jose saramago (revista cult - 17)

55
dezembro/98 - CULT 1 12 Biblioteca ImaginÆria Joªo Alexandre Barbosa analisa o DiÆrio de um escritor, de DostoiØvski 03 Notas 04 Entrevista O poeta e ensaísta Augusto de Campos fala sobre seu novo livro, Mœsica de invençªo 15 Na ponta da língua O professor Pasquale mostra o emprego indiscriminado do termo vocŒ DossiŒ Saiba o que sªo os estudos culturais, principal tendŒncia da crítica contemporânea 43 24 Capa/Ensaio Em texto inØdito no Brasil, Saramago contexta distinçªo entre autor e narrador 16 Capa/Entrevista Uma conversa de JosØ Saramago, primeiro Nobel da literatura portuguesa, com o poeta HorÆcio Costa 28 Capa/Resenha O jornalista Adriano Schwartz analisa JosØ Saramago O período formativo, de HorÆcio Costa 37 Criaçªo Seis poemas de Antonio Moura 30 Leituras CULT Os destaques entre os lançamentos de livros 32 Fortuna Crítica Ensaio sobre o new historicism encerra a sØrie 42 Poesia Obra de Roldan-Roldan oscila entre o sagrado e o erótico O poeta Augusto de Campos Obra do fotógrafo Eugene Zakusilo, que ilustra a capa do DossiŒ REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA 31 Memória em Revista Um conto de Natal de 1910 publicado na revista Fon-fon O escritor JosØ Saramago Reproduçªo 40 Cinema Amor & Cia. leva para as telas obra póstuma de Eça de Queiroz Marllene Bergamo/Folha Imagem Maurilo Clareto/Companhia das Letras Do Leitor Cartas, fax e e-mails dos leitores de CULT 56

Upload: leo-farias

Post on 28-Jun-2015

963 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

revista Cult homenageia o prêmio nobel de literatura em 1998

TRANSCRIPT

Page 1: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 1

12 Biblioteca ImagináriaJoão Alexandre Barbosaanalisa o Diário de umescritor, de Dostoiévski

03 Notas

04 EntrevistaO poeta e ensaístaAugusto de Campos falasobre seu novo livro,Música de invenção

15 Na ponta da línguaO professor Pasquale mostra oemprego indiscriminado dotermo �você�

DossiêSaiba o que são os estudosculturais, principal tendênciada crítica contemporânea

4324 Capa/Ensaio

Em texto inédito no Brasil,Saramago contexta distinçãoentre autor e narrador

16 Capa/EntrevistaUma conversa de JoséSaramago, primeiro Nobel daliteratura portuguesa, com opoeta Horácio Costa

28 Capa/ResenhaO jornalista AdrianoSchwartz analisa JoséSaramago � O períodoformativo, de Horácio Costa

37 CriaçãoSeis poemas de Antonio Moura

30 Leituras CULTOs destaques entre oslançamentos de livros

32 Fortuna CríticaEnsaio sobre o newhistoricism encerra a série

42 PoesiaObra de Roldan-Roldan oscilaentre o sagrado e o erótico

O poeta Augusto de Campos

Obra do fotógrafo Eugene Zakusilo, que ilustra a capa do �Dossiê�

REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

31 Memória em RevistaUm conto de Natal de 1910publicado na revista Fon-fon

O escritor José Saramago

Rep

rodu

ção

40 CinemaAmor & Cia. leva para as telas obra póstuma de Eçade Queiroz

Mar

llene

Be

rgam

o/Fo

lha

Imag

em

Mau

rilo

Clar

eto/

Com

panh

ia da

s Le

tras

Do LeitorCartas, fax e e-mailsdos leitores de CULT

56

Page 2: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/982

DiretorPaulo Lemos

Gerente-geralSilvana De Angelo

Editor e jornalista responsávelManuel da Costa Pinto � MTB 27445

Editor de arteMaurício Domingues

Editor-assistenteBruno Zeni

Diagramação e arteRogério RichardJosé Henrique FontellesAdriano MontanholiYuri FernandesEduardo Martim do Nascimento

Produção editorialDanielle Biancardini

RevisãoClaudia PadovaniNilma Guimarães

ColunistasCláudio GiordanoJoão Alexandre BarbosaPasquale Cipro Neto

ColaboradoresAdriano SchwartzAntonio MouraCarlos AdrianoCharles BernsteinHorácio CostaJayme Alberto da Costa Pinto Jr.Neusa BarbosaSérgio MedeirosRaúl AnteloRégis Bonvicino

CapaFoto de Vidal Cavalcante/Agência Estado

Produção gráficaJosé Vicente De Angelo

FotolitosUnigraph

Circulação e assinaturasRosangela Santorsola AriasCamilla Aparecida Lemme

Dept. comercial/São PauloIdelcio D. Patricio (diretor)Valéria SilvaElieuza P. Campos

Dept. comercial/Rio de JaneiroMilla de Souza (Triunvirato Comunicação,rua México, 31-D, Gr. 1403, tel. 021/533-3121)

Distribuição em bancasFERNANDO CHINAGLIA Distrib. S/ARua Teodoro da Silva, 907 - Rio de Janeiro - RJCEP 20563-900- Tel/fax (021) 575 7766/6363e-mail: [email protected] exclusivo para todo o Brasil.

Assinaturas e números atrasadosTel. 0800 177899

Departamento financeiroRegiane Mandarino

ISSN 1414-7076

CULT � Revista Brasileira de Literaturaé uma publicação mensal da Lemos Editorial eGráficos Ltda. � Rua Rui Barbosa, 70,Bela Vista � São Paulo, SP, CEP 01326-010tel./fax: (011) 251-4300e-mail: [email protected]

REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

NÚMERO 17 - DEZEMBRO DE 1998

O Nobel é o mais cobiçado e questionado prêmio literário do mundo.

Jornalistas e críticos sempre nos lembram das omissões e dos pre-

conceitos políticos da Academia sueca. Neste ano,

curiosamente, as omissões e preconceitos ficaram por conta

dos jornalistas e críticos. O Nobel outorgado a José Sara-

mago no último mês de outubro deveria ser saudado

como o reconhecimento da tradição literária de língua

portuguesa neste e no outro lado do Atlântico. Entre-

tanto, pôde-se observar duas reações. Em primeiro

lugar, algumas restrições às opções políticas de

Saramago (o escritor nunca escondeu o fato de

ser comunista), que estariam sendo indiretamen-

te legitimadas. Parece óbvio, porém, que a

Academia premiou obras, como Memorial do

convento e Ensaio sobre a cegueira, e não

uma preferência ideológica. Se o Nobel

tivesse sido dado a Pound ou Céline, alguém

poderia questionar o acerto literário de tal

escolha pelo fato de Pound ter apoiado o

fascismo e Céline ter sido anti-semita e cola-

boracionista? Considerando que o comu-

nismo parece coisa do passado, o segundo

tipo de reação parece hoje ser mais grave:

aquela que valoriza em Saramago um purista

da língua, na ótica míope de certos poetas-

tros tardo-simbolistas que celebram às aves-

sas a premiação, comemorando o fato de o

Nobel não ter sido entregue a outro eterno can-

didato � o poeta João Cabral de Melo Neto. Por

isso, é oportuno publicar a entrevista que Horácio

Costa fez com Saramago no início deste ano: além

de explorar as raízes de sua obra (para além de

engajamentos políticos), Horácio extrai dele o

depoimento sobre uma poética que vai de um estilo

barroquizante para um estilo de �pedra�, conforme a

expressão cabralina do próprio Saramago. Claro que existe

uma enorme diferença entre os dois escritores, mas a afirmação

de Saramago basta para descartar certas tolices que querem

apartá-lo de uma pesquisa lingüística herdeira do modernismo e

que caracteriza a melhor literatura em língua portuguesa. Cá como lá.

AO L E I TORManuel da Costa Pinto

Page 3: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

novembro/98 - CULT 3ASSINATURASDISQUE CULT 0800.177899

O poeta franco-suíçoBlaise Cendrars

Reprodução

Mário de Andrade, autor deMacunaíma

Reprodução

Blaise Cendrars

Acaba de sair na França o livro Brésil �L�Utopialand de Blaise Cendrars (editoraL�Harmattan), que reúne textos apresen-tados em colóquio sobre o poeta franco-suíço. Organizados por Maria Teresa deFreitas e Claude Leroy, os ensaiosreconstituem a experiência de Cendrarsno Brasil, desde seu contato com nossosmodernistas (que foram influenciadospor sua poética futurista), suas relaçõescom Paulo Prado e Tarsila do Amaral,seu fascínio pela obra do escultorAleijadinho e sua atração por figuras quepovoam o imaginário popular, como ocangaceiro Lampião e o criminosoFebrônio. O volume inclui textosinéditos e fotografias de Cendrars.

Poesia

A Nankin Editorial lança no próximo dia8 de dezembro dois novos títulos dacoleção �Janela do Caos�, que vempublicando diversos livros de poesia bra-sileira: Lição de casa & poemas anteriores,de Carlos Felipe Moisés, e Risco, deEunice Arruda. O lançamento acontecea partir das 19h30 na Casa de Minas, ruaSão Carlos do Pinhal, 87, São Paulo.Informações pelos telefones 011/3106-7567 e 3667-3486.

Imigrantes

As sociólogas e pesquisadoras MarinaHeck e Rosa Belluzzo lançam neste mêsde dezembro o livro Cozinha dos imigrantes� Memórias & Receitas (DBA/Melho-ramentos). Com projeto do artista gráficode J. Pequeno, a edição traz mais de 30depoimentos de imigrantes residentes emSão Paulo e vindos de países comoPortugal, Itália, Japão, Síria, Líbano,Bessarábia, Hungria, Polônia e Rússia.Os textos destacam o papel da culináriacomo expressão antropológica do en-contro entre culturas diferentes e comoespaço de preservação da memória dasetnias que compõem o cenário mul-ticultural da cidade. Além das entrevistas,realizadas pelas autoras do livro, Cozinhados imigrantes tem 150 receitas que com-põem um retrato �etnológico-gastronô-mico� de culinárias tradicionais e das mo-dificações que estas sofrem ao serem acli-matadas no Brasil.

Macunaíma em Portugal

Macunaíma, a �rapsódia� modernistalançada por Mário de Andrade em 1928,acaba de ser publicado pela primeira vezem Portugal pela editora Antígona. Olivro conta com introdução, notas e glos-sário de Jorge Henrique Bastos (jor-nalista brasileiro radicado em Portugal ecolaborador do semanário Expresso e darevista Ler), além de um hors-texte quereproduz a nota Liminar, de Darcy Ribeiro(incluída anteriormente na edição críticade Macunaíma coordenada por Telê PortoAncona Lopez, Editora da UFSC, 1988),e fotografias de Mário de Andrade.

Correção

Devido a um erro de edição, os títulos detrês obras de Mallarmé foram grafadosincorretamente no �Dossiê� da CULTnº 16 dedicado ao poeta francês: osensaios Crayonné au théâtre (de 1887), Lamusique et les lettres (1894) e Variations surun sujet (1895) são obras diferentes, e nãoum único ensaio, conforme consta emtexto da página 58 da referida edição. Napág. 55 do mesmo �Dossiê�, os títulos deBlanchot, Derrida, Valéry e Julia Kristevacitadas na bibliografia de livros sobreMallarmé não são exclusivamente sobreo poeta, embora contenham capítulos ouensaios sobre sua obra.

NO

TA

S

Livros na Internet

Está no ar o site Weblivros!, inteiramentededicado à literatura e aos livros emgeral. Criado pelo jornalista ReynaldoDamazio (colaborador da revista CULT)e pelo editor de arte Ricardo Botelho, osite traz ensaios sobre temas literários,notícias sobre os últimos lançamentosdo mundo editorial, com resenhas sobreobras de ficção (romances, contos,infanto-juvenis), não-ficção (filosofia,crítica literária, antropologia, história,biografias etc.) e poesia. O Weblivros!possui também um espaço de criaçãoliterária para novos autores. O endereçodo site é �www.weblivros.com.br�.

Page 4: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/984

e n t r e v i s t a

AUGUSTO DECAMPOS

Edua

rdo

Knap

p/Fo

lha

Imag

em

Page 5: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 5

O poeta, tradutor e ensaísta Augusto de

Campos está lançando Música de invenção,

coletânea com mais de 30 textos escolhidos

e recolhidos de diversas e esparsas publicações

ao longo dos últimos 40 anos. Nesta

entrevista, o autor comenta suas relações

com um amplo espectro musical e como alguns

aspectos da esfera sonora imantam e

inspiram sua própria produção. Um dos

fundadores da Poesia Concreta, com Décio

Pignatari e Haroldo de Campos, Augusto

aborda também os processos de dilatação

dos pressupostos tradutórios como fonte e

pauta para outros solos da criação. Augusto

de Campos fala ainda sobre seu trabalho

poético mais recente, voltado para a interface

com outros meios e suportes. Após

os poemas coloridos de Poetamenos, os

poemas tridimensionais de Poemóbiles, as

oralizações audiovisuais de Poesia é risco e as

animações digitais de Clip-poemas, o sonho

�verbivocovisual� já parece ser mais concreto.

Carlos Adriano

Page 6: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/986

CULT Música de invenção parece ser um complementodialético ao Balanço da bossa, seu livro de 30 anos atrás. O senhorpoderia comentar esse arco que os livros traçam e tensionam:da música popular à música �impopular�?

Augusto de Campos Na verdade, o traço comumaos dois livros é a preocupação com o que chamo de �músicade invenção�, música qualificada pela criação ou descobertade novas linguagens ou novos processos de composição. OBalanço da bossa foi motivado por um momento particular deinvenção na área da música popular � o tropicalismo �, queme parecia tensionado para a linguagem das vanguardasquando eclodiu precedido, dez anos antes, pela renovação,também polêmica, de João Gilberto e da bossa nova. Mas foia �música contemporânea� (entendida essa expressão comoreferente à música erudita moderna do nosso tempo) que, desdeo início, moldou a minha sensibilidade musical, influenciandodiretamente, pela obra de Webern, os meus primeiros poemasconcretos da série Poetamenos, em 1953. Expoentes da músicade invenção na área da música contemporânea, Webern e Ivese os principais integrantes do grupo brasileiro Música Nova(Gilberto Mendes, Willy Correa de Oliveira, Rogério Duprat,Damiano Cozella, Julio Medaglia), comparecem na segundaedição (Balanço da bossa e outras bossas), marcando significa-tivamente o meu interesse por essa música, na perspectiva deuma possível interatividade entre os dois projetos, o da músicapopular e o da música contemporânea de invenção. Com ocorrer do tempo, passei a me dedicar cada vez mais à músicacontemporânea. Pareceu-me que a batalha da renovação damúsica popular brasileira operada pela bossa nova e pelotropicalismo estava ganha e que os seus principais prota-gonistas, depois das incompreensões iniciais, haviam sido

reconhecidos e divulgados como mereciam. Já no campo damúsica contemporânea, as coisas se passam muito maislentamente. Também aí se pode falar de vitória, na medida emque nomes como os de Webern, Varèse, Ives, Cage e tantosoutros, que no começo da década de 50 sequer figuravam noscompêndios musicais, além de serem raramente executadosou gravados, passaram a ser devidamente valorizados, graças,sobretudo, às novas gerações de músicos de vanguarda,Boulez, Stockhausen, Nono, hoje também eles ocupandoposição proeminente no cenário da música do nosso tempo.Mas essa vitória se restringe ao campo dos especialistas e dosraros aficionados da música contemporânea. As gravações desua música são numerosas, mas chegam em reduzida parcelaàs casas de discos (às nossas, particularmente) e são, comextrema escassez, prensadas entre nós. Estamos aí em plenoterritório da �música impopular� � impopular, diga-se bemclaro, pela ignorância e pela preguiça de ouvidos que não têmpreocupação em ampliar o seu conhecimento musical epreferem os divãs confortáveis da música digestiva a tudo oque exija um maior esforço de inteligência. Há ainda umagrande batalha a travar no sentido de ressensibilizar os ouvidospreguiçosos do público e incentivá-lo a ampliar o espectro dasua informação musical com a contribuição destes que são ossantos e mártires da renovação musical, os mondrians educhamps da música de invenção do nosso tempo. Essa temsido a minha preocupação nos últimos tempos e é a tônica domeu novo livro, todo ele dedicado a trazer para perto dopúblico os fundadores da nova sensibilidade musical � deSchoenberg, Webern e Varèse a Scelsi, Cowell, Antheil,Nancarrow, Nono, Ustvólskaia, nomes menos conhecidos,alguns deles, até mesmo de muitos apreciadores da músicamoderna.

Page 7: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 7

CULT Qual é a contribuição da música ao seu trabalho poéticopropriamente dito?

A.C. Imensa. A música é para mim uma �nutrição de impulso�indispensável. Como a poesia, no dizer de Pound, está maispróxima da música e das artes plásticas do que da próprialiteratura, acho natural que assim seja. Sem Webern, Mondriane Maliévitch, eu não teria formulado o Poetamenos (tambémdevedor, é óbvio, de Mallarmé, Pound, Joyce e Cummings).Nesse ponto, sou muito diferente de João Cabral, que detestamúsica, mas em compensação ama a pintura. Em todo o caso, amúsica de que eu gosto é tão antimusical para a maioria dosouvidos, que é possível que Cabral e eu nos conciliemos emalgum ponto das nossas sensibilidades. Há períodos em queouço mais música e leio mais sobre música (especialmentemúsica contemporânea) do que leio poesia e sobre poesia. Adescoberta nos últimos anos de Scelsi, Nancarrow, Ustvólskaia,e do último Nono foi um dos maiores choques e prazeresculturais destes meus últimos tempos.

CULT A ruptura de suportes já era implícita na PoesiaConcreta, na medida de seu programa de potencialização davoltagem do texto. Como o senhor analisa sua trajetória pelaexperiência �intermídia�?

A.C.�Intermídia� é uma expressão criada pelo poetaamericano Dick Higgins, e que ele prefere à mais utilizada�multimídia� (hoje com sentido técnico mais estrito), paraclassificar obras que associam mídias diferentes em situaçãoinusitada. Ele já classificava como tal a própria PoesiaConcreta, por compactar signos poéticos e plásticos nummesmo objeto artístico. Mas creio que as propostas extralivroimplícitas na prática dessa poesia induzem à experimentação

O compositor norte-americano Charles Ives

Page 8: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/988

Música de invenção é um livro didático e programático.Didático porque introduz, com clareza e prazer, o leitor-ouvinte ao raro e ignorado universo de compositoreseruditos contemporâneos. Programático porque o autorassume, com precisão e proficiência, uma posturaapaixonada em prol da arte de riscos e descobertas.Essa antologia reúne reflexões musicais elaboradas porAugusto de Campos ao longo de quatro décadas. São maisde 30 textos publicados originalmente em jornais, revistase enciclopédias entre 1957 e 1997.Orquestrada em quatro seções e dois apêndices, a obracompõe em sua partitura polifônica ensaios analíticos eilustrações sintéticas. Notas dissonantes (para os cânonesdo chato concerto de meias-idéias) prolongam-se empausas e harmonia de não-tons e acordes imperfeitos.O capítulo �Palavra e música� agrupa as Músicas de Provençae da �Geração Perdida�, a Antiópera de Ezra Pound e o �PierrôLunar� de Arnold Schoenberg. �Radicais da música� une ErikSatie, Walter Smetak, Edgard Varèse e Anton Webern. Ocapítulo �Musicaos� é todo dedicado a John Cage. �Pós-música� alia Giacinto Scelsi, Conlon Nancarrow, GeorgeAntheil, Henry Cowell, Luigi Nono e Galina Ustvólskaia. Osapêndices incluem verbetes e polêmicas.Trata-se de um livro tanto para iniciados como parainteressados. Há o estudo técnico, mas sem o ruído dojargão especializado (para o leigo). Há a narrativa histórica,mas sem o ranço pedestre da anedota e da cronologia. Aselegias exegéticas rechaçam a apologia acrítica e retratam

os artistas em efígie criativa, graças ao viés poético doautor.Além da riqueza textual, configurada por ensaios e poesias,traduções de memórias e poemas, o volume exibe umavariada fortuna iconográfica, que apresenta fotografias,partituras, fotomontagens e profilogramas (compósitosícone-gráfico-verbais).Música de invenção rege em suas páginas as proezas rarasde pianolas, celocantos e esfinges. Afina em operaçõesabertas do acaso e da mudança, no diapasão que desbravao novo nostálgico sobre uma baliza íntegra e radical. Paraouvidos livres escutarem as pedras, o silêncio e as esferasextremas. (Carlos Adriano)

A partitura polifônica de Augusto de Campos

John Cage, tema do ensaio �Musicaos�, de Augusto de Campos

Page 9: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 9

ainda com outras mídias. Suponho que é esse o objetivo de suapergunta e, nesse sentido, digo que segui um caminho que melevou a trabalhar com muitas mídias não comuns às poéticasconvencionais. Assim, a minha poesia se associou, ao longodos anos, não só à produção de �livros livres�, não-ortodoxos,como os produzidos com Julio Plaza (Poemóbiles, Caixa preta,Reduchamp), mas também às novas tecnologias, da holografiae do laser ao computador, e ainda à própria performance�intermídia�, fazendo interagir a oralização do poema, otratamento sonoro e musical digitalizados da palavra poéticae a animação digital e videográfica, matéria do espetáculoPoesia é risco, que divido com Cid Campos e Walter Silveira.Nesse território, assim como no da animação digital, antesque na poesia propriamente livresca, situam-se as minhas maisrecentes aventuras poéticas.

CULT Seu trabalho como tradutor, privilegiando autores epoemas �difíceis�, foi importante para a pesquisa de transcriaçãointerdisciplinar empreendida hoje?

A.C. Certamente. A tradução como criação, e, no meu casoparticular, aquilo que chamei de �intradução�, ou seja, a traduçãointersemiótica, que transcodifica em achados não-verbaiselementos do texto original, aponta já para o terreno datranscriação interdisciplinar. Quanto ao �difícil�, é bom ressaltarque não busco o difícil pelo difícil. A �dificuldade� surge danecessidade de expressar idéias mais complexas e do fato de euprivilegiar autores e obras que lidam com linguagens artísticasnão-convencionais, a demandar um esforço contra a preguiçaintelectual para que sejam apreendidos. Como disse John Cage,�os artistas do século XX que oferecem uma resistência à nossacompreensão serão aqueles aos quais não cessaremos de seragradecidos�.

EdgarVarèse

LuigiNono

Anton vonWebern

Page 10: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/981 0

CULT O paideuma verbal incluía Mallarmé, Pound, Joyce eCummings. Por seu interesse e criação com múltiplos códigossemióticos, qual seria a composição de um paideuma intermídia?

A.C. Além dos quatro citados, eu incluiria, numa equaçãodrástica, Webern-Cage, Mondrian-Duchamp, Eisenstein-Godard, MacLuhan-Leary � não o Timothy Leary do LSD,dos anos 60, mas o profeta do ciberespaço, tal como aparece emseu último livro, Chaos and cyberculture (1994).

CULT Livro livre, caleidoscópio de páginas, caixa preta, neon,móbiles, holografia, computador. Como será o futuro da poesiae a poesia do futuro?

A.C. O mais futuro dos poetas, Mallarmé, nos deu uma liçãode humildade: �Sem presumir o que sairá daqui. Nada ou talvezuma arte� (diz no prefácio do não-livro basilar, O lance de dados).Prefiro não fazer exercícios de futurologia. Mas o meu futuro,senão como realização, ao menos como projeto, �pode ser�,está sem dúvida na poesia digital, com todas as suas repercussõestanto para dentro como para fora do livro � animações eoralizações poéticas, ações intermídia.

CULT Em seu trabalho e em sua postura, o senhor rima rigorartístico e rigor ético. Qual a função do poeta e da poesia nestaépoca atual, banal e brutal?

A.C. Resistência e rebeldia. Resistência à mercantilização daarte, rebeldia contra a paralisação da mente. Como a poesia nãotem valor de mercado, sua mais-vida (parodiando aqui o conceitode �mais-valia�) não compensada assume o valor ético de

Música de invençãoAugusto de Campos

Editora Perspectiva

274 págs. � R$ 30,00

PierreBoulez

KarlheinzStockhausen

Page 11: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 1 1

responder ritualmente pela integridade do projeto artístico. Opoeta verdadeiro tem que estar preparado como o urso parahibernar e se alimentar do seu próprio tutano, como dizia Thoreau.Não deve se preocupar de maneira alguma com o aplauso oucom o sucesso. O seu �não me vendo� perde sempre a curto prazo,mas, a longo prazo, se for para valer, acaba ganhando.

CULT Sob o jugo retrógrado que assola e teima em propalar ofim das vanguardas engajadas e a falência da utopia artística, comoo senhor vê a existência e a permanência da arte experimental?

A.C. A idéia de vanguarda como enfileiramento coletivo,ortodoxo, em torno de um grupo ou corrente, pode não ter maislugar. Mas sempre haverá artistas que trabalham com elementosjá sedimentados, tentando levá-los a um patamar mais alto, dosmestres aos diluidores, e artistas-inventores, que não estão apenaspreocupados com a auto-expressão e com o aprimoramento deformas, mas com a transformação das idéias e a descoberta e aexperimentação de novos territórios para a linguagem artística.Queira-se ou não, artistas desse tipo, praticando aquilo que sechama arte experimental, de invenção ou de vanguarda, serãosempre indispensáveis para a renovação das artes. Portemperamento e por convicção, tento alinhar-me entre estes.

CULT Seus primeiros poemas foram publicados (em jornal)em 1948, não é? Qual o balanço dessa bossa poética de 50 anos?

A.C. Não me sinto animado a fazer um balanço do meu própriotrabalho. Espero, apenas, ter contribuído, senão com a minhaprópria poesia, com o meu trabalho crítico e de tradutor, para a

revelação e a difusão dos grandes inovadores artísticos do presentee do passado, gente que admiro. E, quanto a mim, como leitor,estou seguro de que não perdi meu tempo na �conversa inteligente�que procurei manter com eles ao longo de meio-século.

CULT E seus próximos projetos?

A.C. Tenho uma nova edição das minhas traduções deCummings (agora são mais de 60 poemas), já composta, naeditora Francisco Alves, que espero ver publicada ainda esteano. E traduzi mais 30 dos �Novos poemas�, que esperoincorporar a uma segunda edição do livro Rilke: Poesia coisa.Gostaria de reeditar Viva vaia (Poesia 1949-79), esgotado hámuitos anos, que, somado a Despoesia (1979-94), traça umpanorama de quase meio-século do meu trabalho. E espero,algum dia, fazer um CD-Rom com minhas animações e meuspoemas digitais. Quero continuar meu trabalho nesse campo,mas não sei se terei tempo e ânimo para prosseguir. Trabalhosozinho, como autodidata, e é preciso estudar grossos manuaisde �softwares�, possuir bons equipamentos e atualizar-sesempre, além de ter belas idéias. A idade começa a bater, sintoque precisaria ter dez anos menos. Parodiando Musset(�Cheguei tarde demais a um mundo muito velho�), dizia Satie:�Cheguei ao mundo muito jovem em um tempo muito velho�.Eu digo: �Cheguei tarde demais a um mundo muito novo�.

Carlos Adrianocineasta, autor dos filmes A voz e o vazio: A vez de Vassourinha, Remanescências, A luz

das palavras e Suspens; com Bernardo Vorobow, organizou o livro Julio Bressane: CinePoética;

faz mestrado em cinema na USP e é pesquisador na Cinemateca Brasileira

Page 12: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/981 2

João Alexandre BarbosaDostoiévski

LendoLá no fundo da gente, guardada com

os cuidados que se usa para as coisas maispreciosas, está, muitas vezes, uma reno-vada frustração, ou culpa indefinida, pornão ler, por inteiro, certas obras. E nemsempre é uma questão de tempo, pois àsvezes é mais fácil reler do que ler.

É claro que seria preciso muitas vidaspara que a frustração, ou a culpa, desa-parecess de todo: a gente faz o que pode esegue adiante. Mas ela pode ter outrosmotivos, um deles, com certeza, sendo aprópria estrutura da obra que, dado o seupossível caráter fragmentário, permite, oumesmo exige, as passagens de fuga queafugentam a continuidade.

Em outros casos, é a própria extensãoda obra ou o seu modo de publicação queconvidam ao adiamento de uma leituracontínua. Penso em todas essas obrascompletas de algumas coleções editoriais:a Bibliothèque de la Pléiade, da Gallimard,por exemplo, ou a Library of America, oua Aguilar, tanto a espanhola quanto a suasimilar brasileira. Sempre achei mais fáciller o Valéry de Variété nos cinco volumesindividuais da Gallimard do que o que secontém nos dois compactos volumes daPléiade. Ou o Dostoiévski, na tradução daJosé Olympio, com suas elegantes ilus-trações de Goeldi e alguns prefáciosexemplares de críticos brasileiros, do queo da Aguilar em papel bíblia, exigindo boavista ou lentes adequadas.

Mas, como já disse, podem existirmotivos mais complexos para que umaleitura não se complete, mesmo quandose trate de obra pela qual se tem curio-sidade e vontade de ler. É o que aconteceucomigo e uma das obras de Dostoiévski.

A obra é o Diário de um escritor que venhotentando ler desde os anos 60. E a históriadesta leitura está articulada ao modo peloqual fui tendo acesso a diversas edições daobra. É parte dela que se vai ler emseguida.

Em primeiro lugar, a estranha eprecária edição brasileira, de 1943, daEditora Vecchi, em tradução de um certoFrederico dos Reyes Coutinho, nome quetem jeito de pseudônimo. Estranha, poisnão traz indicação alguma da língua deque foi traduzida, certamente não é umatradução integral e, além disso, a línguada tradução é tão insegura e empolada quese fica com a impressão de que o autor dooriginal não é Dostoiévski. E precáriadada a própria qualidade editorial que éde um primarismo obsceno, seja pelo tipo

de papel utilizado, seja pela péssimadiagramação, seja ainda pela desin-formação acerca do Diário que está nasduas orelhas.

De qualquer modo, essa edição teve aomenos o mérito de me fazer entrar emcontato, pela primeira vez, com o Diário ede ler ali alguns dos mais perfeitos contosde Dostoiévski (embora sem saber seestavam ou não traduzidos na íntegra),assim como o famoso discurso sobrePuchkin. Foram as partes da obra que linessa edição, além de uma ou outrapassagem dos inúmeros casos judiciáriosrelatados pelo escritor, relevando aqueleque trata do caso Kroneberg que, segundoalguns especialistas, estaria nas origens deO estrangeiro de Albert Camus, ou mesmoo estudo comparativo entre Metternich eD.Quixote.

Em seguida, foi a vez de ler algunstrechos do Diário, publicados na ediçãoda Obra completa, traduzida por NatáliaNunes e Oscar Mendes (possivelmentedo francês, embora não haja nota editorialexplícita a respeito), em quatro volumes,da Editora José Aguilar, de 1964.

Os trechos do Diário aparecem como�excertos do diário de um escritor� na seçãode �Outros escritos�, no volume quarto,precedidos de três dos contos que fazemparte do Diário, todos traduzidos, segundose informa em nota editorial, por NatáliaNunes. Além disso, são incluídos apenastrês trechos, e ainda assim incompletos. Asinformações editoriais sobre a obra sãoescassas e superficiais, e o leitor fica atémesmo sem saber, com certeza, as datas depublicação ou o tempo a que correspondemna atividade de escritor de Dostoiévski.

Dostoiévski em 1860

Page 13: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 1 3

O Diário de um escritor é um compósito de textos

ficcionais e semificcionais, uma enciclopédia de

gêneros em que jornalismo, ficção, autobiografia

e história são absorvidos pelo reino das utopias e

antiutopias de que é feito o universo de Dostoiévski

Xilo

grav

ura

de

João

Le

ite

Embora a linguagem em que sãotranscritos os textos seja de um nívelinfinitamente superior àquela da Vecchi,para o leitor interessado em melhorconhecer a obra é ainda muito insuficiente,seja pela pequena amostragem dos trechostranscritos, seja pela parca informação queos acompanha.

Por isso, infelizmente analfabeto emrusso, tive que passar para a leitura detraduções em línguas a que tenho acesso,a começar pela versão espanhola que estána edição, em três volumes, das Obrascompletas da Aguilar de 1958, a cargo desseadmirável tradutor que foi Rafael Can-sinos Assens, que também traduziu todo oGoethe, além de ser, segundo Borges, omelhor tradutor, em qualquer língua, dasMil e uma noites. E foi um deslum-bramento: era a primeira tradução inte-gral, e diretamente do russo, a que tinhaacesso, além de poder contar com informa-ções preciosas, graças à erudição dotradutor. No entanto, essa mesma erudiçãoe uma certa desmesura que lhe era carac-terística fizeram com que Cansinos Assensincluísse, como pertencente ao Diário, tudoo que Dostoiévski escreveu para os maisdiversos periódicos entre 1861 e 1881,seguindo o procedimento adotado porAnna Grigorievna, viúva do escritor,quando, na primeira publicação póstuma,anexou ao Diário vários textos que nãoestavam previstos no projeto original,como, por exemplo, uma série de artigospublicados na revista O Tempo de 1861.Daí a definição de Cansinos Assens, emseu prólogo:

�O Diário de um escritor compreendetodos os trabalhos publicados por

Dostoiévski em diferentes revistas: OTempo (Vremia), fundada por seu irmãoMichail Michailovich, O Cidadão(Grachdanin) e A Cota (Skladchina).�

Seja como for, a edição espanhola era aprimeira possibilidade real que se meoferecia para uma leitura integral da obra,ainda mais favorecida pelo prazer dalinguagem em que estava vertido o russo deDostoiévski, sem os atavios pedantes eempolados da edição da Vecchi. Mas entãosurgia o percalço editorial a que me referino início: o Diário era publicado como apenúltima parte do volume terceiro das Obrascompletas (a última sendo um Dostoiévskiinédito, segundo Cansinos Assens), seguindoa edição de Os irmãos Karamázovi, e tudo numrobusto volume de quase mil e oitocentaspáginas em papel bíblia! Mais uma vez,portanto, e dando como desculpa o fato deque um diário lê-se assim mesmo, aosbocados, adiei uma leitura contínua.

Quando da publicação de sua versão,em 1958, no final do prólogo, CansinosAssens anotava, de um modo um tantotriunfalista, que a sua era a primeira versãointegral da obra em qualquer língua.

Não sei se tinha procedência o orgulhode Cansinos Assens: sei que, em 1972, foipublicada uma edição francesa do Diário,em tradução de Gustave Aucouturier, naBibliothèque de la Pléiade, um volume de milseiscentas e onze páginas, repleto de notas,como costumam ser os volumes da coleção,e refazendo o plano original de Dostoiévskipara o Diário, isto é, começando pelos textospublicados em 1873, em O Cidadão,seguindo-se O Diário de um escritor que opróprio escritor publicou em 1876 e 1877,assim como o de 1880, consagrado a seu

Discurso sobre Puchkin, e, finalmente, Diáriode um escritor 1881, de que só se publicou oprimeiro número de janeiro. Além disso, a�Introdução� é precisa e muito rica deinformações, começando por apontar asingularidade do gênero da obra � ele-mento, a meu ver, essencial para a possi-bilidade de sua leitura:

�Com o Diário de um escritor,Dostoiévski inaugurou um novo gênero.Não é, mais ou menos cotidiana, umarelação das atividades de autor ou umaconfissão de seus estados de espírito, umaconversa consigo mesmo com a intenção,reconhecida ou não, de uma divulgaçãotardia ou póstuma.�

Na verdade, quando li pela primeira vezessa �Introdução�, compreendi uma dasrazões fundamentais para as dificuldades quetinha em ler, com continuidade, o Diário: nãopercebera o desvio de Dostoiévski comrelação à tradição do gênero e, certamente,esperava de suas páginas aquilo que ele nãopodia, ou não queria, transmitir, isto é,aqueles estados de espírito que a gente encontra,com abundância de detalhes, num Stendhal,num Gide ou num Amiel. No demais, asinformações pontuais arroladas porAucouturier permitiam que o leitor pudessese situar com relação às diversas partes daobra, encontrando-as sempre como títulosde páginas numa magnífica diagramação.Assim, por exemplo, no alto da página, àesquerda, vem sempre o ano do Diário, 1873,1876, 1877, 1880 ou 1881, e, à direita, a parteou assunto correspondente, O Meio, Bobok,Outubro, Puchkin, etc.

Foi possível, então, ler a obra e sentir,por exemplo, como entre o Diário de umescritor 1873 e aqueles de 1876 e 1877 há

Page 14: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/981 4

João Alexandre Barbosa é um dosmaiores críticos literários do país,autor de A metáfora crítica, Asilusões da modernidade (pelaPerspectiva), A imitação da forma,Opus 60 (Livraria Duas Cidades) eA leitura do intervalo (Iluminuras).Professor titular de teoria literáriae literatura comparada, foi diretorda Faculdade de Filosofia, Letrase Ciências Humanas da USP,presidente da Edusp e Pró-reitor deCultura da mesma universidade.João Alexandre assina mensal-mente esta seção da CULT, cujonome foi inspirado no título de seumais recente livro, A bibliotecaimaginária (Ateliê Editorial). Aindaeste ano, o crítico lançará acoletânea de ensaios Entre livros,também pela Ateliê.

Clóvis Ferreira/AE

uma diferença substancial de tonalidade,passando-se de uma crítica social ehistórica forjada pelo realismo deDostoiévski, que jamais oblitera o fantás-tico, para uma exasperação apocalíptica emesmo reacionária que parece cavar umenorme fosso de contradição entre as duaspartes. Ou ficar se perguntando qual aorigem do Diário em relação à escritadaqueles textos ficcionais que Dostoiévskiia compondo pela mesma época, como,por exemplo, O adolescente e, poste-riormente, Os irmãos Karamázovi.

São inquietações que, certamente, nãocabiam nas páginas, por assim dizer,editoriais da �Introdução� de Aucouturier.Mas que estão presentes na mais recenteedição do Diário a que tive acesso. Oumelhor: no estudo introdutório de GarySaul Morson para a edição norte-ameri-cana, em dois volumes de quase mil equinhentas páginas, do Diário de um escritor(A writer�s diary, tradução de KennethLantz, Northwestern University Press). Éuma edição exemplar: possui todas asvirtudes editoriais descritas na da Pléiade(menos os anos correspondentes no altoesquerdo da página, mas com a vantagemdo tipo de papel não ser bíblia), acres-centadas pelo estudo magistral de Morson,de mais de cem páginas, intituladoDostoevsky�s great experiment.

Pela leitura das quatro partes doestudo, é possível ter a dimensão do Diáriocomo o grande experimento de Dostoiévski,de acordo com o título de Morson.

Assim, por exemplo, segundo ele, asorigens do Diário encontram-se numapassagem do romance Os demônios, em queLiza Nikolaevna solicita a ajuda de Shatovno sentido de �publicar um anuário quefiltrasse os acontecimentos-chaves dacultura russa�. Diante do ceticismo deShatov, Liza explica que a idéia não seriapublicar tudo, mas aqueles incidentes quesão, em suas palavras, �mais ou menoscaracterísticos da vida moral do povo, docaráter pessoal do povo russo no momentopresente� tudo seria incorporado comuma certa visão, uma significação e umaintenção especiais, com uma idéia queiluminaria os fatos agregados, como umconjunto�.

E essa origem é corroborada por umtrecho das memórias de Anna Grigo-rievna, em que trata do estado de espíritode Dostoiévski logo após ter terminadoOs demônios:

�Fiódor Mikhailovitch estava muitoindeciso no momento acerca do que fazerem seguida. Estava tão exausto por seutrabalho com o romance que lhe pareciaimpossível trabalhar logo num outro.Mais ainda, a realização da idéia conce-bida enquanto ainda estávamos vivendo noexterior�isto é, a publicação de umarevista mensal, o Diário de um escritor�oferecia problemas. Bastante dinheiro eranecessário para tirar uma revista e manteruma família, para não mencionar a liqui-dação de nossos débitos. E havia tambéma questão se uma tal revista teria muitosucesso, desde que era algo inteiramentenovo na literatura russa daquele tempo,quer na forma, quer no conteúdo.�

A última frase vem destacada emitálico por Morson e são as razões dessanovidade que lhe servem de motivo para aanálise da estrutura da obra e que dão contada importância do Diário não apenas noconjunto da obra dostoievskiana, mas natradição posterior desse gênero de litera-tura. A começar pelo que chama de umaenciclopédia de gêneros, isto é, o Diário comoum compósito de textos ficcionais esemificcionais que transformam os eventoscotidianos, e as reflexões que eles pro-põem, em motivos contínuos para oexercício de uma imaginação extremada.

A articulação entre os textos pro-priamente ficcionais e semificcionaistermina por operar a rasura entre ficção enão-ficção, que faz com que os acon-tecimentos comentados por Dostoiévski,numa direção mais propriamente jorna-lística, sejam, por assim dizer, intensi-ficados pelo trabalho da imaginação.

A ficcionalização da história circuns-tancial encontrava a sua contrapartidanuma exasperada historicização do fic-cional de tal maneira que é possível ler ereler, no Diário, encapsuladas comocomentários, situações dramáticas que jáestavam em seus grandes romances ou queestariam no último que por essa épocacomeçava a escrever.

Por isso, Morson fala em enciclopédia degêneros: jornalismo, ficção, autobiografia,história política e social, tudo passa pelocrivo de um estilo capaz de absorver e fazerviver as experiências do escritor, projetando-as, por força do imaginário, para o reinodas utopias e antiutopias de que é feita adialética do universo de Dostoiévski.

Desse modo, recusando a tradiçãoeuropéia, o Diário é, talvez, a mais russadas obras de Dostoiévski: uma espécie detestamento de radicalismo eslavo nãoapenas por aquilo que contém, como porsua estruturação. Não somente o Diáriode Dostoiévski, embora seja também isto,mas do escritor Dostoiévski em sua luta porencontrar a linguagem adequada para oregistro de suas crenças, angústias, inquie-tações e fantasias.

Com essa nova edição da obra, des-confio que estou pronto para lê-la comcontinuidade.

Page 15: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 1 5

A Unicamp (Universidade de Cam-pinas) é reconhecida no país por muitosde seus méritos. E, a bem da verdade, aUnicamp começa bem já no vestibular.Muitas das questões � é pena que nãosejam todas � são interessantes, inteli-gentes, de ótimo nível.

O vestibular dessa importante escolacomeçou em 1987. Nesse ano, justa-mente a primeira questão da prova deportuguês pedia ao aluno que indicasseas marcas típicas da oralidade, ou seja,da língua falada, presentes no discursode um engenheiro eletrônico. Tratava-se de uma entrevista concedida por ele aum jornal. Disse o engenheiro: �Osgrandes problemas, você deve ter umdesenvolvimento tecnológico local�.

A questão pedia que o aluno reescre-vesse a frase, adequando-a �à línguaescrita culta�. De imediato, chama aatenção a falta de conexão. A expressão�os grandes problemas� parece atirada,jogada, perdida. Falta verbo, falta algoque una essa expressão ao resto da frase.Talvez algo como �Para resolver osgrandes problemas, você...�.

Epa! Você? Quem é você? Até provaem contrário, você é a pessoa com quemestou conversando. Você é meu interlo-cutor. E esse �você� da resposta doengenheiro parece muito pouco para adimensão � nacional � do pensamento.�Para resolver os grandes problemas, épreciso desenvolvimento tecnológicolocal�. Ou: �A solução dos grandesproblemas exige desenvolvimento tec-nológico local�. Ou ainda: �Para asolução dos grandes problemas, exige-se desenvolvimento tecnológico local�.

Percebeu? O �você� do engenheironão era a pessoa com quem ele con-versava. E é aí que quero chegar. É cada

vez mais freqüente, na linguagem oral, ouso da palavra �você� com valor gené-rico. Dia desses, ouvi famoso jogador defutebol dizer que �quando você bate nabola com o lado de fora do pé...�. Ouvitambém uma mulher dizer a um repórter� repito: um repórter, homem, do sexomasculino � que �quando você estágrávida...�. O repórter fez cara de espanto,com os olhos arregalados, como que aperguntar: �Eu? Grávida?�.

No último Grande Prêmio de Fór-mula 1, o locutor Galvão Bueno, en-quanto explicava o regulamento, diziaque �quando você deixa o carro morrerna largada, deve ir para o fim da fila�.Como houve duas ameaças de largada,Galvão disse pelo menos duas vezes que�quando você...�.

O problema é que Galvão não estavaconversando com os pilotos, e sim como telespectador, que não deixa carromorrer na largada, por uma razão muitosimples: não participa de corridas.

Pelo menos na linguagem formal,culta, é bastante desejável a eliminaçãodesse cacoete. É cansativo, pobre eenfadonho o uso da palavra �você�como indicador de algo genérico,coletivo. No caso da corrida, bastariadizer que �quando se deixa o carromorrer na largada, deve-se ir para o fimda fila�. � Também se poderia dizer que�quando o piloto deixa o carro morrerna largada, deve ir para o fim da fila�.

O recém-reeleito governador de SãoPaulo, Mário Covas, é outro que temabusado do bendito você que não é você.Vi-o em várias entrevistas � antes edepois da campanha � , repetindo àexaustão que �quando você investe bemo dinheiro do povo�, �quando vocêaplica no social�, �quando você faz o

que realmente é necessário para o povo�,�quando você...�.

Vamos quebrar a monotonia: �Quan-do se investe bem o dinheiro do povo�(ou �Quando o governo/os governantesinveste/investem bem o dinheiro dopovo�); �Quando se aplica no social� (ou�Quando o governo/os governantesaplica/aplicam no social�); �Quando sefaz o que realmente é necessário para opovo� (ou �Quando o governo/os gover-nantes faz/fazem o que realmente énecessário para o povo�).

Uma ex-aluna esteve na Austrália,para estudar. Lá ficou alguns meses.Viciada em você, traduzia essa históriade �você� ao pé da letra. A todo instante,dizia �When you...� (�Quando você�,em inglês). Diz ela que as pessoas seassustavam. Punham a mão no peito ediziam � em inglês, é claro: �Eu, não!�.No começo, minha ex-aluna não en-tendia o porquê da reação. Não demoroumuito para perceber.

Talvez haja uma explicação socio-lingüística ou psicolingüística para osumiço dos indicadores genéricos danossa linguagem oral. Será que não é,mais uma vez, porque o brasileiro tempavor do que é coletivo, genérico, ou seja,tudo no Brasil precisa ser individual,personalizado? Quem sabe. Os antro-pólogos também podem meter a colher.

Aceitam-se sugestões. E lá vai uma,mais do que urgente: pelo menos emsituações formais � sobretudo na escrita�, pare com esse cacoete de usar vocêque não é você.

Até a próxima. Um forte abraço.

Pasquale Cipro Netoprofessor do Sistema Anglo de Ensino, idealizador e

apresentador do programa Nossa língua portuguesa, da TV

Cultura, autor da coluna Ao pé da letra, do Diário do Grande

ABC e de O Globo, consultor e colunista da Folha de S. Paulo .

V O C ÊPasquale Cipro Neto

Page 16: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9816

A entrevista que segue teve lugar emfevereiro passado, em Madri. O Institutodo México, na Espanha, organizou, noprimeiro trimestre deste ano, um ciclo deconferências: �Portugal desde México�.A diretora do Instituto, Luz del Amo, quetivera a idéia de organizar o ciclo � algoinédito, ou pelo menos pouco usual nomundo hispânico, onde via de regraPortugal, ainda mais do que o Brasil, sofrede uma espécie singular de �obnubilaçãoprogramada� �, tinha-me pedido queconvidasse Saramago; ele aceitou, semcobrar cachê. Pediu para ficar no mesmohotel de sempre (o Suécia), a trezentosmetros do Prado. Não é o primeiro favorque me faz e espero que não seja o último.Já anteriormente me brindara com muitasinformações e respondera às muitíssimasquestões que lhe apresentei, enquantoescrevia minha tese para Yale, JoséSaramago � O período formativo (leia textona pág. 28). A presente entrevista, por-tanto, não é, latu sensu, a primeira que medeu.

Há catorze anos, quando completeitrinta, recebi de presente de minha amiga

e ex-professora Renina Katz, uma leitorainveterada, o romance Memorial doconvento. O entusiasmo com o qual Reniname recomendou a leitura, uma vez feita ejá de volta aos Estados Unidos, transferipara Emir Rodríguez-Monegal. Naquelesmeses, eu andava atrás de um tema de tese;numa tarde do verão de 1985, a caminhodo teatro em Hartford, pude conversarlongamente sobre Saramago com Emir,que recentemente estivera com ele duranteum congresso de escritores, e que seria omeu orientador, se tudo desse certo (nãodeu: a Monegal sobravam poucos mesesde vida).

Por meu lado, perguntava-lhe comoera o homem em pessoa; pelo seu, e muitomenos afoitamente, Emir me interrogavasobre a radicação de Saramago na lite-ratura portuguesa contemporânea. Nãoé necessário dizer que ele souberesponder às minhas perguntas,traçando-me o perfil de um cavalheirolusitano de humor mordente, de viésirônico, que Emir comparava ao deBorges, a quem tinha conhecido tão bem;entretanto, à medida que o crítico

uruguaio aumentava em agudeza as suasquestões, crescentemente eu me davaconta do pouquíssimo que sabia, e quede fato era então conhecido, sobre o autorportuguês. Eu já me dedicara, em Yale, apesquisar sobre esse escritor que mechegara às mãos sem nenhum ante-cedente; ainda que a Biblioteca Sterlingseja uma das maiores e melhores domundo, eu me decepcionara com o poucoque nela havia sobre Saramago.

O que tínhamos em mãos era apenaso Memorial. Portanto, qualquer consi-deração crítica que podíamos fazer selimitava ao tipo de escritura queSaramago nele adotava. Diante dela, eassumindo como base o realismo-ma-ravilhoso em versão hispano-americana,concluímos que a qualidade do ima-ginário de Saramago dele diferia em umponto básico: estava prenhe de lirismo eescapava dos padrões de alegorizaçãomais óbvios e tão freqüentes neste. Haviapontos evidentes de contato � paracomeçar, o fascínio pelo barroco, que nanarração reverberava temática elingüisticamente �, mas o tônus geral do

Em conversa com o poetaHorácio Costa, o escritorportuguês, que acaba dereceber o prêmio Nobel deliteratura, fala sobre seuperíodo de formação, sobreseu projeto de autobiografiae sobre a poética de romancescuja oralidade despertaa música adormecidada palavra escrita. Leiatambém, nas próximaspáginas, um ensaio deSaramago inédito no Brasile a resenha do livro deHorácio Costa sobre o autorde Ensaio sobre a cegueira.

josésaramago

Foto

s Ju

an E

stev

es

Page 17: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 17

relato não apontava para as terras ame-ricanas.

Anos mais tarde, em Portugal, pes-quisando sobre o Memorial, terminei porassegurar-me disto: se muito da posturade um Carpentier ou de um García-Márquez se fazia notar (principalmente,no nível do anedótico, na pesquisa defontes da época e por aí), a base eradiferente. A velha cultura portuguesa, àsvezes excepcional � quando representadapor um Fernão Lopes, um Camões ouum Vieira �, mas freqüentementemarginal à Europa dos grandes debates,ainda que muitas vezes ironizada peloescritor, se impunha com uma clarezameridiana. Aí estava, e está, o quid deSaramago. Não só de estilemas indivi-dualizadores vive um grande escritor:nunca é demais lembrá-lo, ele ou ela viade regra (há exceções) pisam o terrenoconhecido que lhe dá a sua própriacultura, a sua própria língua.

Naquela tarde, disse a Emir que eupesquisaria mais sobre o romancista e que,em função do que encontrasse, talvezescolhesse a sua obra como objeto da

minha tese de doutorado. À época, muitopouca gente entendeu que eu escolhesseSaramago, então um escritor com algumabagagem (o melhor viria depois), e menosainda que me dedicasse a sua obra�menor�. Optei por estudar o período deformação do escritor por duas razões:primeiro, por jamais ter ele recebidoatenção crítica (uma importante estudiosaitaliana da literatura portuguesa não hámuito me dizia que Saramago tinha�nascido feito�, assim como se umGulliver qualquer); segundo, porqueestudar um período não-canonizável deum escritor em vias de canonização (agorajá plena, depois do Nobel) pode colocaruma série de questões críticas de interesse,entre elas a de discutir como o cânone�funciona� para canonizar os seus eleitos,como a crítica procede para eleger os seusobjetos de estudo.

Se Saramago, ao longo de suas décadasde experimentação ou deriva entre váriosgêneros literários, apresentou uma notáveldistância, ou mesmo, defasagem, peranteas estéticas dominantes à época nocontexto português (apesar da dicção neo-

realista fundamental em sua produçãopolítica, afinada com uma vertente dapoesia portuguesa dos anos 40 e 50 �porém usada por ele vinte anos depois!),um discurso crítico que procurasse acercaressa obra de exceção (frente aos modismos,às oposições quase sempre conjunturaisque caracterizam o processo literário) teriaque, de alguma maneira, sê-lo também,abandonando as interpretações mais cir-cunstanciais de análise. Ir até uma obraque se divide entre �fraca� e �forte�,�ignorada� e �estudada� (e �in� e �out� ,�boa� e �ruim�), foi o que eu tentei, cen-trando sempre as minhas interpretações nosinuoso processo de trabalho de JoséSaramago, antes que em seu melhorresultado, aparentemente para semprecanonizado.

A entrevista que segue constantementerefere-se a essa injunção e a essa pre-ferência crítica minha. Pensei que valessea pena alertar o leitor sobre a razão dasperguntas que nela fiz. Agora, definir oque possam as respostas a elas esclarecê-lo sobre a obra e o indivíduo JoséSaramago é coisa sua.

odespertardapalavrah o r á c i o c o s t a

Page 18: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9818

Horácio Costa Eu queria quevocê dissesse o que ficou da experiênciados gêneros que você praticou ao longode várias décadas � crônica, poesia, ensaio,teatro � antes da publicação do Manual depintura e caligrafia. Por que você acha quedemorou vinte anos para escrever umsegundo romance? Há um primeiro, umatentativa pouco madura nos anos 40, masa sua primeira obra em prosa de ficçãosólida é esse Manual.

José Saramago Em primeirolugar, quando se pergunta o que ficou deuma obra, que supostamente pertence a umtempo passado, pressupõe-se uma dúvida,se alguma coisa terá ficado. Porque, se nãoexistisse essa dúvida, então a pergunta nãoteria sentido. Quando se começa a escrevermuito jovem, corre-se o risco e, afinal, issome aconteceu, porque aos 25 anos publiqueium romance. Romance que ficou por aí,que foi reeditado apenas em 1997 porqueo editor achou que se o romance fazia 50anos, desde a primeira publicação, tinha queser novamente publicado � e então temosuma edição nova de um romance que sechama, perdoem, Terra do pecado. Eu nãotenho culpa de o romance ter esse título, aculpa é do editor. O romance se chamava Aviúva. Um jovem de 25 anos, que era oque eu tinha, não sabia muito de pecados, e

menos de viúvas... Mas eu percebi que nãotinha tanta coisa para dizer, nadaimportante. E me calei, me calei por vinteanos praticamente.Isso não é verdade, porque escrevi umoutro romance que se chama Clarabóia,que permaneceu inédito � e, esse sim,permanecerá inédito. Não o destruíporque não devo destruir as coisas quefaço; se não posso destruir todas, por quevou destruir algumas? Se eu pudesseapagar todas as coisas ruins � e agora nãoestou falando do livro, estou falando decoisas ruins que a gente faz na vida �, euas apagaria. Mas como Terra do pecado,apesar de tudo, não é a pior coisa que eufiz na vida, então que fique aí; e Clarabóiaficará, mas com a condição de não serpublicado enquanto eu viver.Até 1966, quando eu tinha 44 anos, nãoescrevi nada. Salvo no período ime-diatamente anterior a 1966, que foi quandoescrevi um livro de poesia chamado Ospoemas possíveis. E por que eu o escrevi?Bom, a resposta é sempre a mesma, ouquase sempre: porque me apaixonei. E eujá havia feito uns quantos sonetos e coisasassim no tempo que fazíamos sonetos, aosdezoito anos. Acho que os jovens de hojejá não sabem o que é escrever sonetos e asmeninas não têm a felicidade de receberum soneto dos garotos. Isso acabou, que

pena! Bom, então eu me apaixonei nessaépoca e daí saiu o livro. Confesso que,quatro anos depois, me apaixonei de novoe saiu outro livro de poemas que se chamaProvavelmente alegria. E então acabou-sea história de publicar pelo fato de meapaixonar [risos].A partir de 1966, por circunstâncias davida, me encontrei mais próximo domundo literário porque trabalhava numaeditora � desde os anos 50 e durante quase15 anos. Eu tive uma vida que não tinhanada a ver com a literatura. Eu fui váriascoisas na vida: trabalhei numa oficinamecânica, fui desenhista, funcionário dasaúde pública, depois não sei o quê, depoiseditor, e era assim. Então, eu não mepreparei para ser escritor. Sou escritor porum acaso. E que acaso é esse? É quechegou um momento em que eu, além deme apaixonar e por isso pôr sobre a mesalivros de poesia, comecei a colaborar emjornais, escrevendo crônicas. De 1966 até1977, houve onze anos de publicação:publiquei três livros de poesia � e o terceironão tem nada a ver com minhas paixões �,crônicas, ensaios políticos, que no fundoeram editoriais de jornal, de um jornal quejá não existe, chamado Diário de Lisboa, ejá em 1975, que chamávamos o anoardente da revolução, eu era diretor-adjunto de um outro jornal, Diário de

Vidal Cavalcante/AE

josésaramagonasceu em 1922 na cidadede Azinhaga, na provínciaportuguesa de Ribatejo. Antesde receber o Nobel de literatura,no mês de outubro passado,ganhou o prêmio Camões de1995. Atualmente, vive na ilhaLanzarote, na Espanha, ondese auto-exilou depois queo governo português negoua inscrição do romanceO evangelho segundo Jesus Cristono Prêmio Europeu deLiteratura, em 1991.

Page 19: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 19

Notícias, e acho que tudo começa aí.Quando, em novembro de 1975, ocorreua contra-revolução, o que se chamava oprocesso contra-revolucionário � e talvezalgumas pessoas não estejam de acordocom a qualificação ou com a classificação �,eu fiquei na rua, sem emprego, sem salário,sem trabalho e sem possibilidade deencontrar outro facilmente, porque ojornal estava com a revolução.Aí eu tomei a decisão definitiva da minhavida, que era a de não procurar trabalho, eme dizia: você tem sete ou oito livrosescritos, que são dignos, sérios, honestos,mas por aí você não vai chegar a lugarnenhum. Se você está pensando na históriada literatura, então, resigne-se a que digam(se disserem) que o senhor fulano nasceunessa data, morreu numa outra, publicoualguns livros e ponto. Uma linha, duaslinhas e nada mais. Não que eu aspirassea um capítulo completo da história daliteratura, não é isso. A decisão de nãoprocurar trabalho era enfrentar essa idéiade que, talvez, eu seria um escritor, masfaltava uma prova, porque aqueles livrosnão eram na minha opinião suficientespara tal. Isso foi o que depois levou a todaessa série de livros, romances, obras deteatro, diários que caracterizam essesúltimos 20 anos. Isso é o que me leva adizer que eu sou um jovem escritor, que

eu sou um velho escritor da nova geração� porque a verdade é que eu estouescrevendo obras mais sólidas não hácinqüenta, mas há vinte anos; portanto,supondo que se começa, talvez, a escrevere publicar aos 20, 23 anos, então, agora,literariamente, eu não tenho mais do que45 anos. Sou um menino... [risos]O que ficou do que ficou para trás? Eudiria que ficou tudo. E ficou tudo em quesentido? Eu muitas vezes digo que sealguém quiser entender bem o que euestou dizendo nos romances que estouescrevendo é preciso ir às crônicas queescrevi nos jornais e que estão em doislivros: Deste mundo e do outro e A bagagemdo viajante. Quase todos os temas que estãoagora nos romances, certos pontos de vista,visão de mundo, obsessões e preocupaçõesde ordem não apenas literária, preocu-pações de ordem política, de ordem civil,tudo isso se encontra nesses pequenostextos publicados em jornais, e quem seinteresse pelo que eu faço � além dosromances que têm maior reputação, dosquais se fala, que saem na crítica, que estãonas livrarias e tudo isso � tem que ir aesses pequenos textos porque eu mesmo,quando por algum motivo tenho que voltara esses textos, me reencontro.Nessas crônicas há muito de ficção, esobretudo há o trabalho sobre a memória,

a memória da infância, da adolescência, amemória dos adultos, dos avós, das coisasvistas � e esse, se eu chegar a escrevê-lo,será o conteúdo de um livro que já temtítulo, mas que ainda não está escrito e quese chamará O livro das tentações. Já estoume antecipando, mas uma coisa chama aoutra. É uma autobiografia minha. Eu soutão vaidoso que inclusive vou escrever aminha biografia. Mas é uma autobiografiaum pouco estranha, porque termina aoscatorze anos de idade. O que eu querofazer é isso, recordar o menino que eu fui.Tentar saber quem era esse menino.Porque a verdade é que nós pensamos quetoda a nossa vida está aí para que nostornemos adultos. E, quando somosadultos, nos comportamos como seolhássemos para nós como algo que saiudo estado de crisálida, imaginando que ainfância e a primeira adolescência é acrisálida, e que depois da crisálida saiu oinseto adulto com todo o seu esplendor,as suas cores, com toda a sua beleza. Noscasos em que têm esplendor e que sãobelos, claro; há insetos que deveriam terficado na crisálida e não sair.Eu não penso assim. Para dar-lhes umaidéia do que eu penso nesse sentido: nãosei se o meu leitor percebeu que eu ponhosempre epígrafes; a epígrafe de Todos osnomes, para falar do último romance

Reprodução

Page 20: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9820

publicado, é �Conheces o nome que tederam, não conheces o nome que tens�, éuma citação de um livro chamado Livro dasevidências, que não existe, como em outroromance, História do cerco de Lisboa, há umaoutra epígrafe que foi tirada do Livro dosconselhos, que também não existe. E isso éum pouco borgeano, e se isso continuar, nãoterei mais remédio do que escrever o Livrodas evidências e o Livro dos conselhos. E,então, a epígrafe que terá o Livro dastentações � e com isso, acho que tereiexplicado tudo o que tentei explicar atéagora � é a seguinte: �Deixa-te levar pelomenino que foste�. Porque, na verdade, denada eu gostaria mais � ou de poucas coisaseu gostaria tanto � do que poder passearpela rua, não levando pela mão o meninoque fui, mas sendo levado pela mão dessemenino. Se eu pudesse recuperá-lo, tê-loagora mesmo, quanto eu gostaria. Vocêspodem pensar: mas que idéia estranha essa,você é ele e ele é você. Não, eu sou ele, masele não sou eu. Um deles não conhece ooutro; e o fato de que um deles não conheçao outro me perturba. E por isso eu digo:deixa-te levar pelo menino que foste. Talvezo menino, supondo que os meninos não sãomaus � alguns são péssimos, claro �, fossecapaz de, na hora que vamos fazer uma coisaerrada, de puxar pela nossa roupa e dizer:não faça isso.

Há uma continuidade de pensamento einclusive uma continuidade de sensibilidadeno que estou fazendo agora e que vêm dostextos mais antigos. Como os textos nãonascem do nada, nascem de alguém queestá vivendo, mesmo que não estejaescrevendo, então tudo é uma relação quevai pelo interior da vida e que une tudo atudo. O que eu posso dizer, claro, é que háalgumas coisas que fiz antes e que, se eu asfizesse agora, tentaria fazê-las melhor. Masnão se trata aqui de mais qualidade literáriaou de menos qualidade literária, trata-se doque se está dizendo aqui.

Horácio Costa A forma comose desenvolve sua �carreira� é bastanteatípica, especialmente em relação ao quecada vez mais acontece no mundo literário,afetado por uma série de problemasexternos, a questão do mercado, osprêmios literários etc... Num texto críticodos anos 60, parte das suas colaboraçõespara a Seara Nova, você escreveu: �Aliteratura não é uma carreira�. Aquelemomento era especialmente significativo,porque então você era conhecido emPortugal como poeta. Você estavapublicando o seu segundo livro de poesia,ou prestes a publicá-lo, e entrava naliteratura ou na vida cultural lisboeta pormeio da atividade poética. E você começa

a escrever essas notas críticas numapublicação importante da literaturaportuguesa contemporânea, a Seara Nova.Então, eu gostaria de que você desen-volvesse essa idéia de autor, naquelemomento biologicamente já não muitojovem, nos anos 60, que tem consciênciade que a literatura não é uma carreira; ecomo você vê isso agora, não só comrelação ao mundo contemporâneo, mastambém à luz da sua produção posterior.

Saramago Quando me convi-daram para fazer crítica nessa revista, eusó havia publicado esse livro de poesiachamado Os poemas possíveis. Inclusiveimpus uma condição, a de que não fariacrítica de livros de poesia. Porque meparecia que isso não teria muito sentidopara mim, um jovem poeta, com apenasum livro, e que não era Rimbaud nemFernando Pessoa. Pode-se perguntar: vocênão quis fazer crítica sobre livro de poesia,mas estava disposto a fazer sobreromances? Sim, do ponto de vista do leitor,como se eu fosse um leitor, já que no fundoo crítico é um leitor. No entanto, é umleitor que tem o direito de publicar a suaopinião. Essa é, suponho, a diferença maisvisível que há entre um e outro.E é verdade que numa dessas críticas euescrevi que a literatura não é uma carreira.

Vidal Cavalcante/AE

Page 21: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 21

Depois de 30 anos, e com tudo o queaconteceu na minha vida, parece que háuma contradição entre a minha vida e essaafirmação, porque eu vivo do que escrevo.Mas não tenho os tipos de obrigações deum trabalho, não tenho ações, não tenhobens, não tenho nada senão o que podeser posto sobre a mesa, o que escrevo. Eununca me lancei a isso que chamamos umacarreira de escritor. Entendo que umapessoa se lance a uma carreira de advo-gado, médico, engenheiro ou algoparecido porque isso significa que sepreparou para exercer uma atividadeprofissional e, portanto, está nisso e vaitrabalhar nisso. Os médicos precisam dedoentes, mas estão certos de que doentessempre existirão, não? E, portanto, estãocertos de que podem abrir o seuconsultório para recebê-los. Esses, sim,podem falar de uma carreira.De repente, amanhã pode ser que eu nãotenha nenhuma idéia para um livro e seisso acontecer eu deixarei de escrever. E ofato de que eu esteja vivendo da literatura,porque é verdade, não significa que eu nãoescreva nada de que eu necessite escrevercomo homem. Isto é, eu não posso viversendo duas pessoas em uma � a pessoacorrente e normal, que, afinal, sou, e umaentidade, um pouco estranha, que sechama escritor. Esses dois não vivem lado

a lado, são um apenas, estão fundidos umno outro. E se o homem não tem nada paradizer como homem, também não terá nadapara dizer como escritor. Se isso acontecer,e eu já disse isso, me calarei. E poderia teracontecido de eu me calar depois doMemorial do convento, do Ano da morte deRicardo Reis, da História do cerco de Lisboa,ou do Evangelho segundo Jesus Cristo.Poderia não ter tido mais nenhuma idéia,e fim. E é verdade que, cada vez que eutermino um romance, não tenho nenhumaoutra idéia e fico esperando para ver o queacontece. Pode levar um mês, dois, três,seis meses, até me ocorrer uma idéia. Euacho que os que me lêem perceberam queos meus livros não se repetem. Elespercebem que o autor é este pela forma denarrar, pelas preocupações que expressa,mas cada livro contém alguma coisa queaí se acaba. E isso tudo é o contrário doque se necessitaria para uma carreira. Parauma carreira, o conveniente seria exploraros filões encontrados para que ela pudessese desenvolver, não? Mas eu fico assim,sem enredo, esperando para ver o queacontece.

Horácio Costa Você disse que nãoteve uma educação formal em literatura, quefoi um leitor. Mas eu lhe peço que comentea importância que tiveram a atividade crítica

que você exerceu e a atividade de tradutornesse período de formação, de auto-aprendizagem.

Saramago É preciso dizer algoque ainda não foi dito e que deve serconsiderado. Se eu, aos 20 e poucos anos,escrevi um romance, foi porque algumacoisa eu tinha lido. E tinha lidomuitíssimo. Onde? Nas bibliotecaspúblicas. Entre 16 e 22 anos, eu fui umleitor noturno, porque tinha que trabalharde dia, ia a uma biblioteca pública de umacidade pequena e lia tudo o que en-contrava. Às vezes, não entendia nada, ouquase nada, de alguns livros que lia; nãotinha ninguém que me dissesse: esse agoranão convém, é melhor que você leia esseoutro. Mas, de qualquer modo, com todosdisparates, erros e incompreensões, creioque pude ler uma gama bastante amplade autores. Eu diria que Terra do pecado,por um lado, funcionou como umasedimentação de leituras; pode-se dizerque não há nada de original ali, mas, senão somos Rimbaud, o que entendemospor �original� aos 20 e poucos anos?Você pergunta se o fato de fazer traduçõesinfluiu em alguma coisa. Não, em nada,nada, nada... É muito diferente sentar-separa traduzir uma obra pelo desejo detraduzi-la, por vontade própria e, então,

Reprodução Reprodução

Page 22: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9822

desfrutar do trabalho de tradução, bus-cando as funções mais adequadas e tudoisso... Mas eu não traduzi por gosto, porprazer; eu traduzi para ganhar a vida etraduzi de tudo: livros de política, deeconomia, de arte, romances, coisas tontascomo uns livros de um senhor chamadoJivkov, que era búlgaro, secretário-geraldo Partido Comunista da Bulgária e aomesmo tempo presidente, e eu tive quetraduzir coisas dessas. Com isso nãoaprendi nada. Mas claro que há outro tipode aprendizagem. Quando tive quetraduzir Bonnard, aprendi muito. Masnão aprendi a escrever e acho que quemtem que traduzir nas mesmas condições ecircunstâncias que eu corre o risco de tera sua escrita prejudicada pela variedadede estilos, de modos de narrar dosdiferentes autores que tem que traduzir.Então, posso dizer que não aprendi nada.Agora, acho que aprendi a escrever porqueli muito. Sempre li muito, desde menino,desde adolescente, ia à biblioteca públicapara ler, para ler e nada mais, e no diaseguinte tinha que me levantar cedíssimopara ir à oficina onde estava trabalhando.Não estou idealizando a minha vida, nãoestou fazendo romantismo barato e falso,estou falando de fatos e nada mais; semcair na tentação de exagerar para uma vidaextraordinária, senão o contrário.

Eu comecei por esse romance, depois apoesia, depois a crônica, depois fiz umpouco de teatro. Mas o teatro não foi poruma iniciativa minha. Eu tenho quatroobras de teatro, todas elas foram repre-sentadas, e aparentemente eu poderiadizer: sou dramaturgo. Não, não sou, eunão me vejo como dramaturgo. Roman-cista, sim; mas depois de todas essasexperiências e de tudo isso. Mas talvez oromancista que sou deva algo a umacircunstância que a que ver com uma obrada qual não se fala muito, e é uma penaque não se fale muito dela, que é esseromance que publiquei em 1980 e que sechama Levantado do chão. Em 1975, comodisse, fiquei sem trabalho. Em 1976, euestava no Alentejo, no sul de Portugal. Euvenho de uma família de camponesespobres, sem terra, do norte de Lisboa, auns 100 km, mais precisamente donordeste; e, nessas alturas, quando euestava com essas dúvida � �o que vou fazerda minha vida? escrevo, não escrevo?como? o quê? para quem? e com quemeios?� �, veio-me a idéia de escrever algosobre a minha gente � avós, pais �, queviveu no campo nas condições que os maisvelhos aqui podem imaginar, se viveramno campo há 40, 50, 60, 70, 100 anos:saberão o que é isso. E eu soube, não muitoprofundamente, mas, de qualquer forma,

soube. O estranho é que eu deveria irdiretamente aos meus lugares, à minhacidade, e ficar ali, mas, talvez porque euconhecesse muito bem tudo isso, nãoqueria escrever sobre isso. Então, fui aoAlentejo em 1976 e fiquei lá dois meses,falando com as pessoas, indo ao campoonde trabalhavam, comendo com eles,dormindo com eles. E voltei, depois, pormais algumas semanas. Portanto, junteium quantidade de idéias, informações,histórias e tudo isso. E esse livro foi escritoem 1979 e publicado em 1980. Quer dizer,foram precisos três anos para que eupudesse escrever esse romance.Na verdade, durante esse tempo escrevium livro de relatos curtos, Objeto quase, epubliquei o Manual de pintura e caligrafia.Portanto, estive fazendo algumas coisas.Mas não estava fazendo o que tinha defazer � agora sei disso, mas naquela épocaeu não sabia. Porque eu não sabia de umacoisa, muito mais importante do que àsvezes se imagina: eu tinha uma históriapara contar, a história dessa gente, de trêsgerações de uma família de camponesesdo Alentejo, com tudo: a fome, o desem-prego, o latifúndio, a polícia, a igreja, tudo.Mas me faltava alguma coisa, me faltavasaber como contar isso. Então eu descobrique o como tem tanta importância quantoo quê. Não se pode contar como se não há o

Vidal Cavalcante/AE

Page 23: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 23

que contar, mas pode acontecer de você tero que e ficar paralisado porque não tem ocomo. O tema que eu tinha estava clarís-simo, era um romance neo-realista,bastavam camponeses, fome, desemprego,luta, tudo isso. E modelos do romanceneo-realista português, nós os temos, egrandes romances. Portanto, o molde eujá tinha e só precisava colocar nele a minhaprópria matéria e, então, já teria o romance.Mas, não, algo dentro de mim dizia: não,não e não; enquanto você não encontrar asua própria forma, não poderá escrever.Claro que isso eu estou dizendo agora,com certeza vocês não estarão imaginandoque naquela época eu conversasse dessaforma comigo mesmo: não, eu nãoconversava. Mas eu tinha uma barreiraque me impedia de ir adiante. Quando euvoltava ao Alentejo e encontrava os amigosque eu tinha feito lá, gente de umaqualidade humana impressionante, eles meperguntavam: e o romance, quando vocêvai publicá-lo? Eu dizia: é que estouocupado agora com outros assuntos e tal.Não, na verdade eu estava em pânico[risos]. Em pânico porque eu não tinha ocomo. Até que, em desespero de causa,pensei: isso não pode ficar assim e tenhode começar a escrever esse romance ecomecei a escrevê-lo como um romancenormalzinho. E quando eu digo romance

normalzinho, e há grandíssimos romancesnormaizinhos, não estou dizendo nadacontra, ao contrário: surpreende-me quenuma forma quase canônica possam serescritos romances magníficos, sem rup-turas... Claro que há outros romancesmagníficos que o são por vários motivos,entre eles porque romperam com con-venções e com tudo isso. E comecei aescrever com cada coisa no seu lugar:roteiro e tal... Mas eu não estava gostandonada do que estava fazendo.Então, o que aconteceu? Na altura dapágina 24, 25, estava indo bem e por issoeu não estava gostando. E sem perceber,sem parar para pensar, comecei a escrevercomo todos os meus leitores hoje sabemque eu escrevo: sem pontuação. Semnenhuma, sem essa parafernália de todosos sinais, de todos os sinais que vamospondo aí. O que aconteceu? Não seiexplicar. Ou, então, tenho uma explicação:se eu estivesse escrevendo um romanceurbano, um romance com um temaqualquer de Lisboa, com personagens deLisboa, isso não aconteceria. E tenhocerteza de que hoje estaria escrevendoesses romances como todo mundo � talvezbons, talvez não tão bons, mas estariaacatando respeitosamente toda a con-venção do que se chama escritura. Masalguma coisa aconteceu aí: eu havia estado

com essa gente, ouvindo, escutando-os,estavam contando-me as suas vidas, o quetinha acontecido com eles. Então, eu achoque isso aconteceu porque, sem que eupercebesse, é como se, na hora de escrever,eu subitamente me encontrasse no lugardeles, só que agora narrando a eles o queeles me haviam narrado. Eu estavadevolvendo pelo mesmo processo, pelaoralidade, o que, pela oralidade, eu haviarecebido deles. A minha maneira tãopeculiar de narrar, se tiver uma raiz, pensoque está aqui. Não estou certo de que sejaa única, mas com certeza, essa conta.Quando esse romance foi publicado emPortugal, houve um reboliço porque aspessoas não entendiam nada, inclusive umamigo meu me chamou para dizer: olha,eu sou seu amigo, mas a verdade é que leiotrês páginas e me perco, eu não entendo oque você diz. E eu disse: você tem em casaum corredor comprido, não? Pois então,acenda a luz à noite e comece a andar deum lado para o outro no corredor, lendoem voz alta. Se você ler em voz alta, vai vero que acontece. Da mesma forma que,quando nos comunicamos oralmente, nãonecessitamos nem de travessões, nem depontinhos, nem nada do que parecenecessário usar quando escrevemos, poisentão, você, como leitor, colocará aí, não oque falta, porque não falta nada... A palavra

Reprodução Reprodução

Page 24: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9824

escrita num livro é uma palavra morta;quando fazemos a leitura silenciosa, não estámorta, acorda um pouquinho; mas a palavrasó fica acordada quando a dizemos. Paraque a palavra soe desperta é preciso dizê-la; ler silenciosamente as palavras não é sufi-ciente. E nós todos sabemos que, quandose lê poesia, fazer uma leitura silenciosa deuma poesia ou fazer uma leitura em vozalta dela são dois mundos completamentediferentes.Quando eu digo ao meu leitor �você temque ler escutando dentro da sua cabeça avoz que está dizendo�, isso se aplica aoautor. Eu começo um romance, um conto,um relato, ou algo assim, mas enquantonão ouço dentro da minha cabeça a vozque está dizendo, o texto não avança. Aprosa fica ali, parada. Tem que soar dentro.E é ainda bastante estranho que issoaconteça, porque parece que não perce-bemos que no fundo falar e fazer música éa mesma coisa, exatamente a mesma coisa.Fala-se e faz-se música com os mesmosingredientes: sons e pausas, nada mais.Toda música pode ser reduzida a isso: sonse pausas. Toda palavra, ou todo discurso,pode ser reduzido a isso, som e pausa.Mas, da mesma forma que a músicanecessita de uma espécie de suporterítmico que a conduza � não estou muitocerto disso, mas estou falando de outras

músicas �, o próprio discurso, que estásendo escrito, talvez dele necessite.

Horácio Costa Eu gostaria quevocê falasse sobre o romance, ou melhor,sobre o exercício da prosa de ficção pormeio do romance: o exercício desseimaginário no mundo contemporâneo. Oque é isso? Qual a sua importância?

Saramago O que é hoje para mimficção? É como uma voz, tudo é uma voz,diria o poeta, o dramaturgo, na circuns-tância em que eu falei antes. Ocorre que avoz, no meu caso, tem toda a importânciado mundo. No meu caso, o homem e oescritor, como eu disse antes, não apenasestão juntos, mas estão fundidos um nooutro. Então eu diria que a ficção para mim,hoje, não sendo uma carreira, é o recursoque eu tenho para expressar minhasdúvidas, minhas perplexidades, minhasilusões, minhas decepções. Não no sentidode uma literatura confessional. Apreocupação que eu tenho é esta: Em quemundo estou vivendo? Que mundo é este?O que são as relações humanas? O que éessa história de sermos o que chamamos ahumanidade? O que é isso de ser Humani-dade? Ter encontrado para essa ficção umaforma pessoal de narrar, que é a minha, achoque esse meu privilégio � eu não sei como

nem a quem pagá-lo � de haver podidochegar a ter uma voz própria para narrar oque tenho para narrar não tem preço.Agora, isso tudo depois passa por umaquantidade, porque o meu processonarrativo, que nasce com Levantado do chãoe que aparentemente se repete em todos osoutros romances, repete o essencial, mas hámudanças, adaptações ao próprio tema, àprópria história que está sendo contada. Euestou percebendo que, depois de umaexpressão bem mais barroca como é o casodo Memorial do convento , talvez porinterferência do próprio século XVIII emque tudo acontece, estou me aproximandocada vez mais de uma narrativa seca, cadavez mais seca. Encontrei, outro dia, umafórmula que me parece boa, é como sedurante todo esse tempo eu estivessedescrevendo uma estátua � o rosto, o nariz �e agora eu me interessasse muito mais pelapedra de que se faz a estátua. Quer dizer, jádescrevi a estátua, todo mundo já sabe queestátua é essa que eu estive descrevendodesde Levantado do chão até o Evangelhosegundo Jesus Cristo. A partir de Ensaio sobrea cegueira, em Todos os nomes e no próximoromance, se o escrever, trato da pedra.

Horácio CostaHorácio CostaHorácio CostaHorácio CostaHorácio Costapoeta (autor de Satori e O menino e o travesseiro), tradutor e

crítico literário, leciona literatura brasileira na Unam (UniversidadeNacional Autônoma de México) e é autor de

José Saramago – O período formativo

Reprodução

Page 25: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 25

Falto de mapas, abandonado de guias, com o temorreverencial de quem pisa terra estranha, uma terra onde ossistemas de comunicação estão habitualmente redigidos emlínguas que, não raro, só vagas semelhanças guardam ainda coma linguagem comum, atrever-me-ei a expor-vos umas poucasidéias elementares, as únicas que poderia autorizar-se um simplesprático da literatura como eu.

Por experiência própria, tenho observado que, no seu tratocom autores a quem a fortuna, o destino ou a má-sorte nãopermitiram a graça de um título acadêmico, mas que, nãoobstante, foram capazes de produzir obra digna de algum estudo,a atitude das universidades costuma ser de benévola e sorridente

Em ensaio inédito no Brasil,

Saramago questiona a

distinção � consagrada pela

crítica literária � entre as

figuras do autor e do

narrador, sugerindo que ao

aceitar essa dissociação o

escritor abdica da

responsabilidade pelo

que escreve

oaut

orco

mon

arra

dor josésaramago

Vida

l Cav

alca

nte/

AE

Page 26: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9826

tolerância, muito parecida com a quecostumam usar as pessoas sensíveis na suarelação com as crianças e os velhos, unsporque ainda não sabem, outros porquejá esqueceram. É graças a tão generosoprocedimento que os professores deLiteratura, em geral, e os de Teoria daLiteratura, em particular, têm acolhidocom simpática condescendência � massem que se deixem abalar nas suasconvicções científicas � a minha ousadadeclaração de que a figura do narrador nãoexiste, e de que só o autor exerce funçãonarrativa real na obra de ficção, qualquerque ela seja, romance, conto ou teatro. Equando, indo procurar auxílio a umaduvidosa ou, pelo menos, problemáticacorrespondência das artes, argumento queentre um quadro e a pessoa que ocontempla não há outra mediação que nãoseja a do respectivo autor, e portanto nãoé possível identificar ou sequer imaginar,por exemplo, a figura de um narrador naGioconda ou na Parábola dos cegos, o que seme responde é que, sendo as artesdiferentes, diferentes teriam igualmente deser as regras que as traduzem e as leis queas governam. Esta peremptória respostaparece querer ignorar o facto, fundamentalno meu entender, de que não há, objecti-vamente, nenhuma diferença essencialentre a mão que guia o pincel ou o vapo-rizador sobre a tela, e a mão que desenhaas letras sobre o papel ou as faz aparecerno ecrã [tela] do computador, que ambassão, com adestramento e eficácia similares,prolongamentos de um cérebro, ambasinstrumentos mecânicos e sensitivoscapazes de composições e ordenações semmais barreiras ou intermediários que osda fisiologia e da psicologia.

Nesta contestação, claro está, não vouao ponto de negar que a figura do quedenominamos narrador possa ser de-monstrada no texto, ao menos, com odevido respeito, segundo uma lógicabastante similar à das provas definitivasda existência de Deus formuladas porSanto Anselmo... Aceito, até, a pro-babilidade de variantes ou desdobra-mentos de um narrador central, com oencargo de expressarem uma pluralidadede pontos de vista e de juízos consideradaútil à dialéctica dos conflitos. A perguntaque me faço é se a obsessiva atenção dadapelos analistas de texto a tão escor-regadias entidades, propiciadora, semdúvida, de suculentas e gratificantesespeculações teóricas, não estará acontribuir para a redução do autor e doseu pensamento a um papel de perigosasecundaridade na compreensão com-plexiva da obra.

Quando falo de pensamento, estou aincluir nele os sentimentos e as sensações,as idéias e os sonhos, as vidências domundo exterior e do mundo interior semas quais o pensamento se tornaria em puropensar inoperante. Abandonando qual-quer precaução retórica, o que aqui estouassumindo, afinal, são as minhas própriasdúvidas e perplexidades sobre a identidadereal da voz narradora que veicula, noslivros que tenho escrito e em todos quantosli até agora, aquilo que derradeiramentecreio ser, caso por caso e quaisquer quesejam as técnicas empregadas, o pen-samento do autor, seu próprio e exclusivo(até onde é possível sê-lo) ou delibe-radamente tomado de empréstimo, deacordo com os interesses da narração. Etambém me pergunto se a resignação ou

indiferença com que os autores de hojeparecem aceitar a �usurpação�, pelonarrador, da matéria, da circunstância edo espaço narrativos que antes lhe erampessoal e inapelavelmente imputados, nãoserá, no fim de contas, a expressão maisou menos consciente de um certo grau deabdicação, e não apenas literária, das suasresponsabilidades próprias.

Que fazemos, em geral, nós, os queescrevemos? Contamos histórias. Contamhistórias os romancistas, contam históriasos dramaturgos, contam histórias ospoetas, contam-nas igualmente aquelesque não são, e não virão a ser nunca,poetas, dramaturgos ou romancistas.Mesmo o simples pensar e o simples falarquotidianos são já uma história. Aspalavras proferidas, ou apenas pensadas,desde o levantar da cama, pela manhã,até ao regresso a ela, chegada a noite, semesquecer as do sonho e as que ao sonhotentaram descrever, constituem umahistória com uma coerência própria,contínua ou fragmentada, e poderão,como tal, em qualquer momento, serorganizadas e articuladas em históriaescrita.

O escritor, esse, tudo quanto escreve,desde a primeira palavra, desde a primeiralinha, é escrito em obediência a umaintenção, às vezes clara, às vezes escondida� porém, de certo modo, visível e óbvia,no sentido de que ele está sempre obrigadoa facultar ao leitor, passo a passo, dadoscognitivos que sejam comuns a ambos,para chegar finalmente a algo que,querendo parecer novo, diferente, original,já era afinal conhecido, porque, suces-sivamente, ia sendo reconhecível. Oescritor de histórias, manifestas ou

Livros de José Saramago� Terra do pecado, romance, 1947� Os poemas possíveis, poesia, 1966� Provavelmente alegria, poesia,1970� Deste mundo e do outro, crônica, 1971� A bagagem do viajante, crônica, 1973 *� As opiniões que o D. L. teve, crônica, 1974� O ano de 1993, poesia, 1975

� Os apontamentos, crônica, 1976� Manual de pintura e caligrafia, romance, 1977 *� Objeto quase, contos, 1978 *� Poética dos cinco sentidos, contos, 1979� A noite, teatro, 1979� Que farei com este livro?, teatro, 1980 *� Levantado do chão, romance,1980� Viagem a Portugal, crônica de viagem, 1981 *� Memorial do convento, romance, 1982 *

� O ano da morte de Ricardo Reis, romance, 1984 *� A jangada de pedra, romance, 1986 *� A segunda vida de Francisco de Assis, teatro, 1987� História do cerco de Lisboa, romance, 1989 *� O Evangelho segundo Jesus Cristo, romance, 1991 *� In Nomine Dei, teatro, 1993 *� Ensaio sobre a cegueira, romance, 1995 *� Todos os nomes, romance, 1997 *� Cadernos de Lanzarote, diário, 1994-1997*

* As obras assinaladas com asterisco foram lançadas no Brasil pela editora Companhia das Letras. As demais, editadas em Portugal, podem ser encomendadas à Livraria Portugal (ruaGenebra, 165, São Paulo, tel.: 011/3104-1748)

Page 27: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 27

disfarçadas, é portanto um mistificador:conta histórias e sabe que elas não são maisdo que umas quantas palavras suspensasno que eu chamaria o instável equilíbriodo fingimento, palavras frágeis, assustadaspela atracção de um não-sentido queconstantemente as empurra para o caos decódigos cuja chave a cada momentoameaça perder-se. Não esqueçamos,porém, que assim como as verdades purasnão existem, também as puras falsidadesnão podem existir. Porque se é certo quetoda a verdade leva consigo, inevita-velmente, uma parcela de falsidade,quanto mais não seja por insuficiênciaexpressiva das palavras, também certo éque nenhuma falsidade pode ser tão radicalque não veicule, mesmo contra a intençãodo mentiroso, uma parcela de verdade. Amentira conterá, pois, duas verdades: aprópria sua, elementar, isto é, a verdadeda sua própria contradição (a verdade estáoculta nas palavras que a negam), e a outraverdade de que, sem o querer, se tornouveículo, comporte ou não esta novaverdade, por sua vez, uma parcela dementira.

De fingimentos de verdade e deverdade de fingimentos se fazem, pois,as histórias. Contudo, em minha opinião,e a despeito do que, no texto, se nosapresenta como uma evidência material,a história que ao leitor mais deveriainteressar não é a que, liminarmente, lheé proposta pela narrativa. Um livro nãoestá formado somente por personagens,conflitos, situações, lances, peripécias,surpresas, efeitos de estilo, exibiçõesginásticas de técnicas de narração � umlivro é, acima de tudo, a expressão de umaparcela identificada da humanidade: o

seu autor. Pergunto-me até, se o quedetermina o leitor a ler não será umasecreta esperança de descobrir no interiordo livro � mais do que a história que lheserá narrada � a pessoa invisível masomnipresente do seu autor. Tal como oentendo, o romance é uma máscara queesconde e, ao mesmo tempo, revela ostraços do romancista. Com isto nãopretendo sugerir ao leitor que se entreguedurante a leitura a um trabalho dedetective ou antropólogo, procurandopistas ou removendo camadas geológicas,ao cabo das quais, como um culpado ouuma vítima, ou como um fóssil, seencontraria escondido o autor...

Muito pelo contrário: o autor está nolivro todo, o autor é todo o livro, mesmoquando o livro não consiga ser todo oautor. Não foi simplesmente para chocara sociedade do seu tempo que GustaveFlaubert declarou que Madame Bovaryera ele próprio. Parece-me, até, que, aodizê-lo, não fez mais do que arrombar umaporta desde sempre aberta. Sem faltar aorespeito devido ao autor de Bouvard etPécuchet, poder-se-ia mesmo dizer queuma tal afirmação não peca por excesso,mas por defeito: faltou a Flaubert acres-centar que ele era também o marido e osamantes de Emma, que era a casa e a rua,que era a cidade e todos quantos, de todasas condições e idades, nela viviam, casa,rua e cidade reais ou imaginadas, tanto faz.Porque a imagem e o espírito, o sangue ea carne de tudo isto, tiveram de passar,inteiros, por uma só pessoa: GustaveFlaubert, isto é, o autor, o homem, apessoa. Também eu, ainda que sendo tãopouca coisa em comparação, sou aBlimunda e o Baltasar de Memorial do

convento, e em O evangelho segundo JesusCristo não sou apenas Jesus e MariaMadalena, ou José e Maria, porque soutambém o Deus e Diabo que lá estão...

O que o autor vai narrando nos seuslivros é, tão-somente, a sua históriapessoal. Não o relato da sua vida, não asua biografia, quantas vezes anódina,quantas vezes desinteressante, mas umaoutra, a secreta, a profunda, a labiríntica,aquela que com o seu próprio nomedificilmente ousaria ou saberia contar.Talvez porque o que há de grande em cadaser humano seja demasiado grande paracaber nas palavras com que ele a si mesmose define e nas sucessivas figuras de simesmo que povoam um passado que nãoé apenas seu, e por isso lhe escaparásempre que tentar isolá-lo e isolar-se nele.Talvez, também, porque aquilo em quesomos mesquinhos e pequenos é a talponto comum que nada de novo poderiaensinar a esse outro ser pequeno e grandeque é o leitor.

Finalmente, talvez seja por algumadestas razões que certos autores, entre osquais julgo dever incluir-me, privilegiem,nas histórias que contam, não a históriaque vivem ou viveram, mas a história dasua própria memória, com as suas exacti-dões, os seus desfalecimentos, as suasmentiras que também são verdades, assuas verdades que não podem impedir-sede ser mentiras. Bem vistas as coisas, sousó a memória que tenho, e essa é a históriaque conto. Omniscientemente.

Quanto ao narrador, que poderá ele sersenão uma personagem mais de umahistória que não é a sua?

© LER 1997© LER 1997© LER 1997© LER 1997© LER 1997

Juan

Est

eves

Page 28: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9828

É José Saramago quem conta, noterceiro volume de seus Cadernos deLanzarote, que, quando defendeu a tesede doutorado na Universidade de Yale, nosEUA, Horácio Costa foi recriminadopelas lacunas bibliográficas do texto.Comenta o autor de Ensaio sobre a cegueira:�Horácio Costa não tinha culpa de queaté aí ninguém se tivesse interessadoseriamente pelo que andei a fazer nos anosdo eclipse, mas os meritíssimos professoresnão arredavam pé: uma tese em boa edevida forma, uma tese que se respeite,quer-se com bibliografia, e esta não tinha.Levaram tempo a perceber que o trabalhode Horácio Costa até nisso teria de serinovador: inaugurava a bibliografia quenão existia.�

O escritor português constata assimum dos pontos importantes de JoséSaramago � O período formativo, publicadoem Portugal pela Caminho. Ao analisar aprodução do autor anterior ao romanceLevantado do chão, ou seja, a 1980, Costatratou de obras (e questões) praticamente

ignoradas pela crítica até então. Com isso,pôde indicar nexos e propor interpretaçõesde grande utilidade para quem se dispusera estudar ou conhecer melhor o universoficcional de Saramago, ainda mais agoraque a parte (re)conhecida desse universofoi premiada com o Nobel de literatura.

A delimitação do campo de estudooferecia sérios riscos para o pesquisador,uma vez que a questão do valor da obraliterária é, na atualidade, muitas vezesposta de lado, o que implica a tentação tãocomum de superdimensionar o objetoanalisado (pressupondo-se � absurdaconseqüência � a supervalorização doanalista). Logo no início do estudo,entretanto, Costa demonstrou não teradotado essa postura ao afirmar anecessidade de �observar o secundáriocomo secundário�.

Outro risco corrido foi adotar a posiçãode, dentro do espaço de tempo escolhido,não excluir nenhum aspecto das atividadesde Saramago ligadas à literatura. Assim,estudou-se, com igual ênfase, o poeta, o

dramaturgo, o contista, o romancista, otradutor, o crítico e o cronista. Aí, pode-se dizer que a opção inspira ressalvas.Faltou separar com maior cuidado o queera secundário dentro do secundário, ou,para dizer de modo diferente, priorizar acompreensão do fundamental dentro douniverso textual escolhido. O trecho dolivro dedicado aos Poemas possíveis e aProvavelmente alegria ocupa, por exemplo,quase o mesmo espaço do trecho em quesão comentadas as atividades de Saramagocomo crítico literário e tradutor. E, no casoespecífico de Saramago, ambas, masprincipalmente a de tradutor, podem servistas mais como �curiosidade� do quecomo fonte de conhecimento efetivo sobrea obra.

Além da introdução e das conclusões,o livro traz sete capítulos, cada um relativoa um traço da expressão criativa deSaramago. No primeiro, Costa estuda oromance Terra do pecado � publicado peloescritor em 1947 e apenas recentementerelançado em Portugal �, enfatizando sua

osanosdo

José Saramago - O período formativoHorácio CostaEditorial Caminho386 págs. - R$ 64,27O livro pode ser encomendado àlivraria Portugal, rua Genebra, 165,São Paulo, tel.: 011/3104-1748

José Saramago - O período formativoHorácio CostaEditorial Caminho386 págs. - R$ 64,27O livro pode ser encomendado àlivraria Portugal, rua Genebra, 165,São Paulo, tel.: 011/3104-1748

CULT - dezembro/9828

Loba

to

Vida

l Cav

alca

nte/

AE

Page 29: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 29

feição naturalista e a defasagem estilísticae temática que este apresentava em relaçãoao que era feito em Portugal na época.

O capítulo seguinte trata dos dois livrosde poemas citados anteriormente, queforam lançados em 1966 e em 1970, respec-tivamente. Ao centrar a análise, com acerto,nas ligações da produção poética com afutura produção romanesca e acompanharas modificações introduzidas pelo autor nasedições �revistas e remendadas� publicadasnos anos 80, Costa compõe aquele que éum dos momentos mais interessantes dolivro, mostrando, por exemplo, como aobsessão que resultaria em O ano da mortede Ricardo Reis já se fazia presente em Ospoemas possíveis.

Os três capítulos subseqüentes lidamcom as crônicas (Deste mundo e do outro eA bagagem do viajante), com as peças (Anoite e Que farei com este livro) e com astraduções e críticas feitas pelo autor. Osexto capítulo, que estuda O ano de 1993 eA poética dos cinco sentidos � O ouvido, éparticularmente interessante por mostrar

a feição mais radical de um Saramagoexperimentalista, feição que terá fecundosdesenvolvimentos na dicção do escritor apartir de Levantado do chão, como se podeapreender pela leitura de um trecho de umdos fragmentos de O ano de 1993 citadopor Costa, que carrega em si uma vozquase reconhecível, um tom já muitofamiliar:

�As pessoas estão sentadas numapaisagem de Dalí com as sombras muitorecortadas por causa do sol que diremosparado

Quando o sol se move como acontecefora das pinturas a nitidez é menor e a luzsabe muito menos o seu lugar

Não importa que Dalí tivesse sido tãomau pintor se pintou a imagem necessáriapara os dias de 1993(...)�

No sétimo capítulo, Costa comenta oscontos de Objecto quase e o romanceManual de pintura e caligrafia, ambos jábastante conhecidos do leitor brasileiro.No conto �A cadeira�, o analista identificaquatro componentes fundamentais da

escrita do mais recente Saramago com quevinha trabalhando ao longo do texto: aprosa barroca, o discurso cinematográfico,a tendência a digressões e a posturacomprometida. Vale a pena notar que, setais características poderiam ser apontadascomo básicas à época em que o estudo foiescrito (o último romance lançado peloautor era, então, O Evangelho segundo JesusCristo), hoje em dia, com a publicação deEnsaio sobre a cegueira e de Todos os nomes,o romancista deu � mantendo as con-quistas discursivas � uma outra guinadaem sua trajetória, que, suspeito, tem raízesnão mais tanto no �período formativo� tra-balhado no estudo, mas no períodoseguinte, principalmente no tripé O anoda morte de Ricardo Reis, História do cercode Lisboa e O Evangelho segundo JesusCristo. Isso, porém, já é tema para umanova obra. Esta, José Saramago � O períodoformativo, cumpre com rigor aquilo a quese propusera.

Adriano SchwartzAdriano SchwartzAdriano SchwartzAdriano SchwartzAdriano Schwartzeditor-adjunto do caderno “Mais!” do jornal Folha de S. Paulo

Livro de Horácio Costa analisa o período em que oescritor português se dedicava a poesia, dramaturgia,tradução, crítica e crônica, mostrando como oSaramago de hoje já se insinuava nos livros anterioresao romance Levantado do chão

eclipsedesaramagoAdriano Schwartz

Page 30: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/983 0

: Título : Autor : Tradutor : Editora : Número de páginas : Preço

: Sobre o tempo: Norbert Elias: Vera Ribeiro: Jorge Zahar: 168 págs.: R$ 17,00

ENSA

IOTE

ATR

OTE

OLO

GIA

O sociólogo alemão Norbert Elias aproxima da esfera filosófica a análise do comportamentohumano ante a idéia do tempo. A pergunta inicial de Elias em Sobre o tempo é �Como é possívelmedir uma coisa que não se pode perceber pelos sentidos?�. Seu pressuposto é sociológico:lançamos mão de processos físicos, determinados pela sociedade, para substituir os processosnaturais de medição da passagem do tempo. Dessa simples constatação, o sociólogo elabora umraciocínio que explica a evolução da cronologia como orientação no fluxo incessante do devir.

O teatrólogo Augusto Boal, idealizador do Teatro do Oprimido, apresenta um sistema deexercícios (monólogo corporais), jogos (diálogos corporais) e técnicas de encenação para atorese não-atores � sua concepção de teatro considera que todos atuamos, interagimos, interpretamos.Jogos para atores e não-atores já teve 12 edições em inglês, 15 em francês e conta com versões naArgentina e em Portugal. Nesta edição brasileira, incluem-se novas práticas e exercíciosdecorrentes da experiência de Boal com atores da Royal Shakespeare Company de Londres.

: Jogos para atores e não-: atores: Augusto Boal: Civilização Brasileira: 360 págs.: R$ 30,00

A análise de best-sellers de circulação proibida à epoca da Revolução Francesa sugere aohistoriador Robert Darnton avaliar de que maneira esse tipo de literatura delineou a mentalidadefrancesa no século XVIII. Darnton revê o repertório de leitura setecentista na França e concluique as obras que os franceses realmente liam não eram de autoria de Rousseau e Voltaire, masobras de circulação clandestina: novelas pornográficas e biografias escandalosas de autorescomo Jean-Baptiste de Boyer, Louis-Sébastien Mercier e Pidansat de Mirobert.

: Os best-sellers proibidos: Robert Darnton: Hildegard Feist: Companhia das Letras: 456 págs.: R$ 34,50

Livro que integra a coleção Pequenas Biografias Insólitas, Julio Cortázar � A viagem comometáfora produtiva parte de textos capitais como O jogo da amarelinha e Os prêmios paraproblematizar a noção de verdadeiro e falso na obra de gêneros múltiplos do escritor argentino.Wolff debruça-se também em textos menos conhecidos de Cortázar, como Imagen de John Keatse Argentina: años de alambradas culturales, aproximando-o de Oswald de Andrade e Júlio Verne,escritores que tiveram o tema da viagem no centro de suas preocupações literárias.

: Julio Cortázar: Jorge H. Wolff: Letras Contemporâneas: 104 págs.: R$ 13,00

Borges em dez textos reúne ensaios de pesquisadores brasileiros e estrangeiros � dentre elesEneida Maria de Souza, Mark Millington e Wander Melo Miranda � sobre o universoficcional e a trajetória biográfica do escritor argentino. Os estudos examinam a confluênciaentre a memória, a reinvenção do passado e a construção detetivesca da narrativa borgiana, asconseqüências da cegueira em seu universo criador e sua concepção fictícia de vida. O livro éuma publicação do Núcleo de Estudos Latino-americanos da UFMG.

: Borges em dez textos: Maria Esther Maciel e: Reinaldo Marques (org.): Sette Letras: 148 págs.: R$ 16,00

Um dos mais importantes poetas e críticos literários do século XX, T. S. Eliot (1888-1965), autorde The waste land e Four quartets, tem sua obra analisada pelo crítico norte-americano Northrop Frye,que se notabilizou por estudos sobre Shakespeare, William Blake e a respeito da literariedade daBíblia. Frye elabora uma completa introdução à obra e ao pensamento de Eliot, abordando aspectosda poesia, do teatro e dos textos críticos do escritor norte-americano naturalizado inglês. Publicadopela primeira vez em 1963, o livro passou por uma revisão crítica em 1981.

: T. S. Eliot: Northrop Frye: Elide-Lela Valarini: Imago: 114 págs.: R$12,00

Resultado de uma série de conferências proferidas pelo escritor inglês Edward Morgan Foster(1879-1970) na Universidade de Cambrigde e publicado originalmente em 1927, Aspectos do romancereúne, em estilo irônico próprio ao autor, considerações sobre a estrutura e as tentativas de periodizaçãodesse gênero literário, a partir da obra de autores como Charles Dickens, H. G. Wells, Henry James,Virginia Woolf, Laurence Sterne e Aldous Huxley. Foster termina por não vaticinar sobre o futurodo romance, preferindo especular sobre as transformações do processo criador.

: Aspectos do Romance: Edward M. Foster: Maria Helena Martins: Globo: 158 págs.: R$ 15,00

Ao lado de outros dois documentos afins � A nobreza cristã da nação alemã e Da servidãobabilônica da Igreja �, o tratado Da liberdade do cristão forma a base do luteranismo e deflagra oinício da Reforma Protestante. Quando da publicação do texto, em 1520, Lutero estavaameaçado de excomunhão pela Igreja de Roma (o que, de fato, aconteceria no ano seguinte)devido à sua campanha contra o pagamento de indulgências. Sob a proteção do príncipe FredericoIII, Lutero traduziu a Bíblia para a língua alemã, tarefa concluída em 1534.

: Da liberdade do cristão: Martinho Lutero: Erlon José Paschoal: Unesp: 128 págs.: R$ 14,00

CR

ÍTIC

APS

ICO

LOG

IA : As palavras de Freud: Paulo César de Souza: Ática: 288 págs.: R$ 29,00

As palavras de Freud � O vocabulário freudiano e suas versões, originalmente tese dedoutoramento em Língua e Literatura Alemã na USP, é um estudo detalhado da terminologiados textos de Sigmund Freud. Paulo César de Souza promove uma revisão filológica de algunstermos técnicos centrais na obra psicanalítica de Freud, cuja controvérsia é ampla no campo dapsicanálise. O estudo toma por referência as traduções francesas e inglesas de textos como osensaios metapsicológicos e História de uma neurose infantil.

TEO

RIA

LIT

ERÁ

RIA

Page 31: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

novembro/98 - CULT 3 1

(...)Vi Jesus Cristo descer à terra. (...)Tinha fugido do céu.Era nosso demais para fingirde segunda pessoa da Trindade. (...)Hoje vive na minha aldeia comigo.É uma crainça bonita de riso e natural.Limpa o nariz ao braço direito,chapinha nas poças de água.Colhe as flores e gosta delas e

[esquece-as. (...)A mim ensinou-me tudo.Ensinou-me a olhar para as coisas.Mostra-me como as pedras são

[engraçadasquando a gente as tem na mãoe olha devagar para elas. (...)Ele mora comigo na minha casa

[a meio do outeiro. (...)Dá-me uma mão a mime a outra a tudo que existee assim vamos caminhando os três pelo

[caminho que houver,saltando e cantando e rindoe gozando o nosso segredo comumque é o de saber por toda a parteque não há mistério no mundoe que tudo vale a pena.Ele dorme dentro de minha almae às vezes acorda de noitee brinca com os meus sonhos,vira uns de perna para o ar,põe uns em cima dos outrose bate as palmas sozinhosorrindo para o meu sono. (�)Esta é a história do meu Menino Jesus.

Pela mesma época em que se publicava a página aquireproduzida de Fon-Fon, Fernando Pessoa, aliás AlbertoCaeiro, contava um sonho maravilhoso. Não me custa

acreditar que ele tenha escrito tão encantadores versos numanoite de Natal, em que pese tê-los sonhado �num meio-dia

de fim de primavera�:

Page 32: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/983 2

O movimento crítico hoje conhecidocomo new historicism originou-se nosEstados Unidos, em 1988, por meio depropostas apresentadas por StephenGreenblatt em seu livro Shakespeareannegotiations: The circulation of social energyin Renaissance England. Nas páginas dessaobra, o estudioso proclama o desejo defalar com os mortos. Em franca oposiçãoà orientação lingüística da análise textualdefendida pelo estruturalismo e pelosremanescentes do new criticism, tal decla-ração tinha por objetivo restaurar polemi-camente a dimensão histórica dos estudosliterários.

Apropriando-se de noções da teoriados discursos de Michel Foucault e dealgumas posições do relativismo des-construcionista de Jacques Derrida,Greenblatt recusa-se a entender a lite-ratura como fenômeno isolado das de-mais práticas sociais. Ao contrário, inter-preta-a como uma dentre as muitasestruturas em que se pode ler o espíritode uma época. Como discurso, a literaturacaracteriza-se antes de tudo como prática

Influenciado pelas obras de Michel

Foucault e Derrida, o new historicism

de Stephen Greenblatt afirma que a

produção poética está incrustada no

discurso coletivo de seu tempo,

restaurando a historicidade do texto e

postulando a textualidade da história

Série destaca as principaistendências da crítica literária

�Fortuna Crítica� é uma série de seisartigos do ensaísta Ivan Teixeira sobreas principais correntes da crítica lite-rária. As escolas de interpretação poé-tica abordadas até este último texto fo-ram a retórica de Aristóteles e Quin-tiliano (publicado na CULT 12, em ju-lho), o formalismo russo (CULT 13, agos-to), o new criticism (CULT 14, setem-bro), o estruturalismo (CULT 15, outu-bro) e o desconstrucionismo (CULT 16,novembro). Ivan Teixeira é professor doDepartamento de Jornalismo e Editora-ção da ECA-USP, co-autor do materialdidático do Anglo � Vestibulares de SãoPaulo (onde lecionou literatura brasilei-ra durante mais de 20 anos) e autor deApresentação de Machado de Assis(Martins Fontes) e Mecenato pombalinoe poesia neoclássica (a sair pela Edusp).Tem-se dedicado a edições comentadasde clássicos � entre eles, as Obraspoéticas de Basílio da Gama (Edusp) ePoesias de Olavo Bilac (Martins Fon-tes) � e dirige a coleção �Clássicos parao vestibular�, da Ateliê Editorial.

social, na qual se inscrevem não sóelementos da língua adotada, mas tam-bém das instituições e das convençõessegundo as quais se forma o repertóriodo autor. Conforme a expressão de LouisMontrose, outro defensor do novométodo, o crítico deve captar simultanea-mente a historicidade do texto e atextualidade da história. Partindo dessaperspectiva, o new historicism procurarestaurar a forma mental da épocaestudada, o que acaba por criar um objetopróprio de pesquisa literária � objetopróprio mas multifacetado, a queGreenblatt, apropriando-se da termino-logia do antropólogo norte-americanoClifford Geertz, chama cultura em ação.

A integração da literatura no âmbitodos signos sociais obriga o entendimentodo discurso histórico não como contexto,mas como texto de uma época. Conformeos pressupostos foucaultianos do newhistoricism, a produção poética de umautor deve necessariamente ser consi-derada como discurso singular incrus-tado no discurso coletivo de seu tempo.

F O R T U N A C R Í T I C A 6

N E W H I S T O R I C I S MIvan Teixeira

O crítico Stephen Greenblatt

Foto

s Re

prod

ução

Page 33: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 3 3

Não se trata de entender a obra comoreflexo do contexto e muito menos deconsiderar a história como pano de fundopara uma compreensão supostamentepolitizada da obra. Trata-se, ao contrário,de entender a produção artística comoparte integrante de um discurso maisamplo, o discurso histórico, do qual aobra de arte participa como se fosse fraseintercalada ou procedimento retórico.

Hayden White, que também partilhada necessidade da renovação dos estudosculturais, julga que o discurso historio-gráfico possui a mesma natureza dodiscurso literário, chegando a aplicarcategorias importantes da crítica literária,como os gêneros e os tropos de linguagem,à classificação das diversas modalidadesde historiografia. Estabelece-se, assim,uma relação de homologia entre históriae literatura, e não apenas uma relação decomplementaridade. As manifestaçõesculturais de um período nada mais sãodo que uma constelação de signos darealidade que as compõe. A obra de arteintegra essa constelação, a que StephenGreemblatt chamou poética da cultura, noensaio �Towards a poetics of culture�, de1987.

Segundo Foucault, as vozes do temposão variadas e quase infinitas, mas podemser sintetizadas pela idéia de episteme,entendida como o modo de articulaçãoentre os vários discursos que compõem ahistória de um povo: política, arte,poética, ética, moda etc. O pensadorfrancês não entende a história comonarrativa ou análise dos acontecimentosem sua relação de causa e efeito, mascomo um imenso discurso gerado pelavida orgânica das ocorrências físicas eespirituais de determinado momento. Anoção de episteme foucaultiana implicao afastamento de qualquer crença univer-salizante, pois explica os valores emtermos estritamente sociais, sem nenhumrecurso à metafísica. Cada época cria opadrão que estabelece a noção de certoou errado, de belo ou feio, de falso ou

verdadeiro etc. Os valores essenciais dospovos são sempre circunstanciais e su-jeitos ao jogo transitório das formulaçõeshistóricas, das quais depende a escolhadas instituições e das pessoas que elabo-ram e preservam o código que regula arelação entre os indivíduos e destes comos padrões e os valores vigentes.

Outro traço importante do pensa-mento foucaultiano é a idéia de que a

O ensaio mais célebre de Greenblatttalvez seja �Resonance and wonder�, de1990. Nesse texto, o autor enumera trêscaracterísticas essenciais do velho histo-ricismo: (1) crença na idéia de que ahistória é presidida por um processoinexorável e cujo curso o homem pratica-mente não pode alterar; (2) convicção deque o historiador deve evitar juízos devalor em seu estudo do passado ou deculturas antigas; (3) veneração do passadoou da tradição.

Greenblatt opõe-se a essas trêscategorias, propondo alternativas polê-micas para elas. A primeira grandediferença entre o historicismo tradicionale o novo historicismo consiste na incor-poração da idéia de história como dis-curso: a história não é o fato, mas o regis-tro dele. Essa noção não se esgota nopreceito marxista segundo o qual aperspectiva do historiador determina anatureza política do registro. Trata-se dealgo mais. Para que o fato se converta emhistória é preciso primeiro assumir acondição de discurso, de logos, o que nãoquer dizer que o evento deva necessa-riamente atingir condição de enunciadoverbal para ser história, mas sim mani-festar-se num sistema autoconsciente designificação social. A morte absoluta-mente ignorada de um indivíduo nodeserto não pertence à história. Mas oassassinato secreto de um sem-terra nosconfins de uma fazenda do Mato Grossoé história, porque se insere num processocatalogado pela consciência social domomento. Nesse sentido, a história não éfeita pelo homem (categoria metafísica),mas por homens em busca de significação(categoria circunstancial). Não se trata,portanto, de um processo absoluto eirreversível, mas do resultado impre-visível de situações concretamente assi-miláveis.

Em sua refutação do segundoprincípio do historicismo tradicional,Greenblatt afirma que o passado deveser entendido pela perspectiva do

história não é teleológica, quer dizer, nãose orienta para um fim racionalmenteconcebido pelo próprio devir das insti-tuições e dos fatos, como pensava a tra-dição metafísica. A concepção teleo-lógica da história elege o presente comoo ponto de chegada de todos os esforçosdo homem. Foucault, ao contrário, nãoentende o presente como espaço privile-giado no tempo. Interpreta-o apenascomo o lugar de onde se produz o conhe-cimento, do qual decorrem os discursose as várias formas de poder de uma época.

O crítico Hayden Whiteencontra uma relação de

homologia entre o discursohistoriográfico e o discurso

literário, aplicandocategorias como gêneros e

tropos de linguagem aosrelatos dos historiadores

Page 34: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/983 4

presente, isto é, partilha da idéia danecessidade de juízos de valor sobre opassado. Todavia, temeroso talvez dedestoar da doutrina foucaultiana,Greenblatt não deixa de problematizar aaplicação desses juízos, criando umaestratégia operacional a que chama sensode distanciamento. O senso de distancia-mento leva-o a ratificar a noção de que opresente não decorre de suposta inevita-bilidade histórica (recusa da históriacomo progressão teleológica), devendoser entendido apenas como o ponto apartir do qual se reconstrói o passado.

Além disso, o ensaísta considera quehá dois modos de relacionamento entrepassado e presente: por analogia e porcausalidade. Em qualquer dos casos, julgainevitável a presença de juízos de valor,pois afirma que a suposta isenção do velhohistoricismo não passa de subserviênciaaos valores oficiais do Estado e aos estudosacadêmicos, visto que a consciência daimpossibilidade de isenção do historiadorna formulação do discurso históricoconduz ao cerceamento da imposiçãoarbitrária de valores atuais sobre o passado.

Quanto ao terceiro item do paralelode Greenblatt entre o velho e o novohistoricismo, não parece necessário dizerque o ensaísta recusa a teoria da vene-ração do passado e da tradição. Aocontrário, empenha-se em criar categoriassubstitutivas que incorporem e repre-sentem uma visão crítica da história. Emlugar da veneração, propõe o sentimentode maravilha (wonder), responsável pelodesencadeamento do trabalho historio-gráfico, que não deve apenas se dedicar àreconstrução da totalidade de culturas,mas também se empenhar na análise damarginália dos processos unificadores,como fragmentos de lendas, acusações debruxaria, manuais médicos � pormenoressimbólicos que, segundo Greenblatt,revelam toda a estrutura imaginária eideológica da sociedade que os produziu.

Nesse sentido é que se deve entender areveladora afirmação de que uma peça de

Shakespeare se reveste de tanta atitudepolítica quanto se revestiu de propriedadesdramáticas a coroação de Elizabeth I. Emoutros termos, o new historicism atenua oslimites entre discurso artístico e discursosocial, entendendo aquele como projeçãoda estrutura deste. Não se trata, repita-se,

escreveu também um admirável poemaherói-cômico: O desertor (1774), com-pletamente esquecido hoje em dia. Aescassa fortuna crítica desse texto se deveprincipalmente ao magistério da inter-pretação romântica, que, por força de seunacionalismo, desqualificou o poema sobpretexto de não apresentar interesse paraa formação da literatura propriamentebrasileira.

Pela perspectiva do new historicism,esse não seria o modo correto de ler Odesertor. Tendo sido escrito como parte dacelebração da reforma da Universidadede Coimbra, levada a efeito pelo Marquêsde Pombal em 1772, esse texto deve serrestituído ao discurso social de que fezparte. Nesse caso, caberia ao críticorecompor o universo do mecenatopombalino e estudar as instituições e osvalores que o ministro representava.Caberia também investigar o rigorosorepertório coletivo de convenções queestabelecia desde as tópicas literárias(coisas retóricas) e o modo de apro-priação delas até os princípios de organi-zação da frase e do poema. Efetuada essaoperação, O desertor talvez renascesse paraa sensibilidade atual, que poderia apreciarnele não apenas a deliciosa ironia contraa neo-escolástica jesuítica, mas tambémo sugestivo encômio alegórico aoMarquês de Pombal, cuja políticacolocava então a cultura lusitana emcontato com o discurso ilustrado europeu.

O mesmo se pode dizer dos versos queBasílio da Gama, mentor de SilvaAlvarenga na propagação do ideáriopombalino, escreveu para os festejos dainauguração da Estátua Eqüestre de D.José I (1775), erigida por Pombal emhomenagem ao rei. Os festejos dessainauguração incorporaram diversostraços retóricos da alegoria poética, assimcomo os textos celebrativos do evento seapropriaram de outras tantas fórmulaspolíticas do Antigo Regime. Dentreoutras coisas, esse monumento repre-sentou a glorificação da carreira política

de entender a arte como reflexo ou comoproduto condicionado por elementosexteriores a ela, como fazem supor certasaplicações do marxismo. Cumpre apenasentendê-la como parte de discurso maisamplo, para cuja compreensão é necessáriodesintegrá-la do todo e, depois, emmovimento heurístico, reintegrá-la aoorganismo de que é parte.

Tome-se um exemplo da literatura emlíngua portuguesa. Como se sabe,Manuel Inácio da Silva Alvarenga, autorde Glaura (1799), o mais prestigiadopoema lírico do setecentismo brasileirodepois de Marília de Dirceu (1792),

Há uma homologiahistórica e artística entre

a Estátua Eqüestre deD. José I e a retórica

celebrativa contida napoesia de Silva Alvarenga

e Basílio da Gama

Page 35: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 3 5

� �Towards a poetics of culture�, deStephen Greenblatt. Em The newhistoricism, editado por H. AramVeeser. Nova York/Londres, Rou-tledge, 1989.� �Resonance and wonder�, deStephen Greenblatt. Em Literarytheory today, editado por Peter Colliere Helga Geyer-Ryan. Ithaca, NovaYork, Cornell University Press, 1990.� �Introduction�, de H. Aram Veeser.Em The new historicism, editado porH. Aram Veeser. Nova York/Londres,Rouledge, 1989.� �What is the new historicism?�, deRoss C. Murfin. Em The dead, de JamesJoyce. Editado por Daniel R. Schwarz.Boston/Nova York, Bedford Books ofSt. Martin�s Press, 1994.� �New historicism�, de Charles E.Bressler. Em Literary criticism: Anintroduction to theory and practice .Englewood Cliffs, Nova Jersey,Prentice Hall, 1994.� New historicism and culturalmaterialism, de John Brannigan. NovaYork, St. Martin�s Press, 1998.� Meta-história: A imaginação históricado século XIX, de Hayden White.Tradução de José Laurêncio de Melo.São Paulo, Edusp, 1995.� Trópicos do discurso, de Hayden White.Tradução de Alípio Corrêa de FrancaNeto. São Paulo, Edusp, 1994.� Possessões maravilhosas, de StephenGreenblatt. Tradução de Gilson CésarCardoso de Souza. São Paulo, Edusp,1996.� A ordem do discurso, de MichelFoucault. Tradução de Laura Fraga deAlmeida Sampaio. São Paulo, EdiçõesLoyola, 1996.

B I B L I O G R A F I A

de Pombal, verdadeira apoteose em vida:na parte superior do monumento, acimade tudo, com ares emblemáticos, vê-se afigura alegórica de um rei abstrato,cavalgando um heráldico cavalo sem vida.Em baixo, como suporte do conjunto emque se eleva o rei, ostenta-se o busto domarquês, com traços singulares, estiliza-dos como retrato de Sebastião José deCarvalho e Melo. Enfim, o monumentoencarna a idéia de que Pombal era a baseda sustentação política do Rei, noção quese transformou em coisa retórica na artedo período. Homóloga à concepçãoarquitetônica da Estátua Eqüestre, atópica de Pombal como base do poderreitera-se em diversos momentos dapoesia de Basílio da Gama, dos quais osversos seguintes, extraídos de diferentespoemas, podem servir de exemplo:

Reconheço a JOSÉ. POMBAL eu vejo,Que a Coroa na testa lhe sustinha.Reverente me inclino, e o Cetro beijo.

�A mão, seguro arrimo da coroa,A mão que da ruína ergueu Lisboa.

Assim, a produção de épocas passadassó ganha sentido artístico no presentequando posta em situação histórica,quando entendida como projeção de umacultura em ação, regida por traçosespecíficos que devem ser arqueolo-gicamente restaurados. Ao abordar as

relações entre arte e história, a críticatradicional fala em alusão, símbolo,alegoria, representação e, sobretudo, emmimesis. Considerando esses termosinsuficientes, Greenblatt proclama anecessidade da criação de nova termi-nologia, capaz de descrever satisfato-riamente a transferência da matéria deuma esfera discursiva para outra e, aomesmo tempo, capaz de explicar atransformação do discurso histórico emdiscurso estético. Qualquer que seja asaída, o ensaísta enfatiza que a trans-ferência não se processa numa só direção,porque o próprio discurso histórico játraz em si inúmeras propriedadesestéticas.

Dentre as inúmeras contribuições donew historicism para o exercício profissionalda crítica, talvez a mais instigante (e útil)seja a ratificação da idéia do Belo comodecorrência de convenções históricas.Subjaz à sua visão do fenômeno literário oprincípio de que a beleza ou a qualidadeartística não decorrem da Graça nemexclusivamente do talento individual.Resultam, antes, da conformidade dasaspirações do artista com os padrões e como repertório de sua época. Embora ele-mentar, essa noção, que necessariamenteimplica a atenuação de certezas transcen-dentes, não parece suficientemente acli-matada nas manifestações diárias do debateliterário entre nós.

O filósofofrancês MichelFoucault dá o

nome de epistemeà articulação

das várias vozesque compõem

um imensodiscurso geradopor determinadorecorte histórico

Div

ulga

ção

Page 36: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 3 7

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

HONG-KONG e outros poemas○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Antônio Moura

3 7

POESIA

dezembro/98 - CULT

Page 37: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/983 8

A revista CULT publica mensalmente a seção CRIAÇÃO � um espaço destinado a poemas, contos e textos literáriosinéditos. Os originais � contendo no máximo 150 linhas de 70 caracteres � serão avaliados e selecionadospela equipe da revista CULT. Os trabalhos e os dados biográficos do autor (incluindo endereço e telefonepara contato) podem ser enviados via e-mail ou pelo correio (nesse caso, os originais impressos devemobrigatoriamente ser acompanhados pelo texto em disquete, gravado no formato Word). O endereço da revistaCULT é Rua Rui Barbosa, 70, São Paulo, SP, CEP 01326-010, e-mai l : lemospl@netpoint .com.br

OUTRA MANHÃ

Por detrás do verde monte(não-verde-olivanão-verde-musgoverde-não-verdenão-verde-mar)

por detrás do verde monte(não-verde-mata

ver de perto: entulho)por detrás do verde-azinhavrado montede sucata, surge sujo

banhado em ouro, grafitado� cicatrizes, placas, logomarcasconfusa cabala, restos de cartazes,frases, chagas � crivado de balas

osol

e ao fundocanto imaginário do galogarganta jorrandodo pescoço decepado(gargalo)ao esgoto escuroo sanguereencarnado: outra manhã no mundo

LI SHANG YIN, LI-OE não a vi, não a vejo hoje

Raio parta o vento lestese não lesteisto: vento

casulo sonorodesenclausuradopara teu olvido

À tua senda ainda há tempo?

Sedentos de poeiraos cadarços da partida

S A B Á

Na noite surda de tamboreslambo nomes, lâmina e veludo,iludido pelo sangue do amorna rosa negra

estrela de granito sobre a erva

o sangue do amor ardendo negroao sim sibilo espada adaga farparubra ao som do nome decepadosábado na dança dos escravos

ao céu da noite surda de tambores

flores pelos no mênstruo sanguedas possuídas, hidras entre as sombrascrescendo, ao õ da onda, ronda dosdemônios, domínios da noite

Page 38: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 3 9

Antônio Moura

nasceu em Belém do Pará em 1963 e é autor do livro de poemas Dez,publicado em 1996; como roteirista de cinema e vídeo trabalha atualmente

no projeto de um filmede média metragem intitulado Benedito, baseado na biografia do filósofo

e crítico literário Benedito Nunes, com previsão de lançamento para 1999.

J U L H O

nuvens nuvens nuvens

rufando

branca pupila

tambores brancos� entrando �velho varão, varando� fogo branco �

a noite ostra

cobrindo de fina camada brancaa cama da brancaninfo-suicida

ornando(flores de gelo)de branco a brancaante-sala da morte � a friafímbria dos dias

irmã de outrofrio, dedentro

in(opássaroalçaseu vôoem brasa)verno

HONG-KONG

Paira sobre as cabeçasuma alta quantia de estrelas

Na terra olhos vendadosonde se lê grafitado: à venda

Sobo céuesticado � tenda �o burburinho-mercadoprega(pregão)a milhõe$ $ $ $ $ $de planetas

� nuvens com etiquetas �

à noite o sol é ouro especulado

NUMA ESTAÇÃO DOMETRÔ, AROUND1916 d.c., a aparição dasfaces na multidão, pétalasnum ramo escuro úmido,dilata a pupila de Ezra,enquanto outra turba(a mesma?) se despetala:um tiro (a esmo) desfolhaa bala a rosa da multidão,numa estação do metrô,1998 d.c.

Page 39: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/984 0

Salvar as aparências, ainda maisquando se trata de um marido traído, é acoisa mais velha do mundo. A idéia delavar a honra com sangue, então, é daidade do homem, especialmente se otraidor é o melhor amigo.

Admitir que sente saudade da mulheringrata, apesar de tudo, já requer umesforço de modernidade de que o apertadocódigo moral do século XIX ainda não sejulgava capaz, muito menos no conser-vador mundo ibérico. Mas foi justamenteo português Eça de Queiroz (1845-1900)quem fez uma curiosa demolição de algunsdos mais sagrados preceitos do machismonuma novela quase desconhecida dopúblico, Alves & Cia.

Timidez não era coisa de Eça, queescandalizou sentimentos mais deli-cados com livros densos como O primoBasílio , em que também abordou oadultério e de maneira bem maisimplacável. E o que se dirá de Os Maias,em que ele não vacila em retratar oincesto entre irmãos? Mas o fato é que,por motivos ignorados, Eça deixou

inédita essa novela, escrita em 1883.Coube a seu filho resgatá-la da famosamala de ferro onde o autor guardava seusoriginais, mandando-a publicar mais de40 anos depois, em 1925 � uma épocaem que pareceu bem mais natural umaheroína vagamente pré-feminista comoLudovina.

Tamanha é a universalidade dasemoções do triângulo amoroso desse livroque nada se estranha quando sua trama étransposta de Portugal para o Brasil doséculo XIX no filme Amor & Cia., deHelvécio Ratton, que em boa horaadaptou essa saborosa comédia de cos-tumes.

Quase visionário, pois não conheceuo cinema em seu tempo, Eça teceintuitivamente personagens e situaçõesextremamente cinematográficas, transpa-rentes em suas ações e psicologia. Todo otrabalho do diretor e do roteirista CarlosAlberto Ratton residiu em transformarem diálogos os intensos pensamentos dostrês protagonistas, Godofredo Alves(Marco Nanini), sua mulher, Ludovina

Alves & Cia., texto

póstumo de Eça de

Queiroz, ganha adaptação

para o cinema em filme

dirigido por Helvécio

Ratton, que transformou

um triângulo amoroso

vivido em Portugal em

uma saborosa comédia de

costumes passada no Brasil

C I N E M A

Page 40: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 4 1

(Patrícia Pillar), e o sócio e melhor amigo,Machado (Alexandre Borges).

Vencendo o desafio de traduzir empalavras a trama, o filme acerta em imitaro livro também na contenção: nem umnem outro contam tudo, deixandotrabalho à imaginação do leitor/espec-tador para complementar as lacunas.Acompanha-se, em largas pinceladas, oflagrante de Alves na mulher, de mãosdadas com Machado em sua própria sala,a fuga do sócio e a expulsão de Ludovinapara a casa do pai, o sr. Neto (RogérioCardoso).

Na figura desse pai, mais delineada nofilme que no texto, concentra-se ummodelo de pragmatismo burguês. Acimadas filigranas da sensibilidade moral, Netoprocura Alves antes de tudo para arrancar-lhe uma pensão que lhe permita sustentara filha devolvida a seus cuidados. Dequebra, a renda extra garante bem-vindasférias na praia a Neto e sua amante e ex-escrava (Sônia Siqueira).

Livro e filme depositam seu centrodramático num impasse: a realização de

um duelo. Um achado do roteiro está nainvenção do personagem do farmacêuticoAsprígio (Nelson Dantas), que discuteas peculiaridades da situação, quefinalmente horrorizam Alves. Depois derecomendar a distância entre osoponentes de dois passos, �porque a doispassos ninguém erra�, Asprígio tececonsiderações sobre a escolha das armase os efeitos dos ferimentos. �Com espada,há sempre risco de gangrena. À bala, osujeito fica cego ou idiota�, esmera-se emdetalhes o cruel conselheiro.

Desnecessário dizer que o tom defarsa que conduz a narrativa nãopermitirá uma solução assim levada àsúltimas conseqüências. O medo damaledicência, a vontade de conservar alucrativa firma de exportação em queos rivais são sócios e, finalmente, a faltaterrível que Alves sente da mulherabrem as portas para uma saídanegociada.

O filme é feliz em sustentar o tom deironia do livro, que permite um risinhocontido no canto da boca diante das

hesitações dos personagens, especialmentedo Alves, o centro da história. Mantém-se, assim, fidelidade à fina engenharia deEça, que pouco a pouco desmonta ainsinuação da tragédia.

Quanto à conclusão, pode-se dizerque o filme, mais irônico, pede deempréstimo um certo clima de outroclássico da literatura, Dom Casmurro, deMachado de Assis, apenas tomando ocuidado de evitar a amargura desta obra.Na tela, batiza-se um certo bebê a quemo escritor português optou por fazerapenas uma vaga menção, deixando-o delado sem decifrar-lhe a história.

Finalmente, não será pouco se Amor& Cia. levar mais leitores à descobertadesse texto saboroso e curto de um dosmaiores escritores da língua por-tuguesa. Apesar dos mais de cem anosque os separam, livro e filme dialogamde modo tão harmonioso que se podefalar numa verdadeira parceria a dis-tância.

Neusa Barbosajornalista e crítica de cinema

triângulo à brasileiratriângulo à brasileira

O LIVROAlves & Cia.

Eça de QueirozEditora Imago

108 págs. � R$ 15,00

O FILMEAmor & Cia.

Direção de Helvécio RattonCom Marco Nanini,

Patrícia Pillar eAlexandre Borges

dezembro/98 - CULT 4 1

Marco Nanini, entrePatrícia Pillar e Alexandre Borges,protagonistas de Alves & Cia.Na foto da direita, o casal Alves,pivô da trama.

Page 41: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/984 2

A poesia de R. Roldan-Roldan ressalta-sepor uma ardorosa exigência: encontrar (ou res-gatar) na relação erótica com a língua portu-guesa (idioma de chegada do autor e não deorigem) sua singularidade.

Homo viator ou andarilho que incorporou àobra sua própria condição de �errante�, Roldannasceu na Europa e passou a infância em Tân-ger, cidade onde o Mediterrâneo e o Atlânticose encontram e que acolheu tantos artistas eescritores como Delacroix, Bowles, Genet,Beckett.

Literatura, errância, o outro. Lembremosque antes mesmo de Rimbaud, Nerval empre-endera uma viagem ao Oriente para encontrar-se no outro. �Eu sou o Outro�, escreveu numafotografia sua, prenunciando a célebre fórmulado enfant terrible da literatura francesa. Afinal, aidentidade (ou sua falta), esta obsessão deRoldan-Roldan, nada mais é do que uma fusãode diferenças, e o sujeito, que a sintetiza, apresença oscilante de seus efeitos: �dissipo-me/humilde/ ínfimo/ feto/ pó�, lê-se em Os úberesdo infinito.

Em outro momento, o sujeito poético senomeia �nas intermitências dos reflexos� e nos�arabescos marinhos�. Estes últimos já con-figuram certa ilegibilidade algo emblemáticana junção das formas; simulam, pois, um con-junto amorfo de traços obscuros (a naturezados rabiscos), sorte de torções sem mira, a ges-tualidade pura ainda não decidida pelo sentido(ou temendo seu risco), que visa a si mesma:livre fluir, impulso, corpo. Os arabescos do poe-ma ainda participam da água e de seu símbolo;são como espuma, este signo natural do marsalino (seu excesso), cuja finalidade última édesmanchar-se livremente pelos séculos.

O sujeito dá sinais flagrantes de vida... edesaparece. Seu regime é o da �intermitência�,que aliás define a sensualidade da linguagem e oprazer do texto, segundo Roland Barthes. Para

este, o prazer textual não possui �zonaserógenas� à maneira de um corpo, mas produz-se por um jogo de aparição-desaparição dosentido, a intermitência. Por analogia, é o queocorre quando, por exemplo, a blusa da colegialsobe e seu umbigo reluz na pele bronzeada. Oefeito dura enquanto o movimento persiste. Éuma espécie de �satori� da sensualidade. Certostextos cintilam, tornando-se de certo modosensuais, eróticos. Mas o fato de terem sidoproduzidos no prazer não garante o prazer daleitura. O que para Barthes parece ser eficazcomo motor do prazer textual é a �significância�,o sentido produzido sensualmente. O prazer dotexto é, assim, uma questão de forma e efeito.

Se o eu lírico perdeu a fixidez, tornando-seum efeito de linguagem na poesia moderna, amalha desse jogo de esconde-esconde, a poesia,constitui-se ela própria num espaço de seduçãopara o olhar que, sensualmente, vai preenchendoas lacunas do sentido. Cada poeta imprime nesteespaço seu próprio movimento. Nasce disso asingularidade de cada um.

Atuando sob o regime textual da inter-mitência, Roldan-Roldan se faz valer de umcruzamento do erotismo com o sagrado. Seuspoemas, que têm a forma de uma oração, protes-tam contra o nosso tempo e sua lógica e assimcontra a lei cartesiana da medida e da ordem,como expressa na paráfrase �rebelo-me logoexisto�. Nesse espaço esvaziado da religião, daética, da beleza, o autor sinaliza com uma poéticaem cujo centro está a celebração do gozo e aexigência de que um poema só deve ser tratadocomo corpo.

Quanto ao erotismo das palavras, poder-se-ia perguntar a partir de quando a Literaturase tornou consciente de sua sensualidade. Nãome refiro, é claro, aos textos de representaçãoque põem em cena o erotismo; estes, comoobservou Roland Barthes, são textos do desejo,da �expectativa�, não do Prazer.

Na Antiguidade, a sensualidade não chegoua configurar-se em topos, em gênero literário,como o amor e sua renúncia. Atenta aos artifíciosda persuasão, a retórica se ocupou mais com asmodulações da voz e seus efeitos, que poderíamostraduzir modernamente por técnicas de sedução.Mas Santo Agostinho, nos primeiros séculosda era cristã, alertou para o perigo que chamoude �voluptuosidade destes olhos da minhacarne�. Os olhos que amam a beleza e a varie-dade das formas, enfim, que se deleitam com asimagens sensuais da beleza. A questão de Agos-tinho é se os atrativos da beleza não acor-rentariam a alma, interferindo no canal que aleva a Deus.

Bem mais tarde, no século XVI, o místicoespanhol São João da Cruz, a exemplo de outrosreligiosos, faria da poesia uma forma de devoçãoa Deus. Tal panteísmo também está presentena obra de Roldan-Roldan, cuja poesia exibeseu desconforto com as coisas de nossa era desti-tuída do sagrado, vale dizer, do erotismo ritua-lístico que, em essência, como bem demonstrouBataille, não se distingue da Religião. Na poesiados sufis persas, as imagens mais lascivas, asexpressões mais ardentes da paixão física servempara lembrar os júbilos, os êxtases da alma emsua comunhão com Deus.

Se Roldan-Roldan produz textos quebuscam dar visibilidade ao gozo, que, naspalavras do psicanalista Jacques Lacan, é aquiloque não pode ser dito, nos revela, a despeito,nas litanias de Os úberes do infinito, algo a seurespeito: que ele, gozo, nunca se faz presentesem a sua contrapartida imediata, a perda (suaface dolorosa), e que sua celebração não secompleta sem o sacrifício de pequenas eimprescindíveis mortes.

Augusto Contador Borgespoeta, ensaísta e tradutor, autor de

Angelolatria (poemas, editora Iluminuras)

AS LITANIASDO GOZO

Os úberes do infinito, livro do poeta Roldan-Roldan, realizaum cruzamento panteísta do erotismo com o sagradoAugusto Contador BorgesP

OE

SIA

Os úberes do infinitoEditora Komedi

R. Roldan-Roldan112 págs. � R$ 15,00

Lyg

ia N

éry

Page 42: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

cue s

sestudos culturais

Life, death, memory,obra do fotógrafoEugene Zakusilo

Page 43: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9844

Quem ousará afirmar, hoje, o que é literatura e o que não éliteratura? Instigados por esse desafio, mais de 1.300 professores,pesquisadores e estudantes universitários se reuniram emFlorianópolis (SC), no último mês de agosto, para debater osrumos da crítica e dos estudos literários no país durante o VICongresso da Abralic (Associação Brasileira de LiteraturaComparada). Teóricos importantes do Brasil, como SilvianoSantiago e Roberto Schwartz, e estudiosos estrangeiros derenome, como Susan Buck-Morss e Marjorie Perloff,participaram desse evento que se prolongou por quatro dias econtou com 800 expositores.

As discussões nem sempre foram pacíficas. O próprio temado congresso, com seu caráter interrogativo � �LiteraturaComparada=Estudos Culturais?� �, ensejava desde o início odebate acalorado. Convém recordar alguns fatos, que talvezajudem a situar melhor os estudos literários no seu �contextoatual�. Os estudos estruturalistas, nos anos 60, devotaram-se, naFrança e alhures, à busca de um possível critério interno paradefinir o artefato literário. Em nome da �literariedade�, isto é,da �essência� da literatura, os estudiosos se dedicaram aolevantamento e à descrição dos procedimentos formais quecomprovassem a especificidade das obras do cânone ocidental.Nos anos 70, Tzvetan Todorov, já nessa época um ex-estruturalista, fez um balanço das conquistas da década anterior,que aplicara ao estudo dos objetos artísticos uma �abordagemcientífica�, e anunciou que a oposição até então aceita (oupressuposta) entre o texto literário e o texto não-literário deveriaser substituída por uma tipologia dos discursos.

A legitimidade dessa posição repousava inicialmente numprocedimento muito simples: quando se comparam diferentes

textos entre si, considerados literários ou não, percebe-se, segundoTodorov, que determinado tipo de poema, o lírico, e uma prece,por exemplo, obedecem a regras comuns, ao passo que isso nãose verifica quando colocamos o mesmo poema ao lado de umromance histórico como Guerra e paz, de Leon Tolstói. Em outraspalavras, todo texto �literário� possui parentes �não-literários�que lhe são mais próximos do que os outros textos do cânone.Essa constatação não é original, evidentemente: basta citar umcrítico como Northrop Frye, para quem o �nosso universo literáriose desenvolveu num universo verbal�, o que, todavia, o estudiosoda literatura muitas vezes prefere ignorar, fascinado apenas pelaponta do iceberg, que passa a ser considerado o único �objeto�dos estudos literários.

A partir dos anos 80, substituiu-se progressivamente a buscade um critério único, ou interno, para definir o artefato �literário�,por uma multiplicação de paradigmas críticos. O objeto �literário�deixou de ser um todo homogêneo (algo que se pudesse definirpreviamente de uma maneira inequívoca), e o universo verbalpôde assim entrar em cena nos departamentos de letras dasuniversidades, sobretudo das norte-americanas, exigindo novasposturas, novos saberes, novas competências dos professores epesquisadores.

Deu-se ouvido ao ensinamento de Jacques Derrida, que desdeos anos 60 vinha visitando regularmente os Estados Unidos paradiscutir os fundamentos metafísicos do estruturalismo literário eantropológico: �Um mesmo enunciado pode ser aqui consideradoliterário, em dada situação ou convenção, e lá como não-literário.É que o signo da literariedade não é uma propriedade intrínsecadeste ou daquele evento literário.�. Contudo, esse mesmo teóricotambém alertou: �... às vezes é difícil discernir um texto filosófico

politeísmo críticoOs estudos culturais são a tendência mais forte da crítica literáriacontemporânea, questionando os critérios unívocos de abordagem do artefato“literário” em nome de uma multiplicidade de paradigmas críticos,caracterizados pelo diálogo com diversas áreas das ciências humanas e pelavalorização da voz dos excluídos e das minorias políticas. Leia neste “Dossiê”uma seleção de textos apresentados no último congresso da Abralic, eventoque reuniu no Brasil alguns dos maiores nomes da crítica internacional.

Os estudos culturais são a tendência mais forte da crítica literáriacontemporânea, questionando os critérios unívocos de abordagem do artefato“literário” em nome de uma multiplicidade de paradigmas críticos,caracterizados pelo diálogo com diversas áreas das ciências humanas e pelavalorização da voz dos excluídos e das minorias políticas. Leia neste “Dossiê”uma seleção de textos apresentados no último congresso da Abralic, eventoque reuniu no Brasil alguns dos maiores nomes da crítica internacional.

sérg

io m

edei

ros

Page 44: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 45

de um texto poético ou literário. Mas, para evitar mal-entendidos,eu creio que em situações contextuais claras não apenas se podemas se deve discernir um discurso filosófico de um discursopoético ou de um discurso literário; aliás, temos à nossa disposiçãograndes recursos críticos, grandes aparelhos criteriológicos paradistinguir um discurso do outro.�

Para poder lidar com o �universo verbal�, essa proliferaçãovertiginosa de mensagens que circundam, contaminam,enriquecem e subvertem o antigo artefato �literário� (a ponta doiceberg), o estudioso da literatura estreitou o diálogo com as outrasáreas das ciências humanas (filosofia, história, antropologia,sociologia etc.), um procedimento que parece caracterizar certalinha de estudos que, a partir dos anos 80, vem se disseminandopelas Américas sob a denominação de estudos culturais. �O méritodos estudos culturais é articular as várias áreas do saber�,explicou-me o professor Raúl Antelo, presidente da Abralicdurante o biênio 96-98. �Uma das conseqüências disso são osensaios de crítica híbrida, de crítica criativa. Outra conseqüênciaé o diálogo entre as várias tendências críticas latino-americanas,e posso dizer que a abertura para a América Latina por meio dapresença no VI Congresso de pesquisadores argentinos de peso,como Beatriz Sarlo, além de outros chilenos e venezuelanos, foia marca do atual debate, que de maneira alguma significousimples adesão à onda dos estudos culturais nos Estados Unidos.�

Talvez, numa tentativa de síntese provisória ou precária(atualmente, sabemos o quanto é suspeita qualquer tentativa desíntese), ousaria dizer que, no horizonte dos estudos literáriosatuais, convivem duas tendências principais (pela sua forçaideológica): para evitar a fácil oposição entre progressistas eretrógrados (que a esta altura da história esclarece pouca coisa),

empregarei as locuções �politeístas literários� e �monoteístasliterários�. Os primeiros lêem e produzem a literatura (hoje, noensaio criativo, o crítico se revela também escritor) a partir deparâmetros diversificados, geralmente locais, étnicos, políticos(eles não fingem ignorar o fato de que no Brasil, por exemplo,além do português, são também falados o iorubá e 180 idiomasindígenas); os segundos aferram-se ainda ao critério único,considerado talvez atemporal, eterno, absoluto. Sobre estes, creionão ter no momento algo novo a dizer. No que se refere aos�politeístas�, gostaria de mencionar que, entre outras posturasmoderadas e extremadas, adotam às vezes atitudes que podemespantar o estudante incauto. A dos pós-ocidentalistas, porexemplo, que são teóricos e críticos que não estão maispreocupados com a densidade das produções artísticas, mas coma diversidade da enunciação: voz dos excluídos e das minorias.�Para os que compartilham esse ponto de vista�, esclareceu-meRaúl Antelo, �o que legitima o discurso é o lugar da enunciação.Mas a lógica da enunciação é diabólica � uma minoria sempresurge dentro da minoria e fica, ou considera-se, desatendida...�.

Sem pretender exaurir o assunto �estudos culturais�,oferecemos a seguir alguns textos lidos em Florianópolis duranteo VI Congresso da Abralic, textos que podem colocar o leitor emcontato com o debate contemporâneo em torno dos estudosliterários e da literatura comparada, a partir de uma perspectivaque, se não é assumidamente culturalista, mostra-se, no entanto,simpática aos �ideais� dos estudos culturais.

Sérgio MedeirosSérgio MedeirosSérgio MedeirosSérgio MedeirosSérgio Medeirostradutor professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina

As comunicações apresentadas durante o VI Congresso da Abralic estarão disponíveis em CD-ROMe livros a partir de março do ano que vem.

Imagem do italianoFerdinando Scianna que

faz parte do livro Walls(edições Pierre Terrail,

Paris), com trabalhos defotógrafos da agência

Magnum que exploramo tema das fronteiras

entre culturas

Page 45: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9846

No decorrer do último meio século,o modelo dos estudos literários descansouna oposição entre o cânone e seu outro, acultura popular. O dictum de um críticode arte, Clement Greenberg, pode aliássintetizá-lo: vanguarda ou kitsch? Porém,as guerras teóricas dos anos 80 mudaramradicalmente o panorama. Com as abor-dagens desconstrutivas e pós-estruturais,isto é, com o tópico da �morte da lite-ratura�, as oposições entre alta e baixacultura, ruptura e permanência, centro eperiferia tornaram-se insustentáveis. Asguerras teóricas recentes mostram que, emúltima análise, a literatura comparadafornece teorias da guerra e que, ao mudaro cenário e o objeto das lutas (não mais oindivíduo, não mais o valor, não mais adisciplina, não mais a nação), o específicoda literatura comparada deve sua pas-sagem ao ato, sua dissolução, sua trans-gressão, seu movimento ao exterior de si.

Não é fortuito que comparativismo eguerra se vejam assim associados. Adimensão universal, central ao compa-rativismo, só se consolida, de fato, manumilitari, no início do século XX. Sobre essetópico Edward Said escreveu um clássico:Cultura e imperialismo. Porém, essemovimento de reorganização dos mapasgeopolíticos e acadêmicos trouxe consigouma nova definição do próprio objeto. Aarte passou a perseguir uma beleza dechoque, convulsiva, que, não raro, seapropria de elementos primitivos para

A reorganização do mapa geopolítico pós-Guerra Fria acarreta uma nova ordemnos estudos literários que, influenciada pelas correntes pós-estruturalistas, tornainsustentável a oposição entre alta e baixa cultura e substitui a reivindicaçãomodernista de diversidade cultural, de fundo nacional-populista, pela postulaçãopós-modernista de diferença cultural, de extração pós-colonial ou global

aprofundar a percepção e aguçar asensibilidade. Uma vez alcançado, porém,o conceito de universal muda constante econseqüentemente. A estética dadá seassumirá como detentora de muitasnacionalidades/racionalidades imultâneas,ao passo que o surrealismo associará suasintervenções ora ao universal particu-larizado (o stalinismo) ora ao universal emtransformação constante (a revoluçãopermanente).

Após as análises frankfurtianas sobrea dialética da modernidade, compreende-se melhor até mesmo aquilo que Adornoou Horkheimer teriam dificuldade emaceitar, isto é, que um saber sem ilusão éuma pura ilusão e que não existe mitopuro, como nos diz aliás Michel Serres, anão ser o saber puro de todo o mito.Fundem-se aí, em conseqüência, a poesiae o mito, o cânone e seu outro, dimensõesque, para serem analisadas, passam arequerer novos conceitos operacionais, taiscomo, o sagrado e o profano, o hetero-gêneo e o homogêneo.

Diríamos, então, que aquilo se apresentairredutível a toda assimilação e detentor,portanto, de algum tipo de aura (o assassino,o louco, o poeta maldito) define-se comoheterogêneo. Narra-se nas vidas infames deFoucault e pratica-se para além dos marcosda profissão e da disciplina. Por que, afinalde contas, deveríamos ser probos se Marxviveu de bolsas, Nietzsche ou Kierkegaardse recusaram a atender ao bem comum,

Blanqui ou Wilde foram confinados a umacela e Maiakóvski ou Benjamin encon-traram a via ao exterior no suicídio? Con-trária à economia do dom, heterogênea,desvenda-se pelo contrário, em todos essescasos, como pano de fundo, a sociedadehomogênea, de intercâmbio e acumulação,para a qual toda a heterogeneidade setransforma em subversão.

Tais princípios de heterogeneidadearrancam a arte do isolamento autocon-fiante e da satisfação indulgente. Aliteratura não é, sob essa perspectiva, oumelhor, não pode ser uma reles carta deburguesia ou distinção. A literatura situa-se, portanto, para além de uma simplesrecondução, populista e redistributiva, dosbens simbólicos, mas, ao mesmo tempo,posta-se ainda para além do refúgio ondese acoberta e monopoliza toda a distinçãosocial.

Sabemos que, como toda disciplina, aliteratura comparada depende, visceral-mente, do desenvolvimento de lutas maisamplas; daí que o fim da Guerra Fria tenhaferido seu estatuto universalista e afete, emconseqüência, o estudo da arte e daliteratura. A pax americana desta últimadécada apresenta-nos, com efeito, umnovo avatar da guerra: a luta por mega-fusões. Não seria, aliás, o pluralismoacadêmico um sintoma particular demegafusão disciplinar? É provável. Maspara que melhor se entenda o que querodizer, permitam-me esquematizar o

guerra culturalraúl

ant

elo*

Page 46: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 47

processo de fusões a que, na falta demelhor rótulo, chamamos modernidade.

Tomando nossa região como contexto,creio poder aventar uma primeira onda deluta e guerra, a do Paraguai, que, em cadatradição nacional envolvida, profissionalizaos exércitos e politiza as forças armadas,cunhando até o gentílico regional desteEstado que hoje os acolhe: barriga-verde.A ela se segue uma segunda guerra ouonda de modernização, protagonizadadessa vez pelo capitão de indústrias quecapitaliza para si, dissolvendo-a, a socie-dade produzida pela onda precedente. Aprimeira onda guerreira declara umatríplice aliança, uma lei comum para ospaíses da região. A guerra posterior, demodernização industrial, cinde-os e emconseqüência os separa, estimulando aconcorrência entre si, porém eufemizandotambém a acumulação e, para tanto, lançamão do perigo externo e de todos osfantasmas do contágio por contato. É adilemática guerra antropofágica (tupy ornot tupy) degradada, muitas vezes, a clichêeufórico: o de que todo modernismo é, porforça, nacionalismo quando não prote-cionismo.

O período pós-ditadura, no entanto,simula ter ultrapassado esses conflitos,harmonizados agora sob uma espéciepeculiar de pax latino-americana, o regimede intercâmbios do Mercosul. É neces-sário, porém, mais do que nunca, inter-pretar esse período como modulação

diferencial da guerra nômade. Trata-se,com efeito, da passagem do mercado debens para o mercado de capitais. Como arenda dos investimentos produtivos alongo prazo é menor que o lucro que seobtém com as aplicações a curto prazo, aprópria fusão estratégica do capitalmonetário aparece agora subordinada àfusão estratégica do capital fictício. Apoesia e o mito são, como sabemos, a chavedos príncipes da moeda e suas engenhariasgeopolíticas.

A poesia, disse-nos Mallarmé, remu-nera os defeitos das línguas. Na guerradisciplinar em curso, um mero avatar daguerra simbólica contemporânea, aliteratura comparada visa remunerar osdefeitos das particularidades. Para tanto,busca ir além do particular, regional ounacional, tendo que lutar agora com aemergência de novos saberes, via deregra, comprometidos com o inves-timento a curto prazo, empenhados elesmesmos em ultrapassar o próprio con-ceito de universal. São os estudos dacultura, já praticados na Inglaterra pau-perizada pelo fim do colonialismo, masglobalizados, irreversivelmente, pelanova ordem mundial.

Para muitos de nós, a luta antitra-dicionalista dos anos 70 traduziu-se napremissa anti-racionalista, para não dizerantiteológica, da intenção do autor. Paracriticá-la e ultrapassá-la, atravessamos oestruturalismo dogmático e o pós-estru-

turalismo desconstrutor, promovendo asemiose ilimitada, a função leitor e umaautonomia radical da leitura. Porém,permaneceu a atitude anti-, o que pres-supõe sempre o dilema, a duplicidade,quando não o sistema. Talvez a mudançamais espetacular que vem se operando emnossa disciplina seja a de modificarem asestratégias de guerra.

A alta modernidade construiu, eufó-rica, sólidas equações guerreiras, contidas,entretanto, em um campo específico, o quetornava a luta uma espécie de torneio oucerimonial, uma festa, enfim. A baixamodernidade, por sua vez, não apenascansada, mas radicalmente exausta de suaprópria construção, defende a igualdadede todos perante as normas ao preço detransformar a luta em confrontos cons-tantes e contínuos, choques mortíferos deeconomia generalizada e disseminaçãoproliferante, que apagam as fronteirasentre o positivo e o negativo, o puro e oimpuro.

Certamente não é um consolo, mas asituação contemporânea, salvo melhor juízo,já não se ajusta ao dilema; ela não deixa dedesdobrar inesperadas variações da situaçãoprecedente. Não é essa, por acaso, umaestratégia comparatista radicalizada até oponto de não mais a reconhecermos comofamiliar a nossas práticas? Não essa,precisamente, a fortuna atual de um debatefundador como o de Picard/Barthes? Aentrada do modelo lingüístico estruturalista

Clement Greenberg Edward Said Theodor Adorno

Page 47: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9848

abriu, de fato, a porta a novos e incessantesdesvios do modelo eugenicamente literáriodefendido por Picard e fundado em�l�intention claire et lucide� do texto original.Mas se hoje, a distância, podemos ver emBarthes o partisão de um recepcionismo àoutrance, não é menos válido reconhecer, naretomada desse debate, um curioso retour àl�ordre que nos clona um Barthes cada vezmais parecido com Picard, e, portanto,expurgado de sua primitiva crítica cul-turalista.

Conquanto estejamos num congressoque articula a literatura a instâncias ético-políticas, as dos estudos culturais, é bomfrisar que, para a atual gestão da Abralic,o ético-político não é um momento ins-tituinte do social. Admitimos, com efeito,uma evidente expansão do político àscustas do social, porém admitimos tam-bém que essa politização, na medida emque implica a produção contingente dovínculo social, aponta sempre para umdescentramento da sociedade em relaçãoa si própria, donde aquilo que tornapossível a literatura e a política (a auto-nomia e contingência dos atos de insti-tuição) é aquilo mesmo que as torna,simultaneamente, impossíveis.

É evidente que definir uma possi-bilidade em termos de sua impossibilidadeconstitui heresia heterodoxa para todaperspectiva transcendentalista, mas o fatoé que o ato institucional falta sempre emseu lugar e é essa característica de

indecibilidade que legitima o caráterdemocrático infinito.

Se, no tocante a questões estéticas, umjulgamento de valor se quer não-ambíguoé porque, conjuntamente ao juízo estético,ele aplica algum princípio normativo,impossível de ser fornecido pela noçãopluralista de tolerância, princípio este quenos permitiria discriminar o que deve doque não deve ser aceito. Se essa normaexistisse universalmente e, mais do queisso, se fosse pacificamente aceita, estariaresolvido nosso problema e poderíamosvoltar felizes para casa. Entretanto, ojulgamento transcendentalista não pode serbem-sucedido já que, se ele for capaz detraçar uma fronteira inequívoca entre ocanônico e o anticanônico, é porque,previamente, identificou essa fronteiracom uma outra, inconfessa quando nãoinconfessável, que separa o (eticamente)aceitável e o (eticamente) repudiável, emoutras palavras, uma fronteira que hierar-quiza instituição alta e baixa.

É pertinente, portanto, discriminar areivindicação modernista de diversidadecultural, de fundo nacional-populista, dapostulação pós-modernista de diferençacultural, de extração pós-colonial ou global.

A diversidade é uma categoria daliteratura comparada que, no Brasil,compreende um arco que vai de GilbertoFreyre a Oswald de Andrade, incluindo,obviamente os sucessores como DarcyRibeiro. A diferença, entretanto, analisa no

interior dos estudos culturais os processosde significação por meio dos quais ascamadas culturais tendem a se diferenciarentre si e na era da modernidade-mundo edo internacional-popular. Enquanto adiversidade cultural legitima enunciados, adiferença cultural discrimina enunciações.Tributária, em conseqüência, do conceitoletrado, urbano, funcionalista e, em últimaanálise, dicotomicamente nacionalista decultura, a tese racionalista da diversidade,longe de fundar a tolerância ou o progres-sismo pluralista da nação moderna, dissolve,belicamente, o significado desses conceitos,porque, se aquilo que aceito se identificaàquilo que moralmente aprovo, não estoutolerando, a rigor, coisa alguma. Quandomuito, estou redefinindo os limites de umaporção perfeitamente intolerante, além deimaginariamente narcísica, que rebaixa acontingência imanente da instituição àespontaneidade transcendente de umaintuição.

No que tange à questão estética,portanto, cabe então dissociar o julga-mento de valor de toda premissa ética,em virtude da necessidade de umasociedade funcionar de acordo com umgrau relativo de diferenciação internapara, precisamente, preservar o espíritodemocrático.

Não devemos esquecer que umasociedade que tentasse intransigentementeimpor uma concepção unívoca e estrita dobem estaria, constantemente, à beira da

Page 48: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 49

guerra. Mas, por esse mesmo motivo, asaída não é o laissez-faire. A tolerância nãopode ser irrestrita já que a intolerânciafunciona como condição de possibilidadee, ao mesmo tempo, de impossibilidade daprópria tolerância. É redutor, portanto,fazer a instância de avaliação descansar emmodelos concretos, tidos como represen-tantes da alta literatura. O valor que elesencerram é antes um ponto vertiginoso,acéfalo e vazio, fruto de uma decisão quemais se parece com a loucura do que como bom senso, que é secreta sem ser privada,que é irredutível ao espaço público e àpublicidade mas, contudo, abre-se cons-tantemente à possibilidade da politizaçãocomo promessa irrealizável no devir.

Quando, em 1936, já se discutia, noBrasil, a força do projeto moderno e olimite dos campos da literatura e asociologia, uma crítica, uma mulher, seperguntava se não se teria ido longe demaisna revolta vanguardista, recomendandoque, entre a atitude hierática e o relaxa-mento, devia haver um meio-termo. �Ocaos pode ser um início ou um fim�, diziaLúcia Miguel Pereira. Hoje, entretanto,no retorno feminino desse mesmo con-selho, cabe resgatar o caos fecundo deoutra mulher, Clarice Lispector, e argu-mentar que a conversão e a institu-cionalização são apenas momentos deestabilização de algo confuso e caótico,donde o próprio da literatura não é aresponsabilidade da forma, no sentido de

correspondência entre um sujeito trans-cendental e algo exterior a si, mas umaforma irresponsável, que não respondenem corresponde aos imperativos deidentificação, isto é, uma forma em que ooutro ainda permanece inapropriável eesquivo aos mecanismos identificatórios.

Os bárbaros apostamos no caos porqueele é, ao mesmo tempo, um risco e umachance, um fim, porém, também uminício, em outras palavras, um �grandeuivo eterno� em que se mesclam, demaneira indecidível, o possível e oimpossível. Os bárbaros também temosnosso Mallarmé, aquele do leito terminalque, diante das janelas e antes deDuchamp, deseja que la vitre soit l�art, soitla mysticité porque seu objetivo, nãonecessariamente pós-utópico, é d�enfoncerle cristal par le monstre insulté/ Et de s�enfuiravec mes deux ailes sans plume/ au risque detomber pendant l�eternité.

Não há, certamente, em nossa áreatarefa mais árdua do que definir em queconsiste a operação de comparar e foi,justamente, com vistas a parar com aconfusão disciplinar que o RelatórioBernheimer ensaiou uma definição inde-finitória:

�O espaço da comparação envolveatualmente comparações entre as produçõesartísticas normalmente estudadas pordiferentes disciplinas; entre várias cons-truções culturais dessas disciplinas; entretradições culturais ocidentais; tanto as

culturas altas e populares quanto as não-Ocidentais; entre as produções culturaisanteriores e posteriores ao contato depopulações colonizadas; entre construçõesde gênero definidas como femininas eaquelas definidas como masculinas ou entreorientações sexuais definidas como normaise essas outras definidas como gay; entremodelos raciais e étnicos de significação;entre articulações hermenêuticas de sentidoe análises materialistas de seus modos deprodução e circulação; e muito mais.�

Nessa heteróclita relação, como naenciclopédia chinesa de Borges, o queespanta não é a extravagância de certasproximidades, mas a impossibilidade deum espaço onde essas variedades possamser próximas umas das outras. É opróprio espaço comum do debate, o espaçoliterário, que sai arruinado, e não apenasa incongruência da própria enumeração,tão impossível quanto infinita. Esseespaço literário revela ser não mais uminstrumento dócil aos projetos hu-manistas, mas um espaço vazio e incon-trolável por definição, em que a expe-riência literária exibe sua realidadeinobjetiva ou, para dizê-lo com Foucault,�un écart plutôt qu�un repli, une dispersionplutôt qu�un retour�.

Raúl AnteloRaúl AnteloRaúl AnteloRaúl AnteloRaúl Anteloensaísta e professor de literatura brasileira na

Universidade Federal de Santa Catarina,presidente da Abralic durante o biênio 1996-98

* T* T* T* T* Texto extraído do discurso de abertura do VI Congresso da Abralicexto extraído do discurso de abertura do VI Congresso da Abralicexto extraído do discurso de abertura do VI Congresso da Abralicexto extraído do discurso de abertura do VI Congresso da Abralicexto extraído do discurso de abertura do VI Congresso da Abralic

Walter Benjamin Gilberto Freyre Oswald de Andrade

Arqu

ivo

do E

stad

o/Ac

ervo

Últi

ma

Hor

a

Arqu

ivo

do E

stad

o/Ac

ervo

Últi

ma

Hor

a

Page 49: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9850

Marjorie Perloff, um dos nomesmais importantes da crítica norte-americana contemporânea, é uma vozdiscordante dentro da atual voga dosestudos culturais. Autora de O momentofuturista (publicado no Brasil pela Edusp)e do recente Wittgenstein�s ladder, esteve noBrasil para o congresso da Abralic econcedeu a seguinte entrevista ao poeta etradutor Régis Bonvicino.

�CULT Você poderia falar um pouco sobreestudos culturais e poesia, no cenário atual?Marjorie Perloff A área de �estudosculturais� anda em baixa nos EstadosUnidos. Um centro que trabalhouseriamente com esse assunto foi a StuartHall School, em Birmingham, naInglaterra. São marxistas e estudaram emdetalhes o fenômeno da cultura popular.Na Grã-Bretanha, o trabalho deles ganhouares revolucionários, porque osdepartamentos de inglês das universidadesestudam apenas as obras do cânone, e osestudos culturais ofereciam uma alter-

o efeito multicultural

nativa interessante. Nos Estados Unidos,as coisas não avançaram justamente porfalta de uma base marxista. Os estudosculturais pressupõem, mesmo que nãoexplicitamente, que um dado poema ouromance é sintoma de uma formaçãoeconômica, social e cultural específica, eos pesquisadores se atêm a característicasgerais em detrimento do trabalhoindividual. Nesse caso, como já afirmouJohn Guillory, os estudos culturais podemprescindir da literatura e concentrar suaatenção em Madonna, revistas emquadrinhos e shopping centers. Aliteratura fica para trás. A maioria dosacadêmicos americanos enxergou isso etenta, agora, um retorno à literatura.Quem é que quer estudar apenassociologia?CULT Existem vínculos, para você, entrearte e política?M.P. Toda forma de afirmação artísticatem algo de político. Acredito haver umarelação próxima entre arte e política, masisso não significa que essa relação deva

pautar a arte. O multiculturalismo exerceuum efeito terrível sobre nossa poética. Senão se pode criticar um poeta afro-americano ou latino, tampouco se podecriticar um poeta branco, e isso elimina apossibilidade de um debate consistente. Aidéia de que se deve sempre ter umrepresentante de cada extrato racial e/ousocial � um latino, um índio (ou americanonativo), uma afro-americana, uma lésbicasino-americana � foi por demaisdestrutiva. Não que não haja excelentespoetas nessas minorias. Mas não se podeforçar o interesse. Além disso, omulticulturalismo teve um efeito ruimtambém sobre o multinacionalismo - ouseja, nos Estados Unidos, o interesse pelapoesia de outro país é muito reduzido. Nãose falam outras línguas e o termo �poesiaestrangeira� é algo dúbio. Espero podercorrigir isso de alguma maneira!CULT A poesia tem futuro num mundomercantilizado?M.P. Mas é claro! A crítica prevê a morteda poesia há cem anos, mas ela nunca

A ensaísta norte-americana Marjorie Perloff critica a hegemoniados estudos culturais e afirma que, nos EUA, o multiculturalismoreduziu o interesse do público pela poesia de outros países

régi

s bo

nvic

ino entrevista

Page 50: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 51

morre, apenas se altera. A poesia comoarte da linguagem é fundamental, porqueserve de instrumento para se avaliar aordem social. A linguagem que ouvimosa nossa volta está adulterada, recheadade clichês. A poesia é necessária parapodermos reavivar nossa capacidade depensar e de produzir sentidos! E há muitacoisa interessante acontecendo em poesia.Andei folheando algumas novaspublicações como a Boxkite, australiana,e a Chain, editada por Juliana Spahr eJena Osman, e fiquei impressionada coma quantidade de trabalhos instigantes �de natureza verbal/visual � que se podeencontrar pelo mundo afora. NosEstados Unidos, os poetas são prati-camente desconhecidos do �público�. Poroutro lado, há vários círculos de poesianas universidades e o número de pu-blicações a respeito é considerável. Éclaro que é frustrante saber que apenasuma parte reduzidíssima dessa produçãoacabe resenhada no New York Times BookReview ou no New York Review of Books,

mas a longo prazo isso não será tãoimportante.CULT Nesses círculos poéticos, quais sãoas diferenças entre poesia conservadora eexperimental?M.P. Isso nos leva a uma outra questão.A poesia �conservadora� nos EstadosUnidos é escrita em versos livres, comdivisões de estrofe aparentementearbitrárias e representa em geral umaobservação pessoal de uma experiênciaparticular. Em grande parte, é uma poesiade importância menor. Refiro-me a poetas�estabelecidos�, como John Hollander,Robert Pinsky, Edward Hirsh e LouiseGluck e as versões mais jovens destes. Suapoesia não chega a ser ruim. Simplesmentenão é poesia. �Comentários�, disseGertrude Stein, �não são literatura�. Eesses poemas não passam de comentários.Não quero dizer com isso que toda poesia�experimental� seja boa. Poems for the thirdmillenium, volume 2, traz muitos poemasde terceira categoria, a exemplo de Fromthe other side of the century, de Douglas

Messerli; The Norton anthology of postmodernpoetry, de Paul Hoover e a nova � e extensa� antologia de �poesia inovadora feita pormulheres�, organizada por Margy Sloan.São todos livros enormes. Pensando bem,o grande problema da cena poética atual ésua própria megalomania. Para queproduzir volumes tão grandes? Quantosótimos poetas pode haver? Ou mesmoapenas �bons�? Fico com a antologiabritânica Out of everywhere, preparada porMaggie O�Sullivan. Trata-se de umpequeno volume que reúne poetisasexperimentais no qual que quase todos ostrabalhos são bons! O que realmenteprecisamos agora, no que diz respeito àpoesia experimental ou de vanguarda, é deuma crítica melhor e mais presente. De nadaadianta dizer que �vale tudo�, que se fulanodiz ser um �poeta da linguagem�, então queseja! É preciso haver mais seleção e, em umestágio posterior, melhor acompanhamentodos selecionados.

Entrevista realizada por e-mail e traduzidaEntrevista realizada por e-mail e traduzidaEntrevista realizada por e-mail e traduzidaEntrevista realizada por e-mail e traduzidaEntrevista realizada por e-mail e traduzidado inglês por JaymeAlberto da Costa Pinto Jrdo inglês por JaymeAlberto da Costa Pinto Jrdo inglês por JaymeAlberto da Costa Pinto Jrdo inglês por JaymeAlberto da Costa Pinto Jrdo inglês por JaymeAlberto da Costa Pinto Jr.....

Marjorie Perloff

Vida

l Cav

alca

nte/

AE

Page 51: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9852

Numa palestra em Buffalo, em1994, o poeta argentino Jorge SantiagoPerednik terminou sua apresentaçãoenfatizando a resistência cultural aorecente reino do terror em seu país: �A lutaera impossível e, por essa razão, ela sedeu.� Sem intenção de violar aespecificidade cultural do comentário dePerednik, eu entendo que isso pode sertransladado para o campo da poesia, namedida em que a poesia, resistindo àreificação culturalmente sancionada,também é impossível e só por isso se faz.Nesta conferência para a Abralic, eugostaria de acrescentar as Américas a estalista, pois as Américas são impossíveis epor isso também existem.

Américas, e não América, pois é naresistência a qualquer unidade singular deidentidade das Américas que a impos-sibilidade delas abriga uma Poética dasAméricas. O espaço cultural dessaAméricas impossíveis não é esculpidopelas fronteiras nacionais ou de idiomas,mas atravessado por várias tradições epropensões e histórias e regiões e povos ecircunstâncias e identidades e famílias ecoletividades e dissoluções sobrepostas,contraditórias � por dialetos e idioletos,não Línguas Nacionais; lugares ehabitações, não Estados. Mas taisAméricas são imaginárias, pois, em toda aparte, aquilo que é local está sob o fogo do

Leia abaixo trecho da conferência Unrepresentative verse, proferidano congresso da Abralic pelo poeta Charles Bernstein, que defendeuma política da forma poética e afirma que “qualquer conceitounitário de América é uma afronta à multiplicidade das Américas”

padrão imposto de uma culturatransnacional de consumo e enfraquecidapelo imperativo de extraí-la e vendê-lacomo produto.

Nos EUA, estamos confusos comnossa própria história de resistênciacultural, freqüentemente confundindo aslutas pela legitimação cultural do séculopassado com nossos próprios papéisrevertidos neste século. Penso nasnecessidades específicas, um século atrás,que fizeram surgir a �literatura americana�como uma categoria acadêmica dentro dosistema universitário, que só recentementehavia aprovado a literatura inglesa, oubritânica, como um apêndice apropriadoao estudo de clássicos (principalmenteobras gregas e romanas). Naquela época,havia uma clara necessidade de romper oslimites da literatura da �Ilha� inglesa paraconstruir um público e dar respeita-bilidade e legitimidade a certos textos dasregiões de New England e do �middle-Atlantic� e do Sul. �Americano� era umacategoria estratégica, mais do que umacategoria essencial; como resultado, arealidade multiétnica e pluricultural dosEUA não foi acentuada nas formaçõesiniciais da �literatura americana�. Por voltade 1925, William Carlos Williams, em Inthe American grain, deu uma novaamplitude ao conceito de América, aindaque sua insistência em um discurso

americano sugerisse uma falsa essênciapara um conceito útil apenas comonegação: dicção de verso NÃO inglês. Ouseja, como uma categoria negativa, aliteratura americana era uma hipótese útil.No presente, em contrapartida, a idéia daliteratura americana entendida como�totalização� positiva, expressiva, precisacontinuar a ser desmantelada.

Aqui temos dois problemas: atotalização da �América� e a posiçãoglobalmente dominante dos EUA. Comoos EUA são o país de língua inglesadominante, bem como o país dominanteno Ocidente nas esferas econômica,política e cultural de massa, seus poderesmonopolizadores devem ser quebrados apartir de dentro e de fora � e isso, segu-ramente, da mesma forma que o controleinglês sobre nossa linguagem literária tevede ser afrouxado no início do século XIXe no início do século XX. A mesma lógicaque levou à invenção da literaturaamericana como distinta da inglesa agoraleva à invenção, por um lado, de umaliteratura de língua inglesa não centradana América e, por outro lado, de umapoética das Américas.

Qualquer conceito unitário de Américaé uma afronta à multiplicidade dasAméricas que torna a cultura dos EUAvital como ela é. A América é, para ecoarPerednik, uma totalidade �inclassificável�,

char

les

bern

stei

n

poética das américas

Page 52: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 53

O debate atual sobre osestudos literários parececaracterizar-se por umaatitude contrária àquela deHegel, cujo sistema e cujaestética pressupunham um“sujeito” forte, dominador,que apreendia totalmente o“objeto”, o dominando pordentro e por fora. Hoje, tantoo sujeito como o objeto sãomúltiplos, contraditórios,“indecidíveis” e, conse-qüentemente, não existe maisa possibilidade de um saberabsoluto, de uma inter-pretação ou descrição totaldo artefato “literário”. Aoleitor interessado em avançarao longo dos caminhos dacrítica contemporânea que(não) levam ao objeto,sugerimos algumas leiturasque consideramos básicas:

• Kafka. Pour unelittérature mineure, de GillesDeleuze. Paris, ÉditionsMinuit.• Points de suspension, de

Jacques Derrida. Paris,Galilée.• Orientalismo, de Edward

Said. São Paulo, Companhiadas Letras.• Recovering the word,

org. de Brian Swann eArnold Krupat. Berkeley,University of CaliforniaPress.• Il pensiero debole, org.

de Gianni Vattimo e PierAldo Rovatti. Milão,Feltrinelli.• The politics of

modernism. Against the nowconformist, de RaymondWilliams. Londres, Verso.• La notion de littérature,

de Tzvetan Todorov. ParisÉditions du Seuil.

pois não há uma América. Os EUA sãomenos um cadinho do que uma simul-taneidade de coexistências inconsoláveis �incluindo desde os porta-vozes excessi-vamente audíveis do Estado até as vozesfantasmagóricas das quase extintas línguasdas nações soberanas de Arapaho,Mohawk, Shoshone, Pawnee, Pueblo,Navaho, Crow, Cree, Kickapoo,Blackfoot, Cheyenne, Zuni..., embora, naverdade, não tenham existência comosoberanos, mas apenas como �hóspedes�.

Para a escrita, ou para a leitura, assumir� e conseqüentemente �expressar� ou�projetar� � uma identidade nacional é tãoproblemático quanto assumir umaidentidade singular ou de grupo. Contudo,se descartássemos tais pressupostos, algumsentido do que tais entidades representampoderia se revelar. Uma escrita explora-tória como essa não pode escapar de suasituação sócio-histórica, mas antes con-tribui para um questionamento e umareformulação da descrição daquelasituação sócio-histórica, ressaltando oselementos heterogêneos e anômalos, e nãoos homogêneos. Em contrapartida, astentativas de representar uma idéia jáconstituída de identidade poderia obliterara possibilidade de encontrar formações deidentidades emergentes.

Sinto-me muito mais próximo daspreocupações de algumas revistas menores

de Reino Unido, Canadá, Argentina eBrasil que da maioria das revistas de poesiados EUA. Ao mesmo tempo, o�internacionalismo�, como o �trans-atlântico� (seu primo anglofônico),forneceu modelos de conhecimento queremoveram os poemas dos contextos locaisque lhes conferiam sentido e, simultanea-mente, desenvolveu um cânone detrabalhos que subvaloriza as particu-laridades intraduzíveis não apenas emdeterminados poemas, mas também naseleção de poetas. (Um problema dedescontextualização parecido é evidente narecepção de ficção �latino-americana� nosEUA). Perednik fala da colisão dediferentes poesias como a �lei dacoincidência poética�. Essa lei forneceuma forma de navegar entre os huma-nismos universalizantes do internaciona-lismo e o paroquialismo do regionalismoe do nacionalismo. Isso não quer dizerque nossas circunstâncias culturais enacionais diferentes não estejam marcadasem nossos poemas; ao contrário, é ainsistência em registrar essas circun-ferências sociais nas formas de nossospoemas que pode ser nossa abordagemmetodológica comum. Também estouconsciente de que os poetas norte-americanos tendem a ser menosconscientes dos desenvolvimentos emoutros países de língua inglesa do que o

OBR

AS

DE

REFE

RÊN

CIA

William Carlos Williams

Page 53: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - dezembro/9854

A denominação �estudos culturais� não se refere a um métodoespecífico, ou a uma �teoria� já pronta. Ao contrário, os �estudosculturais� parecem decretar justamente o fim do método canônico,o fim da perspectiva única na leitura e análise do �artefato�literário, para nos limitarmos ao âmbito da literatura comparada.Ora, essa perspectiva plural, destituída de um centro, não é nova,mas parece ser uma tendência geral do pensamento neste finalde milênio. Ao leitor interessado em compreender melhor essanoção de uma visão de mundo descentrada ou plural, gostaríamosde mencionar alguns textos, oriundos de áreas tão diversas comofilosofia pós-moderna, hermenêutica alemã, crítica literáriabrasileira, etc.

Primeiramente, convém que o leitor seja introduzido na novanoção de história. Alguns autores contemporâneos decretaram ofim da História �no singular e com H maiúsculo�. Para umfilósofo pós-moderno como Gianni Vattimo, por exemplo, aevolução humana não é linear, mas plural. Assim, a idéia de umahistória única e homogênea deveria ser substituída pela noção deuma história plural, que não evoluiria em linha reta. Em outraspalavras, a história da humanidade não teria mais como centro,ou modelo, a história do Ocidente. A discussão em torno daidéia de uma história �com h minúsculo� é importante para osestudos literários, na medida em que estimula o crítico a ver o�artefato� estético de múltiplos pontos de vista, sem a préviaadesão à visão de mundo linear e homogênea implícita na noçãode �cânone ocidental�. Como uma leitura introdutória sobre ofim da História e o início das histórias, sugerimos o livro Asociedade transparente, de Gianni Vattimo, já traduzido para oportuguês.

Aceita a idéia de que existem muitas histórias e muitasliteraturas, o segundo passo é repensar o conceito de �belo�,geralmente definido como um valor homogêneo e universal.Como sugeriu Hans Georg Gadamer, o belo estético é o �beloda comunidade�, ou seja, cada agrupamento humano possui umconceito próprio de belo, o qual, assim, é plural e sem essênciaperene. O leitor interessado no assunto deveria consultar a obraVerdade e método de Gadamer, publicado pela editora Vozes.

O livro A sociedade transparente, citado anteriormente, tambémdiscute o conceito de belo plural e pós-metafísico (sem centro ounúcleo perene). Uma outra obra muito útil, nesse sentido, é De

segunda a um ano (editado pela Hucitec) do poeta e músico JohnCage. Profeta da literatura sem centro e sem autor, Cage associouas concepções das vanguardas históricas às novas perspectivasabertas pela informática, navegando na Internet antes da Internet.É dele a seguinte máxima �multiculturalista�: We are all going indifferent directions. Retomando as lições do romantismo alemão eda escola de Iena, em particular, Cage também declarou: �Poesiaé tudo aquilo que eu chamo de poesia�.

No âmbito da cultura brasileira contemporânea, entre outrascontribuições à reavaliação dos �belos do Brasil�, na área dapoesia, talvez mereça ser mencionado o livro Oriki Orixá(Perspectiva), de Antonio Risério, que discute a presença daliteratura iorubá na Bahia.

Ao leitor avesso a discussões teóricas, poderemos propor ummergulho prático na literatura descentrada ou plural. Ou seja,ele poderia passar diretamente aos livros, sem nenhuma idéiapreconcebida do que seja literatura (o leitor deve lembrar-se deque não existe literatura, mas literaturas). Há uma excelentecoleção, �Retratos do Brasil� (editora Companhia das Letras),concebida pelo crítico Antonio Candido, que põe ao alcance doleitor obras necessárias para se entender o Brasil de ontem e dehoje, obras escritas por padres, jornalistas, escritores, militares,etc. Dessa coleção, destacaríamos O Carapuceiro, que reúne ascrônicas do padre Lopes Gama, um dos livros mais engraçadose sugestivos publicados no Brasil nos últimos anos. Acreditamosque essa coleção de obras heterogêneas de qualidade, preparadaspor especialistas com diferentes formações (críticos literários,historiadores, antropólogos etc.), é uma aplicação prática dealgumas idéias pluralistas que orientam os rumos da literaturacomparada hoje.

Para os que lêem inglês, sugerimos a revista Critical Inquiry,que tem dado espaço, nos últimos anos, à discussão aprofundadadas literaturas não-canônicas, como a das mulheres, negros, gays,índios, asiáticos.

Como o centro da experiência estética ficou �louco� e está emtodas as partes, recomendamos àquele leitor que não queira ler asobras citadas acima que procure descobrir a �comunidade� estéticaque mais lhe convém e, a seguir, mergulhe no �belo� dessacomunidade. O leitor não achará o belo em outro lugar.

Sérgio MedeirosSérgio MedeirosSérgio MedeirosSérgio MedeirosSérgio Medeiros

do singular ao pluraldo singular ao plural

Fotografia feita na Argentina porRené Burri, que faz parte do livro Walls

Page 54: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

dezembro/98 - CULT 55

oposto. Freqüentemente, nosso alardesobre a importância de uma poesiaamericana não-européia nos ensurdeceupara a novidade de poesias de línguainglesa e não-inglesa, incluindo algumasque estavam sendo escritas no coração do�velho mundo�.

A poética impossível das Américas nãobusca uma literatura que nos unifiquecomo uma cultura nacional ou continental� a América (os EUA), a América doNorte (os EUA e o Canadá anglofônico),América do Norte Multicultural (Canadá,México e EUA), a América Latina (�Sul�dos EUA), a América do Sul (o �sétimo�continente, uma vez que nos EUA nósaprendemos que as Américas são doiscontinentes separados). Em lugar disso, apoética impossível das Américas insisteque o nosso ponto em comum está emnossa parcialidade, nossa desconsideraçãopela norma, pelo padrão, pelo universal.Tal poesia será sempre desprezada poraqueles que desejam usar a literatura parafomentar a identificação em lugar deexplorá-la.

�Se eu falo de uma �política da poesia�,

é para discutir a política da forma poética,e não a eficácia do conteúdo poético. Apoesia pode interrogar como a linguagemse constitui, mais do que simplesmenterefletir o significados e valores sociais. Você

não pode ingenuamente criticar a culturadominante se você está confinado àsformas por meio das quais essa reproduza si mesma; não porque as formashegemônicas estejam comprometidas em�si mesmas�, mas porque sua capacidadecrítica foi confiscada. Não há significadointrínseco sagrado em qualquer forma,nem há, a priori, formas superiores.Invenções e técnicas � as ferramentas e osestilos do passado � mudam em seusentido e valor com o tempo, pedindo umacontínua reavaliação. Além disso, asformas têm significados extrínsecos,sociais, que são forjados por meio dacontestação de valores, a partir dos quaisé impossível impedir o julgamento.Formas, assim como valores, não podemser separados de seus significados, numprocesso social e histórico que nunca estáterminado. Uma política da forma poéticareconhece que as dimensões social ematerial conformam nossa habilidade paraler poemas como uma expressão solitária.Reconhece a contribuição semântica dadimensão visual da linguagem, dos meiosde produção e distribuição e do contextode publicação. Uma política, nessestermos, insiste que poemas são expressõesparciais e particulares não-universalizáveisda humanidade.

Falar de política nesse contexto écontrastar a política da retórica com a

poética da verdade, a autoridade e dasinceridade para insistir que a política ésempre uma peça; nunca para colocar estapeça em repouso, nem bani-la oureprimi-la.

Quando um poema entra no mundo,ele entra num espaço político, no sentidoideológico e histórico. Ao recusar oscritérios de eficácia para determinar o valorpolítico de um poema, conferimos valorpolítico para o estranho, o excêntrico, odiferente, o opaco, o mal-ajustado �, parao que não está em conformação. Tambéminsistimos que a política demandapensamento complexo e que a poesia éuma arena para tal pensamento: um lugarpara explorar a constituição do significado,do self, dos grupos, das nações � do valor.A política da poesia da qual eu falo éaberta; os resultados de seus questiona-mentos não são presumidos, mas desco-bertos no processo e disponíveis parareformulações. Sua complexidade e adver-sidade à conformação coloca essa práticapoética fora do estádio da culturadominante. É essa recusa da eficácia �chame-a de recusa de submissão � quemarca seu caráter político.

Charles BernsteinCharles BernsteinCharles BernsteinCharles BernsteinCharles Bernsteinpoeta do grupo L=A=N=G=U=A=G=E, autor

de Rough trades (Sun & Moon Press), e professorde literatura da Universidade de Nova York

TTTTTradução de Régis Bonvicinoradução de Régis Bonvicinoradução de Régis Bonvicinoradução de Régis Bonvicinoradução de Régis Bonvicino

Page 55: Jose Saramago (Revista Cult - 17)

CULT - outubro/985 6 CULT - dezembro/985 6

Cartas para a revista CULT devem ser enviadas para a Lemos Editorial (r. Rui Barbosa, 70, São Paulo, CEP01326-010). Mensagens via fax podem ser transmitidas pelo tel. 011/251-4300 e, via correio eletrônico, para oe-mail �[email protected]�.

Literatura africanaO que me motivou a escrever foi aqualidade, a excelência da revista. Jáhá algum tempo sou leitor de CULT ecom ela venho trabalhando em minhasaulas de teoria da literatura e deliteratura de expressão portuguesa, eagora num curso de extensão, �Leiturae escritura de textos�, que estouoferecendo no Centro Universitário deRio Preto. As matérias estão cada vezmelhores. Enriqueceu-me bastante o�Dossiê� Lúcio Cardoso (CULT nº 14),sobre quem defenderei tese na Unesp,embora eu veja no corcel de fogo(especificamente no que toca à sua obra-prima, Crônica da casa assassinada)mais um impressionista que um expres-sionista. Brevemente, mandarei a vocêsum ensaio sobre Luandino Vieira,grande nome da literatura angolana. Efica aí uma sugestão: que tal a CULTdedicar um número à literatura africana?

Vitor Hugo MartinsSão José do Rio Preto, SP

Dalcídio JurandirLendo o número 15 de CULT encontroa oportuníssima sugestão de PauloNunes a respeito da obra de DalcídioJurandir. Metendo o bedelho onde nãofui chamado, gostaria de lembrar onome do jornalista carioca MoacirWerneck de Castro, grande amigo deDalcídio, que com ele conviveu du-rante décadas, e que muito teria acontribuir caso esta belíssima idéia sejaaproveitada. Parabéns por tudo deimportante que CULT representa nestemomento da cultura brasileira.

José Eduardo LampreiaBrasília, DF

Albert CamusNo número 13 da CULT há um �Dossiê�sobre Camus em que é mencionado olivro A inteligência e o cadafalso, da

Record, com traduções de artigos doautor. Não o encontro em livrarianenhuma. Estou procurando nos lugareserrados ou o livro não está disponível?Como faço para obter uma cópia doartigo que Camus escreveu sobreMelville?

Irene Hirschpor e-mail

Resposta da redaçãoTanto o livro A inteligência e o cada-falso quanto a biografia Albert Camus:Uma vida, de Olivier Todd � que foramtema do �Dossiê� da CULT de agosto (nº13) � foram lançados pela editora Recordno final do mês de outubro e podem serencontrados em livrarias de todo o país.Caso a leitora tenha dificuldade emlocalizá-lo, pode ligar diretamente paraa Record, tel.: 021/585-2000. O textosobre Melville (reproduzido parcialmentena CULT) faz parte de A inteligência e ocadafalso, que reúne textos de críticaliterária de Camus.

Prêmio Luís CotrimGostaria de parabenizá-los pelaexcelência da revista CULT, que comcerteza contribui, e muito, para oengrandecimento e difusão da culturabrasileira. Aproveito a oportunidadepara divulgar os vencedores do I Con-curso Literário da Academia de Letrasde Jequié, Prêmio Luís Cotrim deLiteratura. Poesia: Ronaldo Jacobina.Prosa: Aleilton Fonseca, ambos deSalvador. Publicamos o livro O Pes-cador de sonhos, reunindo os 20 me-lhores trabalhos.

Ivonildo CalheiraPresidente da Academia

de Letras de Jequié, Bahia

Manoel de BarrosExcelente a entrevista com o Manoelde Barros. Os perguntadores foram deuma simplicidade contundente. Sau-dável essa iniciativa de descentralizar

o jornalismo. Jornalistas de outras terras,outras vontades, outros vícios. Areja aestufa viciada do pensamento orgulhosodo eixo São Paulo � Rio, em que jorna-listas competem com a notícia e oentrevistado. Essa iniciativa da CULTmerecia ser procedimento das redaçõespor aí. A matéria provou que pode haverganhos de qualidade. Havia umaintimidade saborosa entre os pergun-tadores da terra e o transcendente poeta.

Luiz BolognesiSão Paulo

CriaçãoA revista CULT é sem dúvida a melhorpublicação do gênero em nosso país. Elaalia, de forma única, beleza e qualidadeem suas páginas. Gostaria de sugerir queos editores da CULT reservassem acoluna �Criação� para a publicação detextos literários de jovens escritores enão de obras de profissionais já consa-grados em suas áreas.

Aldo Hoxha EnbauerSorocaba, SP

Resposta da redaçãoA seção �Criação� é de fato destinadaa escritores novos, o que pode incluirtanto os autores totalmente inéditosquanto autores que já publicaram livrosmas ainda não alcançaram a projeçãomerecida � o que, em nosso entender,justifica o espaço aberto a estesúltimos, como um estímulo à conti-nuidade de seu trabalho criativo.

OusadiaParabenizo a equipe da CULT pelamaravilhosa ousadia de estar presentenas nossas bancas. É estimulante aosamantes da literatura poder contarmensalmente com uma publicação detal qualidade no atual mercado edi-torial brasileiro.

Maria Julia Souzapor e-mail