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Poesia

Igor Fagundes

Tradução1

Dizer das paredes: rígidascomo os corpos que não cessamde serrá-las,mas não cessam deerguê-laspois o tempo é uma moradaquase intacta –ora se desmonta,ora está refeita.

Dizer das paredes: pálidascomo as noites ontem brancas,pouco a pouco desbotadas,quase iguais ao mobiliário,

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Poes ia

1 FAGUNDES, Igor. Sete Mil Tijolos e Uma Parede Inacabada. Rio de Janeiro: Editora da Pala-vra, 2004.

Poeta, jornalista,ator, ensaísta,crítico literário eprofessor deLiteratura eFilosofia. Mestree Doutorandoem Poética pelaUFRJ. Autor decinco livros:quatro depoemas e um deensaio. Detentorde numerososprêmios emconcursosliterários.

aos motivos, aos retratos,pois o tempo é uma tinturaque se gasta:outra em que se invistaserá só máscara.

Dizer das paredes: úmidascomo as páginas pelo rosto –sobre a linha encanaçõesperfuradas,infiltrações nos tijolosdas palavras,pois o tempoé uma espécie de rascunhodo que amanhã foge ao punho.

Dizer das paredes: versoscomo as vigas que dão forçaà estrutura, como cercasque protegem nossa sala,arquitetam nossas portase se soltam, como cal,rumo aos quartos do sensível.Pois o tempo se constróide cimento. E de invisível.

Dizer das paredes: nóscomo os pronomes pessoaisdo caso incerto,conjugados na labutada existência, pois o tempo,

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Igor Fagundes

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Poes ia

mais que sólido, é ausência,e por isso nos tramamosrígidos, pálidos, úmidos, versos:para preencher

nossos últimos restos.

por uma gênese do horizonte2

hoje quero amanhecer com os afogadosimplorar que voltem a caminhar comigopenteá-los como se evocasse filhosabraçá-los como quem pede um chamado

hoje à tarde vou morrer com os afogadosengolir a água que invadiu suas sebesme arder no sal que arranhou suas malhase arranhar as minhas com o que partiu suas pedras

hoje à noite vou salvar-me entre afogadosler em seus olhos alguma paz em risteembora nas pupilas ouça aindauma voz rouca para sempre dilatada

amanhã estaremos todos acordadosem mar profundo poderemos ser crustáceoscavaremos até chegar ao mais escuroninho de pérolas e tudo será claro

2 FAGUNDES, Igor. por uma gênese do horizonte. São Paulo: Scortecci, 2006.

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Igor Fagundes

para amanhã iluminar outro afogadoque na voragem de salvar-nos será salvoe se unirá ao nosso fio interminávelde corpos sob o pôr/nascer do sol

e amanhã saberemos de que é feitaesta linha vista ao longe:de um pouco de água e muito de nadalavando por dentro o peito dos mortos

manual3

primeiro cerre as pálpebras e adentreo escuro onde repousam coisas táteis:o verbo, por exemplo, consistentecom rosto oblíquo e olhar indevassávelperfume afrodisíaco, respire-oe pire na batata, e siga em frentena viagem com destino à maionesequem sabe alcance a ascese, de soslaio

depois tire os sapatos, imaginepisar com pés descalços solo fértiltalvez a rima aqui lhe soe um tiquenervoso, quando quer, em suma, o inverso:

3 FAGUNDES, Igor. zero ponto zero. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010. O poema “manual” é uma espécieda abertura à poética do livro. Nele, a maioria dos 65 textos é numerada de -31 a +31, tendo como eixoo “ponto zero”, o que subverte a paginação convencional dos livros. O primeiro e o último texto eviden-ciam a unidade circular da obra, visto serem identificados com o símbolo do infinito (apondo-se ao pri-meiro o sinal negativo e ao outro, o positivo). Apesar do corpo numérico, a razão de ser da obra é denun-ciar e rejeitar a algebrização do viver. Na seção “positiva” (em que os textos recebem sinal de mais), ospoemas-algarismos de zero a nove têm como tema o próprio número que os indica.

o sumo da harmonia do que existeos sons bem compassados do universodecerto que em palavra ecoa um ritmoconvido-o a cantá-la no reverso

se o livro já começa do infinitosuponha que termine em ponto zerosurpreenda-se, na página, um algarismoé negativo e logo veja: não é certoque o fim seja no zero (o nulo, o meio?o centro de onde surge cada pontoe o positivo encontra-se além dele– no jogo dos contrários fique tonto)

caminhe para um lado e para um outroe chegue, nessa errância, ao uno, ao mesmoesqueça o raciocínio, que dá roloao perguntar de tudo a causa e o efeitoo que vem antes, a galinha ou o ovoo zero ou o infinito – existe um eixo?como se fôssemos nas setas forçascentrípetas, centrífugas, qual jeito?

o jeito é percorrer, correr perigono curso em que o discurso em labirintonão tem começo, término, nem bulaeu mesmo na ilusão de dar-lhe a súmulade um livro e lhe roguei ser cego a verlhe rogo agora uma surdez ao lero poema-guia, e brinque de perder-senas retas – curvas – do desentender-se

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Poes ia

o que permanece4

depois de Reis, de Campos, de Caeirode Soares, de Pessoa (dele mesmo!)que mais de novo e vário vem a termo?ok, não faço feio, até que escrevopomposas frases pra causar efeito:um pouco de floreio no obsoletoe o verso nem tão fede, nem tem cheiro

quem sabe vire tese oportunistade uma acadêmica, decerto amigapara me ler e até fazer a críticatornar-me exemplo em tempo niilistano qual nada se cria e só se imitao estrume fértil de outra antiga lirae pronto: juramentam-me obra-prima!

que nada tem a te dizer e dizeso nada do qual somos fato (ou physis?)e embora dele zombe em fraco chisteeu comemoro-o (está na moda, é chiqueo ceticismo, a sensação de crisese até paródias, tristes, são vertigensde um mundo escrito com labirintite)

vai um vertix? para tonteira é ótimodevolve-nos o chão, tornando-o sólidocomo os ponteiros burros do relógio

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Igor Fagundes

4 Id., ibid.

a acreditar na máquina do cosmostudo perfeito, ao modo de algum lógicoe o caos, se há, não pode ser, nem lócusse queres vê-lo, lance ao léu teus óculos

transitarás no sem-lugar do escurolá onde gostas de fazer barulhosequer ecoa, se inexistem muros(nesse infinito sentirás o sustode resgatares o que segue mudo)todo escritor ouviu silêncio em vultodaí, na História, sempre o mesmo assunto:

a morte, o deus, o ser e o que mais roçaa vida com perguntas sem respostas– depois de Homero, Dante, Guima Rosaredundo uma odisseia na memóriado inferno ao paraíso, não há bordasno íntimo sertão que nos desdobraaté que a eternidade seja: agora

poética5

de um livro quase todo em formas fixasespera-se o equilíbrio, a simetriae como se negasse a própria sinaaponta para o oposto dessa trilha

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Poes ia

5 Ibid.

inscrita nos ditamos de uma lógicaintrínseca ao contar, que enfim convocao número a contar o que o devora:o incerto de uma linha que se dobra

arqueado o fio, a curva chega ao círculomas entre os pontos sempre um interstícioa rezar, mudo, o mundo em cujo inícioao caos se abriu, sem verbo ou logaritmo

embora alguma língua oculta em lutahouvesse em cada célula conjuntae dentro delas, fosse o sopro em curada ruína das potências mais profundas

um livro quase todo uma polêmicado contra, do antagônico que teimaem mãos erguer tijolo que sustentaaquilo que o derruba em cada poema

deixar que na medida habite o sem-medida, o aberto que lhe sobrevéme na constância, o que é mudança tenteo contraponto que fecunde o rente

que em arte importa esse limite-dádivaa contornar a fonte eterna: o nadase dele tudo se afigura em páginaa condensar na folha a força máxima

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Igor Fagundes

grão6

não saberia precisar a horaem que teu rio em meu rio secoue ardeu-me árida a salivana boca – a língua, um cacto

não saberia dizer qual ventodesfez aquela dunaintacta que éramosde qual mar mortode qual praia se orla algumaalivia o deserto

não saberia no peitoquantos camelos te levame carregam para o longeeste sol: roubam-me a sedeagora miragemna areiade gelo

manequim7

se te sacia recobrir com plumasteu poema colorido, então assumasque a tática é torná-lo teu pavãoretiro as penas e o que sobra? um vão

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Poes ia

6 Ibid.7 Ibid.

caso prefiras traje clean, sunguinhamelhor malhares bem a barriguinhaum verso mínimo há de ter gorduramas tu retrucas, dizes “que frescura!”

que a moda fitness parece um víciode achar que quase tudo é desperdíciona folha vítima de alguma dietaprescrita por um médico ou esteta?

em frente com teu ego pegajosoinflado até no culto ao adiposoque exibes quando insistes na resposta:“de um pneuzinho há sempre alguém que gosta!”

na cama8

ela bem longe e ao mesmo tempo sem distânciaela me toca e me retoca em mãos bem mansasela sussurra que sou seu com voz sacanaela me beija, afaga, toma e não me enganaela me quer, não por amor, mas por ganânciaela desnuda-me os lençóis, depois me arranhaela mistura-me ao veneno de uma aranhaela me cospe, bate, berra, me arde e sangraela se culpa em fingimento: nunca é santaela vasculha cada ruga e não se cansaela perfura-me na agulha e me desmanchaela costura com silêncio a pele lânguida

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Igor Fagundes

8 Ibid.

ela tortura, sedutora e não com lâminaela é meu fim, o meio, o início: o maior dramaela é uma fuga? cura? ou fogo que me inflama?ela é pergunta sem repouso que me entranhaela me estranha quando a paz na cama é tantaela sem dente arranca os meus e me abocanhaela sem pés a cada noite se levantaela sem corpo a cada dia me acompanha

quem tem a morte não precisa de outra dama

copacabana9

como se caminhasse rumo ao Lemee viesse o sol pousar ao fim da tardena mochila, rumo à sede de entregá-loa algum poente que não fosse só miragem

ali, onde há saudade em cada grão de areiasobre os pés e a chamam dentro: maresiade um menino cuja sombra traz o atlânticode teu corpo – luz maior do que a avenida

aí, onde o verde dos olhos dita o trânsitoe um vento avança pelos lábios, sem buzinassem faróis, pois não há noite em céus da bocae feito asfalto, é nossa pele a travessia

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Poes ia

9 Ibid.

aqui, onde nas mãos terás copacabanas:um forte ao fundo, a vista curva da varandaa multidão em nós, teus fogos de artifícioo arpoador além do olhar, tramando abismos

como se nos bastássemos de morros, túneisda Tonelero até o Rebouças, da Isabel ao Cantagaloda tua voz ao meu chamado, este destino:mochila aberta, entrego o sol ao teu caminho

a pergunta10

o que esperar da vida: a espera pela célulaem cujo núcleo um mapa estampe a travessiacomo se os pés apenas fossem a genéticae não houvesse o passo atento ao imprevisto

o que esperar da vida: uma época ou históriamedida pela causa e o efeito dos destinoscomo se os dias fossem puro ardor da lógicaenquanto as noites desafiam o esclarecido

o que esperar da vida: uma ética vendidaàs equações do bolso, a compra de terrenosem bocas, beijos, glúteos, gulas por vaginae coca-cola, e cocaína se houver tempo

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Igor Fagundes

10 Ibid.

o que esperar da vida: uma hérnia, uma metástasea histérica traída, a volta cancerígenado cônjuge à morada, à cama que é só lágrima– virótico anticorpo que é de si o antígeno

o que esperar da vida: um tédio com vacinaremédio para o mal e para o bem, assimna cura das fraturas, das dicotomias,se em cada não há uma fartura de algum sim

o que esperar da vida: o sim e seu avessoum erro como acerto, o incerto da procura,o livre-arbítrio do que enruga nos espelhose o precipício dos sorrisos em loucura

o que esperar da vida: a vida já tão ditaque esvai sem se dizer, sem ser sua fé divinaacesa nesta rima em nós tão cínicao que esperar da morte: a sorte decisiva

biblióbito11

rebatizada a biblioteca cemitérionela caminho com cautela pelos féretrosdos livros, todos mortos nas estantes-tumbasà espera de um ser vivo, ou quase, que os exumaresgate-os de seu sono e os salve destas traçasque tornam cada página a carne putrefadaonde resiste ao tempo os ossos de uma escritaentre fantasmas de palavras nunca lidas

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Poes ia

11 Ibid.

redescoberto no percurso algum cortejode um frágil título inda forte sob o peitoa procurar nas prateleiras já lotadasum vão para o repouso ao rés das folhas gastasde outra obra cuja história não termina: moranas horas em que deixo flores sobre a covaem dia de finados, que, afinal, são todos:às vozes em memória, nunca o ouvido mouco

até o silêncio insiste em bagunçar o quietoem desafio estoura o tímpano mais cético– nos cemitérios quem (sem fé?) não se atordoaa cada vez que um cala-frio a paz lhe rouba? –assim frequento os corredores de meus livros:pneumotóraxes com tangos argentinospara embalar o horror de uma barata-Kafkaque na babel de Borges nem Quixote esmaga

talvez sejamos nós, leitores, os cadáveresressuscitados pelos signos literáriospermanecidos virgens quando o achamos rotos:ao prenhe suscetíveis, parem livros outroscomo se houvesse algum zigoto congeladocapaz de derreter-se em fogo imaginárioe nele gerar fetos no lugar de féretros –rebatizado de berçário o cemitério

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