antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

Upload: barroswandrews

Post on 03-Apr-2018

245 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    1/30

    A SENDA AMOROSA DO DIREITO: AMOR EIUSTITIA NO DISCURSO JURDICOMODERNO

    Brief, le plus grand plaisir qui soit aprs l' amour, c' est d'en parler

    L. LAB, Dbat de folie et d'amour , Discours IV

    Sumrio: l. Introduo.-2. Os sentimentos como objeto de estudo.-3. Osestados de esprito como princpios de ao.-4. Estados de esprito,contextos, prticas e representaes.-5. A tradio literria teolgico-jurdicacomo habitus social.-6. Textos ideolgicos e textos descritivos.-7. Poltica e paixo.-8. Modelo de amor.-9. Amor e prtica poltica.-10. Amor e ordem.-11.Amor e unidade.-12. O amor concreto: a amizade.-13. Amor, amizade e justia.-14. A reconstituio do amor e a funo dos juristas.

    1. INTRODUO

    Amor a deliberatione privat 1, o amor priva o juzo;amor furoris species est 2, o amor uma espcie de loucura da alma, to violenta que no superada por nada;amor modum nonadmittit, cum humanus amor ex iis affectionibus fit, quorum virtus regula esse non potest 3, oamor no tem medida, at o ponto de no poder ter como regra a virtude.

    Assim diziam os antigos. Decididamente, a proximidade entre o amor e a justia nofaz parte dos tpicos de nossa cultura. Entretanto, deveramos afirmar o contrrio, pois nossoimaginrio social est repleto, como podemos notar, deexemplae lugares comuns que doconta da antipatia mtua reinante entre estes dois sentimentos. A invocao da justia emsituaes estruturadas pelo amor (como uma famlia feliz, uma casal de namorados, um grupode bons amigos) to estranha assim como intil (e irrelevante como critrio de deciso) ainvocao do amor no mbito de um processo judicial. Pior ainda: como regra, considera-seque o recurso justia destri as relaes de amor (ou s se verifica quando estas j estoarruinadas), da mesma forma que acreditamos que o surgimento dos afetos separa a justia deseu carter neutro e cego.

    verdade que se observarmos a justia e o amor do ponto de vista da paz social, possvel ento encontrar algum parentesco entre ambos, na medida em que os dois fatores so

    1 M. Alvares PEGAS,Commentaria ad Ordinationes Regni Portugaliae, t. I (Ulyssipone 1669), ad. I, 1, gl. 13,n. 2.2 Ibidem, t. I, ad. I, 1, gl. 13, n. 2 (a. 13).3 lbidem, t. V, ad. I, 65, gl. 45, n. 5.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    2/30

    importantes os mais importantes, na verdade para os estados de paz. Entretanto, convmsalientar que ambos cumprem esta funo servindo-se de procedimentos diversos eexcludentes entre si4. Simplificando um pouco as coisas, pode-se dizer que a justia pacifica

    pela disciplina, enquanto que o amor pacifica pelo consenso.E, no entanto, como veremos, as coisas nem sempre foram assim. No discurso moral e jurdico tradicional europeu, o amor aparece com freqncia

    associado justia, quer como estado de esprito que promovia o sentimento do justo (amor iustitiae), quer como uma virtude anexa, por mais distinta que tenha sido, justia. No se pode esquecer que a justia podia ser invocada, no que diz respeito ao amor, em relao aodbito recproco dos amantes (debitum amoris, debitum antidoralis, quasi debitum).

    2. OS SENTIMENTOS COMO OBJETO DE ESTUDO

    No h dvida que ao discorrer sobre o amor e a justia (ou, para ser mais preciso,sobre o amor na perspectiva da justia) irremediavelmente adentramo-nos no terreno dosestados de esprito, dos sentimentos. E este um territrio muito mal definido do ponto devista metodolgico. Realmente, a historiografia que tem sido praticada habitualmente nos

    ltimos anos uma historiografia da exterioridade: descrevem-se atos exteriores e se fabricamcadeias explicativas de atos exteriores para atos exteriores. A introspeco nunca convocada, nada tem a dizer, apesar de todos ns sermos conscientes de que as coisas maisimportantes de nossas vidas no consistem em atos exteriores, mas em disposies do esprito,e apesar, tambm, de todos ns sabermos que, no fundo, na origem de qualquer aoencontra-se um sentimento.

    Desse modo, falar dos sentimentos dos juristas ou levantar uma histria jurdica dos

    sentimentos constituem um passo justificvel na medida em que permitem restaurar ummomento fundamental da ao jurdica. Neste momento, temos tambm que estar conscientesdos enormes riscos envolvidos neste passo da exterioridade e da interioridade, riscos quederivam afinal, como bem sabido, da dificuldade de compatibilizar a quase irresistveltentao hermenutica de interpretar os atos visveis (como se fossem prticas discursivas) em

    4 Sobre o amor e a justia como tecnologias de obteno de estados de paz, cfr. Luc BOLTANSKY, L'amour et la justice comme comptences. Tros essais de sociologie de l'action, Paris, Mtaill, 1990. Note que aoposio que estabelece este autor entreeros e agap parece inspirar-se em A. Ngyren, o qual, segundo algunsintrpretes do tomismo, teria interpretado mal So Toms ao inclu-lo, seguindo uma leitura tradicional luterana,entre os seguidores de uma filosofia ertica ou interessada em oposio a outra exttica ou desinteressada doamor (vid. A. NGYREN, Eros et agap, Paris, 1944-1953, 3 vols., e A. MALET, Personne et amour dans lathologie trinitaire de Saint Thomas d'Aquin, Paris, Vrin, 1956).

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    3/30

    funo dos sentimentos com a crua realidade, ou seja, com a impossibilidade material deentrar dentro das cabeas das pessoas (sobretudo quando esto mortas!)

    Aqui, e segundo os especialistas, esto os dois principais perigos que devem ser

    destacados: em primeiro lugar, oobjetivismoque tende a equiparar os sentimentos comestados psquicos (ou at fisiolgico) objetivamente caracterizveis; em segundo lugar, oimpressionismoque, ao seu modo, pretende busca-los mediante um exerccio de introspecoculturalmente pura (ou seja, no contaminada por modelos de apreenso culturalmenteinduzidos). Estes dois perigos so, por sua vez, manifestaes de outro mais geral, que essenaturalismo que concebe os sentimentos como realidades relacionadas com a naturezaanmica do homem, isto , providos de uma identidade capaz de sobreviver s determinaes

    dos tempos, das culturas e de outros contextos sociais.Devemos comear, ao contrrio, a prestar grande ateno ao que j fora em seu

    momento enfatizado por Wittgenstein: especificamente, ao fato de que qualquer forma deintrospeco que identifica sentimentos distingue-os com a ajuda dos esquemas lingsticosou quadros de classificao de manifestaes externas de sentimentos, sendo ambosdependentes de um contexto cultural determinado5.

    Isto significa que parece pouco fundado do ponto de vista metodolgico iniciar esta

    breve investigao, carregando nas costas os esquemas lingsticos e categoriais quegovernam no mundo de hoje estados de esprito tais como o amor. E isso o que veremos emseguida, que o sistema de classificao que hoje aplicamos aos sentimentos e a partir doqual dotamos de sentido a palavra amor- muito diferente do que estava em vigor durante oAntigo Regime. O amor de hoje no tem nenhuma semelhana com o amor de ontem. Noevoca as mesmas emoes. No se exterioriza segundo o mesmo conjunto de aes e reaesexternas. No se conecta na mesma seqncia de prticas.

    Estamos, portanto, obrigados a iniciar pela reconstruo histrica do campo semnticoao qual a palavra amor se vincula. Para alcanar esta reconstruo de um sentido, o maissensato proceder com o estudo das suas formas de materializao externa, isto , o modo emque se materializam em atos externos, em descries, cerimnias, comportamentos e textos. neste plano puramente exterior ou bruto que os sentimentos se cristalizam, permitindo-nosseguir o rastro das constelaes, as gramticas e os dispositivos que conformam e servem paradirigir as aes.

    5 Cfr. Claire ARMON-JONES, The Thesis of Constructivism, in: R. HARR (ed.),The Social Construction of Emotions, London, Basil-Blackwell, 1986, pp. 36 ss.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    4/30

    A partir da reconstruo da geometria deste sistema de sentimentos, desta almaobjetivada, trata-se j de identificar duas coisas. Por um lado, o campo de emergncia doamor. Ou seja, o conjunto de situaes sociais do qual o amor suscetvel de irromper ou do

    qual ele suscetvel de ser invocado. Por outro lado, o conjunto tpico de condutas e prticas(typical behaviour display) que, nesses contextos, considera-se relacionado com o amor; isto, o conjunto de prticas que cabalmente pode ser considerado como amoroso.

    3. OS ESTADOS DE ESPRITO COMO PRINCPIOS DE AO

    Como veremos, para a reconstruo do sistema de sentimentos na Idade Moderna

    catlica nos serviremos, sobretudo, da monumental anlise dos estados de esprito levado acabo por So Toms de Aquino na segunda parte daSumma Theologica(quando desenvolveuma teoria da virtude). A eleio deste corpo literrio levanta por si s uma interessantequesto prvia, de carter geral e relativo relao existente entre os sentimentosefetivamente vividos e as prticas que por outro lado os objetivam. Vale dizer, e expressadode outra forma: O que se diziasobre o amor tinha algo relacionado com o que se faziacom e por amor?

    Esta uma questo que ultimamente tem avivado a discusso metodolgica no mbitoda histria. Pois interessa saber se estas representaes que se colhem nos textos e, maisconcretamente, nos textos teolgico-morais e jurdicos podem ser elevadas classe defontes para o conhecimento das prticas efetivamente vividas.

    A primeira observao que convm formular a este respeito afeta o plano fundamentalde uma teoria da ao e pretende banir certas formas de mecanismo objetivista inclinados explicao da ao humana a partir de um jogo de determinaes puramente externas, que

    podem ir desde as necessidades fisiolgicas at as leis do mercado, passando pelos ritmos dos preos, as curvas de natalidade ou as estruturas de produo. Ns, ao contrrio, no noscansaremos de insistir em que as prticas das quais a histria se ocupa so prticas realizadas pelos homens, isto , prticas que de algum modo procedem atravs de atos de cognio, deavaliao e de volio. Em qualquer destes nveis de atividade mental pressuposta na ao sedo momentos irredutveis de seleo, nos quais os agentes elaboram determinadas verses domundo exterior, as avaliam, optam por formas alternativas de reao, configuram osresultados e antecipam as conseqncias para o futuro. Todas estas operaes intelectuais noso seno representaes construdas pelo agente, representaes eventualmente fabricadas a partir de estmulos (de natureza muito variada) procedentes do exterior, mas que em qualquer

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    5/30

    caso se reprocessam em virtude de mecanismos puramente intelectuais: trata-se de utensliosmentais tais como esquemas de apreenso e classificao, sistemas de valores, processos deinferncia, baterias de exemplos, modelos tpicos de ao, etc.

    Um mundo de representaes, enfim. E assim, por exemplo, quando K. Polanyi insistena natureza antropologicamente configurada do mercado no est dizendo outra coisa senoque as leis do mercado no constituem lgicas de implacvel cumprimento, derivadas dalgica das coisas ou de uma razo econmica, sem modelos de ao que descansam emsistemas de crenas e de valores prprios de uma cultura determinada (de uma poca, de umgrupo social)6. Paralelamente, quando M. Bakhtin defende que o mundo no pode ser apreendido seno enquanto texto7 e que, portanto, a reao entre realidade e representao

    deve ser necessariamente entendida como uma forma de comunicao intertextual, no vemno fundo seno para insistir nesta idia de que todo o contexto da ao humana algo que j passou por uma fase de atribuio de sentido8. A realidade, na medida em que apreendidacomo contexto da ao humana, consumida pela representao. Todas as questes anterioresconvm ressaltar para poder extirpar qualquer tipo de idealismo ou de essencialismo psicologista. As razes mentais da prtica no so inatas, seno externamente dependentes. Asoperaes intelectuais e emocionais comportam momentos de relao com o mundo exterior

    (isso que alguns denominam de momentos cognitivos). Por isso que a mente est submetidaa processos de incorporao de dados ambientais para os quais de um modo simplificado poderamos denominar de aprendizagem9.

    4. ESTADOS DE ESPRITO, CONTEXTOS, PRTICAS E REPRESENTAES

    No fcil, em nenhuma hiptese, gerar um modelo que explique os intercmbios de

    informao entre o mundo mental e o contexto da prtica. Neste momento ressalvaremos aidia de autonomia do funcionamento mental, que exige descartar todo o modelo dedeterminao direta ou mecnica do mundo exterior sobre os estados de esprito, como se os

    6 Karl POLANYI,The Great Tansformation: The Political and Economic Origins of Our Times, New York,1944. Cfr. Uma apreciao mais recente em Ida FAZIO, Piccola scala per capire i mercati, Meridiana14(1992),maxime107-116.7 Sobre esta idia da pan-textualidade de Bakhtin, cfr. Peter V. ZYMA,Textsoziologie. Eine kritische Einfhrung , Stuttgart, Metzler, 1980, pp. 66-88.8 Atribuio que se transformou em texto, isto , em realidade significativa, dominada por um cdigo.9 Na linha deste construtivismo, mas com maior radicalidade, cfr., por exemplo, H. MATURANA/R. VARELA, Autopoiesis and Cognition, Boston, Reidel, 1979 e P. HEJL/W. KCK,Wahmehmung und Kommunikation,Frankfurt am Main, 1978. Mais tarde, Niklas LUHHMANN,Soziale Systeme. Grundriss einer allgemeinenTheorie, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1984. Uma boa introduo a estas correntes encontra-se em Siegfried J.SCHMIDT, Der Diskurs des radikalen Konstruktivismus, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1987.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    6/30

    estmulos internos cunhassem emoes, idias ou juzos de valor. Parece-nos assim, de modocontrrio, mais interessante o modelo autopoitico, que considera a mente como um sistemafechado e auto-equilibrado (homeosttico) e para a qual o ambiente (Umwelt ) s suscetvel

    de operar mediante percusses e estmulos; percusses e estmulos que, estando em nveisabaixo da comunicao, no determinam diretamente os estados do sistema, apesar de daremcausa dissipao de processos internos de re-equilbrio que levam apario de novosestados. Este ambiente de clculo pragmtico (i.e., de clculo mental que subjaz e antecede ao) introduziria, assim, uma srie de compulses que, antecipadas mentalmente e processadas segundo as regras do clculo mental, provocariam modificao do curso da ao.

    Os diversoscorpora literrios e, mais concretamente, o da teologia moral e o do

    direito constituem, neste sentido, exteriorizaes das representaes que ocorrem nos processos de clculo mental. Baseando-se em um exerccio possvel de introspeco10, o quefazem dar conta da forma em virtude da qual um grupo de produtores intelectuaisautorrepresenta sobre todos aqueles mecanismos mentais que os conduziam ao.

    E, apesar de tudo, a interrogao permanece. Pois, esta representao que se ocupa docomportamento externo de um grupo intelectual resulta extensvel aos seus contemporneosem geral?

    muito pouco o que se pode responder aqui. Diante da dvida acerca da capacidadeda representao de abranger os comportamentos dos grupos produtores, o melhor que podemos fazer confiar no que os autores diziam que sentiam e que por ele mais tardeagiriam em conseqncia. Por outro lado, temos que ser conscientes do fato de que estaliteratura s reconhece os modelos semelhantes (uns descritivos, outros normativos) da ao.E que, portanto, no registram as prticas eventualmente derivadas de tais modelos.

    Agora aqui, note-se neste ponto que se dispusssemos de descries brutas das

    prticas isto , de meras descries objetivas dos atos externos tambm acharamos faltade elementos essenciais para sua compreenso, seja em ato humano, seja em ato queincorpora a referncia a um sentido: elementos esses como, por exemplo, o conjunto de suasmotivaes mentais, como a descrio do clculo pragmtico que abriga em sua origem e

    10 Um pouco mais de rigor nos obrigaria a complicar demais esta introspeco, indicando ainda que esta tambmseria prisioneira de sua cultura. E que, portanto, nem mesmo a mente oferece um modo neutro como espetculo para si mesma. Desse modo, oportuno falar de um processo autorreferencial, na medida em que oconhecimento da mente utiliza as categorias da coisa a ser conhecida. Se, para no nos atarmos, introduzssemosaqui um ponto de diacronia que permitisse uma certa objetivao dos elementos estruturantes do conhecimento estamos pensando no conceito de tradio literria ento poderamos dizer que onovoconhecimento sobre amente utiliza as categorias do conhecimentoanterior sobre a menterecebidas da tradio. Mediante aincorporao deste novo saber, a tradioinovavae fazia modelar, j de umanovamaneira, o futuro enovssimosaber sobre a mente.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    7/30

    como aquele processo (prprio ou alheio) de avaliao mental de tais prticas que o que estna base dos mecanismos que desencadeiam novas aes. Teramos, portanto, que contar comuma fonte ideal que justamente seria aquela que conseguisse abranger as prticas

    explicativas.A falta de fontes deste tipo, este trabalho de hermenutica da prtica to essencial

    para uma histria dos atos humanos faz-se com muita dificuldade. No final das contas, resulta que esta hermenutica da prtica - ou seja, este trabalho

    de reconstruo das manifestaes externas at as composies mentais que as originam - pressupe, em primeiro lugar, a existncia de aes objetivamente descritveis. E, em segundolugar, a de um cdigo de interpretao que permite relacionar os efeitos externos com os

    estados de esprito. Neste momento, na realidade, o que ocorre que as prticas s noschegam (atravs de fontes, sobretudo textuais) como representaes (reinterpretadas,amputadas, valoradas). Representaes que viriam a traduzir os dados externos em dadosdiscursivos condicionados pelos cdigos intelectuais dos autores das fontes. E o problemarepousa no fato de que as fontes que descrevem as prticas no revelam os cdigos que permitem passar do ato externo para seu contedo significativo. Deste modo, o que costumamfazer os historiadores projetar as representaes do passado sobre um esquema de

    interpretao que responde s representaes atuais dos motivos da ao. Com isso, aexplicao histrica se converte numa filha espria da unio entre interpretaes passadas deatos passados e modelos atuais de interpretao psicolgica de atos aparentemente idnticosaos praticados no presente.

    Qualquer um pode se dar conta do considervel uso da varinha mgica que requer este processo11.

    5. A TRADIO LITERRIA TEOLGICO-JURDICA COMO HABITUS

    SOCIAL.

    Se, em que pese tudo que foi dito, refletirmos um momento sobre os gneros literriosque nos interessam aqui, podemos em seguida observar que a probabilidade de que os textoscontenham algo para alm das fantasias ou bons votos mais alta do que parece.

    Devemos, neste sentido, ter em conta que a teologia moral e o direito representam, napoca moderna, uma tradio largamente sedimentada. Uma tradio que recolhe esquemasculturais de representao do homem e do mundo muito presentes na experincia e muito

    11 Sobre estas questes, vid.,v.g ., Umberto ECO, I limiti dell'interpretazione, Milano, Bompiani,1990.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    8/30

    aceitas. A contnua discusso intelectual de um mesmo universo literrio no tem senocolocado a prova este consenso que resulta das interpretaes e das leituras, assim como aadequao destas aos direitos vividos. De outro lado, o mesmo velho carter da tradio

    implicava numa enorme capacidade de impregnao dos esquemas mais fundamentais deapreenso, instituindo ento esquemas de distino e de classificao, formas de descrever,constelaes conceituais, regras de inferncia, padres de valorizao. Esquemas que seencontravam incorporados prpria linguagem; que se havia vulgarizado numa literaturavulgar ou em tpicos e brocardos; que se exteriorizavam em manifestaes litrgicas em programas iconogrficos, em prticas cerimoniais, em dispositivos arquitetnicos. E que, justamente por isso, dotavam-se de uma capacidade de reproduo que ia muito alm do que

    propriamente se desprendia dos textos originais. A tradio literria teolgico-jurdicaconstitua, assim, umhabitus12 de autorrepresentao dos fundamentos antropolgicos da vidasocial. Neste sentido, sua ao conformadora estava includa previamente a qualquer intenonormativa, pois repousava na necessria incorporao de uma completa panplia de utensliosintelectuais bsicos e imprescindveis do ponto de vista da apreenso da vida social.

    Mas esta literatura era tudo menos puramente descritiva, tudo menos a-normativa. Seucontedo perceptivo era enorme, tanto que suas proposies apareciam cimentadas na religio

    e na natureza, uma vez que no pretendiam descrever o mundo, mas transform-lo. De fato,aquilo que se descreve nos livros de teologia e de direito se impe como um dado inevitvelda natureza ou como um dado inevitvel da religio. Os estados de esprito dos homens(affectus), a relao entre estes e seus efeitos externos (effectus) eram apresentados comomodelos de conduta obrigatrios, modelos assegurados tanto pela inderrogabilidade danatureza como pela ameaa da perdio.

    Estes textos tm do ponto de vista social uma estrutura semelhante ao dohabitus,tal

    como foi concebido por P. Bourdieu. De um lado, constituem uma realidade estruturada(pelas condies de uma prtica discursiva condicionada por dispositivos textuais,institucionais e sociais especficos), uma realidade que incorpora esquemas intelectuais, cujaadequao ao ambiente est plenamente verificada13; mas, por outro, constituem por sua vez

    12 Habitusque Pierre Bourdieu define como sistema de representaes durveis, predisposto a funcionar comouma estrutura estruturante da ao (Pierre BOURDIEU, Le mort saisit le vif, in: Actes de la recherche en sciences sociales32/2 (1980) 3).13 Esta uma das vantagens que oferece este corpo literrio a respeito de uma tradio literria de fico ou puramente ensastica. Pois nestes ltimos casos os mecanismos de controle da adequao prtica das proposiesou no existem ou sem dvida esto dotados de menor fora re-estruturante. Assim, um personagem psicologicamente inverossmil no obriga necessariamente um autor a re-escrever sua novela.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    9/30

    uma realidade estruturante que continua trabalhando para o futuro, que continua a sugerir esquemas de apreenso, de avaliao e de ao.

    Tanto os desgnios prticos, como a apelao a valores universais (como a natureza ou

    a religio) favoreciam a difuso dos modelos mentais e programticos contidos neste tipo detexto entre leitores que, do ponto de vista cultural, tinham j pouca proximidade com o grupode produtores. Para lograr este objetivo, o ambiente intelectual no qual se criavam estes textosdispunha de interfaces de vulgarizao enormemente eficazes (a parentica, a confissoauricular, a literatura devota, a liturgia, a inconografia sagrada, no caso da teologia; asfrmulas notariais, a literatura de divulgao jurdica, os brocardos, as decises dos tribunais,no caso do direito). Graas a eles os textos-matrizes gozavam de tradues adaptadas a uma

    grande pluralidade de leitores.

    6. TEXTOS IDEOLGICOS E TEXTOS DESCRITIVOS

    Mas, justamente, tanta vocao preceptiva dos textos, no terminar por prejudicar suarelevncia testemunhal, sua condio de testemunha das relaes sociais? Tal pathosnormativo, no os far mais atentos ao dever ser que ao ser? No os dar um banho ideolgico

    que termine por inutiliz-los como fontes idneas da histria? Certas observaes formuladas pelos historiadores a este tipo de fontes insistem precisamente neste ponto. Insistem em postergar estas fontes repletas de intenes a favor das fontes menos intencionadas e que somelhores subprodutos brutos da prtica, como peas judiciais, peties, decises, memoriais:isto , textos que no foram escritos, uma vez que a ao fora modelada. muito provvelque atrs desta hierarquizao de dois tipos de fontes do ponto de vista de sua fidelidade aoreal aloje-se um conceito de ideologia entendida como conscincia deformada e um conceito

    de discurso ideolgico entendido como discurso mitificador, como discurso oposto a outrossimplesmente denotativos e meros reprodutores sem mediaes perturbadoras do estado dascoisas.

    Temos a impresso de que este conceito de ideologia no conta, neste momento, commuitos adeptos. Pois hoje se acredita que, por oposio ao discurso ideolgico, no existemdiscursos no deformados, discursos que refletem de um modo neutro a realidade. Assim,convm partir da base de que a diferena existente entre um texto declaradamente normativo eoutro aparentemente denotativo apenas vem dada pela existncia de duas gramticasdiferentes no momento de construir os objetos. E assim que, ao final, a realidade se dsempre como representao. Com a desvantagem daqueles discursos implicitamente no

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    10/30

    normativos, tal gramtica se encontra escondida, encapsulada em atos discursivosaparentemente neutros, fragmentada em manifestaes parciais. Nestes casos est claro quesua reconstruo global exige um trabalho suplementar.

    Falta, todavia, algo a dizer. Pois evidente que, em que pese tudo o que foi dito, as pessoas nem sempre atuam da mesma maneira, elas no se comportam do mesmo modo nassituaes em contextos prticos equivalentes. Isto significa que os sistemas de apreenso eanlise do contexto, assim como os de eleio da ao e de antecipao de suasconseqncias, nem sempre eram os mesmos. E nos obriga a confundir a existncia, tanto desistemas de clculo pragmtico em conflito, como de leituras divergentes do sistema proposto por essa tradio literria ao qual nos referimos aqui.

    Todos estes modelos de ao dos quais temos falado (typical behaviour display) estotambm culturalmente (nem natural, nem fisiologicamente!) ligados a certas emoes. Autilizao de determinadas palavras para descrever determinados estados de esprito ou o usosocial de certos campos semnticos relativos s aes e reaes individuais fazem pensar na possibilidade de colocar em marcha uma arqueologia emotiva desses modelos de ao. Osestados de esprito constituiriam, assim, substratos emocionais nos quais cada cultura enrazaum conjunto de reaes observveis. possvel, ento, que se venha a elaborar sistemas de

    classificao dos estados de esprito que incluam, fazendo-as julgar numa arquitetura de proximidades e distncias, a palavra amor. Expressado de outro modo, sucede ento que osistema gera um estado de esprito que se considera comum e prprio do estado emocional das pessoas que praticam os atos compreendidos dentro do campo semntico dessa palavra.

    7. POLTICA E PAIXO

    Tendo em vista o que foi dito, cabalmente cabvel a possibilidade de empreender uma tarefa de reconstruo no mais da autonomia da alma do sujeito individual, mas dessaalma objetivada em comportamentos e textos que esto a, no exterior.

    Neste sentido, algum poderia comear a perguntar: Existiria, por exemplo, uma alma poltica? Ser possvel reconstruir para cada cultura e para cada poca uma anatomia da alma poltica?

    Se comearmos a responder estas perguntas por ns mesmos por nossa cultura enossa poca -, pode-se ento dizer que durante bastante tempo, ao longo praticamente doltimo sculo, tem-se o hbito de insistir em que a poltica uma atividade puramenteracional, dentro da qual os afetos no tm lugar. Mas esta afirmao hegemnica deve ser

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    11/30

    matizada14. Para comear, durante muito tempo no se pensou assim. Basta remontarmos atMontesquieu para encontrar uma relao forte entre culturas polticas e ambientes afetivos:todo sistema de poder gera um modelo de paixo poltica correlativo sua estrutura e

    funcionamento. Este modelo afetivo pode (e deve ser) identificado e estudado no momento decompreender a natureza do poder poltico. Ademais, e a pesar de que o sculo XIX ignoroueste caminho e preferiu pensar que a poltica consistia num clculo racional de interesses, emnosso sculo se redescobrem politicamente os afetos e os sentimentos. No s graas a autorescomo S. Freud ou W. Reich15. Pois ainda nos fins deste mesmo sculo determinados setoresda cincia poltica e da cincia da organizao voltam a ressaltar a importncia da afetividade,de tal forma que dota de grande fluidez os sistemas de informao ao evitar o uso de prolixos

    rodeios discursivos16.

    8. MODELO DE AMOR

    E, apesar de tudo, o modelo de alma hoje dominante segue sem qualificar de amorosaa paixo cvica prpria da sensibilidade poltica contempornea. Ainda sim reconhecemos a pertinncia desta dimenso afetiva da ordem poltica, no difcil perceber que o pathos

    cvico no qual se apia a sociabilidade poltica do mundo de hoje se configura nas antpodasdo amor: os juristas, enquanto tcnicos por excelncia do social, assim como os poderes pblicos, no podem, do ponto de vista institucional, albergar amor dentro de si; no podemto pouco perturb-lo, nem podem falar dele. Em uma palavra, no podem produzir o amor.

    Exclamar e afirmar, por exemplo, que os governantes amam os governados ou que osgovernados amam os seus governantes, repetir, portanto, o que tanto se tem dito durantetantos sculos, resultaria hoje em dia demasiado vazio e demasiado retrico, quando no

    simplesmente ridculo.

    14 Em geral sobre esta matizao, e para encontrar uma proposta da poltica entendida no como clculo racionalde interesses, mas como gesto de paixes, vid. Pierre ANSART, La gestion des passions politiques,Paris, L'gede l'homme, 1983.15 Para os quais modelos polticos consistem em distintas tecnologias de produo de estados emocionais e degestao de objetos de desejo ou libidinais: vid. as obras clssicas de Sigmund FREUD, Psicologa de las masas y anlisis del yo(1921) e Wilhelm REICH, La psicologa de masas del fascismo(1933).16 Alvin Toffler tem salientado, com espetaculares exemplos, esta importante funo do amor no mbito da poltica entendida como sistema de comunicao. O ambiente afetivo resultaria muito efetivo na medida em que- ao ser menos necessria a transmisso de informao: em que um j conhece os problemas ou as reaes dooutro - se economiza energia e se evita o estresse comunicativo: vid. Alvin TOFFLER, El cambio del poder ,Barcelona, Plaza & Jans, 1992.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    12/30

    Isto ocorre porque o nico amor predicvel do mbito poltico um amor genrico,racionalizvel, normalmente entendido como filantropia ou como renncia ao interesse particular. Isto , um amor no fundo muito raro, pouco confivel e que no pode acabar por

    engajar nosso conceito usual e estabelecido de amor porque se apresenta como amor pelotodo. Assim, como sabido, o amor verdadeiro sempre amor por uma parte e estestritamente catalogado dentro do subconjunto das paixes do particular. Ama-se, ento, aDeus (que um Deus pessoal), o amante, a famlia, a outros (caridade) ou a si mesmo(egosmo). Ama-se na verdade desta forma, isto , ama-se de um modo politicamenteimpertinente, pois todos estes amores resultam, de um modo ou de outro, disfuncionais nomomento em que so transladados ao terreno da poltica.

    Poltica e amor percorrem trajetos distintos ao longo de um percurso e de um lento processo de dissociao que ocorre, recordemo-nos, entre um de seus primeiros marcos naoposio estica entre razo e paixo (quando se comea a considerar as paixes doentias daalma que alteram o equilbrio racional e transformam a harmonia do esprito) e um de seusmarcos principais na consolidao de uma teoria racionalista do conhecimento que vem aarruinar a idia tradicional e admitida de corte tomista, como veremos de que se podeatingir a conscincia do bom, do verdadeiro e do justo tambm atravs do amor, do interesse e

    da amizade.Seja como for, o fato que o amor do particular sai do campo da poltica e as paixes

    passam a ser classificadas como fatores de perturbao da ordem poltica.

    9. AMOR E PRTICA POLTICA

    Esta forma terica de oposio no pode, contudo, fazer-nos olvidar a recorrncia do

    amor na prtica poltica medieval e moderna. As referncias amorosas so aqui constantes.Assim, acima de tudo, temos o amor do rei, o qual se manifesta na graa, isto , nessa atitudetpica do amante, de completa disponibilidade de si para o outro ( gratia), paralelamente, nanoo tambm de servio, isto , de uma disponibilidade que se traduzia na converso do reiem um oficial da Repblica disposto a sacrificar-se no altar do Estado. O reiprivava-sede sua pessoa privada e se transformava numa pessoa pblica ( servitium regni). No possua amigos pessoais e, neste processo de imolao pessoal, entregava-se enquanto amante para uma samada: a Repblica. O rei e a esposa, consumando-se assim um matrimnio mstico que dorigem, de forma seminal, mediante este ato de amor, ao corpo poltico. Pela graa, o amor dorei era dado aos demais; pelo servio, dava-se a si mesmo.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    13/30

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    14/30

    um permanente cortejo nupcial entre ambos: tanto o rei, como seus vassalos praticam atos deseduo. O rei seduz pelo seu singular estado, inteiramente envolvido pelo esprito de servio(ecstasis), mediante a liberalidade e a graa; os sditos seduzem, ao manifestar seu amor nos

    momentos solenes ou nas grandes ocasies, como na abertura de Cortes ou nas joyeusesentres del rey, ou quando prestam juramento de fidelidade, fidelidade esta que justamente aque se comprometem os amantes.

    E o rei seduz, em particular, com a misericrdia e o perdo. Uma anlise do direito penal do Antigo Regime nos demonstra que a pena de morte, do mesmo modo quedeterminadas penas corporais, na verdade eram muito pouco aplicadas, apesar do rigor das previses estabelecidas nos textos e nas leis, pois se dava um continuado exerccio do perdo

    por parte do monarca. Assim, e justamente ao contrrio do que muitas vezes se pensa, ocastigo no se caracterizava por sua efetividade no sistema penal de fato praticado pela justiareal do Antigo Regime antes do advento do despotismo ilustrado, comprovao surpreendenteque leva a crer que o direito rgio constituiu uma ordem jurdica praticamente virtual, maisorientada para uma interveno simblica, ligada promoo da imagem do rei comodistribuidor de justia, do que para uma interveno normativa que efetivamente disciplinasseas condutas desviantes. Neste plano doutrinal, este complacente regime de perdo se explica

    duplamente: por um lado, pelo papel que a doutrina sobre o governo atribua clemncia; por outro, por sua vez, pelo que a doutrina sobre a justia atribua eqidade. A clemnciaconstitua uma qualidade essencial do rei e era semelhante a um dos tpicos mais comuns dalegitimao do poder real: a representao do prncipe como o pai e pastor dos sditos, o qualdeveria procurar fazer-se amar mais do que temer. Ainda que fosse entendido que a clemnciano pudesse conferir alicenacapaz de deixar impunes os crimes (justamente porque entre osdeveres do pastor se encontra a persecuo dos lobos), o fato que se postulava como regra

    urea que o rei antes deveria ignorar e perdoar do que castigar, ainda que fosse em detrimentode uma rigorosa aplicao do direito18.

    Junto a este jogo de intercmbios necessrio finalmente situar o importante papeldesempenhado pelas imagens, ao promover amorosas vises do rei enquanto pai, pastor ouvigrio de Deus. Tomados j todos estes mecanismos de seduo em seu conjunto, no cabedvida de que se est contribuindo para o fortalecimento da Repblica19.

    18 Vid. Antnio M. HESPANHA, Deiustitia a disciplina, in: HESPANHA, La gracia del derechocit., pp.203-274.19 Em concluso expressado com outras palavras, escritas em outra parte, a propsito do sistema penal -, osexpedientes de graa constituam a outra face do apontamento da ordem real. Amenizando-se o castigo (mascastigando efetivamente muito pouco) o rei se afirmava como justiceiro e se realizava ento umimportantssimo tpico ideolgico do sistema medieval e moderno de legitimao do poder -, quando perdoava

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    15/30

    Em concluso, possvel pensar que durante muitos sculos o amor ocupou umespao central do imaginrio poltico e jurdico da sociedade europia, at ao ponto de sechegar a conceber, no mbito da primeira tradio crist, o projeto de uma comunidade

    baseada exclusivamente nos vnculos amorosos. A igreja logo teve que renunciar tal empresa e teve que recorrer novamente, por conseqncia, ao direito e coero (agora denominada fratema correctio) -, mas a linguagem do amor continuou impregnando os prprios textos jurdicos e polticos que faziam com freqncia uso de metforas vitais e institucionaisnaquelas nas quais o amor determinava uma posio estruturante. Pater e Pastor, pai e pastor,so metforas que usualmente serviam para designar o senhor espiritual ou temporal. A cargaafetiva da piedade familiar e do amor do pastor por suas ovelhas vinha, de outro lado, a

    temperar a crueldade das relaes entre senhor e sdito. E a teoria do direito incorporava tudoisto, especialmente quando se enfrentavam a soluo de eqidade e a soluo stricti iurisouquando se reconhecia que ao fazer justia o juiz no podia abster-se do contexto sentimentalque inevitavelmente gravitava sobre o caso concreto: pois ele mesmo se envolvia, uma vezque, no momento da deciso, teria que colocar sobre a balana os afetos e os desamores quecontextualizavam a deciso, includos os seus prprios20.

    Teria que acrescentar, enfim, que esta dimenso sentimental revelada pelos textos no

    tem relao com a retrica. No se pode cair na tentao de crer que todas estas manifestaesso superficiais ou retricas (quando no simplesmente hipcritas); isto , que no tmrealmente relao com a poltica. Muitos historiadores do a volta por cima, passam a pginana qual se tem invocado esta classe de amor. Mas fazem mal, pois trabalhando deste modotrivializam indebitamente os textos, pois, no fundo, o historiador trata seus autores como sefossem contemporneos seus, e argumenta ento para si desta maneira: dado que hoje ostextos polticos no falam de amor, e que por ele no possvel remitir essas manifestaes do

    passado ao sentido atual do conceito, termina-se, sensivelmente, por achar quetudo isso sempre retrica.

    Esta trivializao dos textos, no terreno da histria das idias polticas, muitolamentvel. Esquece-se que os autores e os atores destes textos do passado no se

    se reafirmava outra de suas imagens, a de pastor e de pai, essencial tambm para efeitos de sua legitimao. Amesma mo que ameaava castigar sem piedade, chegado o momento sabia prodigalizar as medidas da graa. Eesta dialtica do terror e da clemncia transformava simultaneamente o rei em senhor da Justiciae mediador daGraa. Invertia em temor, mas tambm, e em quantidade semelhante, em amor. O rei, como Deus, se desdobravanas figuras do Pai justiceiro e do Filho doce e amante (lbidem, p. 234).20 Vid. Antnio M. HESPANHA, El poder, el derecho y la justicia en una era perpleja, in: HESPANHA, La gracia del derechocit., p. 326.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    16/30

    comportavam nem tinham razes para se comportar como ns21. E precisamente se perde,ento, a oportunidade de captar os momentos mais significativos, que so sempre os que jazem abaixo destas figuras da aparncia. So os que mais significam porque justamente

    quando levamos a srio os textos que nos parecem ridculos nos colocamos em condies dedescobrir o impensadode uma poca. O impensado que os explica se atinge, pois, medianteuma interpretao sria, isto , profunda e intensa como querem os antroplogos22.

    Toda uma geografia da alma subjacente superfcie textual est aguardando,todavia, ser reconstruda23.

    10. AMOR E ORDEM

    Como j indicamos, no momento de proceder com aquela reconstruo, legtimo emnossa cultura partir docorpus literrio constitudo pelos grandes telogos e moralistas daIdade Mdia, especialmente por So Toms.

    Se isso se passa assim, ento comearemos dizendo que, na viso de mundo tomista, aCriao constitua um grande todo no qual cada elemento tinha seu lugar e nele se manteriagraas a uma precisa inclinao (appetitus) interna: o amor. Isto ocorria porque nesta magna

    ordem do mundo, tanto as coisas, como as pessoas viam-se mutuamente atradas para seubemao lugar que lhes eraconveniente24. Na filosofia grega estas foras ordenadoras que repeliamou atraam os corpos (mantendo-os, em todo caso, no seio do todo) distinguiam-se entre si ehaviam recebido j os respectivos nomes de horror ( phobia) e amor (ou amizade, philia)25. Agora, o amor um desejo que vai converter emradix omnium virtutem, raiz detodas as virtudes.

    21 Vid., para tudo isto, Antnio M. HESPANHA, Una historia detextos, in: F. TOMS e VALIENTE et alii(eds.), Sexobarroco y otras transgresiones premodernas, Madrid, Alianza, 1990, pp. 187-796.22 Sobre esta interpretao profunda (deep understanding ) dos antroplogos (dos especialistas, portanto, naobservao de culturas alheias a sua prpria), vid. Cliffrd GEERTZ, Local Knowledge. Further Essays in Interpretative Anthropology, New York, Basic Books, 1983.23 Sobre esta geografia da alma e seus requisitos historiogrficos, cfr. Mario BREETONE, Diritto e temponella tradizione europea, Roma/Bari, Laterza, 1994.24 Vid., para todos, L. DUGAS, L'amiti politique, Paris, 1914; Pierre ROUSSELOT, Pour l'histoiredu problemede l'amour au Moyen ge, Mnster, 1908 (= Beitrge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters. Texte undUntersuchungen, ed. de Clemens Bumker e G.F. v. Hartling, t. VI.l); Amiti, in: M. VILLER/Ch.BAUMGARTEN (eds.), Dictionnaire de spiritualit asctique et mystique, Paris 1937-1991; Charit, in: A.VACANT et alii (eds.), Dictionnaire de thologie catholique, Paris, 1923-1950; J. RATZINGER, Liebe, in: J.HFFFER/K. RAHNER (eds.), Lexikon fr Theologie und Kirche, Freiburg, Herder, 1961.25 Discutia-se na ocasio se era a semelhana ou a diferena que estava na base desta fora de atrao. AssimAristteles, no livro VIII da tica a Nicmaco, quando se ocupa da amizade entre os homens, faz repousar averdadeira amizade (a amizade agradvel e a amizade virtuosa) na semelhana, apesar de reconhecer que pode existir a amizade entre desiguais (amizade til).

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    17/30

    Deste ponto de vista, possvel dizer que todo o cosmos estava imerso no amor pelomero fato de ser . At mesmo as coisas inanimadas participavam deste amor, pois se atraam erepeliam segundo inclinaes inscritas na ordem da Criao. Tratava-se de um sentimento de

    ordem universal. E ento era possvel dizer que os corpos amavam o repouso, da mesmamaneira que o universo teria horror ao vazio26. Ou que os minerais se amavam entre si, namesma medida que a terra rida amava a chuva ou a fmea o varo.

    A teoria tomista do amor edificava-se sobre esta base.E, por isso, para So Toms, o amor (amor ) uma inclinao para o bem; e uma

    afeio (afectio), uma paixo ( passio)27 que orienta a ao em busca do bem at que a vontadelogre gozar deste28.

    Em sua eficcia ordenadora, o amor gera desejos, tanto sensuais (appetitus sensitivus),como intelectuais (appetitus rationalis)29. Por isso, e porque a busca do bem constitui ummovimento racional dos seres, no ocorre em So Toms como acontecia em Plato e nafilosofia estica a oposio entre paixo (inclinao sensual) e razo (inclinao intelectual).Ambas so movimentos, em princpio positivos, de amor. E o so porque este, o amor, por mais que, num outro momento, seja pelo Santo Doutor dividido entre amor racional e altrusta(amor amicitiae) e amor sensual e interessado (amor concupiscentiae), tende por sua prpria

    natureza virtude, a qual por sua vez se define deste modo:humana virtus quae est principium omnium bonorum actuum hominis consistit in attingendum regulam humanorumactuum30.

    Este otimismo sensualista de So Toms faz com que sua valorao das paixes sejamuito distinta daquela dos esticos. Para estes ltimos, como j sabemos, as paixes opem-se razo porque so, por natureza, enfermidades do esprito: isto , essencialmente ms31.26 Secunda Secundae(SS, em diante) daSumma Theologica(ST, em diante), q. 26, a.3.27 As paixes so tratadas no incio da Prima Secundae(PS, em diante) daSumma Theologica, quando SoToms, a propsito da beatitude, reflete sobre os atos humanos. Alguns dos atos dos homens so especificamentehumanos, enquanto que h outros que so comuns a homens e outros animais. Os primeiros so os atosvoluntrios, posto que a vontade uma inclinao racional prpria do homem (PS, q. 6 ss.). Os segundos so as paixes (PS, q. 22 ss.), as quais podem definir-se como uma transformao (perdida ou transmisso a outros) doagente (PS, q. 22 a.1) que afeta, sobretudo, a parte sensitiva do esprito (appetitus sensitivus), e no a parteintelectiva ou voluntria (PS, q. 22 a. 2 e 3).28 ST, PS, q. 25 a. 2; q. 26 a. 1; q. 28 a. l. Prima autem dispositio mentis humanae ad bonum est per amorem,qui est prima affectio et omnium affectionem radix (PS, q. 70 a. 3); Omnis affectionis principium est amor(PS, q. 22 a. 2).29 ST, PS, q. 102 a. ad. 3.30 ST, SS, q. 23 a. 3. Cfr. A definio aristotlica, na qual a relao entre virtude e ordem aparece todavia maisclara, na media em que a virtude de cada coisa depende de que este esteja bem ordenada segundo sua natureza( Physica, VII, c. 3, n. 4).31 O prprio So Toms estava bem consciente desta divergncia, ainda que a reconduzisse a uma diferenteformulao da anatomia da alma. Certamente, os esticos incluam os sentidos dentro do prprio intelecto,com que a paixo passa a definir-se como um movimento no racional da vontade (vid. ST, PS, q. 24 a. 2).

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    18/30

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    19/30

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    20/30

    Como podemos notar, o amor capaz de instaurar diversas unidades com distintarelevncia jurdica sem que, em nenhum caso, tenham ou necessitem depender dos ditados darealidade emprica.

    12. O AMOR CONCRETO: A AMIZADE

    O amor uma afeio geral e universal, ao mesmo tempo que um princpio deunidade. Une todos os seres, permite a expresso,transemprica. Os insere em uma ordem.

    Pois junto a este sentimento de ordem universal, So Toms discorre tambm sobre aamizade, entendida como uma manifestao concreta ou forma especfica de amor que s

    pertence ao homem. Isto ocorre porque a amizade, alm de requerer tambm a existncia decomunicao com seu objeto, exige ademais ser redistribuda por este. Ao demandar umaretribuio, no se pode predicar nem das coisas inanimadas (v.g., o vinho) nem das coisasdesprovidas de razo (v.g., um cavalo)42, da mesma forma que, tampouco, pode-se predicar detodo o cosmos. A amizade funda-se em umadeterminadacomunicao; umcerto tipo deamor, existemamizades. Com outras palavras, a amizade, a diferena do amor, constitui umsentimento diferenciador.

    Vejamos: Nem todo amor tem razo de amizade, mas envolve benevolncia; isto ,quando amamos algum de tal maneira que a queremos bem. Mas se no queremos o bem para as pessoas amadas, e apetecemos seu bem para ns mesmos, como se diz que amamos ovinho, um cavalo, etc., j no h amor de amizade, mas sim de concupiscncia. na verdaderidculo que algum tenha amizade com o vinho ou com um cavalo. Mas nem sequer a benevolncia suficiente como razo de amizade. Se requer tambm a reciprocidade do amor, j que o amigo amigo para o amigo. Mas essa recproca benevolncia est fundada em

    alguma comunicao43

    . justamente esta diversidade de nveis de comunicao que d conta da existncia de

    distintos tipos de amizade.Sem dvida, mais elevada era a caridade (amicitia charitatis), pois repousava na

    comunicao com outro que participava da divindade. A caridade assim o amor fundado nacomunicao com Deus; ela nos faz amar, em Deus, o prximo: a razo do amor ao prximo Deus, pois o que devemos amar no prximo o que existe em Deus. , portanto, evidente

    42[Amicitia non convenit] nisi ad rationales creaturas ni quibus contingit esse redamationem etcommunicationem (ST, SS, q. 20 a. 2 ad 3).

    43 ST, SS, q. 23 a. 1 (todas as citaes em castelhano segundo a edio da Biblioteca de Autores Cristos,Madrid, 1990).

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    21/30

    que so da mesma espcie o ato com que amamos a Deus e o ato com que amamos ao prximo. Por isso o hbito da caridade compreende o amor, no somente de Deus, mastambm o do prximo44.

    Abaixo da caridade, diferenciam-se tipos de amizadeem razo da existncia dediferentes nveis de comunicao entre os homens45. Deste modo, distingue-se a amizade por parentesco, fundada na comunicao natural46; a amizade paterna e materna, fundada nacomunicao entre pai, me e filhos47; a amizade conutritiva, fundada na infncia comum48;a amizade eletiva, fundada na comunicao que estabelecemos com os companheiros detrabalho ou de atividade49; a amizade dos cidados com o Prncipe, fundada na comunicaoem interesses do bem comum50; a amizade dos cidados entre si, fundada na comunicao

    civil51; a amizade entre companheiros de armas, fundada na comilitncia52; a amizade entre oscompanheiros de viagem em comum. Entre todas estas classes de amizade dava-se, tambm,uma ordem. Justamente, toda a questo 26 daSecunda Secundaededica-se a explorar ashierarquias da amizade53.

    Acima de tudo estava o amor para com Deus e com o prximo, j que participava da bondade de Deus (SS, q. 26 a. 2). Depois, e sucessivamente, vinham o amor natural quequalquer parte tem sempre pelo todo (SS, q. 26 a. 3);o amor por si mesmo (SS, q. 26 a. 4)54;o

    amor pelos mais prximos, especialmente pelos familiares, os vizinhos, os scios e osconcidados (SS. q. 26 a. 7 e 8). Dentro deste ltimo, o amor pelo pai superior ao amor pelo

    44 ST, SS, q. 25 a. 1. Deve-se dizer aqui que ainda neste amor pelo Absoluto que passa pelo amor ao finito existeuma ordem: o amor de caridade tende a Deus como princpio da bem-aventurana, em cuja comunicao sefunda a amizade de caridade. , do mesmo modo, conveniente que entre as coisas amadas por caridade hajaalguma ordem segundo sua relao com o princpio primeiro desse amor, que Deus (SS, q. 26 a. 1).45 A amizade pode ser classificada segundo os fins (persegue-se o til, o agradvel ou o honesto) e segundo adiversidade da comunicao humana na qual se funda (vid. SS, q. 35 a. 5). Em Plato, ao contrrio, a amizade( prtom philon) tinha uma s natureza e no era, portanto, suscetvel de ser hierarquizada. Esta concepo platnica, todavia se deixa entrever no captulo 2 do livro VII da tica a Eudemiode Aristteles.46 Vid. ST, SS, q. 26 a. 8.47 Vid. ST, SS, q. 26 a. 9/11 (a propsito dos diferentes planos de comunicao inter-familiar e suas hierarquias).48 Cfr. o captulo 12 do livro VIII da tica a Nicmaco.49 Vid. ST, SS q. 26 a. 8.50 Toda amizade considera com preferncia aquilo que diga respeito principalmente ao bem em cujacomunicao se funda, e assim, a amizade poltica se fixa principalmente no prncipe da cidade, de quemdepende o bem comum total da mesma. Por isso os cidados lhe devem tambm, sobretudo, fidelidade eobedincia (SS, q. 26 a. 3). Vid. tambm os captulos 6 e 12 do livro VIII da tica a Nicmaco.51 Vid. ST, SS, q. 26 a. 12.52 ST, SS, q. 26 a. 8.53 Realmente, So Toms fala aque da ordem da caridade, porque se subentendem que estes tipos desociabilidade (e os sentimentos correspondentes de solidariedade) se enrazam em una concepo crist da vida,segundo a qual em todos os laos afetivos mundanos subjaz-se um vnculo afetivo com o Criador (vid. SS, q. 26a. 1 ad. 1).54 Que em nenhum caso inclui o amor pelo prprio corpo!: vid. SS, q. 26 a. 5.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    22/30

    filho ou pela me (SS, q. 26 a. 9 e 10); o amor pela mulher superior ao amor pelos pais (aosquais, em contrapartida, deve-se maior reverncia) (SS, q. 26 a. 11); e, enfim, o amor pelo benfeitor suplanta o amor pelo beneficiado (SS, q. 26 a. 12).

    Em uma palavra, na teoria social de So Toms se o amor era, nem mais nem menos, ocimento que sustenta a espontnea observncia da ordem da Criao, a amizade constituiagora o vnculo que estrutura internamente os ncleos mais concretos de sociabilidade: afamlia, a cidade, o grupo profissional, as comunidades locais. Ou seja, que a amizadecomplementa o amor mediante o suprimento de um princpio de representao do conjuntodos vnculos sociais. O amor, novamente, essa inclinao geral e virtuosa dos homens paraviver em sociedade (affectio societatis); a amizade, por sua vez, especifica esta unio entre os

    homens para estabelecer um conjunto de vnculos concretos que so diferentes uns dos outrose que, acima de tudo, esto submetidos a uma hierarquia. A amizade integra o homem em umdeterminado crculo de sociabilidade ordenado para a persecuo de um bem em particular.

    Estes bens particulares so, como dissemos, hierarquizveis. Ordenam-se segundouma antropologia bem conhecida que subordina o sensual ao racional e o racional aosobrenatural, para o qual, tanto as sociabilidades (communicationes), como, em conseqncia,os sentimentos de solidariedade (amicitiae) que as geram, apiem-se, tambm, sobre esta

    precisa ordem. E importante dar-se conta de que esta hierarquizao no o resultado deuma anlise racional. Nem muito menos deriva da vontade de cada um: surge, emerge das prprias coisas, ou seja, do modo de ser, da natureza das relaes sociais particulares que acada um comprometem em funo dos diversos bens perseguidos. Ordo autem principaliusinvenitur in ipsis rebus; et ex eis derivatur ad cognitionem nostram, que dizia o SantoDoutor 55.

    Por tudo que foi dito, o amor essa meditao atravs da qual a ordem do mundo

    logra ser interiorizada em emoes. E a partir disso justamente que o amor conduz a ao.Estamos perante toda uma ordem natural de sentimentos que no toleram um estudo

    psicolgico de veleidades subjetivas. Os afetos, sentimentos ou sociabilidades esto apuradosde um modo objetivo, a partir dos dispositivos prticos aos quais cada um deles corresponde(i. e., a cidade, a famlia, o patronato, o companheirismo militar). A particular sensibilidade decada um no possui aqui nenhum papel.

    por isso que a anlise da amizade no se localiza no plano da psicologia, mas no da poltica. No mais profundo centro desta ltima. Por isso, So Toms, como Aristteles antesno livro oitavo da tica a Nicmaco, no duvida ao considerar quea amizade ocupa um lugar 55 ST, SS, q. 26 a. 1.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    23/30

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    24/30

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    25/30

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    26/30

    dever correlato natureza do homem como animal social67. Deste modo, a distncia entre osdeveres da justia e os deveres da amizade era muito menor do que se pode supor em princpio. Mais ainda: a distncia era to pequena que a amizade podia ser considerada como

    uma virtude prpria da justia68.Em resumo, parece claro no plano ontolgico que a Escolstica no distingue o

    preceito de amor do preceito da justia. Tanto um, como outro remetem-se a uma ordemsuperior, a Ordem do mundo (neste caso, humano). O que sucede que o preceito amorosocapta essa ntima disposio das coisas e as projeta no plano dos sentimentos, provocandoseus correspondentes afetos e efeitos. Na medida em que, no plano da prtica humana, o preceito amoroso tem assinado um papel constitutivo por ser a base de todas as aes e de

    todas as inclinaes, no se pode realmente dizer que seja legalmente devido. Ele era, antesdisso, fonte de uma ordem que, quando se estabelece (positiva-se, faz-se lei), fundamentadireitos e deveres. Neste sentido, o ato de amor (de amizade) disciplina tanto quanto colocamanifestas, no mbito das emoes e das aes externas, estruturas de ordenao ehierarquizao social que estavam escondidas na espessura das relaes sociais.

    Quando o prncipe manifesta, ento, por meio de atos de liberdade rgia (i. e., atos deliberdade prprios dos reis), aquela forma de amizade honesta com seus sditos, o que faz

    exteriorizar com a palavra ou com a ao um modelo de comunicao que at ento existiaimplicitamente, de tal modo que sehabituava ehabituava aos sditos no seguimento dessaordem imanente da qual todos participavam. E o mesmo pode-se dizer do amor honesto nomatrimnio: traduzia-se em um conjunto de emoes e de atos que ao serem mutuamente praticados pelos cnjuges vinha a atualizar e explicitar (no plano da ao) a natureza virtualda relao de comunicao que os implicava.

    67 quia horno naturaliter est animal sociale, debet ex quadam honestate veritatis manifestationem aliis

    hominibus, sine qua societas hominum durare non posset. Sicut autem non posset vivere horno in societate sineveritate, ita nec sine delectatione [...]. Et ideo horno tenetur ex quodam debito naturali honestatis ut horno aliisdelectabiliter convivat: nisi propter aliquam causam necesse sit aliquando alios utiliter contristare (ST, SS, q.114 a. 2).68 (Para a questo de se a amizade no faz parte da justia) Respondeo dicendum quod haec virtus est parsiustitiae, inquantum adiungitur et sicut principali virtuti. Convenit enim cum iustitia in hoc quod ad alterum est,sicut et iustitia. Deficit autem a ratione iustitiae, quia non habet plenam debiti rationem, prout aliquis alteriobligatur vel debito legali, ad cuius solutionem lex cogit, vel etiam aliquo debito proveniente ex aliquo beneficiosusscepto (ST, SS, q. 114 a. 2). Deve-se no obstante assinalar que a diferena entre o dbito de amizade e odbito de justia aflora com intensidade crtica em alguns pontos, como os relativos natureza da obrigao dedar claridade ou natureza da obrigao de retribuir um beneficio. Sobre este ltimo aspecto convm recordar que o mesmo So Toms equipara (em SS, q. 14 a. 3) a obrigao legal obrigao de gratido. Sobre adiscusso jurdica em torno do carter gratuito das recompensas, vid. HESPANHA , La gracia del derechocit., pp. 151-201. Bartolom Clavero, pela sua parte, tem escrito um belo livro sobre este curioso paradoxo dos atosdevidosde graa: vid. CLAVERO, Antidora. Antropologa catlica de la economa moderna, Milano, Giuffr (=Biblioteca per la storia del pensiero giuridico moderno, 39), 1991.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    27/30

    sabido por todos que a Igreja encorajou, durante sculos, o projeto de uma ordem baseada unicamente no amor, uma ordem puramente poitica. Este projeto alimenta-se daesperana de que essa ordem mantida pelo amor nunca tivesse que ser contestada, pois a

    paixo inscrita nas almas pela natureza das coisas teria fora suficiente para disciplinar a vida.A disciplina surgiria assim naturalmente de dentro. Esta aspirao teria que ser singularmentevivel numa comunidade de crentes dotados de uma capacidade intelectiva que havia sido,graas ao batismo, renovada pela nova luz da Graa. Esta ordem era, pois, prpria daquelesnos quais se havia restaurado a primeira sabedoria, aquela que o pecado original fez escorrer das mos.

    Mas tudo isso no ocorreu. A ordem foi violada e a justia teve que fazer aqui sua

    apario enquanto virtude regeneradora ou reconstrutora.

    14. A RECONSTITUIO DO AMOR E A FUNO DOS JURISTAS

    Na polmica renascentista sobre a dignidade dos saberes, um dos tpicos maiscorrentes consistia na oposio entre o direito e as boas letras, especialmente a poesia. A raizdeste antagonismo parece no ter nenhuma relao com a elegncia ou aspereza do ato de

    escrita praticado pelos juristas. Estaria mais em conformidade com uma profunda e ranosaantipatia existente entre, de um lado, a ambio criativa das empresas literrias e, de outro, avocao dos juristas para o exerccio continuado da memria, essa obstinada predisposio para a recapitulao incessante de coisas j sabidas. Basta ler os textos dos clssicos sobre asqualidades dos juristas e as caractersticas de seu saber para verificar esta criticada insistnciano carter rememorativo e reconstrutivo daars iuris: no corao da jurisprudncia agregariauma atividade de reconhecimento a partir do qual se desprenderiam as tcnicas jurdicas de

    reconstruo. Iurisprudentia est humanarum atque divinarum rerum notitia, sabemos por Ulpiano (D. 1.1.10,2), que, por adio, o termonotitiaalude tecnicamente recapitulao deum saber j estabelecido.

    Ainda hoje, o estudo do direito segue pejorativamente associado com a memorizao:a sensatez, o domnio de si e a impassibilidade so considerados qualidades formativas doesprito do jurista, um esprito, portanto nada criativo e orgulhosamente anti-imaginativo(muito aleijado, se preferir a expresso, do clmax).

    Em qualquer caso, e voltando aos passos dos antigos, cabe afirmar que o jurista estacima de tudo afetado por esta impossibilidade: a de criar a ordem, cujo asseguramento est justamente encomendado. Pois a ordem foi criada por outros, por Deus ou pelo titular do

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    28/30

    poder. A funo dos juristas, que no pode ser ento poitica, seminal adicionemos j deuma vez o que falta:que no pode ser orgsmica-, tem-se que limitar, por uma questo de princpio, tarefa de reconstruo da ordem que previamente conheceu. Como o afeto,

    primeiro gerador de tal ordem, esparramou-se j em seu momento, agora do jurista exige-se aeliminao de qualquer veleidade afetiva. No assimafetado, e, para que ainda no cheguesequer a fazer-se iluses sobre sua capacidade de seduo e de gerao seminal, , dessemodo, velho, austero, grave, digno, veste-se de preto e move pouco seu corpo.

    Neste momento, e a partir desta realidade psorgsmica, podemos ao finalrefletirmos: No h a possibilidade de que, dentro dos limites fechados por esta atividadereconstitutiva do juiz, se tirasse proveito da funo heurstica do amor, uma vez que desta

    inclinao fazia-se o bem e, portanto, fazia-se a verdade?Dado que o amor comporta uma certa conaturalidade ou complacncia do amante em

    relao ao objeto amado69, no se poderia aproveitar esta unio entre amante e amado paraadquirir um conhecimento mais perfeito, um conhecimento melhor que aquele que se alcanamediante processos intelectuais distantes (acrescentemos j de uma vez:mediante processosintelectuais frgidos?)

    O prprio So Toms, neste sentido, coloca, junto via intelectual de acesso ao

    conhecimento, outras vias complementares, e entre elas, justamente, encontra-se a doconhecimento afetivo70. Mas no h que se iludir, pois, ao mesmo tempo, cuida-se de advertir que este conhecimento, dominado pela afetividade, no pode funcionar em relao justia.Esta interdio tem naturalmente proximidade com a funo poitica do amor ao queanteriormente nos referamos e explica-se do modo seguinte: se o jurista apreendesseafetivamente as relaes humanas que devem executar, ento estaria na prtica instituindouma nova ordem. Estaria fazendo sua prpria justia (lacere iustitiam suam71), estaria

    substituindo essa ordem instaurada pela prpria natureza das relaes objetivas(communicatio), e que sempre e de algum modo est presente no esprito das partes, por outra baseada numa relao particular do juiz com a questo ou com alguma das partes afetadas. Anica forma, ento, de evitar esta perversa recomposio da ordem mediante o compromissoafetivo do jurista justamente exigiria que este compromisso fosse universalizvel. Isto , que a

    69 Vid. ST, PS, q. 27 a. 1.70 Vid., sobre este tema, H. D. SIMONIN, La lumire de l'amour. Essai sur la connaissance affective, in: Lavie spirituelle46 (1936) 65-72; M.-D. ROLAND-GOSSELIN, De la connaissance affective, in: Revue deSciencies Philosophiques et Theologiques27 (1938) 5-26; Rafael Toms CALDERA, Le jugement par inclination chez Saint Thomas d'Aquin, Paris, Vrin, 1980,maximepp. 105 e ss.71 Expresso que sempre tem designado o pior dos crimes ou pecados que pode cometer o juiz, isto , asubstituio de critrios objetivos por critrios subjetivos de ajuizamento.

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    29/30

  • 7/28/2019 antonio manuel hespanha - a trilha amorosa do direito.doc

    30/30

    nesta ltima condenao que arrasta consigo o prprio amor geral, isto , que arrasta, por suavez, tambm, toda esta velha e complexa conscincia sentimental do jurista que no sabemosmuito bem se est, nestes ltimos tempos, renascendo.