esferas de influência e desenvolvimento: o caso da américa...

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Celso Furtado Esferas de influência e desenvolvimento: o caso da América Latina Dadas as actuais condições de equilíbrio estratégico termo-nuclear, o exercício de he- gemonias supra-nacionais não encontra justi- ficação senão em termos dos interesses espe- cíficos das próprias potências hegemónicas. Para as super-potências, as «esferas de in- fluência» já não têm significado sob o ponto de vista da segurança militar: representam sistemas de dominação económica que redu- zem a liberdade dos países do Terceiro Mundo para adaptarem as suas estruturas aos reque- sitos do desenvolvimento. A hegemonia exer- cida pelos Estados Unidos na América Latina constitui sério obstáculo ao desenvolvimento nessa região. O «projecto» norte-americano de desenvolvimento latino-americano não pa- rece ter qualquer viabilidade, salvo como técnica de congelamento do statu quo social. DA «GUERRA FRIA» Ã DELIMITAÇÃO DE «ÁREAS DE INFLUÊNCIA» Na comunidade de nações que constituem o Terceiro Mundo nações para as quais os problemas do desenvolvimento preve- lecem sobre todos os demais—, os países da América Latina ocupam uma situação particular, em razão da peculiaridade de suas relações com os Estados Unidos. Os países subdesenvolvidos africanos e asiáticos, em sua quase totalidade alcançaram a inde- pendência política no correr dos últimos dois decénios e são lide- rados presentemente por uma geração surgida de lutas revolucio- nárias. A lembrança das vitórias recentemente alcançadas marca de optimismo o comportamento desses povos, levando-os mesmo

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CelsoFurtado

Esferas de influênciae desenvolvimento:o caso da América Latina

Dadas as actuais condições de equilíbrioestratégico termo-nuclear, o exercício de he-gemonias supra-nacionais não encontra justi-ficação senão em termos dos interesses espe-cíficos das próprias potências hegemónicas.Para as super-potências, as «esferas de in-fluência» já não têm significado sob o pontode vista da segurança militar: representamsistemas de dominação económica que redu-zem a liberdade dos países do Terceiro Mundopara adaptarem as suas estruturas aos reque-sitos do desenvolvimento. A hegemonia exer-cida pelos Estados Unidos na América Latinaconstitui sério obstáculo ao desenvolvimentonessa região. O «projecto» norte-americanode desenvolvimento latino-americano não pa-rece ter qualquer viabilidade, salvo comotécnica de congelamento do statu quo social.

DA «GUERRA FRIA» Ã DELIMITAÇÃODE «ÁREAS DE INFLUÊNCIA»

Na comunidade de nações que constituem o Terceiro Mundo— nações para as quais os problemas do desenvolvimento preve-lecem sobre todos os demais—, os países da América Latinaocupam uma situação particular, em razão da peculiaridade desuas relações com os Estados Unidos. Os países subdesenvolvidosafricanos e asiáticos, em sua quase totalidade alcançaram a inde-pendência política no correr dos últimos dois decénios e são lide-rados presentemente por uma geração surgida de lutas revolucio-nárias. A lembrança das vitórias recentemente alcançadas marcade optimismo o comportamento desses povos, levando-os mesmo

a sobrestimar as suas forças e possibilidades nas lutas para su-perar o desenvolvimento. Na América Latina, ao contrário, existe aconsciência generalizada de que se vive uma época de declínio.Por um lado, a fase do desenvolvimento «fácil», sob o impulso deexportações crescentes de produtos primários ou da substituição deimportações, vai-se exaurindo por toda a parte. Por outro, toma-seconhecimento de que a margem de autodeterminação, na busca demeios para enfrentar a tendência para a estagnação económica,tendeu a reduzir-se, na medida em que os imperativos da «segu-rança» dos Estados Unidos exigiram crescente alienação de sobe-rania por parte dos governos nacionais. Essa diferença de situaçãohistórica explica, em certa medida, a disparidade de atitudes psi-cológicas que se observa correntemente entre os povos latino--americanos e a maioria dos demais povos do Terceiro Mundo.Ao optimismo destes últimos contrapõe-se o sentimento de revoltaque prevalece entre os latino-americanos, principalmente entre osjovens, sabidamente mais sensíveis a respeito das incertezas do fu-turo. A consciência de que o futuro da região se torna cada diamais incerto, é particularmente aguda entre aqueles que percebemque, de forma irregular mas generalizada, a sociedade latino--ainericana atravessa presentemente uma fase revolucionária de-corrente da penetração da tecnologia moderna e do surgimento denovas aspirações colectivas, dentro de um marco institucional ina-dequado para absorver essa nova tecnologia e interpretar e satis-fazer as novas aspirações.

Sendo facto notório que os problemas de relevância da políticainterna dos pases latino-americanos interessam de forma directaàs autoridades responsáveis pela segurança dos Estados Unidos,as quais estão em condições de interferir decisivamente no encami-nhamento da solução de tais problemas, é perfeitamente naturalque os latino-americanos indaguem com crescente preocupação:a) o que se entende exactamente por «segurança» dos EstadosUnidos, e b) que grau de compatibilidade existe entre os interessesdessa segurança e a revolução latino-americana? Os povos latino--americanos que, no passado, estiveram quase que exclusivamentevoltados para eles mesmos, começaram a compreender que o seufuturo será mais e mais influenciado por factos que ocorrem foradas suas fronteiras e pelo grau de percepção que tenham eles dosignificado desses factos. É natural, portanto, que constitua, hoje,preocupação averiguar as tendências evolutivas dos centros depoder mundial, particularmente dos Estados Unidos.

Os Estados Unidos diferenciam-se de outra qualquer naçãomoderna pelo facto de que a sua formação histórica se realizouem condições ideais de segurança exterior. Até meio século atrás,diz-nos um dos mais lúcidos analistas da política exterior dos Esta-dos Unidos, o povo norte-americano tinha um senso de segurançavis-a-vis ao mundo exterior, como nenhum outro povo havia expe-

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rimentado desde a época dos romanos \ A exclusão da França docontinente americano durante as guerras napoleónicas, a preo-cupação dos ingleses em preservar a integridade do extenso evulnerável território canadense e, por outro lado, a preeminênciada Inglaterra no Continente euro-asiático exercida através dapolítica de equilíbrio de poderes, criaram condições para que aexpansão territorial dos Estados Unidos e a consolidação dassuas instituições políticas se realizassem sem encontrar obstáculosde maior significação. Os ingleses preservaram o Canadá, mas aomesmo tempo transformaram a sua poderosa frota no principalinstrumento da segurança exterior dos Estados Unidos. Como ne-nhuma nação americana, ou grupo de nações americanas, consti-tuía perigo real ou potencial para os Estados Unidos, desde que afrota inglesa pudesse ser utilizada para prevenir a interferência dequalquer outra nação europeia no Hemisfério os Estados Unidosgozavam de condições ideais de segurança, sempre que renun-ciassem a quaisquer pretenções sobre o Canadá. Esse sistema desegurança foi definido na chamada doutrina de Monroe, para cujaformulação constribuiram decisivamente os ingleses. Essa doutrinatanto pode ser interpretada em termos de definição de uma área desegurança por parte dos Estados Unidos, a qual somente tem sen-tido se se toma em consideração o papel que cabe ao poder navalinglês, como em termos de política inglesa destinada a afastar dasAméricas as demais potências europeias, com vista a formar umespaço económico sob a sua hegemonia. Com efeito, os dois objec-tivos foram perfeitamente conciliáveis durante todo um século.

Foi somente no presente século que os americanos se aperce-beram de que as condições ideais de que gozavam decorriam muitomenos da sabedoria da sua política de «isolamento», do que daposição inglesa como árbitro dos conflitos de poder na Europa.O extraordinário desenvolvimento industrial na Alemanha, ao co-locar esse país em condições de reivindicar a hegemonia no conti-nente europeu, pôs em cheque a posição da Inglaterra. Teve inícioentão o período de grandes guerras, para as quais os EstadosUnidos foram arrastados pela sua comunidade de interesses comos ingleses.

Os conflitos mundiais do presente século puseram fim aosistema de poder que se formara a partir das guerras napoleónicas,dentro do qual a preeminência inglesa, decorrente da sua capaci-dade industrial e da flexibilidade da sua potência naval, se exerciacomo um simples poder de arbítrio. Dentro desse sistema, umpequeno número de nações atribuiam-se «poder imperial». Contudo,o exercício desse poder estava limitado pelos requerimentos dasegurança das demais «grandes Potências». Nas brechas desse

1 George F. KENNAN, American Diplomacy: 1900-1950, New York, 1951pág. 9.

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complexo sistema, criavam-se condições para a sobrevivência deum certo número de pequenas e médias nações. Essa situaçãomodificar-se-ia substancialmente como decorrência das duas gran-des guerras, criando-se pela primeira vez na história moderna,uma situação de bipolarização do poder. E os Estados Unidosforam colocados, subitamente, no centro de um dos pólos do podermundial.

Tendo-se desenvolvido, historicamente, em condições privi-legiadas de segurança e havendo sempre alcançado os seus objec-tivos de política exterior mediante a mobilização de escassos recur-sos militares ou diplomáticos, os Estados Unidos encontraram-se,no término da Segunda Guerra Mundial, em posição de ter queexercer uma complexa política de poder sobre bases totalmentenovas. A única doutrina de que puderam lançar mão para enfrentara nova situação estava enfeixada no pensamento de Wilson, o qualseguia as linhas da experiência pan-americana em busca da criaçãode uma sociedade «democrática» de nações. As grandes potênciasseriam chamadas a renunciar aos seus poderes imperiais, conceder--se-ia auto-determinação aos povos coloniais e os assuntos inter-nacionais passariam a ser tratados dentro de uma disciplina detipo parlamentar. Evidentemente esse tipo de organização reque-ria a existência de um super-poder suficientemente forte paradesencorajar a acção de qualquer potência, ou grupo de potências,que pretendesse exercer poderes imperiais sobre as outras. Essesuper-poder somente poderia ser criado pela existência de umasuper-potência ou por um «acordo» entre as grandes potências,fórmula esta que prevaleceu formalmente ao ser estruturada acarta das Nações Unidas, a qual instituiu a tutela dos cincomembros permanentes do Conselho de Segurança. Essa carta,entretanto, limita-se a estabelecer um método de acção diplomática,o qual não assegura que as pretenções das grandes potências sejamcompatíveis entre si. A ideia de uma sociedade de naçõesdebatendo as suas divergências e votando como em um par-lamento, para tornar-se viável exigia, de alguma forma, o reco-nhecimento da existência de um super-poder. Os americanos, maisque qualquer outro povo, têm consciência desse facto, porquantoa própria existência da União Norte Americana requereu umesforço secular para lograr o efectivo reconhecimento de umsuper-poder capaz de contrapor-se à força centrífuga dos interessesde Estados cuja existência precedera a da União.

O esquema americano de organização de uma sociedade denações exigiria, para ter êxito na implantação de uma disciplinainternacional, que as grandes potências ao término da guerra,definissem objectivos básicos de política exterior não antagónicos,ou aceitassem, de uma ou outra forma, a preeminência dosEstados Unidos. Ocorre, entretanto, que a Segunda GuerraMundial havia provocado a emergência de uma potência em

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condições de pretender exercer hegemonia no continente euro--asiático, isto é, engendrara aquilo contra o que a Inglaterra eos Estados Unidos haviam lutado nas duas grandes guerras.Explica-se, assim, que ao conflito militar, em sua fase final, sehaja sobreposto um conflito político entre os principais aliados;ingleses e americanos, preocupados com assegurarem-se de posi-ções estratégicas que permitissem «conter» no futuro o podersoviético. Ora, a nova super-potência euro-asiática, ao contráriodos Estados Unidos, tivera toda a sua história marcada por con-dições de extrema insegurança, havendo sobrevivido a sucessivasinvasões provenientes tanto do Oriente como do Ocidente. Nãoseria de surpreender que, diferentemente dos Estados Unidos, aUnião Soviética, ao término da guerra, procurasse estruturar a suapolítica exterior em torno dos problemas que colocava a sua segu-rança mais imediata. Essa segurança, na forma em que a entende-ram os soviéticos, exigiu a interferência nos negócios internos dedeterminados países, a fim de que governos «hostis» não viessema formar-se em regiões vizinhas tradicionalmente utilizadas comotrampolim para atacar o território da União Soviética.

O mundo do após-guerra nasceu, portanto, marcado por doisfactos fundamentais: a bipolarização do poder e uma divergênciade fundo entre as duas super-potências a respeito da forma dese autolimitarem no exercício do próprio poder a fim de se criaremcondições de convivência internacional. A União Soviética partiupara a criação e consolidação de uma «esfera de influência», reser-vando-se o direito de interferir nos assuntos internos dos paísesintegrados na sua órbita, em função dos objectivos da sua «segu-rança» exterior. Os Estados Unidos, por seu lado, orientaram-se nosentido da organização de uma sociedade internacional «aberta»,dentro da qual o seu enorme poder económico lhe permitiria assu-mir facilmente a liderança. Esse conflito em matéria substantiva,dentro de um mundo em que o poder se apresentava bipolarizado,tornaria totalmente obsoletos os métodos tradicionais de realizarpolítica internacional. Razões de outra ordem, decorrentes da revo-lução tecnológica ocorrida nessa mesma época, fariam que aguerra generalizada se tornasse obsoleta como instrumento deacção no plano internacional. Surgiu então essa estranha combina-ção de métodos diplomáticos e acção militar indirecta que receberiaa denominação de «guerra fria».

É muito provável que no futuro os estudiosos dos problemasinternacionais vejam na «guerra fria» uma engenhosa técnica deconvivência internacional utilizada numa época em que subita-mente se tornaram obsoletos os métodos tradicionais da diplomaciae da guerra, sem que antes houvesse sido criado um novo sistemade relações internacionais viável. Com efeito, a doutrina da «guerrafria» surgiu nos Estados Unidos como uma hábil alternativa aouso da força militar na política de «contenção» da União Soviética.

Reconhecida a existência de um «conflito fundamental» com aUnião Soviética, que não aceitava a forma de organização interna-cional preconizada pelos Estados Unidos e paralizava as NaçõesUnidas com o seu poder de veto, colocava-se a disjuntiva de nego-ciar ou ir para a guerra. A possibilidade de negociar tornara-se,entretanto, remota, pois os americanos exigiam dos soviéticosdemonstrações prévias de «bom comportamento», como seja «para-lizar toda a presão contra as instituições livres do Ocidente», o quevinha a ser o mesmo que exigir dos soviéticos que assumissem aber-tamente responsabilidade pelo movimento comunista mundial, paraem seguida o desacreditarem. Muito provavelmente faleciam os so-viéticos não somente da vontade mas dos meios para dar tais de-monstrações de «boa-fé». Em tais condições era inevitável queganhassem ascendente nos Estados Unidos aqueles que apresenta-vam a guerra como «inevitável», os quais dispunham de convin-centes argumentos para provar que, se tinha que ser, «quanto antesmelhor». Foi então que surgiu a doutrina de que a União Soviéticapodia ser «contida», levada de roldão para trás e mesmo traumati-zada internamente mediante uma «hábil e vigilante aplicação decontra-golpes em uma série de pontos geográficos e políticos emconstante variação». Essa doutrina foi apresentada como um con-junto consistente de ideias por uma alto funcionário do Departa-mento de Estado, na época pessoa de grande influência junto dopresidente TRUMAN 2. A doutrina apoiava-se em alguns postulados,que a opinião pública norte-americana aceitava como evidentes.A Rússia seria um país com «uma população física e espiritual-mente cansada». O seu sistema económico era «vulnerável e impo-tente» e sobre a sua vida política «pairava uma grandeincerteza». Em razão desses factos, «a União Soviética poderátransformar-se, do dia para a noite, de uma das mais fortesem uma das mais fracas e deploráveis sociedades nacionais».Em face disso, os Estados Unidos «estavam em condições deinfluenciar, por suas acções, os desenvolvimentos internos, tantodentro da Rússia como no movimento comunista internacional»,e assim «aumentar enormemente as pressões sob as quais apolítica soviética deve operar», «provocando tendências queeventualmente levem à ruptura ou ao gradual amolecimentodo poder soviético». Essa doutrina rezava, em última instância,que, em razão das debilidades internas do sistema soviético, osEstados Unidos poderiam alcançar os seus objectivos de políticainternacional sem correr os riscos e sofrer o desgaste de umagrande guerra. Em realidade, os Estados Unidos deveriam agrade-

2 Trata-se do Prof. George F. KENNAN, historiador diplomático, conse-lheiro do Departamento de Estado, Director da Secção de Planejamento Polí-tico desse Departamento, posteriormente embaixador na União Soviética ena Jugoslávia.

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cer à Providência a oportunidade que lhes era oferecida de realizaresse novo tipo de guerra. Com efeito, «a Providência, proporcio-nando ao povo americano esse desafio implacável, fazia com quea sua própria segurança como nação dependesse de que se unissemcada vez mais e aceitassem as responsabilidades de liderança morale política que a história seguramente lhes reservara» 3.

Apreciando os factos com uma maior distância no tempo,podemos hoje duvidar de que a guerra fosse efectivamente umaalternativa de acção para os Estados Unidos. Uma autoridade,insuspeita de simpatia pela União Soviética, como o Prof. HansMORGENTHAU, diz-nos, por exemplo: «uma guerra atómica preven-tiva teria resolvido o problema do comunismo na Rússia e teriasolucionado o problema do imperialismo russo, mas não teriasolucionado o de como governar um território radioactivo cobrindoum sexto do Globo... O facto de que (o governo dos EstadosUnidos) não pudesse considerar seriamente essa alternativa é umreflexo, não primariamente de virtude moral, como muitos de nósgostaríamos de pensar, mas das incontroláveis e terríveis conse-quências da moderna tecnologia militar. Se os Estados Unidostivessem tido a mesma superioridade sobre a União Soviética emarmas militares convencionais, eles teriam podido utilizá-la muitomelhor para os propósitos da sua política exterior do que estiveramem condições de fazê-lo quando a sua superioridade residia nomonopólio da bomba atómica» 4. Se a guerra era um instrumentoinadequado e a negociação havia sido excluida a priori; cabe inferirque os Estados Unidos, no imediato após-guerra, embriagados como seu imenso poder e o monopólio da bomba atómica, haviamsuper-estimado os seus meios de acção e haviam-se proposto objec-tivos de política internacional irrealistas. Diante do impasse criadopor essa situação, coube à doutrina da «guerra fria» dar uma satis-fação psicológica à opinião pública norte-amercana. A União So-viética estaria sendo «contida» e isso era suficente para demons-trar que a guerra fria estava produzindo resultados. Que esseesforço de «contenção» tinha o simples objectivo de dar uma satis-faço psicológica a uma opinião pública permanentemente excitadapelos belicistas e, possivelmente, cobrir outras linhas de acçãointerna e externa, pode ser facilmente demonstrado, pois o próprioarquitecto dessa doutrina escreveria um decénio depois: «Nuncapensei que o Governo Soviético quisesse uma guerra mundial emnenhum momento desde 1945, ou que se inclinaria, por qualquer

3 Todas as citações do parágrafo são do artigo de George F. KENNAN,publicado em Foreign Affairs (Julho, 1947), sob o título «The Sources ofSoviet Conduct» e reproduzido em American Diplomacy: 1900-1950', págs.89-106.

4 Hans MORGENTHAU, «A Reassessment of United States Foreign Policy»(1958), reproduzido em Politics in the Twentieth Century, V. II, pág. 62.

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motivo de política nacional, a iniciar uma tal guerra, mesmo ques, arma atómica jamais tivesse sido inventada». E acrescentariaque, mesmo com respeito às nações que têm fronteira comum coma União Soviética, jamais observou «qualquer evidência de umaintenção soviética de lançar qualquer agressão militar aberta» 5.

Era da essência da «guerra fria» o não reconhecimento daesfera de influência da União Soviética. A política de «contenção»,lembra-nos o Prof. MORGENTHAU, «sempre implicou empurrar paratrás o poder soviético, 'liberar' as nações satélites». E acrescenta:«fossem os meios escolhidos a 'negociação de uma posição de força',o rearmamento da Alemanha, garantias de segurança, ou forçamoral, a 'liberação', em contraste com o reconhecimento de umaesfera de influência russa, tem sido sempre o objectivo implícitoda política de contenção» 6. Sendo assim, pode-se afirmar que, tec-nicamente, a «guerra fria» terminou na segunda metade dos anoscinquenta, quando os Estados Unidos reconheceram de forma maisou menos explícita a esfera de influência da União Soviética.O levante da Hungria, em 1956, teve a esse respeito uma significa-ção particular. A não-intervenção dos Estados Unidos, não obs-tante um dos principais objectivos da «guerra fria» fosse a «libe-ração dos satélites russos», implicava a legitimação indirecta daesfera de influência soviética. Esse levante e movimentos similaresem outros países da Europa Central controlados pelos soviéticos,tiveram uma significação ainda mais profunda. Demonstraramclaramente que a revolução social realizada nesses países, qualquerque houvesse sido o método adoptado, devia ser considerada comoirreversível. Em nenhum momento emergiu do conflito qualquerforça significativa visando restaurar o sistema capitalista. O gritopor toda a parte era contra a preeminência da União Soviética, atal ponto que se tendeu a confundir totalmente o Estado policialexistente com a submissão à Rússia. Desta forma, esses movimen-tos liberatórios marcam a transição entre a fase da hegemoniaquase imperial russa e o processo de criação de uma comunidade denações socialistas 7.

A partir da segunda metade dos anos cinquenta, o avanço datecnologia militar na União Soviética acarretaria modificaçõesfundamentais na situação internacional. A espinha dorsal do seusistema de defesa passou a depender cada vez menos do controle doacesso a territórios vizinhos e mais de armas estratégicas locali-zadas no seu próprio território e do avanço da sua tecnologia.

5 Conferências pronunciadas por George F. KENNAN na BBC em 1958 ereproduzidas em Rússia, the Atom and the West (New York, 1958).

6 Hans MORGENTHAU, «The Revolution in the United States ForeignPolicy» (1957), reproduzido na obra citada, pág. 40.

7 A ocupação militar da Checoslováquia no Verão de 1968, pôs emevidência que a União Soviética pretende conter esse processo dentro dosestreitos limites de uma doutrina de «soberania limitada».

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A evolução no sentido do reconhecimento de uma nova reali-dade internacional, exigindo formas de negociação e auto-controledo poder nacional, evoluiria lentamente nos Estados Unidos. Pas-sariam ainda alguns anos antes que um homem lúcido como osenador FULBRIGHT se atrevesse a pensar coisas «impensáveis» aesse respeito. No seu famoso discurso sobre Velhos mitos e novasrealidades, ele afirma que é necessário «começar a pensar algunspensamentos impensáveis; os Estados Unidos devem abandonar aesperança de uma vitória global definitiva sobre o Comunismo».Ocorre, entretanto, que a essa altura dos acontecimentos, a situa-ção se havia tornado muito mais complexa com a emergência daChina como um novo centro autónomo de decisões políticas designificação mundial. A China, à semelhança da União Soviéticano imediato pós-guerra, é um país «inconquistável», mas com re-duzido poder estratégico. Daí resulta que a sua influência tendea exercer-se nos países fronteiriços e a sua política de segurançaexterna tende a traduzir-se em interferência nos países vizinhos.Reconhecer a China como um centro autónomo de decisões vem aser o mesmo que reconhecê-la como potência predominante naÃsia. Isso, lembra-nos mais uma vez George F. .KENNAN, seria paraos americanos o mesmo que «abandonar (aos chineses) os frutosda nossa vitória sobre o Japão e transformar essa vitória em umacoisa sem sentido»8. Visando a prevenir a consolidação daChina como potência predominante na Ãsia, os americanos ocupa-ram parte do seu território (Formosa) e criaram uma situação deguerra permanente com esse país. Esse conflito assumiu a formade uma nova variante de «guerra fria», em razão do impasse criadopelos dois factores: a) a enorme superioridade estratégica dosEstados Unidos, a qual retira à China qualquer iniciativa militar,excluída a hipótese de apoio estratégico da União Soviética; b) aincapacidade dos Estados Unidos para «conquistar» militarmente aChina, isto é, ocupar de forma permanente o seu território.

A política de «guerra fria» dos Estados Unidos contra aUnião Soviética apoiava-se em dois pontos. O primeiro era a dou-trina da inviabilidade a médio e longo prazos do sistema económico--político soviético. O segundo, a ideia de que a recuperaçãoeconómica dos países da Europa ocidental reduziria a importânciarelativa da União Soviética no continente europeu, permitindo«equilibrar» o seu poder militar «convencional». Com o correr dosanos ficou demontrado que o primeiro ponto não tinha fundamento,mas também se tornou evidente que o segundo possuía um impor-tante elemento de verdade.

No caso da China, os dados do problema são fundamentalmente

8 George F. KENNAN, «A Fresh Look at our China Policy», publicadoem The New York Times Magazine, 22 de Novembro de 1964.

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diversos. Em nenhum momento, houve lugar para dúvida a res-peito da estabilidade e eficiência do regime político chinês. Demais,não se vislumbra qualquer possibilidade de que o poder «con-vencional» da China venha a ter a sua importância relativa redu-zida no continente asiático. Por último, como o poder militar«não-convencional» da China tende a aumentar, qualquer que sejaa taxa de crescimento deste, pode-se dar como seguro que a tendên-cia é para uma modificação na relação de forças favorável àChina. Em face dessa tendência, é natural que os Estados Unidosprocurem utilizar a sua grande superioridade estratégica para ne-gociar «agora» com a China, no sentido de delimitar a esfera deinfluência desse país no continente asiático. Aos chineses, eviden-temente, interessa postergar o mais possível o dia dessas «nego-ciações».

A política dos Estados Unidos, no período post-guerra fria,tem portanto como eixo a busca de regras de convivência com aUnião Soviética e, a mais longo prazo, com a China, o que implicaem uma delimitação o mais possível nítida das respectivas esferasde influência.

O esforço de definição de uma área de influência vis-a-vis daUnião Soviética, passou o seu teste decisivo por ocasião da cha-mada crise cubana dos foguetões, em Outubro de 1962. Nessa con-frontação ficou estabelecido que a União Soviética não pode dargarantias ilimitadas de defesa a um país da esfera de influêncianorte-americana que pretenda fugir à hegemonia dos EstadosUnidos mediante modificações na sua estrutura social. A vitóriaamericana nesse caso decisivo consistiu em encaminhar a crise deforma a colocar a União Soviética diante da disjuntiva de ter dedeflagrar uma guerra termo-nuclear ou ter que reconhecer o«direito» dos Estados Unidos a limitar a soberania de qualquerpaís da sua órbita, mesmo depois de esse país haver logrado modi-ficar a sua estrutura social. Isto significa, em última instância,que um país que modifique a sua estrutura social e por essa formase desarticule da órbita de influência dos Estados Unidos, poderáser «tolerado», mas não reconhecido pelo poder dominante. Ficouestabelecida a doutrina de que a defesa desse país «tolerado» terásempre que ser colocada na esfera das chamadas guerras limitadas.Para estabelecer essa doutrina, os Estados Unidos pagaram opreço de arriscar um holocausto termonuclear. E é pelo preço pagoque se deve medir o valor da vitória.

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II

EM BUSCA DE UM «PROJECTO» PARA A AMÉRICA LATINA

Neutralizada qualquer interferência militar exterior pelo poderestratégico dos Estados Unidos, coloca-se o problema de saber sea tutela americana está em condições de assegurar um grau ade-quado de estabilidade social na área de influência respectiva. Semestabilidade social, toda a política de segurança será necessaria-mente precária.

Durante muito tempo, esse problema foi considerado nos Es-tados Unidos como um simples aspecto da «guerra fria». Atribuía--se à acção «maquiavélica» da União Soviética a intabilidade socialno Terceiro Mundo. A única solução para o problema estava em«conter» a potência «agressora». Referindo-se à administraçãoEISENHOWER, dizia o Prof. MORGENTHAU: «tanto o pensamentocomo as acções do nosso governo tendem para o suposto de quea União Soviética não é apenas o explorador da revolução mundial— o que é correcto—, mas também o seu criador — o que é umabsurdo conveniente».9 Posteriormente surgiu a doutrina, formu-lada por técnicos do M. I. T., liderados por W. W. ROSTOW, segundoa qual os objectivos da política exterior dos Estados Unidos pode-riam ser melhor alcançados mediante uma bem orientada «ajudaexterna» aos países subdesenvolvidos 10. Admite-se que o processode desenvolvimento pode ser orientado de fora para dentro, de-vendo ser o objectivo dos Estados Unidos «criar Estados inde-pendentes, modernos e em desenvolvimento» 11. Todo o problemaestá em ajudar os países subdesenvolvidos a vencer as dificuldadesiniciais e a alcançar o ponto de «desenvolvimento auto-susten-tado». Está implícito nessa tese que, superadas as dores préviasao take-off, já nenhum risco sério haveria de instabilidade social.Essa tese, que gozou de grande voga em certa fase e deu a suamais brilhante eflorescência na Aliança para o Progresso, passouentretanto a ser seriamente criticada em período subsequente. Nãose deve esquecer, tem-se argumentado, que o próprio desenvolvi-mento, mesmo orientado de fora, cria instabilidade social, enquanto«socava a estrutura social e a ordem religiosa» 12. Essa linha de

9 Hans MORGENTHAU, «The Political and Military Strategy of theUnited States» (1954), reproduzido na obra citada, pág. 21.

10 As ideias desse grupo estão expressadas num estudo apresentado aum grupo especial do Senado em Julho de 1957: «The objectives of UnitedStates Economic Assistance Programs».

11 W. W. ROSTOW, «The Stages of Economic Growth» (1959), reprodu-zido em American Strategy for the Nuclear Age, editado por Walter F. HAHNe John C. NEFF (New York, 1960), pág. 372.

12 Arnold WOLFERS, «Military or Economic Aid: Questions of Priority»,

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pensamento tem dado ênfase ao facto de que se não deve perderde vista o objectivo da política dos Estados Unidos de conservarintegrada a sua esfera de influência e que o desenvolvimento desteou daquele país deve ser considerado como um meio para alcançaresse fim. «Como regra — diz-nos o Prof. WOLFERS —, o tipo maisefectivo de ajuda será a ajuda que proporcione o máximo de satis-fação aos grupos de élite que estão empenhados em conservar opaís fora do comunismo e do controle soviético». Em livro recente,o cientista político e major da Força Aérea Americana, John S.PUSTAY, lembra-nos: «Os próprios programas destinados a pro-mover o desenvolvimento socio-económico (por exemplo, a Aliançapara o Progresso) criam eles mesmos tensões e deslocamentos, namedida em que o sistema de vida tradicional e autóctone é subs-tituído por nova forma de viver estrangeira. Desta forma, os mili-tares terão que ser mobilizados em apoio da polícia civil, paraassegurar estabilidade durante esse período de convulsão social» 13.Sendo assim, os Estados Unidos, como potência lider, deveriampreocupar-se com criarem estruturas supra-nacionais que assegu-rassem essa estabilidade, se não desejam correr o risco de crescen-tes defecções na sua esfera de influência. Enquanto essas estru-turas supra-nacionais não têm êxito, os próprios Estados Unidosteriam que arcar com a responsabilidade de assegurar a estabili-dade social interna de todos os países da sua órbita. Numa dassuas últimas intervenções nas Nações Unidas, Adiai STEVENSONexplicou que: «enquanto a comunidade internacional não estápreparada para resgatar as vítimas da agressão clandestina, opoder nacional terá que preencher o vácuo». É fácil compreenderque a comunidade internacional que se admite esteja ameaçada de«agressão» teria de ser a esfera de influência dos Estados Unidose que o «poder nacional» é o governo deste país.

Se, para os Estados Unidos, o problema fundamental, nestasegunda metade do século XX, é o da sua «segurança», isto é, o daforma de organização mundial que prevalecerá como decorrênciade revolução tecnológica em curso, a qual pretendem seja compatí-vel com a preservação do american way of life no seu território ecom a defesa dos crescentes interesses económicos americanos foradesse território, do ponto de vista latino-americano o problemacrucial é o do «desenvolvimento», vale dizer: o de abrir-se umcaminho de acesso aos frutos dessa revolução tecnológica.

Daí que a América Latina se confronte, presentemente, coma necessidade iniludível de ter que introduzir profundas modifica-

informe ao Comité Presidencial para o Estudo do Programa de AssistênciaMilitar, Julho de 1959, rep. em American Strategy for the Nuclear Age,op, cit., pág. 386.

13 John S. PUSTAY, Counter-insurgency Welfare (New York, 1965)pág. 8.

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ções no seu marco institucional, a fim de abrir-se o caminho dodesenvolvimento. Essas modificações terão de orientar-se emquatro direcções: a) no sentido de evitar que a própria tecnologiavenha a provocar a concentração do rendimento e a deformadaaplicação dos recursos produtivos, reduzindo a eficiência do sis-tema económico; b) no sentido de ampliar as dimensões actuaise potenciais dos mercados, através de esquemas de integraçãoeconómica dentro da região; c) visando influir na própria orienta-ção do progresso tecnológico, em função dos requerimentos especí-ficos da presente fase do processo de desenvolvimento das econo-mias regionais e de modernização das estruturas sociais, e d) vi-sando a modificar a organização agrária e empresarial, a fim deeliminar as formas anti-sociais do poder económico.

Consideremos agora, em confronto, os problemas da «segu-rança» dos Estados Unidos e os do «desenvolvimento» da AméricaLatina. Sendo a área latino-americana o círculo mais interno dazona de influência dos Estados Unidos, é natural que a acçãotutelar desse país aí se exerça de forma exemplar. Daí que os pro-blemas de política interna de cada país, particularmente no sectoreconómico, interessem de forma crescente aos órgãos responsáveispelas questões da segurança exterior dos Estados Unidos. Comefeito, constitui tese incontrovertida que dificilmente a estabilidadesocial seria compatível com a estagnação económica.

Sendo assim, é perfeitamente natural que se indague qual éo tipo de «desenvolvimento» que os Estados Unidos preconizampara a América Latina. Ora, esse problema tem sido objecto deescassa discussão nos círculos governamentais desse país, sendo a«ajuda económica» tradicionalmente considerada pelo Congressocomo simples complemento da «ajuda militar». Recentemente, al-guma atenção lhe tem sido dedicada, mas de um ângulo mais bemoperacional. Conforme observa o Prof. Edward MASON, «a AID vemtentando formular, a respeito dos principais países recebedores deajuda, uma denominada Estratégia de Assistência a Longo Prazo,a qual detalha os interesses dos Estados Unidos no país em questãonos sectores económico, político e de segurança, as condições emque tais objectivos podem ser alcançados e os instrumentos perti-nentes da política exterior»14. Ainda que os objectivos de umapolítica global não hajam sido explicitados, a respeito de um as-pecto do problema existe uma doutrina perfeitamente firmada.Este ponto é o de que cabe às empresas privadas norte-americanasum papel básico no desenvolvimento latino-americano e que aexecução da política de «ajuda» dos Estados Unidos deve fazer-seprincipalmente por intermédio dessas empresas. O relatório doComité Clay foi enfático sobre este ponto e, nos anos recentes,

14 Edward S. MASON, Foreign Aid and Foreign Policy (New York, 1964),pág. 48.

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tanto o Congresso como a Administração vêm demonstrando umgrande empenho em criar condições de garantias políticas e deincentivos económicos para que as empresas privadas americanasdesempenhem essa importante missão da política exterior. Acordosde «garantia» vêm sendo assinados com governos latino-america-nos, pelos quais as empresas privadas norte-americanas, queactuam em determiando país, passam a gozar de situação privile-giada relativamente a idênticas empresas que operam no territóriodos Estados Unidos. Por outro lado, medidas, como a emendaHikenlooper, criam uma super-garantia política para as empresasnorte-americanas, ao colocarem os governos locais sob permanenteameaça. Nas palavras do Prof. MASON, «pareceria que o governo(dos Estados Unidos) já foi tão longe quanto pode ir para promo-ver os investimentos privados norte-americanos na AméricaLatina, sem recorrer ao subsídio directo» 15. Neste contexto, quandose fala de empresa privada o que se tem em mente, implícita ouexplicitamente, é a grande organização, pois os pequenos negóciosdos Estados Unidos não possuem capacidade ou meios para actuarem países estrangeiros.

O primeiro problema que se coloca, do ponto de vista daAmérica Latina, é o de indagar que tipo de organização políticapoderá ser compatível, nos países da região, com um sistema eco-nómico tutelado por poderosas sociedades anónimas norte-ameri-canas. Cabe lembrar que as grandes sociedades anónimas norte--americanas são gigantescas burocracias privadas, que exercem fun-ções públicas, cuja integração na sociedade política dos EstadosUnidos constitui, até ao presente, um problema de solução inde-finida. O Prof. Andrew HACKER lembra-nos que «diferentementedas estruturas religiosas e corporativas de séculos anteriores, nagrande firma de hoje não existe qualquer fundamento racionalque vincule o poder, os objectivos e a responsabilidade» 16. Poresta razão, até ao presente não se encontrou uma forma de integraressas grandes organizações, cujas funções são cada vez mais denatureza pública, na estrutura de uma sociedade política pluralista.Por outro lado, os instrumentos convencionais de acção do PoderPúblico esbatem-se cada vez mais em face dessas grandes empre-sas, que controlam importantes sectores da actividade económicado país. O próprio Adolph BERLE, maior autoridade nessa matériae insuspeito de qualquer antipatia pelas grandes empresas, chamaa atenção para o facto de que a direcção de uma grande sociedadeanónima não deriva o seu poder de ninguém, senão dela mesma:

15 Idem, pág. 90.16 Andrew HACKER, «Cor por ate America», Introdução a The Corporation

Take-Over (New York, 1964), pág. 2.

«é uma oligarquia que automaticamente se auto-perpetua»17.O grande poder que enfeixam, presentemente, as grandes empresas,não tem o menor título de legitimidade. Informa-nos o Prof. BERLEque está tomando corpo nos Estados Unidos a doutrina de que«sempre que uma sociedade anónima tenha poder para afectar avida de muitas pessoas..., deve ser submetida às mesmas restriçõesconstitucionais que se aplicam a um serviço público do governofederal ou estadual»18.

Convocadas para actuar na América Latina com uma série deprivilégios, fora do controle da legislação anti-trust dos EstadosUnidos e com a cobertura político-militar desse país, as grandesempresas norte-americanas terão necessariamente que transfor-mar-se em um super-poder em qualquer país da região. Cabendo--lhe grande parte das decisões básicas com respeito à orientaçãodos investimentos, à localização das actividades económicas, àorientação da tecnologia, ao financiamento da pesquisa e ao graude integração das economias regionais, é perfeitamente claro queos centros de decisão representados pelos actuais Estados nacionaispassarão a um plano cada vez mais secundário.

Ora, independentemente das óbvias objecções que se podemformular, nos planos cultural e político, a esse «projecto» de desen-volvimento para a região, existem amplas razões que levam a crerque o mesmo é inviável, por ineficaz de um ponto de vista estricta-mente económico. É que a grande empresa norte-americana pareceser um instrumento tão inadequado para enfrentar os problemas dosubdesenvolvimento, quanto um poderoso exército motorizadoresulta ser ineficaz ao enfrentar uma guerra de guerrilhas. Asgrandes empresas, com a sua avançada tecnologia e elevada capita-lização, ao penetrarem numa economia subdesenvolvida, particular-mente quando muito apoiadas por muitos privilégios, têm efeitossimilares aos de certas grandes árvores exóticas que são introdu-zidas em determinadas áreas: drenam toda a água e dessecam oterreno, provocando um desequilíbrio na flora e na fauna, comemergência de pragas e outros fenómenos parecidos. Com efeito, apenetração indiscriminada, em uma estrutura económica frágil, degrandes consórcios, os quais se caracterizam por elevada inflexi-bilidade administrativa e grande poder financeiro, tende a provocardesequilíbrios estruturais de difícil correcção, tais como maioresdisparidades de níveis de vida entre grupos da população e rápidaacumulação de desemprego aberto e disfarçado. Se se reduz acapacidade de controle dos governos nacionais, permitindo-se queas grandes empresas norte-americanas actuem com mais liberdadedo que já gozam, é de esperar que tenda a acentuar-se a con-

17 A. A. BERLE, «Economic Power and the Free Society», incluído emThe Corporation Take-Over, citado, pág. 91.

is Idem, pág. 99.

centração de actividades económicas em certas sub-áreas, agra-vando as disparidades de níveis de vida entre grupos sociais eáreas geográficas. O resultado último seria um aumento real oupotencial das tensões sociais na América Latina. Como as decisõeseconómicas de carácter estratégico estariam fora do alcance dosgovernos latino-americanos, tais tensões tenderiam a ser vistas,no plano político local, tão somente pelo seu ângulo negativo.A acção do Estado tenderia a assumir um carácter essencialmenterepressivo.

O desenvolvimento económico, nas condições que defrontapresentemente a América Latina, dificilmente se fará semuma atitude cooperativa de grandes massas de população e aparticipação activa de importantes sectores dessa população. É poresta razão que as tarefas mais difíceis são de carácter político enão técnico. Uma difícil acção política deverá ser realizada, e istosomente será possível com apoio nos actuais centros de poder polí-tico nacional. Toda autêntica política de desenvolvimento retira asua força de um conjunto de juízos de valor, nos quais estãoamalgamados os ideais de uma colectividade. E se uma colectivi-dade não dispõe de órgãos políticos capacitados para interpretaras suas legítimas aspirações, não está aparelhada para empreenderas tarefas do desenvolvimento. Toda a medida que se venha atomar no sentido de enfraquecer os Estados latino-americanoscomo centros políticos capazes de interpretar as aspirações nacio-nais e de aglutinar as populações em torno de ideias comuns, terácomo resultado limitar as possibilidades de desenvolvimento daregião. Esta linha de análise põe em evidência que a integraçãoeconómica latino-americana somente se justifica se for concebidacomo definição de uma política comum entre Estados nacionais enão como articulação entre grandes empresas estrangeiras queoperam na região.

Alguns pontos podem ser destacados, à guisa de conclusão oucomo sugestão para o prosseguimento da análise aqui esboçada:

1. Dadas as condições de equilíbrio estratégico termo-nuelear queprevalecem no mundo actual, o exercício de hegemonias supra--nacionais não encontra justificação senão em termos dos inte-resses específicos das próprias potências que pretendem exer-cê-las.

2. As «esferas de influência» já não têm significado para assuper-potências do ponto de vista da sua segurança militar.

3. Do ponto de vista dos países do Terceiro Mundo, as esferas deinfluência devem ser interpretadas como sistemas de dominaçãoeconómica, os quais reduzem a sua liberdade para adaptar assuas próprias estruturas aos requerimentos de uma políticade desenvolvimento.

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4. A hegemonia que exercem os Estados Unidos na América La-tina, ao reforçar sobremaneira estruturas anacrónicas de poder,constitui sério obstáculo ao desenvolvimento da maioria dospaíses da região.

5. O «projecto» do Governo dos Estados Unidos de desenvolvi-mento da América Latina, com base na acção das grandes em-presas norte-americanas e no controle preventivo das «subver-sões», não parece ter qualquer viabilidade, excepto comotécnica de congelamento do status quo social.

6. O êxito de uma política de desenvolvimento na América Latinadependerá fundamentalmente da capacidade daqueles que aliderem para mobilizar a participação, em graus diversos, degrande parte da população, e essa tarefa somente poderá serrealizada a partir dos centros políticos nacionais e com base emvalores e ideais de cada nacionalidade.

7. A integração económica somente servirá aos objectivos do de-senvolvimento regional, se resultar de uma formulação de po-lítica comum entre governos autenticamente nacionais, e nãoda justaposição de interesses de grandes empresas estrangeirasque actuam na região.

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