o mercador de livros malditos

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No ano de 1205, um monge foge de um esquadrão de cavaleiros com algo muito precioso, que não está disposto a entregar a seus perseguidores. Treze anos mais tarde, Ignazio de Toledo, um mercador de relíquias, recebe de um nobre veneziano o encargo de procurar um livro raríssimo, que supostamente contém antigos preceitos de cultura talismânica oriental com os quais é possível evocar os anjos e sua divina sabedoria. Assim começa a arriscada viagem de Ignazio, à procura de um manuscrito que alguém desmembrou em quatro partes e escondeu cuidadosamente, protegendo-o com intrincados enigmas.

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O MERCADOR DE LIVROS

MALDITOS

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Marcello Simoni

Um livro misterioso. Um monge assassinado. Um enigma atemporal.

Tradução deGILSON CÉSAR CARDOSO DE SOUSA

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Page 5: O MERCADOR DE LIVROS MALDITOS

Título original: Il Mercante di Libri Maledetti.

Copyright © 2011 Marcello Simoni.

Copyright da edição brasileira © 2012 Editora Pensamento-Cultrix Ltda.

Foto da capa © 2011 Stephen Mulcahey/Arcangel Images

Texto de acordo com as novas regras ortográficas da língua portuguesa.

1a edição 2012.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas.

A Editora Jangada não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços convencionais ou eletrônicos citados neste livro.

Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens, organizações e acontecimentos retratados neste romance são produto da imaginação do autor ou usados de maneira fictícia.

Coordenação editorial: Denise de C. Rocha Delela e Roseli de S. FerrazPreparação: Marta Almeida de SáRevisão: Claudete Agua de MeloDiagramação: Fama Editoração Eletrônica

Jangada é um selo da Editora Pensamento-Cultrix Ltda.

Direitos de tradução para o Brasiladquiridos com exclusividade pela

EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA.Rua Dr. Mário Vicente, 368 — 04270-000 — São Paulo, SP

Fone: (11) 2066-9000 — Fax: (11) 2066-9008E-mail: [email protected]

http://www.editorajangada.com.brFoi feito o depósito legal.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Simoni, MarcelloO mercador de livros malditos : um livro misterioso, um monge assas-

sinado, um enigma atemporal / Marcello Simoni ; tradução de Gilson César Cardoso de Sousa. — São Paulo : Jangada, 2012.

Título original: Il mercante di libri maledetti.ISBN 978-85-64850-05-71. Ficção italiana I. Título.

12-10306 CDD-853

Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura italiana 853

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A Giorgia

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PRÓLOGO

Ano de Nosso Senhor Jesus Cristo 1205. Quarta-feira de Cinzas.

Rajadas de vento gelado fustigavam a abadia de San Michele

della Chiusa, lançando por suas paredes um cheiro de resina e folhas

secas, prenúncio certo de tempestade iminente.

O serviço religioso vespertino ainda não havia terminado quando

o padre Vivïen de Narbonne decidiu sair um pouco. Irritado com a

fumaça do incenso e o bruxuleio das velas, ele cruzou a porta e co-

meçou a passear no pátio coberto de neve. Diante de seus olhos, o

crepúsculo tragava os derradeiros raios de luz diurna.

Uma súbita lufada golpeou-o, provocando-lhe calafrios. O monge

cingiu a batina e franziu a testa, como se houvesse sido agredido. A

sensação de mal-estar que o acompanhava desde cedo parecia não

querer abandoná-lo; ao contrário, dava a impressão de que havia se

aprofundado ao longo do dia.

Decidido a amenizar a inquietude com um pouco de repouso,

encaminhou-se para o claustro, atravessou a galeria e entrou no im-

ponente dormitório. Foi acolhido pelo clarão amarelado das tochas e

por uma sucessão de cubículos sufocantes.

Indiferente à claustrofobia, Vivïen percorreu um labirinto de cor-

redores e escadarias, esfregando as mãos para espantar o frio. Queria

deitar-se e não pensar em nada; porém, quando chegou à porta de

sua cela, encontrou algo inesperado. Um punhal em forma de cruz

estava cravado na madeira. Do cabo de bronze pendia um bilhete

amarrotado. O monge espiou-o rapidamente, invadido por um terrí-

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vel presságio, e, recuperando a coragem, começou a lê-lo. O recado

era breve e assustador:

Vivïen de Narbonne,

culpado de necromancia.

Sentença proferida

pelo Tribunal Secreto da Saint-Vehme.

Ordem dos Franchi-Giudici.

Vivïen caiu de joelhos, aterrado. A Saint-Vehme? Os Videntes? Como

o teriam descoberto naquele refúgio encravado nos Alpes? Depois de

anos de fuga, pensou que estivesse finalmente seguro, que não hou-

vesse deixado pistas. Mas não! Haviam conseguido rastreá-lo!

Não era hora para efusões de desespero. Precisaria fugir mais uma

vez.

Ergueu-se nas pernas trêmulas, inteiramente dominado pelo

medo. Escancarou a porta da cela, recolheu uns poucos objetos ao

acaso e dirigiu-se às pressas para o estábulo, cobrindo-se com um

grosso manto. De súbito, os corredores de pedra pareceram estreitar-

-se, infundindo-lhe o pavor dos espaços fechados.

Ao sair do dormitório, percebeu que o ar agora estava ainda mais

frio. O vento ululava, flagelando as nuvens e os troncos mirrados das

árvores. Os outros irmãos se abrigavam dentro do edifício, envoltos

pela tepidez sagrada da nave principal.

Vivïen se enrolou no manto e entrou no estábulo. Selou um ca-

valo, montou-o e percorreu a trote a aldeia de San Michele. Grandes

flocos de neve lhe caíam sobre os ombros, umedecendo o tecido de lã

grossa do hábito. Mas o que o fazia tremer eram os pensamentos. A

qualquer instante desabaria uma tempestade.

Quando chegou ao caminho que ladeava o muro, veio ao seu en-

contro um monge todo enrolado em sua batina. Era o padre Geraldo

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de Pinerolo, o celeireiro. Ele tirou o capuz, revelando uma comprida

barba negra e um olhar atônito.

— Aonde vai, irmão? Entre, antes que comece a chover.

Vivïen, sem responder, continuou avançando em direção à saída,

rezando para que ainda tivesse tempo de fugir... Mas, no caminho,

esperava-o uma carroça puxada por dois cavalos negros como a noite

e com um único homem sentado na boleia: um mensageiro da morte.

O fugitivo não parou, fingindo indiferença. Com o rosto velado pelo

capuz, procurou não cruzar o olhar com o do cocheiro.

Geraldo, porém, se aproximou do desconhecido e pôs-se a ob-

servá-lo. Era um tipo imponente, de chapéu largo e capa preta. Não

parecia ter nada de especial; no entanto, mirando-o bem no rosto, ele

não conseguiu mais desviar os olhos dele: o rosto daquele homem era

da cor do sangue e em seus lábios se desenhava um sorriso infernal.

— O Diabo! — exclamou o celeireiro, recuando.

Enquanto isso, Vivïen esporeava o cavalo e lançava-se a galope

pela encosta na direção de Val di Susa. Queria escapar dali o mais

rápido possível, mas a neve misturada à lama tornava o caminho im-

praticável e obrigava-o a prosseguir com cautela.

O tenebroso cocheiro reconheceu o fugitivo e, atiçando os cava-

los, disparou em seu encalço.

— Vivïen de Narbonne, pare! — rugiu encolerizado. — Não po-

derá se esconder para sempre da Saint-Vehme!

Vivïen nem sequer se voltou, a mente aturdida por uma profusão

de pensamentos desencontrados. Ouvia às costas o barulho da carro-

ça, cada vez mais perto. Ia alcançá-lo! Como poderia correr tanto por

um caminho tão acidentado? Aquilo não eram cavalos, eram demô-

nios do inferno!

As palavras do perseguidor não deixavam dúvidas: ele devia ser

um emissário dos Franchi-Giudici. Os Videntes queriam o Livro! Fa-

riam de tudo para obtê-lo. Seriam capazes de torturá-lo até fazê-lo

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enlouquecer — para saber, para aprender o modo de alcançar a sabe-

doria dos anjos. Antes a morte!

Com lágrimas nos olhos, o fugitivo segurou firme as rédeas e inci-

tou o animal a correr mais. Mas o cavalo se acercou perigosamente da

beira do barranco. O terreno, resvaladiço por causa da neve e da lama,

cedeu ao peso dos dois. Rolaram ambos pela encosta. Os gritos do

monge, confundidos com os relinchos do cavalo, os acompanharam

durante toda a queda, até se confundir com o rugido da tempestade.

A carroça parou. O tenebroso cocheiro desceu e perscrutou o

abismo.

“Agora, o único que sabe é Ignazio de Toledo”, pensou ele. “Pre-

ciso encontrá-lo.”

Passou a mão direita pelo rosto, tocando uma superfície fria e ás-

pera demais para ser de uma criatura humana. Com um gesto quase

relutante, desatou o laço e retirou a Máscara Vermelha que ocultava

sua verdadeira face.

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Parte I

O MOSTEIRO DOS ENGANOS

Isso é o que os anjos me revelaram; deles, tudo ouvi e tudo

conheci; eu que vejo não por esta geração, mas pelas gerações

que virão, pelas gerações futuras.

Livro de Enoque, I, 2

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Ninguém poderia dizer com certeza quem realmente era Ignazio

de Toledo. Às vezes, julgavam-no sábio e erudito; outras, des-

crente e necromante. Para muitos, não passava de um peregrino, que

percorria as terras em busca de relíquias para vender aos devotos e

poderosos.

Embora evitasse revelar suas origens, seus traços mouriscos, re-

finados por um tom mais claro de pele, denunciavam o cristão mo-

rador da Espanha lado a lado com os árabes. A cabeça totalmente

raspada e a barba escura lhe conferiam o ar doutoral, mas o que nele

de fato chamava a atenção eram os olhos: verdes e penetrantes, ro-

deados por rugas geométricas. Sua túnica cinzenta, coberta por um

manto com capuz, espalhava um cheiro de tecido oriental misturado

aos odores acumulados em muitas viagens. Alto e magro, caminhava

apoiado a um bordão.

Esse era Ignazio de Toledo tal como o viu pela primeira vez o

jovem Uberto, quando, na tarde chuvosa de 10 de maio de 1218, o

portão do mosteiro de Santa Maria del Mare se abriu. Por ele entrou

aquela figura esguia, encapuzada, seguida por um homem loiro que

carregava um grande baú.

O abade Rainerio de Fidenza, que mal acabara de recitar o ofício

das vésperas, logo reconheceu o forasteiro encapuzado e foi ao seu

encontro.

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— Mestre Ignazio, há quanto tempo! — exclamou com benevo-

lência, abrindo caminho em meio a um grupo de monges. — Recebi

a notícia de sua chegada e estava impaciente para revê-lo.

— Venerável Rainerio — cumprimentou Ignazio, curvando-se —,

deixei-o simples monge e reencontro-o abade!

Rainerio era tão alto quanto o mercador de Toledo, porém mais

robusto. De seu rosto projetava-se um nariz acentuadamente aquili-

no. Os cabelos castanhos e curtos caíam em mechas revoltas sobre a

testa. Antes de responder, baixou os olhos e fez o sinal da cruz.

— Foi a vontade de Deus. Maynulfo de Silvacandida, o anti-

go abade, faleceu no ano passado. Uma grande perda para a nossa

comunidade.

Ao ouvir isso, o mercador suspirou com amargura. Não acreditava

muito nas vidas dos santos nem nas propriedades milagrosas das re-

líquias que trazia de países longínquos. Maynulfo, porém, este tinha

sido mesmo um santo. Jamais renunciou à existência de eremita, nem

mesmo depois de ser nomeado abade. Costumava se retirar periodi-

camente para longe do mosteiro com a finalidade de orar sozinho.

Nomeava então um vigário, punha um alforje a tiracolo e ia para

algum lugar ermo entre os caniços que bordejavam a laguna vizinha.

Lá, cantava os salmos e jejuava na solidão.

Ignazio se lembrava bem da noite em que o conhecera. Na oca-

sião, fugindo desesperado, refugiara-se na própria cela de Maynulfo,

que o acolhera e se prontificara a ajudá-lo. Logo o mercador percebeu

que poderia colocá-lo a par de seu segredo.

Quinze anos haviam se passado, e agora a voz de Rainerio ressoa-

va em seus ouvidos, dissipando-lhe as lembranças.

— Morreu na cela, não resistiu aos rigores do inverno. Todos nós

lhe pedimos que adiasse o retiro para a primavera, mas ele respon-

deu que o Senhor o chamava ao recolhimento. Depois de sete dias,

encontrei-o morto em seu catre.

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Do fundo da nave ouviu-se um monge suspirar, pesaroso.

— Mas diga-me, Ignazio — continuou Rainerio, notando que o

mercador ficara muito triste —, quem é o companheiro silencioso

que veio com você?

E o abade se virou para o homem loiro de pé ao lado do mercador.

Era, na verdade, pouco mais que um jovem. Os cabelos longos, le-

vemente desgrenhados, cobriam-lhe a nuca, caindo sobre os ombros

largos. Os olhos azuis pareciam os de um menino, mas os contornos

do rosto eram bem nítidos, realçados pela linha firme das mandíbulas.

O homem deu um passo à frente e se inclinou. Falava com o sota-

que da langue d’oc, temperado por uma cadência exótica e imprecisa.

— Willalme de Béziers — apresentou-se.

O abade teve um leve sobressalto. Sabia que a cidade de Béziers

havia sido o covil de uma seita de hereges. Recuando um pouco, fi-

xou o desconhecido, sibilando entre dentes:

— Albigenses...

A essa palavra, uma expressão dura se desenhou no rosto de Willal-

me. Seus olhos exprimiam raiva, logo substituída por um ar melan-

cólico, como se fosse o resquício de uma dor ainda não amenizada.

— Willalme é um bom cristão e nada tem a ver com a heresia al-

bigense ou cátara — interveio Ignazio. — Viveu longe de sua pátria

por muito tempo. Conheci-o quando voltava da Terra Santa e desde

então nos tornamos companheiros de viagem. Vai ficar aqui só por

esta noite, tem negócios a fazer em outra parte.

Rainerio estudou o rosto do francês, que podia estar escondendo

muita coisa por baixo daquele olhar fugidio, e concordou com um

aceno de cabeça. De repente, pareceu lembrar-se de alguma coisa e

virou-se para os últimos bancos do mosteiro.

— Uberto — chamou, dirigindo-se a um rapazinho moreno sen-

tado entre os confrades —, venha cá um momento. Quero lhe apre-

sentar uma pessoa.

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Uberto acabava justamente de interrogar alguns monges a respei-

to dos dois visitantes, que ele nunca tinha visto antes. E um confrade

lhe respondera à meia-voz:

— O homem alto, de barba e capuz, é Ignazio de Toledo. Conta-se

que, durante o saque de Constantinopla, ele pôs as mãos em algumas

relíquias, mas também em alguns livros preciosos, sem dúvida, de

magia... Parece que levou o butim para Veneza, onde ganhou muito

dinheiro e obteve favores dos nobres de Rialto. Mas, no fundo, é um

bom sujeito. Do contrário, não teria sido amigo do abade Maynulfo.

Os dois se correspondiam com frequência.

Ouvindo Rainerio chamá-lo, o rapaz pediu licença ao interlocutor

e dirigiu-se para o pequeno grupo reunido à sombra do vestíbulo. Só

então Ignazio baixou o capuz e descobriu o rosto, para ver melhor o

jovem. Estudou discretamente seu rosto, seus grandes olhos cor de

âmbar, seus cabelos negros e abundantes.

— Você deve ser Uberto — disse ele.

O rapaz lhe devolveu o olhar. Não sabia como se dirigir àquele

homem, mais jovem que Rainerio, mas com uma aura hierática que

impunha reverência. Fascinado, baixou os olhos e murmurou:

— Sim, meu senhor.

O mercador sorriu.

— “Meu senhor”? Não sou nenhum prelado importante. Chame-

-me pelo nome e trate-me por você.

Uberto se sentiu mais tranquilo e relanceou o olhar para Willal-

me, que observava impassível e atento.

— Diga-me — continuou Ignazio —, você é um noviço?

— Não — interveio Rainerio. — Ele é um...

— Por favor, padre abade, deixe que ele mesmo responda.

— Não sou um monge, mas, sim, um convertido — explicou

Uberto, surpreso com a liberdade com que o mercador tratava Raine-

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rio. — Os confrades me encontraram ainda bebê. Cresci e fui educa-

do aqui mesmo.

Por um instante, o rosto de Ignazio se cobriu de tristeza, mas logo

voltou a parecer jovial.

— É um ótimo secretário — revelou o abade. — Com frequência,

lhe peço para copiar códices curtos ou compilar documentos.

— Ajudo como posso — admitiu Uberto, mais tímido que modes-

to. — Ele me ensinou a ler e a escrever em latim. — E, após hesitar

um momento, disse: — Você... deve ter viajado muito, não?

O mercador aquiesceu, fazendo uma careta para representar as

fadigas acumuladas em suas andanças.

— Sim, visitei muitos lugares — disse ele. — Se quiser, podere-

mos conversar sobre isso. Ficarei aqui alguns dias, por cortesia do

abade.

Rainerio imprimiu ao rosto um ar paternal.

— Meu caro, conforme já lhe escrevi em resposta à sua carta,

estamos encantados por recebê-lo. Descansará na casa de hóspedes

junto ao mosteiro e fará suas refeições no refeitório com a família

monástica. Vai se sentar à minha mesa hoje à noite.

— Obrigado, padre. Agora, peço permissão para deixar meu baú

no quarto que me destinou. É muito pesado e Willalme o carregou

até aqui desde o local onde desembarcamos da balsa.

O abade concordou e, cruzando o vestíbulo, saiu. Procurava

alguém.

— Hulco, você está aí? — indagou, tentando ver alguma coisa

através da chuva espessa.

Uma estranha figura se aproximou claudicante e encurvada ao

peso de um feixe de lenha que trazia aos ombros. Não parecia se

incomodar com a chuva. E não era um monge. Um aldeão, talvez,

ou melhor, um daqueles servos que vinham fazer o serviço pesado

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do mosteiro. Devia ser Hulco. Balbuciou alguma coisa num dialeto

incompreensível.

Rainerio, visivelmente enfadado por ter de dar ordens pessoal-

mente ao servo, falou-lhe como se estivesse domesticando um animal:

— Bem, filho... Não, esqueça a lenha. Encoste-a ali. Isso! Pegue

um carrinho e ajude aqueles senhores a levar seu baú aos aposentos

dos hóspedes. Sim, lá. E cuidado para não deixá-lo cair. Muito bem,

acompanhe-os. — E, mudando de tom, virou-se novamente para os

recém-chegados. — Ele é rude, mas inofensivo. Podem ir com ele. Se

não precisarem de mais nada, nos encontraremos em breve no refei-

tório, para a ceia.

Após se despedir de Rainerio e Uberto, os dois companheiros se-

guiram Hulco, que, mesmo sem o feixe de lenha às costas, continuou

andando encurvado e desengonçado, afundando os pés na lama.

A chuva havia cessado e as nuvens abriam espaço à vermelhi-

dão do crepúsculo. Bandos de andorinhas estridentes revoavam pelos

ares, nas asas de um vento que cheirava a maresia.

Ao chegar à casa de hóspedes, Hulco voltou-se para os dois visi-

tantes. Os últimos raios da luz diurna banhavam seu corpo disforme.

Sob um gorro esfarrapado, entreviam-se tufos de cabelos hirsutos e

um nariz verruguento. Um casaco imundo e calças rasgadas nos joe-

lhos completavam esse triste retrato.

— Domini ilustrissimi — grunhiu ele. Seguiu-se um palavreado

indiscernível que devia significar “Os senhores desejam que eu leve

o baú para dentro?”

Depois de ser autorizado, retirou o baú do carrinho e levou-o com

dificuldade para o interior do edifício.

O prédio era construído quase que inteiramente de madeira,

com paredes revestidas de treliça. Na entrada, por trás de um balcão,

aguardava uma figura de casaco de algodão e olhos de coruja. Gi-

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nesio, o gerente, saudou os peregrinos e esclareceu que o abade lhe

ordenara que lhes reservasse o quarto mais confortável.

— Subam. A terceira porta à direita leva ao seu alojamento —

disse com um sorriso matreiro, indicando uma escada que conduzia

diretamente ao andar superior. — Se precisarem de qualquer coisa,

peçam a mim. Boa estada.

Ignazio e Willalme seguiram as instruções de Ginesio. No fim da

escada, viram-se logo diante de uma porta de madeira. Um verda-

deiro luxo — reconheceu o mercador, acostumado a repousar em

dormitórios coletivos onde os catres eram separados por uma simples

cortina.

Hulco, exausto, parou à frente dos hóspedes.

— Já basta, obrigado — agradeceu Ignazio. — Volte para seus

afazeres.

O servo depôs aliviado o baú, despediu-se com uma inclinação de

cabeça e se foi com seu já proverbial andar desengonçado.

Quando ficaram a sós, Willalme perguntou:

— E agora, o que faremos?

— Antes de tudo, vamos esconder o baú — recomendou o merca-

dor. — Depois, cearemos. Ficaremos na mesa do abade.

— Esse seu abade não simpatizou muito comigo — comentou o

francês.

— Estava pensando, por acaso, em ser amigo dele? — riu Ignazio.

Não obteve resposta, como previa. Willalme era de poucas

palavras.

Ao entrar no quarto, Ignazio acrescentou:

— Não se esqueça de que amanhã deverá partir bem cedo. Tome

cuidado para ninguém perceber aonde vai.

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