boletim orcamento socioambiental 20

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Ano VI • nº 20 • maio de 2007 Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc 20 Amazônia ameaçada atividade de prospecção de petróleo e gás na região do Alto Juruá, no Acre — que concentra uma das maiores biodiversidades da Amazônia brasileira —, relacionada entre os grandes projetos de “desenvolvi- mento” e “integração regional” no âmbito da Iniciativa de Integração da Infra-Es- trutura Regional da América do Sul (IIRSA) e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), além de enormes im- pactos socioambientais denota total desconsideração pelas agendas dos povos indígenas e das populações tradicionais. Nessa região estão situadas 29 terras indígenas e boa parte das áreas de conser- vação do Acre, como reservas extrativistas, florestas estaduais e o Parque Nacional da Serra do Divisor. Os impactos socioambientais dessa e outras obras, com destaque para o complexo hidrelétrico do Rio Madeira — as usinas de Santo Antô- nio e Jirau —, e a conclusão da rodovia Transoceânica, que pretende ligar a re- gião amazônica aos portos do Oceano Pa- cífico, precisam ser mensurados e seus re- sultados publicizados. O comprometimento do bioma e das populações tradicionais, que sequer foram consideradas ou consultadas na elaboração dos projetos, reforça a prevalência do eco- nômico sobre o humano, em prol do qual essas ações deveriam estar sendo desenvol- vidas. Nesta publicação, o Inesc coloca uma série de questionamentos ao governo sobre os riscos que essas obras podem representar para a região amazônica e os povos que historicamente ocupam a região. E D I T O R I A L A www.inesc.org.br Os riscos da IIRSA e do PAC para a Amazônia Um cenário preocupante está atualmente de- lineado no sudoeste amazônico, em decorrên- cia da articulação de vários grandes projetos de “desenvolvimento” e de “integração regional”, já em execução ou previstos, no âmbito da Ini- ciativa de Integração da Infra-Estrutura Regio- nal da América do Sul (IIRSA) e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Na IIRSA, o Eixo Peru-Brasil-Bolívia tem como “projeto âncora” a pavimentação da Ro- dovia Transoceânica, financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e So- cial (BNDES) e pela Cooperação Andina de Fo- mento (CAF), com o objetivo principal de “im-

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Boletim Orcamento Socioambiental 20

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Ano VI • nº 20 • maio de 2007Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc

20

Amazônia ameaçadaatividade de prospecção de petróleo e gásna região do Alto Juruá, no Acre — queconcentra uma das maiores biodiversidadesda Amazônia brasileira —, relacionadaentre os grandes projetos de “desenvolvi-mento” e “integração regional” no âmbitoda Iniciativa de Integração da Infra-Es-trutura Regional da América do Sul(IIRSA) e do Programa de Aceleração doCrescimento (PAC), além de enormes im-pactos socioambientais denota totaldesconsideração pelas agendas dos povosindígenas e das populações tradicionais.

Nessa região estão situadas 29 terrasindígenas e boa parte das áreas de conser-vação do Acre, como reservas extrativistas,florestas estaduais e o Parque Nacionalda Serra do Divisor. Os impactossocioambientais dessa e outras obras, comdestaque para o complexo hidrelétrico doRio Madeira — as usinas de Santo Antô-nio e Jirau —, e a conclusão da rodoviaTransoceânica, que pretende ligar a re-gião amazônica aos portos do Oceano Pa-cífico, precisam ser mensurados e seus re-sultados publicizados.

O comprometimento do bioma e daspopulações tradicionais, que sequer foramconsideradas ou consultadas na elaboraçãodos projetos, reforça a prevalência do eco-nômico sobre o humano, em prol do qualessas ações deveriam estar sendo desenvol-vidas. Nesta publicação, o Inesc coloca umasérie de questionamentos ao governo sobreos riscos que essas obras podem representarpara a região amazônica e os povos quehistoricamente ocupam a região.

E D I T O R I A L

A

www.inesc.org.br

Os riscos da IIRSA e doPAC para a Amazônia

Um cenário preocupante está atualmente de-lineado no sudoeste amazônico, em decorrên-cia da articulação de vários grandes projetos de“desenvolvimento” e de “integração regional”,já em execução ou previstos, no âmbito da Ini-ciativa de Integração da Infra-Estrutura Regio-nal da América do Sul (IIRSA) e do Programade Aceleração do Crescimento (PAC).

Na IIRSA, o Eixo Peru-Brasil-Bolívia temcomo “projeto âncora” a pavimentação da Ro-dovia Transoceânica, financiada pelo BancoNacional de Desenvolvimento Econômico e So-cial (BNDES) e pela Cooperação Andina de Fo-mento (CAF), com o objetivo principal de “im-

2 maio de 2007

Os grandes projetosde “desenvolvimento”

e “integraçãoregional” têm

demonstrado umatotal desconsideração

pelas agendas,históricas e atuais, dospovos indígenas e das

populaçõestradicionais

Orçamento & Política Socioambiental: uma publicação do INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, em parceria com a FundaçãoHeinrich Boll. Tiragem: 1,5 mil exemplares. INESC - End: SCS – Qd, 08, bl B-50 - sala 435 - Ed. Venâncio 2000 – CEP 70.333-970 Brasília/DF – Brasil – Tel: (61) 3212 0200 – Fax: (61) 3212 0216 – E-mail: [email protected] – Site: www.inesc.org.br. ConselhoDiretor: Armando Raggio, Caetano Araújo, Eva Faleiros, Guacira Cesar, Iliana Canoff, Jean Pierre, Jurema Werneck, Padre Virgílio Uchoa,Pastor Ervino Schmidt. Colegiado de Gestão: Atila Roque, Iara Pietricovsky, José Antônio Moroni. Assessores/as: Alessandra Cardoso,Caio Varela, Edélcio Vigna, Eliana Graça, Francisco Sadeck, Jair Barbosa Júnior, Luciana Costa, Ricardo Verdum. Assistentes: ÁlvaroGerin, Ana Paula Felipe, Lucídio Bicalho. Instituições que apóiam o Inesc: Action Aid, CCFD, Christian Aid, EED, Embaixada do Canadá- Fundo Canadá , Fastenopfer, Fundação Avina, Fundação Ford, Fundação Heinrich Boll, KNH, Norwegian Church Aid, Novib, Oxfam,Save the Children Fund e Wemos Fundation. Jornalista responsável: Luciana Costa (DRT 258). Produção: Jair Barbosa Jr.

pulsionar a integração regional”, por meio daligação do sudoeste amazônico aos portos doOceano Pacífico, com vistas à exportação e aces-so de produtos a mercados internacionais. Inte-gram esse Eixo três Grupos, que incluem 44projetos - dentre eles, o “complexo hidrelétricodo rio Madeira” -, e investimentos totais estima-dos em US$ 11,6 milhões, em quatro estadosbrasileiros (AM, RO, AC e MT), sete departa-mentos peruanos e doisbolivianos.

No âmbito do Eixo doAmazonas, também nafronteira Brasil-Peru, ochamado Grupo 4 (“Aces-so à Hidrovia do Ucayali”)prevê, dentre sete projetos,as interconexões viária eenergética entre Pucallpa,capital do Departamentodo Ucayali, e Cruzeiro doSul, segunda maior cida-de acreana, “ponto final” das obras previstas noPAC para o asfaltamento da BR-3641.

No sudoeste amazônico, o PAC prevê, nospróximos quatro anos, as seguintes obras deinfra-estrutura: 1) “investimento em transpor-tes” (construção e pavimentação da BR-364, tre-cho Sena Madureira-Cruzeiro do Sul/AC, e “res-tauração, melhoramentos e pavimentação da BR-319, trecho Manaus/AM-Porto Velho/RO); 2)“ampliação da infra-estrutura de transporte de

gás natural” (conclusão dos gasodutos Urucu-Coari e Coari-Manaus/AM, já em andamento,e a construção do gasoduto Urucu-Porto Velho,“em estudo”); 3) “geração de energia elétrica”(construção das Usinas Hidroelétricas SantoAntônio e Jirau, no rio Madeira/RO); e 4)“transmissão de energia elétrica” (construção daslinhas de transmissão para ligação do “sistemaisolado” AC/RO com o “sistema interligado na-cional” Porto Velho/RO- Jauru/MT). Mais de-talhes sobre os projetos e seus orçamentos po-dem ser conferidos na tabela 1.

Na fronteira internacional Brasil-Peru, na ex-tensão que coincide com o Estado do Acre, o go-verno peruano tem, nos últimos anos, priorizadopolíticas de concessão de amplas extensões flo-restais a empresas madeireiras e petrolíferas, comprofundos impactos sobre “áreas naturais prote-gidas”, territórios de “comunidades nativas” e “re-servas territoriais” criadas e propostas para a pro-teção de povos indígenas “em isolamento volun-tário e contato inicial”. Os impactos das ativida-des de madeireiros peruanos têm, com freqüên-cia, se estendido ao território acreano, com a in-vasão e a retirada de madeiras nobres na TerraIndígena Kampa do rio Amônea e no ParqueNacional da Serra do Divisor (PNSD), situadosna fronteira internacional.

De comum, os grandes projetos de “desen-volvimento” e “integração regional”, além dasenormes conseqüências ambientais, em curso oupotenciais , têm demonstrado uma total

1 Iniciada em 1999, a pavimentação de certos trechos da BR-364 contou com recursos do governo federal e, nos últimos anos, do “Projeto de DesenvolvimentoSustentável do Acre” (BR-03013), financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). No âmbito do PAC, o governo do Acre recebeugarantias do governo federal sobre a liberação, em 2007, de R$ 540 milhões para a conclusão do asfaltamento da rodovia, permitindo a ligação definitivaentre Rio Branco e Cruzeiro do Sul.

3maio de 2007

desconsideração pelas agendas, históricas e atu-ais, dos povos indígenas e das populações tradi-cionais; pelas iniciativas por eles realizadas paraa gestão e a proteção de seus territórios coleti-vos; pelos marcos legais, nacionais e internacio-nais que contemplam a consulta e a participa-ção de suas organizações nas discussões de pro-jetos governamentais e do Legislativo que afe-

tem suas formas de vida e territórios; e ainda,pelas propostas formuladas pelas suas organiza-ções para viabilizar políticas públicas e estraté-gias de desenvolvimento que garantam seus di-reitos e suas necessidades fundamentais.

O presente texto2 pretende, a partir da pers-pectiva do início de atividades de prospecção depetróleo e gás no Estado do Acre, discutir como

Sudoeste Amazônico - Projetos do PAC Infra-estruturaRODOVIAS – PROJETOS ESTRUTURANTES – REGIÃO NORTEProjeto Conclusão Financiador Valor Investido UF

(Milhões)

BR- 163/MT/PA - Pavimentação Guarantã do Norte/MT-Rurópolis–Santarém/PA, MT

incluindo acesso a Miritituba/PA (BR-230/PA) 2010 Governo Federal R$ 1.504,30 PA

BR-364/AC - Construção e Pavimentação Sena Madureira-Cruzeiro do Sul 2010 Governo Federal R$ 540,00 ACBR-319/AM Restauração, melhoramentos e Pavimentação Manaus/AM – Porto Velho/RO, AM

incluindo construção da ponte sobre o Rio Madeira 2012 Governo Federal R$ 95,00 RO

RODOVIAS – PROJETOS ESTRUTURANTES – REGIÃO CENTRO-OESTEProjeto Conclusão Financiador Valor Investido UF

(Milhões)

Duplicação da BR-163/364 no Trecho Rondonópolis - Cuiabá - Posto Gil 2010 Governo Federal R$ 100,00 MT

BR-158/MT – Construção e Pavimentação

no Trecho Ribeirão Cascalheira (Entr. MT-326) - Divisa MT/PA 2009 Governo Federal R$ 400,00 MT

BR-364/MT – Construção e Pavimentação no Trecho Diamantino - Campos Novos dos Parecis 2010 Governo Federal R$ 260,00 MT

HIDROVIAS – PROJETOS ESTRUTURANTES – REGIÃO CENTRO OESTEProjeto Conclusão Financiador Valor Investido UF

(Milhões)

Melhoramento da Hidrovia do Paraá-Paraguai 2009 Governo Federal R$ 20,00

ENERGIA - REGIÃO NORTE – USINAS PREVISTASProjeto Inicio operações Valor Data do Leilão UF

UHE Santo Antonio SET – 2012 R$ 9,2 Bi Maio – 2007 RO

UHE Jirau FEV – 2013 R$ 9,2 Bi Outubro – 2007 ROUHE Rondon II Licença de Instalação renovada em FEV – 2006 R$ 45,6 Milhões — RO

ENERGIA - LINHAS DE TRANSMISSÃO A CONCLUIR EM 2008 – NORTEProjeto Valor UF Consórcio

LT Samuel - Ariquemes CS R$ 366,3 Milhões RO —

LT Ariquemes - Ji-Paraná CS - RO —

LT Ji-Paraná - Pimenta Bueno CS - RO —

LT Pimenta Bueno - Vilhena CS - RO —

LT Vilhena - Jarau CD - RO —

ENERGIA - AMPLIAÇÃO DA INFRA-ESTRUTURA DE TRANSPORTE DE GÁS GASODUTOSProjeto UF Conclusão Prevista

3 gasodutos, totalizando 1.183 km, permitindo o aproveitamento da produção de gás

da Região de Urucu – AM, com conclusão prevista para Fev/2009. AM FEV – 2009Fonte: Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais

abela 1T

2 O texto constitui uma versão modificada, a pedido do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), do artigo “Petróleo, gás, estradas e populações tradicionaisno Alto Juruá”, publicado no jornal Página 20, Rio Branco, em 29/4/2007, p. 22-23.

4 maio de 2007

A simples idéia deatividades voltadas à

prospecção depetróleo no Acre já

reacende nohorizonte desacertosantigos. Na Serra do

Divisor (AC), oDepartamento

Nacional daProdução Mineral e aPetrobrás realizaram

prospecções, semresultados concretos

a articulação dessa iniciativa com os projetos, emimplantação e previstos, no IIRSA e no PAC,podem vir a gerar imensos impactos sobre os ter-ritórios de amplo conjunto de povos indígenase de populações tradicionais no estado, e espe-cificamente, no Alto Juruá, uma das regiões demaior biodiversidade da Amazônica brasileira.

O sonho do “ouro negro”O mês de fevereiro de

2007 chegou com a no-tícia de que o senadorTião Viana (PT-AC) asse-gurara recursos no orça-mento geral da Uniãopara incluir o Estado doAcre na agenda dasprospecções a serem lici-tadas ao longo do anopela Agência Nacional doPetróleo, Gás Natural eBiocombustíveis (ANP)3.

De lá para cá, muitatinta correu sobre o as-sunto e alguém já escre-veu, com certa ironia, que, antes mesmo daprospecção ser iniciada, a existência de petró-leo e gás no Acre é tida como favas contadas4.Parecem ser favas contadas também tudo o quese alardeia sobre a riqueza e os benefícios queadvirão. Com a exploração do petróleo, o Acresupostamente poderia reviver o período de opu-lência econômica do início da exploração da bor-racha, na virada do século XX. Não custa recor-dar que, dentre os resultados dessa opulência,cantada em verso, prosa e, mais recentemente,romanceada na minissérie “Amazônia”, inúme-ros povos indígenas desapareceram e os serin-gueiros e índios foram submetidos a condiçõesde vida que não deixavam nada a dever à escra-vidão, abolida oficialmente no Brasil quando oboom da borracha começava.

Alardeia-se, ainda, que o Acre poderá ter nofuturo uma nova grande fonte geradora de recur-sos, para investir na melhoria da qualidade de vidade sua população. A nova fonte atende pelos no-mes de petróleo e gás. Mas a simples exploraçãodesses recursos trará automaticamente essamelhoria? Como serão repartidos os prejuízos ebenefícios advindos da exploração, e para quemirão os maiores lucros? Que entidades regulatóriastratarão desse tema? Qual será o papel das organi-zações de representação dos povos indígenas e dascomunidades florestais nessas entidades? Essas per-guntas são sonegadas nas matérias na imprensa enos argumentos daqueles favoráveis à iniciativa.

Certamente, a avaliação do que venha a serriqueza, pujança, bem-estar e fartura dependemuito da perspectiva daquele que fala. Aqui, to-maremos como hipótese inicial o fato de que aexploração de petróleo e gás no Acre, particu-larmente no Alto Juruá, são favas contadas, parapodermos refletir sobre algumas de suas possí-veis implicações futuras.

Exploração em áreas protegidas?A simples idéia de atividades voltadas à

prospecção de petróleo no Acre já reacende nohorizonte desacertos antigos. Na Serra doDivisor (AC), o Departamento Nacional da Pro-dução Mineral e a Petrobrás real izaramprospecções, sem resultados concretos, nas dé-cadas de 1930, 1960 e 19705.

No Parque Nacional da Serra do Divisor(PNSD), onde se suspeita mais fortemente queexista petróleo em abundância, em meados dosanos 90 algumas famílias começaram a reivindi-car o reconhecimento de sua identidade indíge-na — eram e são os Nawa. Esses índios foram du-ramente rechaçados por agentes governamentaise não-governamentais, que questionaram, inclu-sive na Justiça Federal, a autenticidade de suaindianidade, alegando que esta só teria emergi-do motivada pelo interesse de ficarem no Parque.

3 “ANP vai prospectar petróleo e gás no Acre ainda este ano”. (Aquino, R.). Página 20, em 8/2/2007.4 “Petróleo, meio ambiente e sociedade”. (Franke, I.L.). Página 20, em 28/3/2007.5 Ver Ranzi, A., em http://altino.blogspot.com/2007/04/prospeco.html

5maio de 2007

Se as esperanças deencontrar e explorar

“ouro negro” estãodepositadas no AltoJuruá, cabe lembrar,

uma vez mais, queestão ali situadas 29

terras indígenas eboa parte das áreas

de conservaçãodo Acre

Como se sabe, a legislação ambiental brasileiranão prevê a presença humana em parques nacio-nais. Com muito custo, e como resultado de umadecisão da Justiça, balizada numa perícia antro-pológica, os Nawa garantiram, em 2003, seu di-reito de permanecer num território que ocupamincontestemente — uma conquista respaldada naConstituição de 1988, que estabelece que os índi-os têm precedência histórica na ocupação de qual-quer território, aindaque seja um parque na-cional, e determina aogoverno federal a de-marcação e proteção dasterras por eles tradicio-nalmente ocupadas.

O caso dos Nawa levaa uma indagação sim-ples, que fazemos a al-guns dos órgãos oficiaise a organizações não-go-vernamentais que não semanifestaram ainda sobre a prospecção de petró-leo, ou que, com alguma discrição, preferiram mu-dar de idéia no curso do debate: se índios não de-veriam permanecer no PNSD, petróleo e gás de-vem ser ali explorados? As populações tradicionaisque ali moram, pouco mais de 500 famílias, de-vem ser removidas do Parque para quê, exatamen-te? Para a entrada de uma grande empresa explo-radora de petróleo?

Em 2 de abril de 2007, uma comitiva de po-líticos, empresários e quatro representantes domovimento social visitou a “Província Petrolífe-ra de Urucu”, no Município de Coari (AM), aconvite do senador Tião Viana. Três dias depois,matéria de sua assessoria de comunicação,publicada na imprensa acreana, registrou:

“os técnicos deixaram claro, ainda, para acomitiva, que a Petrobrás nunca ‘praticou,

ousou e sequer pensou’ em explorar deriva-dos do petróleo em terras indígenas e em uni-dades de conservação, pois a legislaçãoambiental brasileira não permite que tal ati-vidade ocorra nessas áreas protegidas por for-ça da Constituição do país”6.

Ainda bem, mas não custa acompanhar. Empaíses onde a legislação é menos rígida, comono Peru e Equador, a empresa não demonstra omesmo compromisso com a responsabilidadesocioambiental propagandeada no Brasil, oucom os direitos humanos, ao atuar em unidadesde conservação e em territórios reconhecidospara os povos indígenas, inclusive os “isolados”7.

Se as esperanças de encontrar e explorar“ouro negro” estão depositadas no Alto Juruá,cabe lembrar, uma vez mais, que estão ali situa-das 29 terras indígenas e boa parte das áreas deconservação do Acre: três reservas extrativistas(Alto Juruá, Riozinho do Liberdade e AltoTarauacá), três florestas estaduais e o PNSD8.Além dos seringais ocupados por populações quefaz um século vivem do extrativismo e da agri-cultura, há nessa região 32 projetos destinadospelo Incra, sob diferentes modalidades, a famí-lias beneficiárias da reforma agrária.

A exploração de petróleo, assim como de ou-tras riquezas minerais, depende de lei específicapara acontecer em terras indígenas, como dis-posto nos art. 176, §1º, e 231, §3º, da Consti-tuição Federal. Essa lei específica ainda não foiformulada, discutida ou aprovada pelo Congres-so Nacional, e enquanto não existir, não poderáocorrer qualquer exploração de recursos mine-rais em terras indígenas.

Por sua vez, o art. 28 do Sistema Nacional deUnidade de Conservação (SNUC), ligado ao Mi-nistério do Meio Ambiente, estabelece: “São proi-bidas, nas unidades de conservação, quaisquer al-

6 “Representantes do Acre aprovam exploração de petróleo”. A Tribuna, Rio Branco, em 5/4/2007.7 Leroy, J. P. & Malerba, J. (org.). Petrobras: integración o explotación? Rio de Janeiro, FASE/Projeto Brasil Sustentável e Democrático, 2005. A respeito da

sobreposição de lotes petrolíferos com territórios indígenas na fronteira Acre-Peru, ver Sevá, O. & Iglesias, M.P. “O petróleo e o gás debaixo da terra Pan-Amazônica (III)”. Página 20, em 15/4/2007, p. 22-23.

8 Sobre a atual situação das terras indígenas no Acre e o mosaico de 27 terras indígenas e 14 unidades de conservação configurado ao longo da fronteira com o Perue suas adjacências, com extensão agregada de pouco mais de 7,8 milhões de hectares, ver Iglesias, M.P. & Aquino, T.V. de “Povos e terras indígenas no Estadodo Acre”. (Subsídio ao Eixo da Sócio-Economia do ZEE do Acre-Fase II). Rio Branco, mimeo, 2006, p. 52.

6 maio de 2007

É fundamentalressaltar ainda que

os resultados doZoneamento

Econômico-Ecológicodo Acre (Fase II) não

recomendam, oumesmo contemplam,

a possibilidade deexploração de

petróleo e gás emterritório acreano

terações, atividades ou modalidades de utilizaçãoem desacordo com os seus objetivos, o seu Plano deManejo e seus regulamentos”. É certo que os técni-cos da ANP e da Petrobrás sabem disso. Os mo-vimentos sociais e as organizações indígenas de-vem também ter isso sempre em mente. E esta-rem atentos a iniciativas como o Acórdão 560/2007, do Plenário do Tribunal de Contas daUnião, de 11 de abril, e o projeto de lei em vias deser apresentado pelo go-verno ao Congresso, quevisam abrir as terras indí-genas à exploração mine-ral, e podem futuramen-te gerar jurisprudênciapara viabilizar o início daexploração petróleo e gásnesses mesmos territórios.

É fundamental ressal-tar ainda que os resulta-dos do Zoneamento Eco-nômico-Ecológico doAcre (Fase II) não reco-mendam, ou mesmo contemplam, a possibilida-de de exploração de petróleo e gás em territórioacreano. Esses resultados foram produzidos, emcinco anos, por técnicos de órgãos governamen-tais e consultores especializados; discutidos nassedes municipais; referendados pelas Câmaras daComissão Estadual do ZEE; apresentados à As-sembléia Legislativa pelos Secretários de Planeja-mento e de Meio Ambiente; e, finalmente, apro-vados pelos deputados em dezembro de 2006.

Cabe ressaltar o documento assinado, em 12de abril de 2007, pela Coordenação Regionaldo Grupo de Trabalho Amazônico (GTA-Acre),e por oito sindicatos de trabalhadores rurais enove organizações da sociedade civil, no qualexigem garantias à integridade das terras indí-genas e unidades de conservação; respeito aosmarcos legais; mecanismos de controle e parti-

c ipação social ; amplas sa lvaguardassocioambientais em todas as etapas do processo.O documento condena “toda forma de cercea-mento à livre expressão” e defende o debate qua-lificado e a democratização da informação comoinstrumentos para a definição dos melhores ca-minhos para o desenvolvimento sustentável doAcre e a melhoria de vida de sua população9.

Por fim, vale destacar a firme oposição às ati-vidades de prospecção e exploração de petró-leo, gás e outros recursos minerais em terras in-dígenas, já demarcadas e em processo de reco-nhecimento oficial, ou em regiões que possamresultar em impactos diretos ou indiretos sobreesses territórios, firmada por três organizações e20 povos indígenas do Acre, sul do Amazonas enoroeste de Rondônia, em documento tornadopúblico em 14 de abril de 200710.

Escalas regional e binacionalGrande destaque tem sido dado na imprensa

acreana sobre a possibilidade de diminuição, einclusive sobre a inexistência, dos impactosambientais na exploração de petróleo e gás. Acomitiva que, por poucas horas, realizou umavisita guiada pela Petrobrás para conferir opropagandeado modelo exemplar de Urucu,afirmou ter voltado impressionada com o “mí-nimo impacto” da exploração ali realizada, dan-do margem a que essa visão se consolidasse comoverdade absoluta a fundamentar os argumentosdaqueles favoráveis à prospecção. Desastres ocor-ridos nas últimas décadas em territórios indíge-nas e em unidades de conservação em váriospaíses sul-americanos, e em outras regiões doplaneta, sinalizam, contudo, para a improprie-dade de se imaginar que a exploração petrolífe-ra, quando avaliada ao longo de toda a sua ex-tensa cadeia produtiva, de refino e de distribui-ção, possa ser feita com baixo impacto ambientalou com a ausência de riscos significativos.

9 A “Nota sobre a prospecção de petróleo e gás no Estado do Acre” foi divulgada durante a palestra “Prospecção de derivados do petróleo no Acre e responsabilidadeambiental”, organizada pelo gabinete do Senador Tião Viana, em 12 de abril de 2007, em Rio Branco. A nota está disponível em www.gta.org.br/noticias_exibir.php?cod_cel=2325

10 “Contra as ameaças criminosas do governo brasileiro à integridade e segurança dos povos e territórios indígenas”. Disponível em www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=2492&eid=348

7maio de 2007

Para além dosdesdobramentos da

exploraçãolocalizada de

petróleo e gás,portanto, novos

impactossocioambientais se

configuram, enenhum deles é

“mínimo”

Visando também colaborar com aproblematização da esperança hoje depositada naprospecção, perguntamos: como se pensam osimpactos sociais e ambientais de uma futura ex-ploração? Como se mensuram os impactos sobrea população acreana, particularmente sobreaquela parcela que, ao longo de décadas e gera-ções, desenvolveu formas sustentáveis de relaçãocom a floresta e a mantém firmemente em pé?

Não pretendemos,nestas poucas linhas, es-gotar o assunto, mascabe indagar: caso hajaexploração de petróleoe gás no Alto Juruá,como serão esses pro-dutos dali transporta-dos? Um impacto — enão devemos jamais per-der isso de vista — geraoutro, numa onda quese propaga, alcançandoescalas e magnitudes crescentes.

Planeja-se escoar essa produção pelo Juruáaté Manaus por água, pelas estradas ou por meioda construção de um oleoduto? A alternativa detransporte pelo rio Juruá sequer merece ser co-mentada, visto que nem mercadorias essenciaisconseguem ser trazidas por balsas às sedes mu-nicipais nos meses da estação seca. Será pela BR-364, de Cruzeiro do Sul até Rio Branco, paraseguir para o restante do Brasil e, pela BR-317,para o Peru, pela Rodovia Transoceânica? Ha-veria uma terceira alternativa: realizar outraintegração rodoviária com o Peru, estendendoa BR-364, cortando florestas dos rios Juruá eUcayali, até Pucallpa, capital do Departamentodo Ucayali. Ou seja, por uma segunda estradabinacional até o Pacífico. Se for por umoleoduto/gasoduto, quais seriam os traçados pos-síveis? Para Urucu (AM), cortando imenso tre-cho de florestas no alto e médio cursos do rioJuruá? Para o oeste, para Pucallpa? Ou para o

sul, aproveitando as concessões que, a partir de2005, a Petrobrás obteve no alto Juruá perua-no e na adjacência do complexo de gás deCamisea, de onde um gasoduto parte para oPacífico? Todas essas alternativas implicam emcruzar terras indígenas, inclusive de índios “iso-lados”, e unidades de conservação, em regiõescom altíssimos índices de biodiversidade.

Para além dos desdobramentos da exploraçãolocalizada de petróleo e gás, portanto, novos im-pactos socioambientais se configuram, e ne-nhum deles é “mínimo”. As estradas que permi-tirão escoar a produção de petróleo e gás nãopoderão servir também para escoar madeira,explorada ilegalmente no Brasil? Se a explora-ção ilegal de madeira é problema hoje — inclu-sive feita por peruanos que a bandeiam para olado de lá —, como será quando novas estradasforem abertas? As rodovias não favorecerão o in-cremento do tráfico de drogas, problema cons-tante no Alto Juruá há pelo menos duas déca-das? O desmatamento e a expropriação fundiárianão deverão também ganhar força com a valo-rização da terra no entorno dessas vias e com aperspectiva de exportação de carne bovina paraPucallpa?

O fato incontestável é que os planos de ex-ploração petrolífera na fronteira acreano-peru-ana, da conexão viária até Pucallpa, e de expor-tação de carne bovina para o Peru estão interli-gados, podendo levar a uma integraçãoirreversível, de imensas conseqüências, entre osudoeste amazônico e os países andinos, no sen-tido leste-oeste. Já contemplados na IIRSA, osinteresses geopolíticos, financeiros, energéticos,viários e comerciais associados a essa ligaçãotransamazônica, no sentido Rio Branco-Cruzei-ro do Sul-Pucallpa, gerarão impactos, diretos eindiretos, potencialmente gigantescos11.

No âmbito dos projetos do Grupo 4 (“Acessoà Hidrovia do Ucayali”), do Eixo do Amazonas,do IIRSA, os investimentos necessários à“Interconexão Vial” Cruzeiro do Sul-Pucallpa

11 Ver Iglesias, M.P. & Aquino, T.V. de. “Geopolítica das fronteiras acreanas com o Peru e os povos indígenas”. (Subsídio ao Eixo Cultural e Político do ZEE doEstado do Acre-Fase II). Rio Branco, mimeo, 2006, p. 57.

8 maio de 2007

A estrada atéPucallpa é viável sob

o aspectoeconômico, mas

amplas consultasserão necessárias

junto aos índios,seringueiros e outros

setores devido aosimensos impactos

ambientais que suaabertura acarretará

estão estimados em US$ 247 milhões e à“Interconexão Energética” entre essas cidades,em US$ 40 milhões12.

Recentes acordos binacionais reforçam esse ce-nário futuro. Em Comunicado feito em 9 de no-vembro de 200613, os presidentes Lula e AlanGarcia ressaltaram a “alta prioridade” atribuída porseus governos ao “processo de integração da infra-estrutura física” entre ambos países, Brasil e Peru,concordando em apoiar aconclusão da RodoviaTransocêanica e o acessorodoviário entre Cruzeiroe Pucallpa. Registraramainda memorando assina-do pelos Ministérios deMinas e Energia, estabe-lecendo um mecanismode “consulta e cooperaçãobilateral em matériaenergética, geológica e demineração”, e a relevânciado “Memorando de En-tendimento para o desenvolvimento de investi-mentos em exploração, produção, transporte,transformação e distribuição de hidrocarbonetos”,firmado entre a Petrobrás, a Petroperú e aPerúpetro, em 27 de setembro passado.

No Congresso Nacional, integrantes da banca-da acreana oriundos do Vale do Juruá têm se mo-bilizado para fazer essa agenda da integração avan-çar. Na Câmara, Gladson Cameli (PP) e IderleiCordeiro (PPS) são titulares da Comissão de Via-ção e Transporte e suplentes da Comissão da Ama-zônia. O segundo acaba de assumir a coordena-ção da Frente Parlamentar Brasil-Peru. Antes, en-viara ao Ministro de Planejamento requerimentode informação sobre “a perspectiva deimplementação da Agenda IIRSA” com recursosdo PAC; “o andamento dos projetos referentes aoEixo do Amazonas e do Grupo Acesso à Hidrovia

de Ucayali”; “a perspectiva de execução da cone-xão Pucallpa-Cruzeiro do Sul nos termos do PAC”e “a prioridade da ligação viária do Brasil com oPeru através do Vale do Juruá”14.

O deputado Iderlei Cordeiro (PPS/AC) aindaparticipou de audiência com a diretoria da Agên-cia Nacional de Transportes Terrestres, solicitan-do estudos para a extensão da BR-364 até a fron-teira peruana, de forma a subsidiar futuros enten-dimentos bilaterais para concretizar a viabinacional. E, com o Secretário de Relações Exte-riores do Agronegócio do Ministério da Agricul-tura, pediu informações sobre os requisitos decertificação sanitária necessários à exportação decarne bovina para Pucallpa e à importação de fru-tas, verduras e peixes e seus derivados. Em 24 deabril de 2007, o Secretário de Planejamento e In-vestimento Estratégico do Ministério do Planeja-mento e coordenador do IIRSA no Brasil, ArielPares, compareceu à Comissão da Amazônia, naCâmara, onde afirmou que a estrada até Pucallpaé viável sob o aspecto econômico, mas amplas con-sultas serão necessárias junto aos índios, seringuei-ros e outros setores devido aos imensos impactosambientais que sua abertura acarretará15.

Ao lermos os jornais acreanos, tudo se passa comose o que estivesse hoje em jogo no Alto Juruá fosseminiciativas desarticuladas: o asfaltamento da BR-364até Cruzeiro do Sul, o intercâmbio comercial comPucallpa, o anúncio da exploração petrolífera (semespecificar trajetos possíveis para o seu escoamento)e, em letra miúda, as discussões sobre açõesbinacionais para a integração aérea e viária.

É ingenuidade supor, pelo que foi exposto, quea exploração de petróleo e gás se resuma a aumen-tar as arrecadações estadual e municipais e a cana-lizar royalties para uso em fins sociais e ecológicos,como alegam os defensores da proposta. Custa crer,ainda, que essa agenda da ligação viária eenergética esteja em construção ante nossos olhos,sem que as sociedades acreana e brasileira tenham

12 IIRSA. Planificación Territorial Indicativa: Cartera de Proyectos IIRSA 2004. Buenos Aires, Comitê de Coordenação Técnica, 2004, p. 92.13 www.mre.gov.br/portugues/imprensa/nota_detalhe3.asp?ID_RELEASE=408014 Cabe destacar que R$ 11,3 milhões foram autorizados para o projeto “Interconexão Viária Pucallpa-Cruzeiro do Sul (AC)” na Lei Orçamentária Anual (LOA)

2006, ainda que nenhum recurso tivesse sido efetivamente liquidado até 10/11/2006. Ver “O insustentável ambiente da integração”. Boletim Orçamento &Política Socioambiental, número 19, 2006, disponível em www.inesc.org.br.

15 “Ligação do Acre com Pucallpa é viável, diz secretário”. Agência Amazônia, em 25/4/2007.

9maio de 2007 9

Algumas das medidasdefinidas para

minimizar o impactodo asfaltamento da

BR-364 entre osKatukina da Terra

Indígena Campinas,ainda hoje, passados

mais de seis anos, nãoforam implementadas

de modo adequado

sido chamadas a discutir os efeitos previsíveis dasobras de infra-estrutura; dos fluxos de capitais,pessoas e mercadorias que serão iniciados; bemcomo dos deslocamentos migratórios para os jáprecários centros urbanos e dos impactos sobre afloresta e as populações tradicionais que nela ha-bitam. Somados, os resultados desses processos di-ficilmente ficarão atrás daqueles que transforma-ram profundamente Rio Branco e o Vale do Acreem décadas recentes, detriste memória.

Impactossocioambientais

Lembremos que, em2003, no início das dis-cussões sobre aintegração com o Depar-tamento do Ucayali, oentão governador doAcre, Jorge Viana, che-gou a propor que umafaixa de 50 quilômetros ao longo da fronteira doAcre com o Peru fosse preservada de qualquer ex-ploração, para proteger o meio ambiente e garan-tir as boas relações entre as populações locais. Essaproposta foi novamente defendida em encontrocom o então presidente Alejandro Toledo, emLima, em março de 2004, no qual as invasões e osprejuízos ambientais promovidos por madeireirosperuanos na Terra Indígena (TI) Kampa do RioAmônea e no Parque Nacional da Serra do Divisor(PNSD) foram claramente colocados como obstá-culo ao avanço da integração.

No atual contexto, trata-se, novamente, não ape-nas de manter a integridade e viabilidade doPNSD, das reservas extrativistas e terras indígenasjá existentes. Antecipando-se às enormes conseqü-ências daquele modelo de integração, trata-se dedar transparência aos planos de trajetos, tanto deestradas como de possíveis gasodutos/oleodutos,para subsidiar a criação de zonas de proteção emambos os países e a elaboração, com ampla parti-cipação, de planos de zoneamento regional e demitigação e compensação dos impactos

socioambientais.Há exemplos, em outros países, de discussões

públicas de projetos energéticos similares que le-varam a soluções de longo prazo, contemplandoefetivamente os direitos de populações indígenase tradicionais. No caso do gasoduto-oleoduto doVale do Mackenzie, no Canadá, uma medida foi acriação de um escritório de apoio aos grupos abo-rígenes e a outros interessados, com a responsabi-lidade de apoiar as comunidades nativas e demaismoradores locais a fortalecerem sua capacidadeorganizacional para participarem em todos os as-pectos do projeto; coordenar e estabelecer rela-ções de trabalho efetivas com órgãos de governo,empresas e outros atores; coordenar as demandase contribuições sobre os aspectos ambientais; eapoiar a pesquisa científica em relação à avaliaçãoda construção e da operação do gasoduto. Mas asdiscussões e essas medidas foram feitas antes, e nãodepois dos fatos consumados.

Para ficarmos apenas com os impactos gera-dos pelas estradas no Acre, vale lembrar que apavimentação da BR-364, no trecho entre Cru-zeiro do Sul e Rio Branco, ainda não concluído,não previa impactos dessa monta. Quando aspesquisas antropológicas para a revisão dos Estu-dos e Relatórios de Impactos Ambientais (EIA-RIMAs) do asfaltamento da BR-364 e da BR-317 foram feitas, em 2001, a exploração do “ouronegro” não constava — pelo menos de modotransparente — na agenda dos representantespolíticos acreanos. Tendo em conta que a BR-364corta por 18 quilômetros a Terra Indígena Cam-pinas Katukina, fortemente impactada pela pa-vimentação, será preciso realizar novos estudos,ali e em todo o entorno da estrada, para avaliaros impactos socioambientais e a viabilidade do seuuso para transportar o que for produzido a par-tir da exploração petrolífera e/ou de gás.

Algumas das medidas definidas para minimizaro impacto do asfaltamento da BR-364 entre osKatukina da Terra Indígena Campinas, ainda hoje,passados mais de seis anos, não foramimplementadas de modo adequado — como é ocaso de um diagnóstico do estoque faunístico para

10 maio de 2007

As questõesrelacionadas àampliação dos

impactos que, via deregra, resultarão da

exploraçãopetrolífera e de gásno Acre não foram

devidamentedebatidas até o atual

momento. Se nãoforem desde já,quando serão?

embasar a elaboração e execução pelos índios deum plano de manejo de caça. A pavimentação pro-vocou profundas mudanças na vida dos Katukina,particularmente em sua dieta alimentar, e tambémaumentou as invasões de caçadores na terra indí-gena e a violência em seu entorno16.

Se os Katukina até agora não foram devidamenteassistidos naquilo que foi previsto no início doasfaltamento da estrada, na primeira gestão JorgeViana, quando o serão?Que garantia terão eles, eoutros povos indígenas epopulações tradicionais quevivem no entorno da estra-da, de que os novos impac-tos serão minimizados ecompensados no futuropróximo, com o uso da ro-dovia para escoar a produ-ção petrolífera, se planos demitigação mais simples, an-tes acordados, não foramimplementados?17. Cabeponderar, ainda, que se nãofosse pela pressão exercida pelos Katukina junto aogoverno estadual, e pela responsabilidade, boa von-tade e dedicação de alguns poucos funcionários, es-ses planos nunca teriam sido executados.

É possível crer que planos de mitigação, com-pensação e monitoramento dos impactosambientais e socioculturais resultantes da con-jugação do asfaltamento da BR-364, do mane-jo madeireiro empresarial nas florestas estadu-ais e da exploração de petróleo e gás serão ela-borados e efetivamente cumpridos pelos gover-nos estadual e federal no Alto Juruá? É difícilacreditar, à luz da experiência recente.

Nos últimos anos, relevantes articulações, en-volvendo movimentos sociais, organizações não-governamentais e comunidades científicas do

Brasil, Peru e Bolívia, mais recentemente comapoio oficial, têm produzido críticas fundamen-tadas aos impactos socioambientais das políticasde desenvolvimento em curso, e levado a cabodiscussões que podem provocar outroszoneamentos territoriais e a proposição de ou-tras alternativas de “integração regional”. Cabedestacar, primeiramente, a Iniciativa Madre deDios, Acre, Pando (MAP)18, criada em 2002,que tem focado sua atuação na tríplice frontei-ra Brasil-Peru-Bolívia, onde está em curso a pa-vimentação da Transoceânica.

Em 2004, quando a abertura da estradaPucallpa-Cruzeiro do Sul entrou na agenda de ne-gociações entre os governos do Acre e do Ucayali,apenas empresários e políticos foram chamados aparticipar, no âmbito da Secretaria Técnica Acre-Ucayali. Nesse mesmo ano, a sociedade civil cons-tituiu o “GT para Proteção Transfronteiriça daSerra do Divisor e Alto Juruá (Brasil-Peru)”, e emjulho de 2006, com ambos os governos, o “Fórumpara a Integração Acre-Ucayali”, nos quais a es-trada deixou de ser o foco prioritário e outros as-pectos da “integração” passaram a ser discutidos.

Pouca transparênciaAs questões relacionadas à ampliação dos im-

pactos que, via de regra, resultarão da explora-ção petrolífera e de gás no Acre não foram de-vidamente debatidas até o atual momento. Senão forem desde já, quando serão?

As conseqüências da exploração de petróleocertamente não se limitam à área efetivamenteexplorada. Uma avaliação meticulosa e precisada onda de impactos que se propagará deve serincluída de imediato na agenda, para que se te-nha plena certeza — isso talvez aumente as in-certezas ou os argumentos contrários — da via-bilidade da exploração ou dos custos que osacreanos podem, ou querem efetivamente pa-

16 Lima, E.C. de. “Os impactos do asfaltamento da BR-364 na vida dos Katukina do rio Campinas”. Página 20, 8/5/2005; Martins, H.M.M & Góes, P.R.H de.“BR-364: quem duvidaria da tragédia? Página 20, 16/10/2005; Lima, E.C. de. “A BR-364 e os Katukina: a história se repete?”. In: Povos Indígenas no Brasil/2001-2005. (Ricardo, B. & F.) São Paulo, Instituto Socioambiental, 2006, p. 586-587.

17 A respeito dos planos de mitigação e compensação implementados em nove terras indígenas com recursos do Projeto “Apoio às Populações Indígenas Impactadaspelas Rodovias BRs 364 e 317”, com parte do financiamento concedida pelo BNDES ao governo estadual no âmbito do “Programa Integrado de DesenvolvimentoSustentável do Acre”, ver Iglesias, M. P. & Aquino, T.V. de. “Gestão territorial e ambiental em terras indígenas no Estado do Acre”. (Subsídio ao Eixo CulturalPolítico do ZEE do Estado do Acre). Rio Branco, mimeo, 2006, p. 62.

18 Ver www.map-amazonia.net, website da Iniciativa Madre de Dios, Acre, Pando (MAP).

11maio de 2007

Nesse período, quaisprovidências foram

tomadas parapromover estudos e

debates quepermitissem avaliar os

diferentes cenáriosque uma futura

exploração poderádelinear num

contexto próximo?

gar para participar da concretização de um so-nho petrolífero estatal de quase sete décadas.

Consta de várias matérias publicadas na impren-sa acreana que foram iniciadas, há seis anos, asgestões do senador Tião Viana para garantir re-cursos e construir condições políticas para que aAgência Nacional do Petróleo, Gás Natural eBiocombustíveis (ANP) inicie atividades deprospecção de petróleo e gás no Acre. Nesse perí-odo, quais providênciasforam tomadas para pro-mover estudos e debatesque permitissem avaliaros diferentes cenáriosque uma futura explora-ção poderá delinear numcontexto próximo?

As opiniões e osanseios da populaçãoacreana deveriam serouvidos antes mesmo doinício das gestões juntoà ANP, diante da possibilidade de a exploraçãopetrolífera incluir terras indígenas, inclusive asdestinadas a “isolados”. É recomendação expres-sa do art. 6º da Convenção 169 da OrganizaçãoInternacional do Trabalho (OIT) a necessidadeda consulta prévia, informada e de boa fé, aosindígenas e às suas organizações, sobre projetosde governo e do Legislativo que venham a causarimpactos sobre seus territórios e formas de vida.No caso dos recursos minerais, o art. 15 da Con-venção é igualmente claro:

“os governos deverão estabelecer ou manter pro-cedimentos com vistas a consultar os povos in-teressados, a fim de se determinar se os interes-ses desses povos seriam prejudicados, e em quemedida, antes de se empreender ou autorizarqualquer programa de prospecção ou explora-ção dos recursos existentes nas suas terras”.

Dada sua relevância, procedimentos seme-lhantes deveriam ter sido viabilizados junto atoda a sociedade acreana, e especialmente jun-to a aqueles que vivem na floresta, em cujos lo-

cais de moradia a prospecção e exploração po-deriam vir a ocorrer.

Mais de seis anos se passaram, todavia, desde asprimeiras iniciativas para viabilizar a prospecçãode petróleo no Acre. Somente no período de 12 a17 de abril deste ano ocorreram as primeiras “pa-lestras”, em Rio Branco e Cruzeiro do Sul, profe-ridas por diretores e técnicos da ANP e daPetrobrás, para iniciar um “debate” sobre o proje-to. É importante frisar que esses eventos resulta-ram de críticas e demandas da sociedade civil, enão de uma iniciativa oficial, conforme quer fazercrer agora a imprensa acreana. Organizados compalestrantes recrutados pelo gabinete do senador,com a clara intenção de legitimar sua iniciativa dedefender a prospecção de gás e petróleo, econstruídos por uma maciça campanha de mídia,os “seminários” foram marcados pela ausência deum debate de fato democrático.

Os eventos pouco contribuíram para o esclare-cimento da população acreana. Esta ficou sem sa-ber, por exemplo, que, em 7 de fevereiro, vésperado primeiro anúncio do projeto de prospecçãopela imprensa do Acre, a Diretoria da ANP já au-torizara a abertura de licitação para contratar “ser-viços técnicos especializados de aquisição eprocessamento de 105 mil quilômetros lineares dedados aerogravimétricos e aeromagnetométricos nasbacias do Acre, Madre de Dios e Solimões”, ou seja,a primeira etapa da prospecção.

Conforme consta no Diário Oficial da União,o pregão foi aberto em 22 de março e “adiado”quatro dias depois. Previa que os ganhadores se-riam conhecidos em 3 de abril, um dia depois,portanto, da comitiva oficial visitar Urucu enove dias antes do primeiro seminário em RioBranco. Segundo o pregão, a prospecção aéreaincluía o território peruano. Na região de Ma-dre de Dios, asfaltando a Rodovia Transoceânica,hoje atuam a Odebrecht, a Andrade Gutierreze a Queiroz Galvão, empreiteiras que possuemsubsidiárias especializadas na perfuração de po-ços de petróleo e gás. Apesar da licitação estarformalmente suspensa, o presidente da ANP,Newton Reis Monteiro, afirmou, em entrevista

12 maio de 2007

É certo que nãoexistem ainda

respostas paravárias perguntas

que até agora,infelizmente,

muitos parecemquerer, de forma

deliberada, evitarformular ou

responder

recente19, que a empresa ganhadora já é conhe-cida e que o início da prospecção depende ago-ra de autorização expressa do presidente Lula,por se tratar de atividade em faixa de fronteira.

Está claro que a exploração de petróleo e gáspode não se efetivar em território acreano20. Nosúltimos seis anos, todavia, esse projeto deveria tersido exposto e discutido às claras, referenciado aosinteresses energéticos, viários, comerciais, empre-sariais e (geo) políticos, eaos impactos socio-ambientais e culturais as-sociados. Amplos estudostambém deveriam ter sidoiniciados, permitindo quehoje se tivessem funda-mentos e opiniões maissólidos sobre a viabilidadesocioambiental desse “so-nho petrolífero”. É certoque não existem ainda res-postas para várias pergun-tas que até agora, infelizmente, muitos parecemquerer, de forma deliberada, evitar formular ouresponder.

Enfim, parece que um certo modelo de “de-senvolvimento”, assentado sobre as grandesobras de infra-estrutura viária e energética esobre a questionável extração de recursos da flo-resta e de seu subsolo, ancorado nos projetos emexecução e previstos na Iniciativa de Integraçãoda Infra-Estrutura Regional da América do Sul(IIRSA) e no Programa de Aceleração do Cres-cimento (PAC), está prestes a se consolidar naparte mais ocidental da região amazônica.

Certamente, esse modelo não é coincidentecom as formas de vida e os anseios dos povosindígenas e das populações tradicionais,tampouco com as agendas de suas organizaçõesde representação política ou mesmo com os so-nhos e planos que foram alimentados durante agestão do então governador Jorge Viana, no

Acre, no chamado “Governo da Floresta”.Os processos ora em curso no Acre e no su-

doeste amazônico tornam clara a necessidade deconsolidação e fortalecimento, em âmbitos re-gional, nacional e transfronteiriço, de amplas re-des de organizações da sociedade civil, repre-sentantes da comunidade científica e parlamen-tares comprometidos com o objetivo de exercerum efetivo controle social sobre o planejamen-to, a implementação e o monitoramento dasobras de infra-estrutura inerentes às iniciativasoficiais voltadas à “aceleração do crescimento” eà promoção da “integração sul-americana”.

Além desse papel, caberá a essas organizações eredes propor alternativas que resultem na conti-nuidade de promissoras iniciativas locais já emcurso, em propostas inovadoras e em políticas pú-blicas que venham a garantir a integridade e a ges-tão das terras indígenas e unidades de conserva-ção; os direitos e serviços garantidos aos índios e àspopulações tradicionais nos marcos legais, nacio-nais e internacionais, bem como outras modalida-des de desenvolvimento e integração mais justas,solidárias e sensíveis à diversidade sociocultural.

Marcelo Piedrafita IglesiasDoutorando em Antropologia Social,

PPGAS/Museu Nacional/UFRJ;Pesquisador do Laboratório de Pesquisas sobre

Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED/MN/UFRJ)

Edilene Coffaci de LimaDoutora em Antropologia Social, USP; Professora do

Departamento de Antropologia da UFPR

Mauro Barbosa de AlmeidaDoutor em Antropologia Social,

Universidade de Cambridge;Professor do Departamento de Antropologia do IFCH-

UNICAMP; Coordenador do PPGAS/UNICAMP

19 “Dentro de três meses, já queremos ter feito uns buraquinhos lá...”. Página 20, Rio Branco, 27 de abril (www2.uol.com.br/pagina20/27042007/entrevista.htm)20 Face às reiteradas críticas, o senador procurou, em várias oportunidades, reiterar a posição de que as atividades de prospecção e exploração não ocorrerão em terras

indígenas e unidades de conservação, conforme previsto na legislação, tendo, para reforçar essa posição, se reunido com a coordenação do Conselho IndigenistaMissionário, em Brasília. Ver: “Tião Viana tranqüiliza Cimi nacional”. A Tribuna, em 3/5/2007.