scientifica, ou melhor, pelo valor próprio do seu trabalho accumulado.

O capital social que representa o novo medico, é pois constituido por dois elementos, um pecuniá­rio e outro intellectual, cuja somma corresponde a uma cifra superior á que representa qualquer indi­viduo no inicio d'outra profissão. Durante o exer­cido da sua profissão, o novo medico deve equitati-

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vãmente ir cobrando os juros, e ao mesmo tempo amortisando o capital que representa. Do contrario ha prejuizo para a sociedade, e mormente para o medico.

Mas para que elle tenha direito a exigir da so­ciedade, com justiça, essa amortisação, é necessário que tenha uma linha de conducta irreprehensivel, que seja dotado de qualidades especiaes, que cum­pra rigorosamente com determinados deveres.

São pois essas qualidades, e esses deveres, que vão em seguida ser objecto do nosso estudo.

Qualidades physicas do medico

No estudo das qualidades physicas, principiare­mos pelo habito externo, que, se bem que não faça parte d'estas qualidades, lhes está intimamente li­gado.

Parece natural ao homem procurar impôr-se aos seus contemporâneos por certas manifestações exteriores, pela adopção d'uma apparencia particu­lar que o distinga da turba dos seus semelhantes.

Este sentimento é innato no homem ; existiu em todas as épocas, sob formas quasi idênticas, levan­tou as mesmas criticas, e a despeito de tudo, per­sistiu sempre. Isto nada surprehende, porque a applicação do principio repousa sobre uma base que os séculos não têm abalado: a fatuidade huma-

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na. Muitos ramos da actividade social nos fornecem exemplos. A profissão medica, como muitas outras, não lhe resistiu.

Os livros hippocraticos recommendam já aos medicos não procurar singularisar-se por costumes extraordinários, evitar mesmo os modos muito es­paventosos. Em muitos pontos o exagero da con-ducta do medico, marca uma das formas, quer do pedantismo, quer do charlatanismo, os dois esco­lhos que orlam a estrada da profissão medica; os mais honestos, em todos os sentidos, chegam mui­tas vezes a deixar-se levar até singularisações de conducta e de modos.

Na época d'egualdade que actualmente atravessa­mos, não se deveriam encontrar no exercício pro­fissional os modos já attenuados da pratica medica do ultimo século, e entretanto estamos bem longe do tempo em que o medico se julgava obrigado a adoptar um feitio especial para o seu fato, uma es­pécie de luto perpetuo, afim de tomar a apparencia d'uni homem desprendido do mundo exterior, e não vivendo senão para as coisas do espirito. Actualmente a geração medica ganhou os hábitos do seu tempo e do seu meio, vestindo-se cada um ad libitum, segundo o seu gosto pessoal. Em todo o caso, nunca o pratico se deve deixar levar por pe­quenos detalhes de vestuário, que não são mais que requintes da moda; mas sim permanecer no termo médio.

E' claro que o medico, por um excesso de mo-

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destin, não se deve deixar levar até ao extremo op-posto d'um exagero de simplicidade, pois n'este caso tocaria as raias da affectação.

O medico, tendo obrigação de a todos inspirar confiança, deve reflectir no seu rosto um mixto de dignidade e affabilidade, temperada com um pouco de viveza. E' evidente que nós não temos muitas vezes preponderância sobre a expressão da nossa physionomia; mas também quantas vezes nós não vemos apparecer um coração puro e vibrante en­coberto n'uma physionomia rispida e severa.

Muitas vezes acontece que o medico é convidado a emittir a sua opinião sobre um ponto interessante da sciencia, fazendo-lhe assim a honra de o consi­derar encyclopedico. A uma interrogação formal elle deve responder com todo o seu saber, com toda a sua intelligencia, mas sempre com bastante mo­déstia, pois que no terreno scientifico a prudência nunca é exagerada. Se a questão versa sobre as­sumptos inhérentes á medicina propriamente dita, elle não S2 deve abrir francamente, mas guardar as maiores reservas, pois que nunca se lhe perdoaria um erro n'essa materia. E' perigoso tratar diante de pessoas estranhas ao espirito scientifico, alguns dos problemas que os mais competentes não des­trinçam senão a muito custo, e cada um deve lem-brar-se sempre que a verdade d'hoje é o erro d'áma-nhã, e portanto saber advogar as suas duvidas, nun­ca mostrando septicismo em coisas medicas, o que o publico não perdoaria a um profissional.

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Pelo que respeita ao physico, o medico, e muito principalmente o das aldeias, deve ser forte, de boa construcçáo, sem achaques, para assim poder re­sistir aos constantes agentes de lucta, com que é collocado em contacto, em virtude da sua profis­são.

Deve ser excessivamente limpo, pois que essa qualidade que poderia ser elevada á cathegoria de virtude social, nunca é exagerada, mesmo que at-tinja o cumulo.

Sob o ponto de vista biológico, a limpeza é um elemento de que não é necessário recordar a im­portância; sob o ponto de vista social, é uma das formas de respeito por si mesmo e pelo proximo, é uma defeza e uma protecção.

Esta limpeza a que me refiro não é relativa áquelles que se apresentam com as unhas negras, collarinhos e punhos de brancura duvidosa e fato semeado de nódoas, pois que d'esses nem sequer me occupo; mas sim para áquelles que apresentan-do-se apparentemente limpos, unhas cuidadas, pu­nhos e collarinhos alvos, e que lidando habitualmente com a clientela elegante, se crêem intimamente sa­tisfeitos com a sua limpeza, quando ao descalçar as luvas, deixam vêr umas mãos esmeradíssimas. E no emtanto, quem sabe com o que estiveram em contacto essas mãos d'apparencia, aliás, tão inno­cente ? Quem sabe se este individuo, que suppunha-mos, está agora a ver um doente atacado d'uma bronchite banal, vem de visitar um scarlatinoso ou

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um diphterico, sem depois ter feito uma cuidadosa desinfecção ?

E' pois sobretudo á limpeza antiseptica que eu me quero referir, pois que ella não só é uma ga­rantia para o medico e para os seus, mas sobretudo para os doentes que, por se encontrarem em qual­quer estado mórbido são com certeza melhor ter­reno para a pullulação dos germens. E' orientado n'esta ordem d'ideias que Juhel-Renoy todas as ve­zes que tem de tratar um cliente de doença infec­ciosa, se previne com uma blusa de fácil desinfecção, que veste todas as vezes que entra no quarto do doente.

« Eu estou convencido, diz elle, que quando este habito se espalhar, não somente terminarão os di­chotes, mas até as familias nos ficarão reconhecidas por estas precauções».

Ainda em materia de qualidades physicas, não podemos deixar no esquecimento a necessidade que tem o medico de possuir bem educados todos os seus sentidos, mas muito especialmente o da audição, que lhe presta relevantíssimos serviços, quando ap-plicado ao diagnostico.

Qual idades m o r a e s do medico

O medico deve ter qualidades profissionaes, mas pode adquiril-as se possue outras nativas. Sem du-

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vida que se não faz successo em parte nenhuma sem uma certa dose d'intelligencia, e a cultura medica exige-a tanto e mais que qualquer outra carreira. Com o que um individuo qualquer, tendo percor­rido os meandros do ensino secundário, possue como archivo intellectual, pode certamente chegar a conquistar a carta de medico.

Mas para ser um medico, digno d'esté nome, é preciso mais : E' preciso possuir, ao mesmo tempo, uma grande energia, firmeza, confiança em si mes­mo, debaixo da condição de ser justificada, e final­mente, e acima de tudo um bom senso absoluto, um critério ao abrigo de toda a fragilidade.

Sem bom senso, e sem critério, nunca o me-'dico poderá fazer obra util. «O verdadeiro medico, diz Morache, deve certamente possuir um tempe­ramento scientifico, mas deve também ter, e em alto grau, o sentimento artístico. Um grande nu­mero dos que, n'esta carreira, téem sido illustres, tiveram o mais vivo gosto pelas artes ; alguns che­garam até a ser eminentes n'uma arte particular». Sem ir tão longe, é difficil que um homem esteja á altura das concepções medicas, se elle não tem, ao menos, alguma orientação artistica; se a poesia, a musica, a pintura, o deixam indifférente e frio.

Tem-se discutido muito e por varias vezes, se a medicina é uma sciencia ou uma arte. Parece que ella participa d'uma e d'outra.

Assim, um espirito unicamente scientifico poderá levar muito longe as investigações dos factos que

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permittem encontrar, suspeitar ou esboçar as leis da biologia, seguir, tão longe quanto actualmente é possível, as evoluções e as transformações orgânicas, proceder á parte analytica dos problemas; mas aquelle que guia um espirito e o sentido da idea-lisação, encontrará a concepção das grandes leis geraes, tão bellas na sua simplicidade, e poderá syn­thétisai1, no sentido philosopbico do termo.

Claude Bernard e Pasteur foram grandes artis­tas. O medico deve amar o bello sob todas as suas formas: «o bello é a verdade, o bello é quasi a virtude». (Morache).

Quando um medico modesto se encontra em presença do doente, sem o perceber, o seu espirito analytico permitte-lhe facilmente encontrar cada um dos phenomenos anormacs que lhe apresenta este organismo pathologico, mas quando no meio d'esté conjuncto confuso e sempre complexo, é preciso ir procurar o grito da funcçao perturbada, referil-a ao elemento anatómico, temporária ou definitiva­mente modificado, destrinçar a lesão primitiva das que lhe são accessorias, e depois emfim fixar uma linha de conducta, assentar um diagnostico, e deci­dir-se por este ou aquelle tratamento, é fazer obra d'aitista e de grande artista.

O futuro medico deve iniciar-se na vida social, no meio da qual elle terá d'evoluir durante toda a sua carreira, não ficar estranho a nenhuma das questões que ahi se agitam, sem que para isso seja necessário metter-se n'ellas.

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Assim como a nossa nutrição reclama, para ser perfeita, alimentos diversos, assim também o nosso espirito reclama uma cultura variada; o espirito anemia se, atrophia­se até, se se mantém sempre no mesmo regimen.

Todos os géneros de trabalhos são bons e pre­

param para os trabalhos d'ordem medica ; o essen­

cial é trabalhar com gosto, com interesse, com espirito de firmeza, e consequentemente fazer a gymnastica intellectual, mas intelligente.

Chegamos emfim á qualidade moral que acima de todas deve ser considerada pelo medico —■ a de­

dicação. — Todas as carreiras que põem em pre­

sença o homem e o seu semelhante, levantam ques­

tões de dever em menor ou maior grau, mas sob este ponto de vista, ha poucas que ultrapassem a de medicina, poucas sobretudo, que exijam uma dedi­

cação levada até ao sacrifício da vida. Com effeito, todos sabem que os indivíduos que exercem a me­

dicina estão, desde o principio da sua aprendiza­

gem, em perigo permanente de morte, em virtude do contacto com os germens das doenças infeccio­

sas. Além disso, não são só tiles que estão amea­

çados, mas os que com elles vivem, os entes que lhe são mais caros. Com effeito quão longa seria a lista das victimas que pagaram com a vida a honra de pertencerem á profissão medica! E entre nós a morre do eminente professor e já celebre bacterio­

logista Camará Pestana, que com certeza ainda está

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na memoria de todos, é d'isso um exemplo bem frisante.

E justiça deve ser feita ao medico que cumpre o seu dever, expondo a sua vida sem a minima preoccupação, sabendo perfeitamente, melhor do que ninguém, o perigo para que caminha.

Qualidades intellectuaes do medico

1NSTRUCÇÃO — APPLICAÇÃO

E' fora de duvida que o apparato em todas as suas manifestações, não é uma qualidade que possa ser despresada, mas também é absolutamente certo, que muitos indivíduos fazem, permitta-se-me a ex­pressão, vista grossa sobre os simples defeitos exte­riores, se descobrem no individuo de quem elles vão confiar o que téem de mais caro, a saúde, um raciocínio claro e firme, um espirito franco e observador, e o que nunca prejudica, uma cultura intellectual que encontrará mil e uma maneiras de se applicar, durante o exercício da profissão.

Uma das qualidades intellectuaes que o medico mais se deve esforçar por cultivar, é a memoria. Graças a ella, elle poderá frequentemente coordenar factos dispersos, d'elles tirar proveitosas deducções para a conservação da saúde, mas sobretudo pôde ter a certeza d'impressionar o espirito do seu cliente,

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d'uma maneira para si muito proveitosa, fornecen-do-lhe frequentemente provas d'esta util qualidade. Assim, o doente que, salvo raras excepções, cultiva o campo do egoismo, ficará sempre satisfeito, ao vêr que o seu medico não esqueceu o mais pequeno incidente na sua saúde; elle deixar-se-ha levar pela ideia, para elle tão seductora, de que essa recorda­ção é talvez devida a uma sympathia especial por elle, ou a que a sua doença interessa o medico; dentro em pouco, qualquer que seja o raciocinio, consciente ou não a que se entregue, quasi sempre se abandonará com a maxima confiança ao homem a quem tanto interessaram os pormenores da sua saúde. A este propósito Juhel-Renoy cita o facto de ter visto mestres illustres abandonados por alguns doentes, pelo motivo, aliás pueril, de se não recor­darem do seu nome, sendo seus clientes habituaes; e argumentavam estes indivíduos, dizendo que o medico que tão depressa se esquecia do seu nome, era incapaz de se recordar das suas doenças passa­das, e que portanto ignorava por completo o seu temperamento.

De resto, não é só debaixo d'esté ponto de vista que o papel da memoria é importante ; sob o ponto de vista do estudo, que o medico é moralmente obrigado a fazer durante toda a sua vida profissio­nal, os relevantíssimos serviços que ella presta são bem conhecidos de todos, para que seja necessário fazer a sua apreciação.

Como segunda qualidade intellectual, não menos

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importante, citaremos o critério, critério este, não só applicavel ás regras necessárias para assentar um diagnostico, mas sobretudo ao conjuncto das quali­dades intellectuaes. Cada um de nós leva para o exercido da sua profissão, tendências naturaes do seu espirito; assim, este será frio, ligeiramente affe-ctado de septicismo ou pelo menos de reserva, aquelle será expansivo, facilmente arrebatado pelos enthusiasmos; não é preciso ser-se propheta para predizer a este ultimo muitas decepções, muitos er­ros de critério, sobretudo em materia de therapeuti-ca. E para nos convencermos d'tsto, basta olharmos em volta de nós, seguir todas as semanas essa grande serie de medicamentos annunciados pomposamente na quarta pagina dos jornaes, e que quasi morrem ao nascer.

Uma outra faculdade intellectual quasi impres­cindível ao medico, é a imaginação; de facto, nin­guém contesta o seu poderoso auxilio em materia de diagnostico, debaixo da condição de ser mode­rada, isto é, sendo as hypotheses por ella elabora­das, provisórias, condicionaes, e não usadas como verdades positivas, sem previamente soffrerem a contraprova da observação e da experiência.

A circumspecção, que poderia ser incluida nas qualidades moraes, é considerada pelos deontolo-gistas como applicando-se ás coisas do espirito. O medico, no inicio da sua carreira, pôde ser dotado d'uma fé cega, ou d'uma desconfiança exagerada; a primeira entra quasi sempre na bagagem ordina-

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ria do joven medico. Este entra na vida prática, por assim dizer com as armas na mão; leu nos li­vros as descripções clássicas das doenças com os seus capítulos de diagnostico e prognostico; viu nos hospitaes typos da maior parte das doenças; eil-o pois, prompto para reconhecer o inimigo logo que elle se apresente.

Elle fixou também na memoria os différentes meios de o combater; se um falhar, empregará ou­t r o ; a lista não é muito pequena; o seu mestre tinha a este respeito determinados hábitos, elle os seguirá.

Assim, tudo se lhe apresenta com as melhores apparencias de clareza; portanto a therapeutica é immediata, sem a minima hesitação. No emtanto tudo isto é uma illusão; é-lhe preciso muito tempo, e sobretudo muitos clientes, para elle chegar ao co­nhecimento, de que actua sobre um terreno pouco conhecido, e mesmo, em parte, novo; de que as doenças que lhe apparecem não são as dos hospi­taes, na sua maior parte, pois não se entra para o hospital em virtude d'uma cephalalgia, d'uma dys­pepsia simples, d'insomnia, de palpitações, etc.; de que estas affecções téem a sua causa latente em qualquer canto da economia que é preciso desco­br i r ; de que um estado diathesico entretém muitas vezes as mais variadas perturbações de saúde; de que as melhores inspirações do pratico devem ser muitas vezes tiradas da evolução natural da doença e que, finalmente, ha em muitas doenças incidentes

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salutares, que é necessário favorecsr, e nunca com­bater. E' necessário pois, para que o medico não seja levado por superficialidades, a commetter erros, que podem ser gravissimos, que seja dotado d'uma circumspecção e d'um espirito de reflexão, levados aos últimos limites.

Tendo fallado do medico dotado d'uma fé cega, resta-nos fallar, por opposição, do medico sceptico. Ehte não presta ás doenças que é chamado a obser­var senão uma muito ligeira attenção; não acredi­tando nas indicações, não se dá ao trabalho de as procurar; segundo o seu modo de vêr, os remédios não produzindo senão modificações superficiaes, de que a doença mofa, os menos activos serão os me­lhores. Ainda assim, se elle se conservasse n'este papel, por assim dizer, de medico espectante, não seriam grandes os prejuízos; mas desconhecedor de todos os princípios, quando se resolve a intervir, tal-o ao acaso, e administra remédios, que quando não sejam prejudiciaes, são pelo menos inúteis. Esta falta de fé, este desalento na pratica, acabam por ser comprehendidos pelo doente, e este a seu turno, torna-se sceptico a respeito do seu medico ; consulta outros, e acaba por entregar-se nas mãos d'aquelle, que faz do seu mal um estudo attento, deduzindo d'ahi uma therapeutica racional.

Expostas assim, resumidamente as qualidades intellectuaes, vamos referir-nos a outra qualidade que todo o medico deveria possuir, na medida das suas faculdades—a instrucção. A este respeito diz-

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nos Dechambre o seguinte: «E' bom que o medico não seja nunca inferior em educação scientifica, ao individuo que elle deverá submetter ás suas pres-cripções, e em frente do qual lhe é preciso manter a auctoridade da sciencia. Não é somente junto do leito do doente, que elle dá a medida do seu valor pessoal: é também nas relações diárias, na conver­sação, na opinião que elle emitte sobre tudo que é submettido á sua critica, no saber, de que elle dá constantes provas. E' mesmo muitas vezes por in-dicios d'esta natureza, que uma dada famiiia escolhe o seu medico, por não ter elementos para avaliar a sua habilidade na arte; e é também, e somente pelo titulo d'homem instruído e judicioso a que tem jus, que ella o toma algumas vezes por confidente, e até por conselheiro em negócios Íntimos. Elle próprio reforçará as suas faculdades d'observaçao, se está habituado a esta gymnastica intellectual, a este exer­cido de raciocínio que torna o espirito, por assim dizer, flexível, que o dispõe para tomar conta das suas impressões, das suas ideias, para se orientar em todas as direcções do saber humano, e mesmo sobre o terreno das sciencias physicas, para des­trinçar, na mistura desordenada dos phenomenos, o laço do seu encadeamento, e o valor relativo de cada um d'elles.

A instrucção leva-nos também a sabermos apro­veitar o que aprendemos, e a fazer aproveitar os outros. O livro que parece não ser senão um sim­ples deposito das acquisiçÕes do espirito, é muitas

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vezes, em grande parte, o promotor d'ellas. Julga-se não ter que consignar senão um certo numero de factos, tirar determinadas deducções ; mas os factos chamam factos; as deducções precisam de ser veri­ficadas; e d'ahi um augmente extraordinário do horisonte».

Estes factos mostram bem á evidencia o quanto é necessária, e o quanto aproveita a instrucção ao medico, mormente quando elle está collocado n'um meio mais ou menos culto, e onde fará uma figura pouco honrosa, se, sendo chamado a emittir a sua opinião sobre qualquer assumpto de natureza scien-tifica, tiver d'elle uma ignorância absoluta.

Resta-nos, finalmente, fallar d'uma ultima quali­dade que a nenhum medico deveria faltar—a appli-cação ao estudo. Com effeito, do principio ao fim da carreira, impõe-se a todo o medico a necessi­dade absoluta de passar uma parte do seu tempo profissional á meza d'estudo. Aquelle que, desde os primeiros momentos, não contrahe este habito salu­tar, não poderá mais tarde contrahil-o, mesmo á custa de grandes esforços; e em consequência d'isto, elle vêr-se-ha, durante a sua carreira, obrigado a viver de noções adquiridas durante a sua época es­colar, noções transformadas, ou reconhecidas falsas, mas que elle se obstinará, na sua ignorância, em defender quando na sua presença forem atacadas.

Sem duvida que isto não quer dizer que um medico d'aldeia, que entra á noite em casa cançado do trabalho diário, vá sentar-se á banca d'estudo,

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c ahi elaborar, á custa de muitas vigílias, uma m e ­moria, que talvez ninguém lerá; bastar-lhe-ha, sim­plesmente, 1er com cuidado algumas revistas medi­cas, que lhe fornecem resumidamente as noções necessárias para que elle se conserve em dia com o movimento scientifico de todas as épocas que vae atravessando. Em tempos mais remotos, o profis­sional que quizesse estar a par do movimento scien­tifico do seu tempo, teria que fazer despezas enor­mes, possuir uma bibliotheca extraordinária, pois que a sciencia ficava toda encerrada nos livros. Hoje porém, graças ao movimento sempre crescente dos jornaes, das revistas, e dos annuarios, onde todos os trabalhos, quer individuaes, quer d'academias e sociedades importantes, são discutidos e apreciados, não ha nenhuma ideia de valor, nenhuma transfor­mação na sciencia que não possa chegar rapida­mente e com uma despeza relativamente pequena, até ás aldeias mais humildes e remotas. E não se julgue que este movimento de jornaes scientificos é de data recente, pois já em 1845, Max Simon, no seu primoroso livro sobre deontologia medica, nos diz a este respeito, o seguinte:

«O medico que não reserva uma parte do seu tempo para a meditação, para o trabalho solitário do gabinete, não comprehende, nem as difficuldades da sciencia, nem a gravidade da responsabilidade moral que assume perante a sociedade. Se em todos os tempos, isso foi um dever sagrado para o me­dico que comprehende a sublimidade da sua missão,

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esse dever é ainda mais rigoroso hoje, que tantas intelligencias concorrem para a elaboração da scien-cia, e que uma immensa publicidade faz circular as ideias no mundo com a velocidade da corrente elé­ctrica».

E' fundamentado n'esta ordem d'ideias, que eu penso que todos os medicos, por mais instruídos que se julguem, devem dedicar alguns momentos á lei­tura das revistas scientificas, que como acima deixo dito, são por si só suficientes para os pôr ao cor­rente das alterações, hoje tão frequentes nas scien-cias medicas.

Deveres dos medicos para com os collegas

No tempo em que a profissão medica formava uma corporação cerrada, na qual se não entrava senão depois de dificultosas provas; na época em que se conservava ainda como um dogma, como a base de toda a organisação, professar pelos mais ve­lhos um culto absoluto, era surperfiuo recommen-dar aos noviciados o respeito pelos profissionaes já existentes, respeito devido já á sua edade, já á an­tiguidade dos serviços, já aos seus méritos, por todos reconhecidos.

Com o andar dos tempos, as ideias alguma coisa mudaram, se não no fundo, pelo menos na sua su­perficialidade. As gerações actuaes não testemunham pelos antigos, aquella espécie de formalismo que

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outr'ora era moda nas relações sociaes; mas todos aquelles que téem a dita de ser mestres, sabem bem o respeito e affectuoso reconhecimento que os dis­cípulos lhes votam.

Entretanto, parece evidente que o joven medico, conservando-se um cidadão cortez e delicado, não se deve julgar obrigado a grandes deveres para com o medico mais antigo, visto elles pertencerem á mes­ma classe, e serem filhos das mesmas escolas. Os costumes téem sensivelmente mudado; é assim, pois, que os devemos acceitar.

Não deve ser porém da mesma forma, quando uma circumstancia medica põe em presença dois profissionaes, até então estranhos um ao outro. A' priori, o mais novo deve testemunhar, com os mo­dos que lhe forem suggeridos pelas circumstancias, e compatíveis com a sua educação, uma cortezia e sincera deferência para com o mais velho, se este com uma franca cordialidade, aliás tão louvável, não julga dever ir ao encontro do seu joven collega, e estender-lhe a mão, não só material, como mo­ralmente.

Os medicos que exercem clinica n'uma mesma povoação, teem todo o interesse em entreter mutua­mente as mais sinceras e cordeaes relações, porque téem affinidades communs, interesses idênticos, ain­da que algumas vezes estejam uns com os outros em opposição apparente. Aqui, entramos no terreno mais ingrato possível, o da rivalidade profissional. Nas condições actuaes da vida, tal como a fizeram

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os hábitos do fim do século dezenove; com esta perseguição encarniçada para obter o successo e sobretudo o successo rápido; com o numero sempre crescente dos profissionaes de medicina; era real­mente extraordinário que o medico escapasse ao contagio do exemplo, e que só os medicos ignoras­sem este estado d'espirito que tem sido tão bem caracterisado de t struggle for life».

O joven medico que vae habitar um meio, para ahi fazer clinica, não pôde deixar de ter perante os collegas que ahi existem, um comportamento exem­plar, ser o mais sincero e leal possível, e até prati­car actos de deferência que o colloquem em boa posição perante elles, e lhe façam adquirir sympa-thias.

Em todos os casos, o recem-vindo nunca deverá patrocinar qualquer questão preexistente, nem aco-bertar-se debaixo de qualquer bandeira. Varias cir-cumstancias se apresentarão mais tarde que o soli­citarão a tomar este ou aquelle partido, mas elle fará sempre os máximos esforços possiveis para fugir a essa tentação, que só lhe pôde acarretar des­gostos futuros. Encetada esta linha de conducta, ça-racterisada pela decência, cortezia e sincera leal­dade, o medico fará por nunca se afastar d'ella; se bem que esta tarefa seja um pouco árdua e difficil, pois que os meios, e principalmente os mais res-trictos, são actualmente sede de dissenções e d'hos-tilidades deploráveis, o homem pertinaz e um pouco intelligente, chegará, mostrando um constante agra-

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do, a conquistar o respeito e a sympathia dos que com elle lidam mais de perto.

As relações que os medicos devem entreter mu­tuamente, comportam relações constantes a propó­sito dos doentes, que elles muitas vezes se arguem de tirar reciprocamente.

Esta questão tem sido varias vezes abordada, e apezar de muito discutida, não é fácil dar-lhe solu­ção, pois que não são só os interesses dos medicos que estão em jogo, mas também os dos doentes. Estes devem também levantar a voz na questão. A conducta do medico desejoso de conservar a sua reputação, é, entretanto, bem nitida e clara. Em caso nenhum, quaesquer que sejam as circumstan-cias, elle deverá chamar a si a confiança de familias, que notoriamente pertencem á clientella d'um colle-ga ; nem directa, nem tão pouco indirectamente, elle deverá deprecial-o na sua reputação. Se assim pro­cedesse, não commetteria somente um acto indigno d'um homem honesto, mas, e muito principalmente, atacaria a Arte medica, pelo que tenderia a dimi­nuir a consideração que o publico deve ter, não só por ella, mas por aquelle que a exerce.

Se o medico chamado para ver um doente sabe que elle está sendo tratado por outro collega, nunca deve tomar conta d'elle sem prévio assentimento d'esté.

Se porém o medico ignora se elle recorreu ou não a outro collega, deve, primeiro que tudo, inter-rogal-o sobre o seu soffrimento, principio este que o

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medico nunca deve deixar d'observar, sob pena de ser considerado como deshumanitario, quando elle deve ser precisamente o contrario. No interrogató­rio sobre os commemorativos, encontrará meio de se esclarecer sobre a questão do medico anterior. Se este existe, o medico, depois de ter cumprido por completo com os seus deveres junto do doente, declarar-lhe-ha, ou aos que o cercam, que não pôde continuar a dispensar os seus cuidados ao doente sem prévio assentimento do medico assistente, a quem de resto, vae prevenir. E prevenil-o-ha im-mediatamente, pedindo-lhe que decida. Parece-me que este procedimento é perfeitamente leal, e que o medico assistente nada terá que lançar em rosto ao outro.

E' certo que em casos especiaes poderão surgir dificuldades em proceder segundo estes preceitos, tanto mais que muitas familias julgar-se-hão no seu pleno direito de depositarem a sua confiança n'aquelle que melhor lhe pareça. No entanto, o medico nada se deve preoccupar com isso e cum­prirá sempre com os seus deveres de bom collega, que me parece não podem ser criticados.

O que é necessário incutir no animo de todos os medicos, é a necessidade absoluta e urgente de estabelecer entre todos os membros da profissão^ outr'ora tão geralmente apreciada e respeitada, um género de vida que tirasse dos hábitos antigos o que elles tinham de bom, apezar das suas formas um pouco archaicas ; um género de vida que esti-

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Vesse em harmonia com o grau de cultura intelle­ctual do medico, que mostrasse á grande massa do publico que o medico do século vinte merece a es­tima geral e tem direito ao respeito de todos.

Sem duvida, como todo o membro dos grupos sociaes, elle tem o direito de viver do seu trabalho; o capital material que elle lançou na massa social e o capital intellectual que adiantou, não devem ficar improductivos, mas o medico deve também con-vencer-se que as luctas e agruras das discussões que podem surgir entre elle e os seus collegas, não apro­veitam a ninguém; e que além d'isso diminuem todos os interesses, fazendo-os decahir na opinião publica, ciosa d'explorar os escândalos profissionaes. Pelo contrario a boa harmonia, a verdadeira con-fraternidade, predominando mais nos factos do que na phraseologia, da qual ha tendência para abusar^ obrigariam implicitamente á estima dos indivíduos honestos e restabeleceriam uma situação, que, seja-nos permittido dizer, está actualmente bastante com-promettida.

Para terminar este capitulo, resta-nos dizer al­guma coisa relativamente aos deveres recíprocos dos medicos nas conferencias.

Estabelecida a necessidade d'uma conferencia, quer ella seja provocada pelo medico assistente, quer o seja pela família do doente, assiste a esta o direito d'escolher os conferentes; no entanto, se ella assim o entender, pôde deixar ao arbítrio do medico a escolha.

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No caso de ser a família que os propõe, o assis­tente acceital-os-ha incondicionalmente, a não ser que tenha razões, que então exporá, para os julgar indignos d'exercer a profissão a que se votaram.

A hora da conferencia será proposta pelo mais velho e possivelmente respeitada pelos outros, a não ser que caso de força maior impeça algum de com­parecer, o que declarará com antecedência para en­tre todos se combinar nova hora.

Chegados os conferentes a casa do doente, diri-gem-se juntamente com o assistente para um quarto que lhes está reservado, onde elle faz uma exposição succinta da historia da doença, do seu inicio, dos incidentes mais notáveis, e finalmente das tentativas therapeuticas. Os conferentes poderão n'esta occa-sião interpellal-o sobre algumas questões que pos­sam abreviar o exame, ou que lhes permittam fa­zer uma ideia mais clara do caso. Em seguida os medicos dirigem-se para junto do paciente que, al­gumas vezes, duvidando da memoria do assistente, recomeça a historia da doença de mistura com as suas interpretações, muitas vezes mesmo, fazendo uma critica, mais ou menos dissimulada, do trata­mento seguido. Os conferentes, n'este caso, deve­rão declarar ao doente que estão sufficientemente orientados sobre o seu estado, pela exposição que d'elle fez o seu collega ; que não necessitam de mais informações. Se o doente faz perguntas, que parece terem por fim contraprovar affirmações do medico assistente, os conferentes fingirão não comprehen-

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der, e não hesitarão, se elle persiste, em combater vigorosamente as suas theorias. Feito isto, proce-de-se ao exame. Os conferentes devem ter o má­ximo cuidado em não commentar as suas investi­gações na frente do doente, como que para fazer ao assistente qualquer constatação, pois n'este caso, doente e assistentes, em virtude da sua ignorância em materia de medicina, apressar-se-hiam a imagi­nar que qualquer symptoma' sobreviera que tinha escapado á vigilância do assistente ; ainda mais, os conferentes devem, quando estão a fazer o exame, conservar, por assim dizer, muda a physionomia, pois qualquer franzidura de sobrancelhas ou mo­vimento de lábios, seria interpretado a seu modo pelo doente. Se elles descobrem, durante o exame, qualquer signal importante que lhes não foi men­cionado pelo assistente, devem fazer-lh'o notar, con-vidando-o d'uma maneira indifférente, e de forma que o doente não perceba, a apalpar, auscultar, ou percutir, para assim tomar conhecimento d'elle. Terminado o exame, os medicos retiram-se de novo para o quarto que lhes foi destinado, e pedem para ficar sós. N'este momento é preciso redobrar d'at-tenção, fallando o mais baixo possivel, pois que, por espirito de curiosidade e d'intéressé, ouvidos indiscretos se occultam muitas vezes por traz das portas ou dos reposteiros. De resto, os medicos não se devem occupar de conversas relativas aos seus negócios, mas irem directa e francamente ao fim que provocou a sua reunião.

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Principia, portanto, pelo medico mais novo, a exposição das opiniões, que devem ser o mais re­sumidas possível, se os conferentes são muitos.

Se depois de mais ou menos discussão chegam a um accôrdo, e é necessário receitar, é ao medico mais novo que compete escrever, assignando pri­meiro o assistente, e depois os outros, pela sua or­dem d'edades. Se ha divergência entre a opinião do assistente e a d'algum dos conferentes, aquelle deve esforçar-se por expor as suas razões, e se elle julga que ha um erro d'insufficiencia d'exame, pedi.r ao conferente para examinar de novo o doente. Mas estes casos são excepcionaes, e é muito raro que os conferentes, depois d'alguma discussão, não che­guem a um accôrdo geral.

N'estes casos, os medicos entram de novo no quarto do doente, ou se elle está bastante fatigado, na sala onde se encontra a família. E' ao conferente mais velho que compete pôr a familia ao corrente das deliberações tomadas, esforçando-se o mais pos-sivel por conciliar o interesse do paciente com os escrúpulos da confraternidade, e nunca deixando transparecer, nem por vislumbre, uma critica ao diagnostico anteriormente feito e ao tratamento se­guido. Se ha necessidade de modificar o tratamen­to, elle justifical-a-ha, dizendo que a doença entrou n'uma nova phase, e que portanto exige uma the-rapeutica diversa.

Resta-nos finalmente tratar da questão dos ho­norários nas conferencias. Segundo o uso, o medico

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assistente é que faz o preço aos honorários dos conferentes ; é certo que muitas vezes não é elle que os tem chamado, e portanto não tem contra­indo para com elles nenhuma obrigação, mas é tam­bém evidente que o assistente é, por assim dizer, o intermediário entre os conferentes e o doente, e deve por consequência salvaguardar tanto quanto possível os interesses d'elle. N'esta operação elle deve ser o mais equitativo possivel, esforçando-se por não prejudicar nem a um nem a outros.

O beneficio resultante das conferencias é incon­testável ; ellas correspondem aos mais honrosos sen­timentos, quer do lado das familias dos doentes, quer do lado do medico.

Ellas poem-n'o a coberto, ou pelo menos asse­guram a sua posição, em face da doença, e em frente do doente.

Deveres dos medicos para com os doentes

Um dos princípios fundamentaes do dever me­dico é acreditar na medicina, acreditar, sem duvi­da, d'uma maneira intelligente, mas com toda a sinceridade. Na nossa época ha muitos medicos, e não dos menos brilhantes, que pouco a pouco, de­pois de um período de fé relativa nos recursos da arte medica, sob a influencia de insuccessos, aliás muito numerosos, que teem encontrado no decurso

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da sua profissão, e ainda de decepções de therapeu-tica, terminam por duvidar da medicina. Talvez elles tenham esperado demasiado dos recursos da sua sciencia ; talvez elles tenham também soffrido a influencia suggestionante do scepticismo que invade as sociedades em decadência ; e isto leva-os, algu­mas vezes, a chegarem a fazer profissão publica de não mais acreditar na medicina.

Estes insuccessos da medicina não são senão uma resultante apparente, uma reacção fatal contra o enthusiasmo que se manifesta na arte medica, como de resto em todas as outras, quando apparece uma theoria nova, uma appiicação qualquer da qual se généralisa o emprego com a mais extraor­dinária rapidez. Mas estes enthusiasmos, estes exa­geros são uma necessidade do progresso ; estes des­alentos parciaes, estes desfallecimentos passageiros, são pois inevitáveis. Se o çeu se obscurece, mesmo n'uni dia de verão, se entre elle e o solo se inter­põem nuvens pardacentas, estas transformar-se-hão cedo n'uma chuva abundante, e as bellas cores da abobada celeste trarão a consolação e a esperança ao coração do trabalhador, que repentinamente surprehendido, se tinha já deixado arrebatar pelo desespero. Assim deve ser o medico; não olhar só ao presente, mas sim confortar-se com a ideia de um futuro mais ou menos brilhante, e que bem compensará esses desgostos que, com o tempo, aca­barão por desapparecer da sua memoria.

O medico que realmente não crê nos serviços

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que deve prestar a sciencia medica nas mãos d'um verdadeiro artista, aquelle que ]ulga sem effeito util a sua presença junto do leito d'um doente, com­mette uma má acção se não abandona o exercicio profissional.

Elle seria como o padre que tivesse perdido as crenças na religião, e que no entanto continuasse a pregar as suas doutrinas, tornando-se a sua pre­sença no altar, por consequência, um escândalo e uma immoralidade.

Se elle quizer conservar a sua honestidade deve afastar-se, sem fazer o menor escândalo, afim de não contristar os que ainda teem fé.

O medico radicalmente sceptico, e que mani­festa o seu estado d'alma, é um perigo para o doente; elle não tem o direito de comparecer á sua cabeceira, porque quando o doente se lhe confia, é á sciencia medica que elle pede auxilio.

E ' ella que o medico representa junto d'aquelle que desespera da cura, no momento em que in­voca alguma intervenção desconhecida, mas pode­rosa. Negar n'este momento os recursos da arte e da sciencia medicas, seria uma má acção, uma crueldade. E de que charlatanismo indigno não se­ria culpável aquelle que consentisse em desempe­nhar sabiamente um papel, e em simular uma fé que nunca tinha possuído!

E' preciso pois acreditar, quando se quer pra­ticar, mas acreditar intelligentemente, acreditar no verdadeiro, admittir mesmo as hypotheses, quando

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ellas são verosímeis, e d'accordo com ideias em via devolução.

E1 preciso ter-se sempre presente que a ver­dade d'amanhâ é feita dos erros d'hoje, e que a «sciencia official» fazia queimar ha pouco mais de um século, aquelles que affirmavam factos, hoje passados ao dominio das coisas indiscutíveis.

«O scepticismo scientifico não é mais que a ex­pressão d'um immenso orgulho, recusando-se cada um a admittir o que ainda não comprehendeu, e d'uma ignorância latente que não tem sabido dar a intuição do futuro. O sábio não ousa negar nada, ousa confessar que ainda não sabe!» (Mora-che).

Um outro scepticismo que o medico deve com­bater é o do doente e dos que o cercam. Dir-se-ha que não é sceptico o individuo que chama o me­dico. Sem duvida que o não é no momento pre­sente, porque tem receio de soffrer, receio de mor­rer talvez; mas ha muito tempo que elle fez pro-, fissão de não crer na medicina, e portanto julga dever, perante elle próprio, e até perante os ou­tros, ostentar altamente o seu espirito philosophico. No fundo elle não se recusará a acreditar, pelo me­nos no momento presente, na medicina, na thera-peutica, no medico, em tudo o que se queira, com-tanto que isso o allivie, debaixo da condição de que o curem. Mais tarde, elle retomará a sua in­credulidade ruidosa, e professará de novo as ideias mais avançadas, mais «libelles», ao passo que to-

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maria qualquer agua milagrosa se se lhe tivesse, quando doente, não receitado, mas aconselhado muito vagamente. Assim são os homens: profun­damente indulgentes para as suas fraquezas; e os próprios medicos não fogem á regra, relativamente a outros pontos, e até aos mesmos: assim, o me­dico que se sente doente recorrerá por vezes, em desespero de causa, ao charlatão vil, que provo­cava o seu desprezo alguns dias antes.

Aos scepticos da medicina pôde o medico ser particularmente util, incutindo-lhes ideias mais sen­satas, que elles, muitas vezes, não terão remédio senão acceitar. Sem duvida que elle não fallará a todos da mesma maneira; ser-lhe-ha indispensável adaptar-se ao caracter e á cultura do doente, e proceder com uma intelligente diplomacia, mas elle conseguirá o seu fim porque o terreno está prepa­rado. Ainda mesmo que um refractário acabasse por não se render, em apparencia pelo menos, se­não ás solicitações da familia, e ao sincero racio­cínio do medico, elle condescenderia,{«para lhe mostrar a sua estima», em fazer tudo que elle lhe aconselhasse.

Um perigo opposto se encontra por vezes no doente: uma esperança exagerada nos recursos da medicina e do homem d'arte que chamou para a sua cabeceira; parece que a sua simples presença o alliviou, e que d'alli por diante a cura pouco se fará demorar.

Estas disposições são boas; a receptividade do 5

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doente para a acção pessoal do medico, só tem vantagens.

Mas aqui ha, entretanto, excesso; e como a doença resistirá provavelmente um certo tempo, e como pôde até ser incurável, a decepção futura será tanto mais cruel quanto mais viva tinha sido a esperança.

Ainda n'este caso, o medico deve intervir, acal­mando este grande enthusiasmo do doente, acon­selhando alguma moderação na expressão de sen­timentos, sem duvida justos em si, mas que são lisongeiros de mais para o modesto medico que o trata; demonstrará que este estado d'espirito é, sem duvida o mais feliz possível, eminentemente favorável á cura, mas que o trabalho biológico que a ella deve conduzir não pôde evolucionar senão com o auxilio do tempo; as regressões anatómicas estando longe de ser tão rápidas como as evolu­ções. Fallando assim, o medico prestará sempre ao doente um immenso serviço; tel-o-ha suggestio-nado um pouco, ter-lhe-ha dado alguma coisa de si mesmo, confortal-o-ha, e talvez o conduza á verdadeira estrada que o ha-de levar á cura.

Os medicos não chegam muitas vezes a com-prehender a impressão que a sua primeira visita, a sua attitude, a sua personalidade causam no doen­te. Injustamente ou com razão, o medico é muitas vezes olhado desdenhosamente á primeira visita, e difficil é depois modificar este juizo, tantas vezes mal fundado, concebido á primeira vista.

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Certamente que não é fácil decidir, à priori e sem conhecer o meio em que se encontra, a attitu­de que melhor convém tomar ao medico. Sem du­vida que é necessário que uma certa adaptação se produza, e o homem por mais recto e intelligente que fosse nunca se conduziria da mesma maneira. A principio, no entanto, elle deve estar senhor de si, conservar a sua physionomia normal; é esta ca­racterística que elle tem de adaptar não a este ou áquelle doente em particular, mas a todos os doen­tes em geral. «O medico é feito por elles, e não el­les pelo medico». (Morache). Se elle tem outros sen­timentos, deve modifical-os, ou então não estará á altura do papel que desempenha.

A impressão causada pelo medico, tanto na sua primeira visita como nas seguintes, deve ser agra­dável. Não quer isto dizer que o medico se deva revestir d'uma espécie de affectação ou de malícia, que depressa seriam notadas pelo doente, mas sim que se apresente como um individuo dotado d'uma seriedade que não toque as raias do mau humor, e d'uma dignidade que não possa ser confundida com pedantismo. O socego, a brandura, a abnega­ção e a attenção devem ser attributes naturaes do medico; a benevolência e a sympathia para com aquelles que soffrem, tanto no moral como no phy-sico, não se simulam, inspiram-se.

Desde o primeiro contacto entre o medico e o doente, aquelle deve ter sabido impor por si um certo respeito, e a maxima consideração pelo seu

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saber, para que lhe seja desde logo dada uma certa auctoridade, que augmentará com o tempo e com os serviços prestados. Se o medico é d'aquelles que de ha muito são bafejados pela fama, a auctoridade não lhe será contestada, nem por um momento, e elle terá o doente e os que o cercam por completo á sua discrição.

O medico deve evitar o mais possível manter-se n'uma dignidade tal, que possa tornar-se mani­festação d'orgulho. Na vida, o homem dos meios mais elevados deve reconhecer-se pela sua simpli­cidade absoluta; só por si, a sua pessoa inspira muito respeito, por vezes até veneração, para que seja necessário impôl-o, adoptando uma attitude mais ou menos affectada. Mais que qualquer outro, o medico deve obedecer a este preceito, porque antes de qualquer outra ambição, elle deve ter a de adquirir sympathias.

Com esta mistura de sentimentos diversos que o medico deverá desenvolver no meio para que fôr chamado, e que serão tanto mais poderosos, quan­to elle tiver feito a sua primeira obra com mais naturalidade e quasi inconsciência, elle conquistará uma posição segura, digna d'elle e digna da scien-cia de que elle é, n'esta occasião, um humilde re­presentante ; elle poderá prestar ao doente os má­ximos serviços; a obra da cura está já iniciada.

O doente tende, muitas vezes, a contar da ma­neira mais prolixa a historia da sua doença; elle julga-a do mais alto interesse; julga mesmo que o

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medico está satisfeito a escutal-a, e que lhe encon­tra o mesmo encanto que elle próprio. Este longo e muitas vezes bem banal romance, é necessário escutal-o; talvez que em algum detalhe, em algu­mas reticencias, o medico encontre o pharol que o guie para a verdade, que o oriente não só no dia­gnostico do facto mórbido actual, mas no estudo, mais importante ainda, do doente e da sua historia pathologica, que permittirão emfim a apreciação do meio individual que constitue a sua personali­dade.

Evidentemente que a maior parte da narração não terá, em apparencia, uma significação decisi­va, mas o medico poderá já esboçar uma aprecia­ção, architectar um diagnostico, ainda que provi­sório.

O interrogatório feito em seguida, e o exame somático, serão auxiliares poderosos para a sua verificação. De resto, o doente e os parentes ficarão satisfeitos por terem dito tudo o que queriam, e não desgostosos, como acontece com medicos que desprovidos de paciência, ou por falta de tempo, cortam o discurso ao doente, não chegando elle por esse motivo a dizer tudo que imaginava, com ou sem fundamento, relacionar-se com a sua doença.

O doente ou os que o cercam teem por vezes ideias pessoaes sobre coisas de medicina, que que­rem patentear ao medico. Este deve sabel-as ou­vir, sem mostrar muito abertamente a pouca im-

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portancia que lhes liga: essas coisas podem mesmo ter um certo interesse.

Por traz de todas as crenças populares, por traz de todas as lendas e tradições, ha sempre um fundo de verdade, que se encontra depois de cuidadosas investigações, e que é preciso recolher, ainda que não seja senão como um testemunho das evoluções do espirito humano.

Talvez mesmo que nas superstições do doente se encontre uma alavanca poderosa, com a qual se possa actuar em seu absoluto interesse.

De resto, para que ha-de o medico privar-se d'essas noções? Porque não ha-de servir-se d'esse auxiliar?

Desde o momento que o medico não pratique qualquer acto contrario á sua dignidade, pôde e deve acceitar todos os meios que actuem sobre o moral do doente.

Saber ser paciente, indulgente, e mesmo até misericordioso, tal é a regra que preside ás relações entre doentes e medicos, que estes nunca devem perder de vista e que domina a sua attitude em todos os instantes. Dir-se-ha que sendo estas qua­lidades pouco communs, exigil-as d'elle, é exigir mais do que qualquer creatura humana pôde dar, e querer fazer d'elle um ser excepcional, pois que elle, como homem, deve ser dotado dos mesmos defeitos que a humanidade inteira.

No entanto, se essas qualidades só podem adquirir-se á custa de muito trabalho, ellas não são

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entretanto tão raras como se imagina, pois homens observadores teem conhecido medicos reproduzin­do este ideal (se assim lhe querem chamar), mas reproduzindo-o em absoluto, e alguns até amplifi-cando-o. E estes indivíduos existiram em todas as fileiras da hierarchia profissional. Não foram só celebridades, mas pequenos clínicos das cidades, e muitas vezes modestos medicos da aldeia. Portan­to, se esses indivíduos existiram e ainda existem, porque se não hão-de imitar?

Tolerante em tudo, o medico deve, sel-o mais ainda junto do doente; elle deve respeitar o mais possível, quer as suas crenças religiosas, quer a ausência absoluta de crenças. Este respeito, que devia ser absoluto, pela liberdade moral, é infeliz­mente muitas vezes atacado; ha na natureza hu­mana seres intolerantes e que não gostam de ver nos outros aquillo que não queriam para si. Cada um está convencido que aquillo que elle crê é a verdade, a verdade absoluta ; d'ahi, o querer que os outros compartilhem á viva força das suas cren­ças ; como aliás, em certos methodos d'educaçao essencialmente viciosos, impõe-se, em logar de con­vencer. Junto do doente, o medico não tem que se occupar de doutrinas ou theorias; o cliente não o chamou como philosopho ou moralista, mas sim como medico, para estudar o seu mal, para lhe in­dicar qual a via de tratamento e de cura.

O physico e o moral teem sem duvida em to­dos os seres organisados, e mais no homem que

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em quaesquer outros, as mais estreitas relações; o medico não deve ignoral-o; e estas relações são um dos elementos sobre os quaes elle se deverá apoiar no momento preciso, mas de maneira nenhuma elle deve criticar as doutrinas que professa o doente, ou procurar abalar a sua fé, se elle a tem. Isto se­ria um abuso de confiança, porque elle possue, por vezes, um tal ascendente sobre o doente, que o partido tornar-se-hia muito desigual. Além d'isso, e pondo mesmo de parte o erro moral commettido, o medico ficaria, a maior parte das vezes, mal si­tuado, pois se casualmente alguma vez eram escuta­das e attendidas as suas doutrinas, na maior parte dos casos elle veria estabelecer-se da parte do doente um certo descontentamento, uma suspeita, por ve­zes, não mal fundada ; a communhão d'espirito que deve existir entre doente e medico não mais se estabeleceria, e se alguma existisse já, destruir-se-hia rapidamente.

O medico deve conservar a sua dignidade; não deve desempenhar um papel de theatro, fazendo crer em sentimentos que nunca possuiu. Mas sem se deixar ir até ao compromisso, ficando sempre senhor de si, elle deve respeitar o mais possivel as opiniões dos outros, querendo ser livre e respeitado nas suas. Se elle é mesmo um espirito superior, procurará utilisar as opiniões do doente, para au-gmentar não só a sua coragem, mas também a sua força de resistência.

Elle terá sempre presente que as forças psychi-

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cas podem fazer milagres, e não decrescerá perante o seu espirito, olhando como adjuvantes therapeu-ticos, as praticas que como philosopho alcunharia de superstições. Elle não se deverá recusar a acre­ditar nas curas obtidas por certos milagres ; são fa­ctos cuja interpretação nem sequer deve ser discu­tida, mas que são scientificamente admittidos; se o doente tem tendências para appellar para estes pro­cessos, o medico não tem o direito de o desviar d'elles. Perante a familia, o medico deve proceder exactamente da mesma maneira; ha apenas um caso em que o medico se deve oppôr com todas as suas forças a esta ou áquella pratica; é quando pa­rece evidente que a saúde do doente soffreria, ou ainda com mais razão, quando essa pratica lhe pu­desse pôr em perigo a propria vida. O medico é primeiro que tudo o defensor da vida humana; este principio, que o deve guiar durante toda a sua vida, encontraria aqui applicação.

Se, apezar das suas observações serenas, sérias e convictas, feitas não sobre o principio da pratica que se tenta seguir, mas sobre a sua applicação no momento presente, a familia ou o doente persistem, o medico tem dois caminhos a seguir : ou fica, illi-bando a sua responsabilidade das consequências do acto em questão, ou annuindo a elle, e n'este caso a sua influencia não será no fundo diminuida mas até muitas vezes respeitada; e procederá assim nos casos em que o acto commettido em nada vae contra a sua dignidade ou contra a do doente; ou

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se o for, se estas ultimas hypotheses se tornarem afirmativas, o medico nunca deverá levar a sua condescendência até annuir a um acto que julga indi­gno d'elle; sem a minima hesitação retirar-se-ha im-mediatamente.

D'esta forma cada um ficará sempre senhor da sua situação, e isto é essencial em todos os casos pessoaes, pois que uns nenhuma semelhança teem com os outros, e a consciência de cada um será sempre o único juiz.

E' muito difíicil estabelecer o tempo que deve durar uma visita. Tudo depende das circumstan-cias; é evidente que todos censurarão os medicos que julgam não dever consagrar-lhe um tempo suf­iciente, e apenas o exame terminado, se apressam em fazer as suas prescripções, retirando-se etn se­guida sem que o doente ou a família tenham tempo para lhe dizer o que julgavam necessário que elle soubesse. E entretanto a profissão medica tem as suas exigências; com effeito outros doentes esperam também anciosos a chegada do medico, e este pre­cisa de visitar um certo numero d'elles n'um prazo de tempo determinado. N'esta materia ha pois in­teresses múltiplos a conciliar, e o medico, compene­trado dos seus deveres, collocando na balança da sua consciência todos estes elementos, encontrará mais ou menos facilmente o meio de tudo pôr na melhor harmonia. Ainda assim, a qualidade e po­sição social do doente e da sua familia são factores que não devem ser desprezados; com effeito a vi-

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sita feita a um homem de vasta cultura intellectual não poderia de maneira nenhuma ser semelhante á que é feita a um simples operário ; um ponto po­rém deve ser commum, o da dedicação e interesse manifestado pelo doente.

Assente pelo medico um diagnostico, d'elle dará conhecimento, segundo os casos, ao doente e á fa­mília, só a um d'elles, ou mesmo até a nenhum, pois que ha circumstancias especiaes em que o me­dico deve guardar o mais absoluto segredo.

Alguns medicos são, em virtude d'uma disposi­ção d'espirito especial, inclinados um pouco para o pessimismo ; tendem sempre a mostrar a situação sob um aspecto mais sombrio, pretendendo mesmo alguns que isto é uma manobra de prudência. Sob este pon­to de vista seria admissível tal procedimento, mas por outro lado elle tira a coragem ao doente, e é no interesse d'elle que nós mais devemos trabalhar.

Vale mais, sem ultrapassar uma legitima pru­dência, ser optimista, e incutir-lhe antes um senti­mento de coragem, que deixar-lhe uma impressão de desespero.

A fixação da medicação que se aconselha deverá ser levada ao conhecimento dos interessados, famí­lia e doente, pois que muitas vezes, mesmo em meios regularmente cultos, se dão enganos que po­dem ter consequências lamentáveis.

O medico não deve pois recear repetir mais uma vez as suas prescripções, para assim serem bem fixadas por todos os que o cercam.

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Quanto á composição da receita, é preciso olhal-a como um elemento de primeira importân­cia, e portanto não a redigir senão depois d'uma reflexão sufficiente, não tolerando nunca que os as­sistentes lhe façam, n'esse momento, qualquer inter-pellação.

Elle deve escrever, muito legivelmente e por extenso, as doses das substancias que entram na sua composição, e muito principalmente as das toxicas. N'isto elle deve ter o máximo cuidado, pois que já algumas vezes teem sido produzidos accidentes gra­ves por causa d'um erro de posição de virgula n'uma ennunciação decimal, ou por leitura errónea d'uma receita perfeitamente legível. O modo d'es-crever, a principio deplorável, de certos medicos é uma d'estas manifestações de vaidade que tendem a desapparecer, e que não constitue mais que uma imprudência de mau gosto.

Uma questão das mais delicadas na pratica or­dinária é a do numero de visitas a fazer ao doente. De facto, é preciso evidentemente que estas visitas sejam muito approximadas, para que o medico possa seguir as variações symptomaticas da doença, e também para que o doente não se julgue aban­donado; em todo o caso não se devem multiplicar d'uma maneira exagerada, além das necessidades reaes, além também dos recursos do cliente.

E' certo que é preciso ao clinico muita pratica para se saber manter n'uma proporção justa, den­tro dos limites precisos; no momento do perigo,

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muitas famílias pedirão ao medico para fazer visi­tas frequentes, parecendo-lhes que ellas nunca o são suficientemente ; mais tarde, no momento de lhe pagarem, ellas podem estranhar, e chegar mesmo a manifestar uma certa surpreza.

Quando ao medico é pedido para ir vêr muitas vezes um doente, e quando estas visitas repetidas lhe são verdadeiramente úteis, quer material quer moralmente, elle pôde legitimamente prestar-se á realisação d'esté desejo, sob a expressa condição de não comprometter a sua dignidade. Quando po­rém ha grande exagero, sem necessidade, ao medico compete fazer notar que é inutil tal frequência, e que mesmo outros doentes necessitam da sua pre­sença.

Tudo isto é uma questão de tacto, de critério, e de dignidade profissional.

Por outro lado, nos individuos de condição mé­dia ou inferior, que não desejam um numero de visitas superior aos seus recursos, o medico não deverá hesitar, dando-se tal caso, em ir espontanea­mente visital-os, fazendo-lhes comprehender discre­tamente que d'essa vez é como amigo que os visita, e simplesmente para tomar conhecimento d'esté ou d'aquelle pormenor que o interessa.

Tal procedimento será sempre lisongeiramente acolhido, e sobretudo digno do homem que exerce a profissão mais humanitária que o espirito hu­mano pôde conceber.

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PROPOSIÇÕES

Anatomia. — Prefiro, quando seja possível, a nomen­clatura dos músculos pelas suas inserções.

Physiologia. — A temperatura elevada, um bom regi­men alimentar e ainda a educação, são factores importantís­simos a considerar na precocidade dos fluxos menstruaes.

Pathologia geral.— Os processos reparadores rratu-raes são suspensos ou retardados por qualquer processo in­feccioso intercurrente.

Materia medica. — No tratamento da syphilis, quan­do tenha de recorrer a injecções, prefiro, a todos os prepa­rados mercuriaes, o hermophenyl.

Anatomia pathologica. — \ existência de cellulas gi­gantes não é característica de lesões tuberculosas.

Pathologia externa. — Nas fistulas congénitas, ou nas que se revestem d'uma camada de tecido epithelial, não se dá a cicatrisação, sem prévia extirpação do trajecto fistuloso.

Pathologia interna.—Não podemos, pela simples presença de falsas membranas nas amygdalas, diagnosticar uma angina diphterica.

Medicina operator ia. — Julgo um dever do cirurgião fazer a drenagem em toda a intervenção cirúrgica em que não haja a certeza d'uma antisepsia rigorosa.

Hygiene. — O dinheiro em notas é um bello vehiculo de micróbios.

Partos. — O excesso d"amplitude da bacia é algumas vezes uma causa de dystocia.

Medicina,legal. — A integridade do hymen não é uma prova absoluta de virgindade.

Visto F M e imprimir-se £ c p e i c^LarU-Hi., af l loraei S a U a » ,

PRESIDENTE. DIRECTOR.